Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
CRÍTICAS AFETIVAS DA POESIA CONTEMPORÂNEA: construindo relações Aline de Almeida Moura
[
33
1
Resumo: Tomando como ponto de partida o conceito de afeto, o objetivo desse trabalho é pensar no modo como alguns ensaios de crítica de poesia contemporânea lidam com o envolvimento afetivo e corporal no momento de sua análise. Nesse sentido, analisamos o livro Afeto & Poesia. Ensaios e entrevistas: Angola e Moçambique (2014), de Carmen Lúcia Tindó Secco, e o livro Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea (2014), de Luciana di Leone, assim como alguns artigos que se debruçam sobre essas questões. Embora com corpus curto e aleatório, intentamos possibilitar algumas reflexões sobre o trabalho crítico, principalmente no que se refere à sua relação com aspectos afetivos, afectivos e corporais.
Palavras-chave: Crítica. Poesia contemporânea. Afeto.
]
dossiê temático:
CORPO
1
Doutorando em “Literatura, cultura e contemporaneidade” pela Pontifícia Universidade Católica – Rio. E-mail:
[email protected] REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
34
A vontade de superar um afeto não é, em última análise, senão vontade de um outro ou de vários outros afetos. (Nietzsche. Parágrafo 117, Para além do bem e do mal)
[1] Antonio Candido, em ensaio intitulado
Luiz Costa Lima, outro importante
“Crítica e memória” (2010), pondera que
teórico da literatura brasileira, no artigo para o
“talvez devêssemos dar mais atenção aos
jornal A Folha de São Paulo (no seu caderno
arrabaldes do trabalho crítico. Sem prejuízo, é
Ilustríssima) “A linguagem como matéria em
claro, do seu cerne, onde se localizam a análise
Luci Collin” (2016), também reflete sobre os
objetiva do texto e a investigação histórica”
“arrabaldes” do trabalho crítico. Antes de
(CANDIDO, 2010, p. 33). Segundo o autor,
apresentar a sua leitura da poetisa curitibana,
deveriam ser reavaliados o puritanismo e a
Costa Lima justifica-se ao afirmar que “o
fuga de leituras impressionistas, embora elas
reconhecimento do nível do dizível no poema
tenham contribuído para o campo. No ensaio
requer a qualidade de seu leitor. E, entre
citado, ele propõe uma leitura para o poeta
respostas distintas, uma não será correta, em
François Villon e ressalta a sua profunda
preferência de outras” (s/p, 2016). Em outras
admiração pelo “malandro imortal”. Nesse
palavras, o autor sugere que uma das tarefas
sentido, a sua sugestão de “um novo capítulo
do crítico é apontar para o dizível, mas que
para a crítica”, que pudesse expressar o
não está dito claramente, na obra de um
contato afetivo com obras literárias, serve
artista. Essa leitura depende do conhecimento
também como justificativa para a forma com
anterior do crítico-leitor, uma vez que “'No
que ele aborda a obra de Villon.
meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
no meio do caminho tinha uma pedra' pode ser
tomado
como
uma
Nessa esteira, duas estudiosas de
permutação
literatura escolheram como mote de suas
brincalhona, uma alusão satírica ou dramática
pesquisas justamente a afetividade em sua
ao verso de Dante” (s/p, 2016). Costa Lima
ligação
também necessita se justificar por conhecer
contemporânea da Argentina e do Brasil, como
apenas dois dos mais de dez livros de Collin,
fez Luciana di Leone (2014) e com a produção
afirmando que “se, apesar do risco, me atrevo
poética de Angola e de Moçambique, como fez
a escrever sobre o que li da autora, é porque
Carmen Lúcia Tindó Secco (2014). Reflito,
seu desconhecimento chega a me parecer
nesse sentido, em como as autoras lidam com
criminoso” (s/p, 2016), apontando, assim
aspectos afetivos em suas análises.
como em Candido, para um caráter afetivo na sua análise.
com
a
produção
poética
Antes de prosseguir, ressalto que afetividade, no contexto deste artigo, pode ser
Dois pontos que gostaria de ressaltar
entendida tanto em seu sentido mais amplo de
na crítica desses dois importantes pensadores
ligações e relações – seja entre sujeitos, seja
são a ligação entre uma leitura afetiva com o
entre texto e leitor/ crítico – construídas com
impressionismo e a subjetividade, por um lado,
base no carinho e apego, quanto em seu
e, por outro lado, a vontade dos autores em
sentido
transpor em palavras a afetação causada pelas
Espinosa. A partir da leitura proposta Marcos
obras. Dito de outra forma, em diálogo com a
Gleiser sobre a teoria da afetividade do filósofo
epígrafe escolhida, a vontade do crítico de
holandês, por afeto (affectum) se entende “as
escrever se deve aos afetos e afecções
afecções (affectiones) do corpo, pelas quais a
causados nele pela leitura, assim como a
potência de agir desse corpo é aumentada ou
vontade de esconder as aspectos afetivos são
diminuída, favorecida ou entravada, assim com
também resultado de afetividades advindas de
a ideia dessas afecções” (GLEIZER, 2005, p. 33).
sua tarefa de crítico, em que o sujeito-crítico
Dessa forma, não há uma separação entre a
deveria ser objetivo e racional. Ambos terem
alma e o corpo quando pensamos no afeto,
escolhido iniciarem seus textos com uma
além de haver uma ligação entre ele e o
justificativa para sua abordagem também
conceito de conatus, isto é, de que as coisas se
indica uma preocupação com o possível leitor
esforçam para perseverar no seu ser. Nesse
e o modo com que ele será afetado pela
sentido, “o afeto é uma afecção que faz variar
análise
são
positiva ou negativamente a potência de agir”
importantes para se pensar a relação entre
(p. 35), fazendo com que uma afecção neutra,
afecção, afeto e crítica na contemporaneidade,
isto é, que não altera a potência de agir, não
como ela se opera e como ela pode enriquecer
tenha dimensão afetiva. Em outras palavras,
as obras analisadas.
nem toda afecção é um afeto, mas toda afeto
proposta.
