CRÍTICAS AFETIVAS DA POESIA CONTEMPORÂNEA: construindo relações

May 26, 2017 | Autor: Aline Moura | Categoria: Literary Criticism, Contemporary Poetry, Affect/Emotion
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Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA

CRÍTICAS AFETIVAS DA POESIA CONTEMPORÂNEA: construindo relações Aline de Almeida Moura

[

33

1

Resumo: Tomando como ponto de partida o conceito de afeto, o objetivo desse trabalho é pensar no modo como alguns ensaios de crítica de poesia contemporânea lidam com o envolvimento afetivo e corporal no momento de sua análise. Nesse sentido, analisamos o livro Afeto & Poesia. Ensaios e entrevistas: Angola e Moçambique (2014), de Carmen Lúcia Tindó Secco, e o livro Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea (2014), de Luciana di Leone, assim como alguns artigos que se debruçam sobre essas questões. Embora com corpus curto e aleatório, intentamos possibilitar algumas reflexões sobre o trabalho crítico, principalmente no que se refere à sua relação com aspectos afetivos, afectivos e corporais.

Palavras-chave: Crítica. Poesia contemporânea. Afeto.

]

dossiê temático:

CORPO

1

Doutorando em “Literatura, cultura e contemporaneidade” pela Pontifícia Universidade Católica – Rio. E-mail: [email protected] REVISTA ISSN 2447-4274

CONTRAMÃO

Teresina-PI | Número 2 | setembro de 2016

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A vontade de superar um afeto não é, em última análise, senão vontade de um outro ou de vários outros afetos. (Nietzsche. Parágrafo 117, Para além do bem e do mal)

[1] Antonio Candido, em ensaio intitulado

Luiz Costa Lima, outro importante

“Crítica e memória” (2010), pondera que

teórico da literatura brasileira, no artigo para o

“talvez devêssemos dar mais atenção aos

jornal A Folha de São Paulo (no seu caderno

arrabaldes do trabalho crítico. Sem prejuízo, é

Ilustríssima) “A linguagem como matéria em

claro, do seu cerne, onde se localizam a análise

Luci Collin” (2016), também reflete sobre os

objetiva do texto e a investigação histórica”

“arrabaldes” do trabalho crítico. Antes de

(CANDIDO, 2010, p. 33). Segundo o autor,

apresentar a sua leitura da poetisa curitibana,

deveriam ser reavaliados o puritanismo e a

Costa Lima justifica-se ao afirmar que “o

fuga de leituras impressionistas, embora elas

reconhecimento do nível do dizível no poema

tenham contribuído para o campo. No ensaio

requer a qualidade de seu leitor. E, entre

citado, ele propõe uma leitura para o poeta

respostas distintas, uma não será correta, em

François Villon e ressalta a sua profunda

preferência de outras” (s/p, 2016). Em outras

admiração pelo “malandro imortal”. Nesse

palavras, o autor sugere que uma das tarefas

sentido, a sua sugestão de “um novo capítulo

do crítico é apontar para o dizível, mas que

para a crítica”, que pudesse expressar o

não está dito claramente, na obra de um

contato afetivo com obras literárias, serve

artista. Essa leitura depende do conhecimento

também como justificativa para a forma com

anterior do crítico-leitor, uma vez que “'No

que ele aborda a obra de Villon.

meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/

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no meio do caminho tinha uma pedra' pode ser

tomado

como

uma

Nessa esteira, duas estudiosas de

permutação

literatura escolheram como mote de suas

brincalhona, uma alusão satírica ou dramática

pesquisas justamente a afetividade em sua

ao verso de Dante” (s/p, 2016). Costa Lima

ligação

também necessita se justificar por conhecer

contemporânea da Argentina e do Brasil, como

apenas dois dos mais de dez livros de Collin,

fez Luciana di Leone (2014) e com a produção

afirmando que “se, apesar do risco, me atrevo

poética de Angola e de Moçambique, como fez

a escrever sobre o que li da autora, é porque

Carmen Lúcia Tindó Secco (2014). Reflito,

seu desconhecimento chega a me parecer

nesse sentido, em como as autoras lidam com

criminoso” (s/p, 2016), apontando, assim

aspectos afetivos em suas análises.

como em Candido, para um caráter afetivo na sua análise.

com

a

produção

poética

Antes de prosseguir, ressalto que afetividade, no contexto deste artigo, pode ser