35
Esses
pontos
filosófico,
como
abordado
por
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
possui afecções, criando um estrito laço entre corpo e mente (alma).
[2] 36
políticas que, por intermédio da melancolia, por exemplo, podem externar, benjaminianamente, alegóricas manifestações de crítica e indignação, ou seja, “emoções lúcidas” que põem em questão determinadas ações históricas (SECCO, 2014, p. 15).
Em seu livro Afeto & Poesia. Ensaios e entrevistas: Angola e Moçambique (2014), resultado de sua pesquisa de pós-doutorado, Carmen Lucia Tindó Secco teve como objetivo central analisar como afetos e afecções – “alegria, esperança, amor, ódio, tristeza, melancolia,
etc.”
–
se
A partir de tais conceituações, a autora
encontram
pretende observar o modo pelo qual alguns
representados em obras e entrevistas de
poetas angolanos e moçambicanos “exorcizam
autores angolanos e moçambicanos (SECCO,
'afecções nefastas', reavaliando a importância
2014, p. 13). Tendo como base teórica o
de valores humanos e sociais desgastados pela
trabalho de Spinoza, para a autora, o filósofo
violência de Angola e Moçambique” (p. 15). Ou
define afeto como “um estado da alma, uma
seja, Secco propõe que os aspectos afetivos
força propulsora capaz de levar ou não o ser a
encontrados nas obras de alguns poetas
ações e paixões” (p. 13). Assim, ela trabalha
possuem uma ligação com o seu contexto
com a noção de afeto “não como meros
sócio-histórico, tomando-os como uma forma
sentimentos ou emoções, mas como pulsões
de se posicionar sobre os fatos acontecidos,
que atingem o âmago do corpo e do espírito, e
mesmo que elas pareçam apenas tratar de
afetam, profundamente, o ser, de modo a
aspectos subjetivos. Nesse sentido, a autora
incitá-lo à ação ou à passividade” (p. 13). E, por
aponta que atentar para os afetos significa
afecções, Secco entende como “modos de
“repensar o mundo, apreendendo sentidos
sentir que afetam, principalmente o corpo; são
inusitados que a linguagem da poesia e da arte
imagens ou ideias que se manifestam como
são capazes de formular. Afetando histórica,
emoções, sentimentos provocados por causas
social,
externas, sensações” (p. 14).
esteticamente quem as admira, lê e/ou
Um aspecto a ser ressaltado é que, segundo ela, para Spinoza, os afetos são aquilo que nos relaciona com o mundo e com a existência; denotam não apenas atitudes existenciais face à potência de viver, mas atitudes
política,
filosófica,
existencial
e
interpreta” (p. 21). A professora Carmen Lúcia também aponta para a discriminação sofrida pela África, por ser considerada um continente que “só possuía emoção, tendo sido a razão
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
excluída do universo dos povos africanos e
passado. No segundo ensaio, “História e
atribuída apenas a Europa” (p. 16), para, logo
imaginação, erotismo e afetos: algumas
em seguida, mostrar a contestação deste
reflexões sobre a poesia angolana pós-1990”, a
paradigma dualista em filósofos como Spinoza,
autora procura demonstrar que a poesia
Deleuze, Derrida, entre outros, prevalecendo
angolana,
atualmente uma perspectiva que une razão e
desligada
emoção, e percebendo que “o sensível pode
obstante, em suas entrelinhas, perplexidades,
levar à potência emancipatória” (p. 16). Além
sentidos e sentimentos que apontam para um
disso, entendendo que a teoria deleuzeana
contexto histórico de crises, rupturas e
pensa o afeto como semiologia, é “esse
incertezas” (p. 43). Como no ensaio anterior,
sentido semiológico que nos interessa em
ela referencia dados políticos e econômicos
especial” (p. 17) e, por isso, ela se centra no
para, posteriormente, analisar uma vertente
trabalho com a linguagem feito pelos poetas
poética surgida nas décadas de 1990 e 2000
estudados.
que priorizaria “as estratégias do sensível” –
mesmo da
que
história,
aparentemente “descortina,
não
Esse livro é composto por duas partes
expressão cunhada por Muniz Sodré e que
principais, que se seguem ao seu texto
designa o campo em que as sensibilidades
introdutório: um conjunto de quatro ensaios
levam o sujeito para uma caminhada em busca
sob o título “Os afetos na poesia” e um
da liberdade (p. 54) –, analisando alguns livros
conjunto de dezessete entrevistas com poetas
desse período. No ensaio “Por entre sonhos e
angolanos e moçambicanos sob o título “Os
compromissos...”,
afetos pelo olhar dos poetas”.
literatura pode assumir ou não, previamente,
Secco
discute
“se
a
Os ensaios buscaram, segundo a
compromissos de ordem externa”, indagando-
autora, evidenciar “as relações existentes
se sobre o seu uso panfletário e utilitário da
entre poesia, afeto e crítica literária” (p. 18). O
linguagem (p. 58). Nesse sentido, a autora
primeiro ensaio, intitulado “Novas trilhas do
reconstrói
sentir na poesia angolana contemporânea”,
moçambicana, ligando a produção poética dos
procura demonstrar, através da análise de
anos 1960 e 1970 à luta contra o salazarismo e
alguns poemas em diálogo com dados políticos
à sua valorização como instrumento de
de Angola, que os poetas que emergiram pós-
combate e politização (p. 60). No contexto
independência
“construir
pós-colonial dos anos 1980, poetas como Mia
imagens e metáforas que se voltam para as
Couto e Luís Calos Patraquim “perceberam que
emoções
de
o realismo crítico e a poesia engajada haviam
politização dos sentimentos e afetos” (p. 29),
despojado as pessoas, em grande parte de
utilizando
amor,
suas emoções íntimas” (p. 61), emergindo,
sentimentos, a metapoesia e a reinvenção do
então, uma poética que “embora não se
começaram
interiores,
temas
numa
como
a
procura
erotismo,
uma
cronologia
da
37
poesia
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
esquecesse dos conteúdos sociais, revigorasse
pessoalmente (p. 18). Nesse sentido, a maioria
o lado subjetivo dos seres humanos” (p. 62).
das perguntas se repete, sendo as mais
Assim, o sonho, o erotismo e as metáforas
comuns transcritas aqui: “os afetos geralmente
metapoéticas,
são
são
usados
como
forças
banidos
da
linguagem
acadêmica,
geradoras de um despertar histórico, em que
científica, porque lidam com subjetividades.
se busca uma politização dos sentimentos e
Mas o reino da literatura se situa nas fronteiras
afetos (p. 67). Por fim, em “Revisitações
do real e do sensível. Acha possível alguma
poéticas da Ilha de Moçambique”, a autora
manifestação literária que não trabalhe no
analisa o livro Mesmos barcos ou poemas de
território dos afetos? E a crítica literária, acha
revisitação do corpo, de Sangare Okapi,
que pode trabalhar com uma linguagem do
escolhido por sua focalização na Ilha de
sensível?
Moçambique, no qual ela procura investigar
“Atualmente, alguns filósofos têm voltado a
“de que modo a poesia participa da história,
enfatizar a importância das emoções, da
desvelando sentidos, afetos e saberes que se
dimensão do sensível. Fala-se, hoje, numa
encontravam ocultos ou olvidados” (p. 76).
'poética dos afetos', em 'afecções lúcidas”.
Mais
ser
Qual o papel dos sentimentos no âmbito de
importante “algumas informações sobre a Ilha
sua escrita? O que pensa sobre uma 'poética
de Moçambique” (p. 76), no que tange a
dos afetos' (afetos e desafetos, pois se
colonização lusitana. Sua tese é que “no fim
entende afeto como tudo que afeta o ser)?”;
dos anos 1980 e início dos 1990, com o
“Fale dos afetos presentes em seus poemas”;
enfraquecimento das utopias revolucionárias,
“Os afetos sempre existiram e, a meu ver,
alguns poetas e escritores, ao verem o
estão presentes na Literatura, no ser humano,
território moçambicano aviltado pelos longos
nas sociedades. Focalizando a literatura de seu
períodos de guerra, buscaram espaços menos
país como um sistema, que afetos você
atingidos por esta”, voltando-se para o
apontaria como predominantes na poesia dos
imaginário do amor e das ilhas, “à procura de
anos 40-50, 60-70, 80-90, 2000-2010? Por
Eros, do amor e das origens” (p. 78). Assim, ela
quê? E, em relação à sua poesia, se eu lhe
conclui que o livro de Okapi, embora tenha
pedisse que elegesse os afetos predominantes,
uma paisagem subjetiva, possui um olhar pós-
você seria capaz de enumerar os principais?”;
colonial (p. 84).
“Domina
uma
vez,
a
autora
acredita
As entrevistas com os poetas foram estruturadas previamente
a
partir
formuladas
de e
perguntas que
Isso
no
invalidaria
mundo
as
38
análises?”;
contemporâneo
a
economia de mercado e até o livro entra nesse contexto. Considera possível a poesia se
foram
adequar a esse universo econômico? Como
respondidas pelos autores por escrito, uma vez
valorizar a poesia em sociedades que priorizam
que não foi possível encontrar com todos
o consumo? Como você relaciona afeto e valor
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
mercadológico?”. Segundo a autora, “uma
mundo. Os ensaios, embora curtos, alcançam
parte significativa dos poetas entrevistados
esse objetivo, mesmo que utilizem abordagens
concebe o afeto em íntima correlação com
tradicionais nos estudos literários como é a
poesia” (p. 21). Além disso, em sua maioria, há
contextualização histórica através de dados
um entendimento de que tanto afeto quanto
políticos e econômicos. Assim, a forma com
poesia
de
que os poetas utilizam a linguagem é
informação que não é apenas corporal nem
explicada, por vezes simplificadoramente, por
intelectual, mas que “significa repensar o
um questionamento da literatura engajada
mundo, aprendendo sentidos inusitados que a
predominante nas décadas de 1960 e 1970.
linguagem da poesia e da arte são capazes de
Nesse sentido, por mais que a dicotomia entre
formular” (p. 21).
razão e emoção, meu corpo e o corpo político
constituem
um
outro
tipo
Não me cabe aqui julgar se a
39
procure ser esvaziada, ela continua ali, meio
interpretação feita pela autora é coerente,
que
na
espreita,
mas pensar na forma com que foi utilizado o
abordagem mais tradicional das poesias,
pensamento sobre os afetos em seu livro.