Dois pontos que gostaria de ressaltar

entendida tanto em seu sentido mais amplo de

na crítica desses dois importantes pensadores

ligações e relações – seja entre sujeitos, seja

são a ligação entre uma leitura afetiva com o

entre texto e leitor/ crítico – construídas com

impressionismo e a subjetividade, por um lado,

base no carinho e apego, quanto em seu

e, por outro lado, a vontade dos autores em

sentido

transpor em palavras a afetação causada pelas

Espinosa. A partir da leitura proposta Marcos

obras. Dito de outra forma, em diálogo com a

Gleiser sobre a teoria da afetividade do filósofo

epígrafe escolhida, a vontade do crítico de

holandês, por afeto (affectum) se entende “as

escrever se deve aos afetos e afecções

afecções (affectiones) do corpo, pelas quais a

causados nele pela leitura, assim como a

potência de agir desse corpo é aumentada ou

vontade de esconder as aspectos afetivos são

diminuída, favorecida ou entravada, assim com

também resultado de afetividades advindas de

a ideia dessas afecções” (GLEIZER, 2005, p. 33).

sua tarefa de crítico, em que o sujeito-crítico

Dessa forma, não há uma separação entre a

deveria ser objetivo e racional. Ambos terem

alma e o corpo quando pensamos no afeto,

escolhido iniciarem seus textos com uma

além de haver uma ligação entre ele e o

justificativa para sua abordagem também

conceito de conatus, isto é, de que as coisas se

indica uma preocupação com o possível leitor

esforçam para perseverar no seu ser. Nesse

e o modo com que ele será afetado pela

sentido, “o afeto é uma afecção que faz variar

análise

são

positiva ou negativamente a potência de agir”

importantes para se pensar a relação entre

(p. 35), fazendo com que uma afecção neutra,

afecção, afeto e crítica na contemporaneidade,

isto é, que não altera a potência de agir, não

como ela se opera e como ela pode enriquecer

tenha dimensão afetiva. Em outras palavras,

as obras analisadas.

nem toda afecção é um afeto, mas toda afeto

proposta.

35

Esses

pontos

filosófico,

como

abordado

por

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possui afecções, criando um estrito laço entre corpo e mente (alma).

[2] 36

políticas que, por intermédio da melancolia, por exemplo, podem externar, benjaminianamente, alegóricas manifestações de crítica e indignação, ou seja, “emoções lúcidas” que põem em questão determinadas ações históricas (SECCO, 2014, p. 15).

Em seu livro Afeto & Poesia. Ensaios e entrevistas: Angola e Moçambique (2014), resultado de sua pesquisa de pós-doutorado, Carmen Lucia Tindó Secco teve como objetivo central analisar como afetos e afecções – “alegria, esperança, amor, ódio, tristeza, melancolia,

etc.”



se

A partir de tais conceituações, a autora

encontram

pretende observar o modo pelo qual alguns

representados em obras e entrevistas de

poetas angolanos e moçambicanos “exorcizam

autores angolanos e moçambicanos (SECCO,

'afecções nefastas', reavaliando a importância

2014, p. 13). Tendo como base teórica o

de valores humanos e sociais desgastados pela

trabalho de Spinoza, para a autora, o filósofo

violência de Angola e Moçambique” (p. 15). Ou

define afeto como “um estado da alma, uma

seja, Secco propõe que os aspectos afetivos

força propulsora capaz de levar ou não o ser a

encontrados nas obras de alguns poetas

ações e paixões” (p. 13). Assim, ela trabalha

possuem uma ligação com o seu contexto

com a noção de afeto “não como meros

sócio-histórico, tomando-os como uma forma

sentimentos ou emoções, mas como pulsões

de se posicionar sobre os fatos acontecidos,

que atingem o âmago do corpo e do espírito, e

mesmo que elas pareçam apenas tratar de

afetam, profundamente, o ser, de modo a

aspectos subjetivos. Nesse sentido, a autora

incitá-lo à ação ou à passividade” (p. 13). E, por

aponta que atentar para os afetos significa

afecções, Secco entende como “modos de

“repensar o mundo, apreendendo sentidos

sentir que afetam, principalmente o corpo; são

inusitados que a linguagem da poesia e da arte

imagens ou ideias que se manifestam como

são capazes de formular. Afetando histórica,

emoções, sentimentos provocados por causas

social,

externas, sensações” (p. 14).

esteticamente quem as admira, lê e/ou

Um aspecto a ser ressaltado é que, segundo ela, para Spinoza, os afetos são aquilo que nos relaciona com o mundo e com a existência; denotam não apenas atitudes existenciais face à potência de viver, mas atitudes

política,

filosófica,

existencial

e

interpreta” (p. 21). A professora Carmen Lúcia também aponta para a discriminação sofrida pela África, por ser considerada um continente que “só possuía emoção, tendo sido a razão