mesmo ao utilizar conceitos como afeto e
Assim, interessa-me pensar em como afetos,
afecção. Mais interessante ainda são as
afecções e corpo influenciaram a análise a qual
perguntas feitas, pois parece igualar afeto ao
a autora se propôs. Na capa do livro, aparece a
sentimento, afeto à pura subjetividade. Talvez,
pintura do artista plástico moçambicano
em vez de perguntar se a crítica pode ser
Roberto Chichorro “A paixão de Colombina”,
afetiva, a autora poderia, de fato, ter feito um
que segundo a própria autora do livro, Carmen
trabalho crítico que envolvesse o corpo de
Secco, no artigo “Uma pintura de sonhos,
seus
memórias, cores e poesia” (2011), explora
contextualização histórica apenas em seu viés
temas como o erotismo, o amor, as figuras
político e social. Tanto nas entrevistas quanto
humanas e o tema dos namorados. Na tela,
nos ensaios é possível perceber que o afeto
aparece Pierrô e Colombina abraçados, sem
aparece como temas trabalhados nos poemas,
que possamos distinguir qual é o corpo de um
temas
qual e qual é o corpo do outro, como se
subjetividade como o amor e o erotismo, mas
fossem unidos: o eu e o outro. De certa forma,
que, para a autora, possuem ligação com
a autora busca em seu livro demonstrar esse
questões políticas. Nesse sentido, a análise
entrelaçamento entre o subjetivo presente nas
crítica feita se dá na identificação dos afetos
poesias, o sentimento do eu, íntimo, mas que
presentes e como eles poderiam corresponder
está em consonância com aspectos políticos,
a uma tentativa de inserir essas temáticas em
buscando, de alguma forma, interferir nas
um contexto político de pós-independência e
sensibilidades e sentimentos em relação ao
de fuga de uma poesia engajada, como a
leitores,
principalmente
que
tradicionalmente
ultrapasse
relacionados
pela
a
à
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
autora propõe. Os afetos e afecções, dessa
aparece na sua explicação inicial do que é o
forma, parecem ser domesticados na liguagem
afeto.
poética, pois dizem respeito mais ao conteúdo
interessante
das poesias do que à forma com que elas
proposto.
De
qualquer e
que
jeito,
é
alcança
um o
livro
objetivo
poderiam mover o corpo, levar à ação, como 40
[3] Poesia e escolhas afetivas: edição e
projetos” (LEONE, 2014, p. 19). Nesse sentido,
escrita na poesia contemporânea, resultado da
segundo a autora, essas produções não podem
tese de doutorado da professora Luciana di
ser observadas sem se levar em consideração a
Leone (2014), assim como na proposta de
importância – identificada também em campos
Carmen Lúcia Secco, preocupa-se em refletir
como a filosofia, a sociologia e a crítica de arte
sobre
na
– da questão do relacional, dos modos de viver
contemporaneidade, mas se cirscunscrevendo
junto, dos coletivos artísticos, “com os seus
ao contexto argentino e brasileiro através de
desdobramentos
abordagem bastante diferente da primeira
grupalidade, a comunidade, as aproximações e
autora. Leone tem por princípio a crença em
as distâncias entre o eu e o outro, e os efeitos
uma transitividade poética, em que escrita e
e afetos” (p. 20). O livro, nessa lógica, se
leitura se relacionam a partir da ideia de
propõe a refletir sobre os modos de ler,
afetação, de modificar e ser modificado por
escrever
aquilo que se lê e se escreve. Embora ela
contemporaneidade, focando nas “escolhas
ressalte que essa transitividade e afetividade
poéticas como afetivas, critério que tanto
não
poesia
surge da experiência do convívio quanto opera
contemporânea, brasileira ou argentina, a
na formação de grupos, na organização de
autora se justifica ao apontar que uma
coletivos de produção e nos mecanismos de
importante parte dos trabalhos poéticos
consagração e visibilidade, através de revistas,
produzidos nas últimas décadas no Brasil e na
editoras especializadas, oficinas, encontros” (p.
Argentina “se constrói explicitamente a partir
27).
a
sejam
poesia
produzida
prerrogativas
da
e
na
reflexão
editar
sobre
poesia
a
na
de uma cena de leitura que alimenta as
No primeiro capítulo, “Pensamento
escolhas afetivas e alimenta a continuidade
contemporâneo: o afeto em pauta”, Leone
dos afetos produzidos e, ainda, explicitam
procura explicitar a sintonia entre a explicação
essas escolhas como as que guiam seus
do critério afetivo na poesia do presente com
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
uma preocupação que percorre a reflexão
equivocada de comum. Para Esposito, a
filosófica e estética das últimas décadas sobre
comunidade
o relacional, através de noções como amizade
imunidade,
e comunidade. Em outras palavras, ela
soberano que se fecha para qualquer contágio
identifica uma espécie de “espírito de época”
(p. 42), havendo a necessidade de se repensar
que torna central as escolhas afetivas tanto na
a noção de comunidade para o contexto
poesia contemporânea quanto em outras
contemporâneo.
áreas. Afeto, então, será trabalhado em uma
contribuição de Manuel Castells e sua reflexão
dupla referência: “como afecção e como
sobre a sociedade em redes, na qual haveria
sentimento, para referir e insistir na sua
uma subversão do conceito ocidental e
dinâmica relacional, pela qual os sujeitos e
tradicional de sujeito, em que se corre o risco
discursos
de
implicados
são
vulnerados,
sua
moderna apontando
Ela
dissolução
se
fundaria
para
também
através
um
na
sujeito
busca
de
a
uma
desfigurados e reconfigurados por essa força
espetacularização do eu (p. 48-9). Mario
que varia de forma contínua” (p. 31). Ou seja,
Perniola é chamado para essa discussão
ela opta por não diferenciar afecção – “que
através de seu pensamento sobre o sentir, em
implica uma mistura de dois corpos” (p. 31) – e
que haveria a necessidade de, no mundo
afeto por entendê-los como envolvidos na
contemporâneo, um “fazer-se sentir. Tornar o
concepção de escolhas afetivas (p. 31). Além
sentir uma forma de ação” (p. 53). Nesse
disso, Leone ressalta que “a ideia de afeto se
sentido, Luciana di Leone conclama que “em
afasta de qualquer associação com a expressão
lugar de gerenciar o 'especularismo sensitivo'
de uma interioridade inatingível, que marcará
ou de manipular 'os sentidos coletivos', a
a definição romântica e escolar de lírica. Pelo
tarefa, de ida e volta, entre o comum e
contrário, o afeto se dá como resultado de
singular, e esse trânsito é pautado pela escolha
uma relação onde a fronteira entre interior e
como ação, pela escolha afetiva como ação”
exterior já não é determinável” (p. 32). Há,
(p. 54). Em outras palavras, o sentir e os
nesse sentido, uma mútua modificação entre
relacionamentos permeiam a escrita de poesia
um corpo – que pode ser um texto, uma voz –
e crítica na atualidade, importando perceber
sobre
expressão
como esses aspectos aparecem. Trazendo a
unidirecional de sentimentos (p. 32). Nesse
discussão sobre a expansão do literário feita
capítulo, ela se apropria de Spinoza e Deleuze
por Florencia Garramuño, Leone também
em suas considerações sobre afeto, mas
aponta para a necessidade de uma nova
também de Roberto Esposito e sua reflexão
crítica, que em lugar de observar os objetos
sobre comunidade, no qual ele buscou superar
como fechados em si, devem percorrer os
o entendimento moderno de agrupamento de
fluxos que os atravessam (p. 58). Em síntese,
outro,
e
não
uma
41
sujeitos com base em uma concepção
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA seja nas propostas literárias expansivas, seja na atitude crítica ou nas modulações do pensamento contemporâneo em diversas disciplinas, o que fica mais e mais evidente é o interesse contemporâneo, o imperativo ético, de mostrar os contatos, as afecções e os afetos, de pensar para além das fronteiras genéricas e disciplinares, mas sem deixar de ouvir as singularidades que elas possam ter. Ler a partir da noção de afeto participa dessa atitude, pois ela torna impossível a procura ou a afirmação de identidades de autoria ou originalidade claras (LEONE, 2014, p. 59).
estéticos (p. 64). Nesse sentido, seu foco é
Contudo, como ressalta a autora, é
comum – comum com um sentido que se
preciso ter cuidado para que as noções de
difere de igual, como trabalhado por Esposito.
afeto e de relacional não sejam esvaziadas pela
Assim, “antes que uma lógica de lutas e
sua repetição como palavra de ordem,
concorrência, parece se destacar uma lógica
apaziguando
de afetos conviviais”, em que podem ser
as
suas
potências
pensar em como funciona a publicação de poesia
em
editoras
pequenas
e
independentes, uma vez que as grandes editoras não se interessariam em divulgar novos poetas pelo grande risco financeiro. Ela aponta como essas pequenas editoras não se veem
como
concorrentes,
mas
como
garantidoras da continuidade de um projeto
sobrepor as figuras e tarefas de escritor, editor
desestabilizadoras (p. 60). No capítulo “Escolhas afetivas e edição
e leitor (p. 80). Apesar dessa característica,
de poesia”, seu objetivo é entender algumas
percebe-se
das modulações existentes de uma estética
contemporâneos não possuem definições ou
afetiva, isto é, em que se predomina o fazer
filiações, mostrando que o agrupamento é
junto, nas poesias argentinas e brasileiras
muito mais em nível de amizade do que de
contemporâneas. Para isso, ressaltando como
busca por uma linha geracional de produção
a noção de afeto tem se tornado problemática
poética. Ao analisar alguns casos de editoração
no campo artístico, ela aborda como escolhas
de livros de poesia, ela aponta, mais uma vez,
afetivas muitas vezes são entendidas como um
para a crítica que a relação amical pode levar a
dispositivo
legitimador
práticas
uma endogamia, ou seja, a formação de um
endogâmicas,
“nas
afeto seria
círculo fechado de poetas-amigos de difícil
sinônimo de relações especulares, dentro de
entrada, afirmando que essa crítica se deve a
um grupo fechado de iguais” (p. 63),
um desconhecimento do funcionamento das
procurando demonstrar, contudo, que as
edições de livros e de blogs, assim como uma
relações são bem mais dissimétricas. Assim, ela
resistência a tratar a afetividade como critério
principia
de
válido. Nesse sentido, ela reitera que “em lugar
agrupamentos na edição de livros, ressaltando
de assinalar negativamente a amizade e o
que tradicionalmente o trabalho editorial
afeto entre os organizadores e participantes, o
combina critérios econômicos, políticos e
que tentamos mostrar é a importância da
de
quais
observando
42
a
o
formação
que
os
projetos
poéticos
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
escrita poética no capítulo “Poéticas do afeto:
com a naturalização dos modos de consagração predominantes na poesia produzida nas últimas décadas – a do meu tempo, a dos meus amigos –, modos de consagração das quais a crítica participa intimamente. Daí que a tarefa assumida tenha sido, desde o começo, a desnaturalização desses modos – e não sua desativação! (LEONE, 2014, p. 218-9).
endereçamento, citação e nomes próprios”.
Assim, ela procurou descortinar nesse
pergunta pelo significado do sintoma da insistência no critério afetivo” (p. 165). Além de pensar na matriz convivial na edição, Luciana di Leone também se preocupa em apontar como ela funciona como matriz de
Nele,
a
autora
diferentes
livro “as tramas da consagração literária” como
procedimentos textuais que aparecem na obra
provenientes de escolhas editoriais e de
dos poetas como, por exemplo, o de
escolhas
“apresentar o próprio texto como deformado
antologias, oficinas e blogs por ela analisada. A
por diferentes vozes” (p. 171), materializados
desnaturalização dos critérios afetivos e
no uso de aspas, caixas de diálogo, signos de
transitivos ao longo de seu trabalho teve como
interrogação. Outro procedimento observado
foco “reinvestir – de incômodo – esse afeto, e
é o uso do nome próprio de lugares, nomes e
sua relação com ideias de comunidade e
textos que referem à momentos concretos na
amizade, tão caras ao nosso pensamento
vida literária, assim como o uso de diversos
crítico” (p. 219). Ela propõe que suas reflexões
tipos de citação. Analisando as produções de
críticas sobre as escolhas afetivas possam ser
Marilia Garcia e de Aníbal Cristobo, Leone
úteis para pensar outros campos poético,
retoma a ideia de trânsito e percurso citada na
artístico
sua
possibilidade
introdução
apresenta
para
concluir
que
tais
estéticas,
ou
social, de
que
aparecem
incitando
que novas
para
formas
43
nas
a de
percursos “se realizam apenas para ser
organização social ou comunitária no nosso
afetados, como única forma de criar algum
tempo. Segundo ela, uma poética das escolhas
tipo de pertencimento, ou de comunidade,
afetivas encena relações dissimétricas, entre
quando as cartografias e as identidades
corpos que se afetam uns aos outros,
declaram seu definitivo enfraquecimento” (p.
contribuindo para a possibilidade acima
211).
mencionada. Por fim, em seu último capítulo,
Nesse trabalho, percebemos que a
intitulado “Repensando as escolhas afetivas:
noção de afeto é entendida em uma caráter
por um gesto crítico”, Leone aponta para a
mais amplo, assim como também é a sua
impossibilidade de propor conclusões, pois ela
abordagem da questão. A produção poética
acredita na tarefa de inquietação da poesia (p.
deixa de ser vista como produto de uma mente
218). Em suas próprias palavras, ela se
genial, para se mostrar como relacional – com
preocupa
outros textos, outros autores, amigos. Além
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
disso, a relação com o “extra-literário”, isto é,
esconder esse caráter afetivo em critérios que,
questões de editoração, sociais e culturais,
mesmo importantes, são também arbitrários.
aparecem como fazendo parte e construindo o
De qualquer forma, sua análise, como ela bem
“intra-literário”, em uma perspectiva mais
ressaltou, não esvazia a produção poética
dialética. Sem dúvida, falar de relações de
contemporânea através de uma rotulação
afeto, seja nesse sentido amplo empregado
aleatória, mas enriquece a nossa forma de
por Leone ou em sentido mais restrito, pode
conceber tanto a produção poética quanto o
implicar interpretações equivocadas como a
olhar crítico. De fato, ela contribui para
acusação de não possuir critérios, de ser
podermos trabalhar com aspectos afetivos na
subjetivo. A contribuição do trabalho da
editoração, na leitura e na escrita, vendo
autora,
sua
corpos de carne, osso e coração que escrevem,
“desnaturalização” das relações entre editores,
que leem e que editam, não apenas mentes
leitores e autores, ressaltando, contudo, que
que produzem.
de
fato,
está
em
44
não é necessariamente prejudicial essa rede. Como ela analisou, muitas vezes o editor tenta
[4] Procurei apontar para como as duas
apontou Leslie Fiedler, em seu texto de 1984
propostas lidaram com a questão dos afetos na
“Cross
the
border
crítica literária, ressaltando que cada uma tem
Postmodernism”, passamos de uma era
suas contribuições e problemas. Se por um
racional, analítica, em que a recepção crítica
lado, Carmen Lucia Tindó Secco tratou afetos e
era algo natural, para um mundo emocional,
afecções como temas recorrentes na poesia de
romântico, sentimental, exigindo uma postura
Angola e Moçambique; por outro Luciana di
alternativa da crítica. Em sua leitura, uma
Leone se preocupou como relações afetivas
crítica renovada não deve ser textual ou
apareceram na poesia do Brasil e Argentina
formalista, mas assumir que o trabalho de arte
tanto na escrita, quanto na edição. De fato,
de fato existe em um contexto, necessitando
concordo com Leone no que tange a existência
da paixão e apreensão dos leitores. “Not
de um zeitgeist preocupado com afetos e
words-on-the-page but words-in-the-world or
afecções, que aparece tanto nos textos por ela
rather words-in-the-head” (FIEDLER, 1984, p.
analisados, como em outros tantos autores e
152), embora nós, estudiosos de literatura,
em outros tantos campos de saber. Como
ainda
hoje
–
estejamos
close
that
tentando
gap:
formas
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
alternativas
de
lidar
com
essas
novas
de estar no mundo.
produções e também como essa nova forma
[5] 45
Outro trabalho muito interessante
discurso” (TEIXEIRA, 2006, p. 147). Ela, que leu
sobre a relação entre crítica e afeto é
Osório e Gullar, construiu um sentido para a
desenvolvido pela professora da Universidade
exposição,
Federal Fluminense Lúcia Teixeira. Seu atual
namorados, os estudantes, os turistas que
projeto de pesquisa se debruça sobre práticas
podem não os ter lido, tendo como ponto-
semióticas que utilizam o corpo como meio de
chave a ideia de que “o corpo que vê e se
produzir sentido. Ela trabalha, por exemplo,
movimenta percebe do mundo as sensações,
com críticas de arte que recorrem aos afetos e
mas as sensações já se manifestam recobertas
afecções causado por determinada obra
de discurso, a percepção do mundo estando
artística em sua construção textual. No artigo
sempre
“Razão e afeto: a argumentação na crítica de
experiência” (p. 147).
assim
como
submetida
à
os
casais
semiotização
de
da
arte” (2006), Teixeira tem como pressuposto
Partindo de Greimas e Fontenelle
teórico a semiologia francesa tal como
(1993), a autora identifica uma práxis comum
abordada por Fiorin (1996) e Greimas (1993)
nos textos de crítica da cultura:
para analisar como Ferreira Gullar e Camilo Osório,
assim
como
a
própria
autora,
construíram um determinado saber sobre a exposição “Abrigo poético – Diálogos com Lygia Clark”, ocorrida no MAC – Niterói, de setembro a dezembro de 2006. A autora identifica a sua ida à exposição, assim como o movimento
de
outros
corpos
com
o
espera-se, num texto de crítica de arte, a debreagem de vozes que confirmem a palavra do enunciador, a referência a recursos técnicos da obra de arte analisada e aos efeitos que produzem, como demonstração da competência do crítico, a valorização do percurso de aprendizagem do artista e o reconhecimento de seu trabalho; espera-se, enfim, um movimento discursivo que, ao mesmo tempo em que fala da obra e do artista, instala a autoridade do crítico (TEIXEIRA, 2006, p. 148-9).
pensamento de Merleau-Ponty: “a visão não é um certo modo do pensamento ou presença em si, é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro à fissura do ser. É nesse movimento de sair e retornar que o sentido toma forma, vira
Através da análise de seu corpora, Teixeira identifica tanto em críticas de arte do pré-modernismo,
do
modernismo
e
do
momento contemporâneo a reiteração desse esquema
discursivo,
“bem
como
a
possibilidade de ir além dele, em textos que
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
associam à racionalidade da explicação e
contemporâneas” (p. 154). Talvez por razão do
descrição a disseminação, no discurso, dos
saber acadêmico já ter se consolidado no
impactos da obra apreciada sobre o sujeito
contexto atual e, este ter como um de seus
crítico” (p. 149). Em outras palavras, aspectos
pressupostos, a busca pela objetividade e
afetivos também são incorporados no fazer
imparcialidade.
crítico, dotando o texto tanto de um saber técnico
quanto
de
um
“acontecimento
Retomando a figura do relâmpago, tanto em seu sentido “inesperada fulguração”,
estético”, conforme suas palavras. Ela também
quanto
explora neste artigo as estratégias utilizadas
precedido de uma espera tensa e sucedido por
nos textos que propiciariam a adesão dos
um
leitores para o que foi escrito, mesmo que
representa o acontecimento estético” (p. 153-
tenha sido expressão subjetiva dos críticos.
4), Teixeira aponta para a crítica de arte como
Nesse sentido, ela entende que “o contrato
uma tarefa de explorar o signo verbal em
proposto pelo crítico ao leitor não se completa
profundidade e em lateralidade, expandido
se
certa
seus sentidos e dizendo, como também afirma
sensibilização do discurso, imposta pela obra
Costa Lima, o indizível. Aquilo que está lá, mas
de arte que a provoca” (p. 153), pois esta
que não conseguimos ver. Ela aponta para a
atitude garantiria “ao
necessidade
a
crítica
não
acolher
senso
uma
comum
a
no
de
comentário
da
“deslumbramento
pensado
crítica
e
ser
que,
nostálgico,
como
um
manutenção da arte na esfera das coisas
relâmpago, um clarão, uma surpresa estética
superiores do espírito” (p. 153).
através do arranjo do texto. Ela explora como
Lúcia Teixeira provoca ao questionar a
o corpo do crítico, o seu afeto também
força argumentativa da paixão no discurso,
aparece em seu texto, servindo até mesmo
respondendo que seria a “força de sensibilizar
para legitimar a sua abordagem.
o outro, a força de estabelecer comunhão com
O interesse pelo trabalho de Lúcia de
o leitor” (p. 154). Ela retoma Perelman (1996)
Teixeira está em sua procura por descortinar
para reforçar que o “mal da argumentação
os movimentos utilizados pelos críticos de arte
apaixonada (…) não é a falta de argumentos,
para legitimar a sua análise de determinada
mas é a má seleção de argumentos, e desse
obra. Assim, ela demonstra a utilização de
mal procuram fugir os que procuram criar um
recursos como biografia e referência a história
efeito de imparcialidade e objetividade em
da arte como dando autoridade para o crítico.
seus discursos” (p. 154). A autora conclui que
Afinal, ele teria algum conhecimento prévio
na crítica de arte, através da análise de seu
mais avançado que os leitores/espectadores
corpora, que “a paixão é bem-vinda em textos
comuns que legitimariam a sua fala. De igual
do
modernismo
modo, a inserção do corpo do crítico, dos
brasileiro, mas é dissimulada nas críticas
afetos, da peixão no discurso não seria
pré-modernismo
e
do
46
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
necessariamente deslegitimador se tratado de
confusão entre tratar de afetividade com
uma “forma adequada”. Percebemos, então,
subjetividade
tanto nas críticas de jornal de Antonio Candido
biográficos do próprio crítico. Assim, lendo as
e Luiz Costa Lima, nas críticas acadêmicas de
obras de Leone e Secco não sabemos o quanto
Carmen Lúcia Tindó Secco e Luciana di Leone,
elas foram afetadas pelo seu corpora, pois elas
e na análise da crítica de arte feita por Lúcia
não explicitam isso em suas análises. Além
Teixeira um temor de ser subjetivo, mesmo
disso, podemos verificar através do cotejo
que discussões contemporâneos indiquem à
dessas diversas críticas, diferentes abordagens
inexistência da objetividade. Nesse sentido,
que levam em consideração afetos e afecções,
Candido e Costa Lima se justificam; Lúcia
o corpo como fazendo parte de uma saber
Teixeira
da
literário, artístico e cultural, contribuindo para
subjetividade; mas, muitíssimo interessante,
pensar na renovação da crítica proposta por
nem Leone nem Secco recorrem a aspectos
Leslie Fiedler de pensar as palavras-na-cabeça
subjetivos no modo com que elas lidam com a
e não apenas palavras-no-papel.
aponta
para
a
validade
e
inserção
de
aspectos
47
crítica. Ressalto, com isso, a existência de uma
[6] A análise dos artigos e livros feita neste
afetar muito a prática do crítico, com algumas
texto, embora apresente o problema do
exceções. Noto, em congressos e artigos, que
recorte bastante curto e aleatório, pode nos
muitas vezes o estudioso de literatura aplica
possibilitar algumas reflexões sobre o trabalho
métodos sem se preocupar de fato com o tipo
crítico, principalmente no que se refere à sua
de saber que ele produz, fazendo com que
relação com aspectos afetivos, afectivos e
sejam reproduzidas abordagens consideradas
corporais.
antiquadas
Primeiramente,
centralidade
da
dicotomia
ressalto
a
para
o
pensamento
objetividade/
contemporâneo. Ainda faltaria mais dados
subjetividade. Isso demonstra que as reflexões
para comprovar essa hipótese, mas o que
teóricas que colocam em questão essa divisão,
quero ressaltar são essas diferentes práticas
parecem ter pouca efetivação na prática. Além
analisadas que, de uma forma ou de outra, não
disso, as discussões no âmbito da sociologia,
fecharam os olhos para a necessidade de se
antropologia, etc., ligadas ao social e que
procurar novas maneiras de lidar com
demonstram uma crescente importância do
fenômenos literários e culturais mais atentos
corpo e dos sentimentos, parece também não
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
com as atuais discussões – e isso inclui mesmo
reafirmo a necessidade de se contemplar esse
o Antonio Candido.
aspecto, sem ter medo da subjetividade, sem
Como assinalou Luciana di Leone,
ter medo de arriscar novas formas de adentrar
devemos ter cuidado com as “palavras de
nos fenômenos literários e culturais. Afinal,
ordem”, que podem transformar questões
negar a afetividade também é uma afetividade,
sobre os aspectos afetivos e corporais na
como apontou Nietzsche na epígrafe desse
produção de um saber literário em algo
texto.
48
pacificador e que não nos modifique. Contudo,
[ REFERÊNCIAS ] CANDIDO, Antonio. “Crítica e memória”. In: O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2010, p. 33-42. FIEDLER, Leslie A. “Cross the border – close that gap: Postmodernism”. In: PÜTZ, Manfred and FREESE, Peter (eds.). Postmodernism in American literature. Darmstadt: Thesen, 1984, p. 151-166. GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. LEONE, Luciana di. Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. LIMA, Luiz Costa. “A linguagem como matéria em Luci Collin”. Acessado em 29/06/2016.
In:
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Afeto & Poesia. Ensaios e entrevistas: Angola e Moçambique. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2014. ------------------------------------. “Uma Pintura de Sonhos, Memórias, Cores e Poesia”. In: CHICHORRO, Roberto: Quimeras Enluaradas num Denso Azul Suburbano. Catálogo da exposição realizada em Amadora, Portugal, na Câmara Municipal de Amadora, Galeria Municipal Artur Bual, de 30 de junho a 31 de julho de 2011, p. 25. TEIXEIRA, Lúcia. “Razão e afeto: a argumentação na crítica de arte”. In: Alfa. Vol 50, número 1. São Paulo: UNESP, 2006, p. 145-158.
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016
Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA
AFFECTIVE CRITICISM ON CONTEMPORARY POETRY: BUILDING RELATIONSHIPS Abstract: Taking as a starting point the concept of affect, understood both in its broadest sense as links and relationships build- whether between individuals or between text and reader / critic - based on the caring and attachment, as in its more philosophical sense, as addressed in Espinosa, the aim of this work is to think about how some critical works in contemporary poetry deal with the emotional and corporal involvement at the moment of their analysis. In this sense, we have analyzed the book Afeto & Poesia. Ensaios e entrevistas: Angola e Moçambique (2014), by Carmen Lucia Tindo Secco and the book Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea (2014), by Luciana di Leone, as well as some papers that focus on these issues. Although with short and random corpus, we hope to allow some reflections on the critical work, especially with regard to its relationship with affective, emotional and corporal aspects.
49
]
Keywords: Criticism. Contemporary Poetry. Affect.
REVISTA ISSN 2447-4274
CONTRAMÃO
Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016