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excluída do universo dos povos africanos e

passado. No segundo ensaio, “História e

atribuída apenas a Europa” (p. 16), para, logo

imaginação, erotismo e afetos: algumas

em seguida, mostrar a contestação deste

reflexões sobre a poesia angolana pós-1990”, a

paradigma dualista em filósofos como Spinoza,

autora procura demonstrar que a poesia

Deleuze, Derrida, entre outros, prevalecendo

angolana,

atualmente uma perspectiva que une razão e

desligada

emoção, e percebendo que “o sensível pode

obstante, em suas entrelinhas, perplexidades,

levar à potência emancipatória” (p. 16). Além

sentidos e sentimentos que apontam para um

disso, entendendo que a teoria deleuzeana

contexto histórico de crises, rupturas e

pensa o afeto como semiologia, é “esse

incertezas” (p. 43). Como no ensaio anterior,

sentido semiológico que nos interessa em

ela referencia dados políticos e econômicos

especial” (p. 17) e, por isso, ela se centra no

para, posteriormente, analisar uma vertente

trabalho com a linguagem feito pelos poetas

poética surgida nas décadas de 1990 e 2000

estudados.

que priorizaria “as estratégias do sensível” –

mesmo da

que

história,

aparentemente “descortina,

não

Esse livro é composto por duas partes

expressão cunhada por Muniz Sodré e que

principais, que se seguem ao seu texto

designa o campo em que as sensibilidades

introdutório: um conjunto de quatro ensaios

levam o sujeito para uma caminhada em busca

sob o título “Os afetos na poesia” e um

da liberdade (p. 54) –, analisando alguns livros

conjunto de dezessete entrevistas com poetas

desse período. No ensaio “Por entre sonhos e

angolanos e moçambicanos sob o título “Os

compromissos...”,

afetos pelo olhar dos poetas”.

literatura pode assumir ou não, previamente,

Secco

discute

“se

a

Os ensaios buscaram, segundo a

compromissos de ordem externa”, indagando-

autora, evidenciar “as relações existentes

se sobre o seu uso panfletário e utilitário da

entre poesia, afeto e crítica literária” (p. 18). O

linguagem (p. 58). Nesse sentido, a autora

primeiro ensaio, intitulado “Novas trilhas do

reconstrói

sentir na poesia angolana contemporânea”,

moçambicana, ligando a produção poética dos

procura demonstrar, através da análise de

anos 1960 e 1970 à luta contra o salazarismo e

alguns poemas em diálogo com dados políticos

à sua valorização como instrumento de

de Angola, que os poetas que emergiram pós-

combate e politização (p. 60). No contexto

independência

“construir

pós-colonial dos anos 1980, poetas como Mia

imagens e metáforas que se voltam para as

Couto e Luís Calos Patraquim “perceberam que

emoções

de

o realismo crítico e a poesia engajada haviam

politização dos sentimentos e afetos” (p. 29),

despojado as pessoas, em grande parte de

utilizando

amor,

suas emoções íntimas” (p. 61), emergindo,

sentimentos, a metapoesia e a reinvenção do

então, uma poética que “embora não se

começaram

interiores,

temas

numa

como

a

procura

erotismo,

uma

cronologia

da

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poesia

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esquecesse dos conteúdos sociais, revigorasse

pessoalmente (p. 18). Nesse sentido, a maioria

o lado subjetivo dos seres humanos” (p. 62).

das perguntas se repete, sendo as mais

Assim, o sonho, o erotismo e as metáforas

comuns transcritas aqui: “os afetos geralmente

metapoéticas,

são

são

usados

como

forças

banidos

da

linguagem

acadêmica,

geradoras de um despertar histórico, em que

científica, porque lidam com subjetividades.

se busca uma politização dos sentimentos e

Mas o reino da literatura se situa nas fronteiras

afetos (p. 67). Por fim, em “Revisitações

do real e do sensível. Acha possível alguma

poéticas da Ilha de Moçambique”, a autora

manifestação literária que não trabalhe no

analisa o livro Mesmos barcos ou poemas de

território dos afetos? E a crítica literária, acha

revisitação do corpo, de Sangare Okapi,

que pode trabalhar com uma linguagem do

escolhido por sua focalização na Ilha de

sensível?

Moçambique, no qual ela procura investigar

“Atualmente, alguns filósofos têm voltado a

“de que modo a poesia participa da história,

enfatizar a importância das emoções, da

desvelando sentidos, afetos e saberes que se

dimensão do sensível. Fala-se, hoje, numa

encontravam ocultos ou olvidados” (p. 76).

'poética dos afetos', em 'afecções lúcidas”.

Mais

ser

Qual o papel dos sentimentos no âmbito de

importante “algumas informações sobre a Ilha

sua escrita? O que pensa sobre uma 'poética

de Moçambique” (p. 76), no que tange a

dos afetos' (afetos e desafetos, pois se

colonização lusitana. Sua tese é que “no fim

entende afeto como tudo que afeta o ser)?”;

dos anos 1980 e início dos 1990, com o

“Fale dos afetos presentes em seus poemas”;

enfraquecimento das utopias revolucionárias,

“Os afetos sempre existiram e, a meu ver,

alguns poetas e escritores, ao verem o

estão presentes na Literatura, no ser humano,

território moçambicano aviltado pelos longos

nas sociedades. Focalizando a literatura de seu

períodos de guerra, buscaram espaços menos

país como um sistema, que afetos você

atingidos por esta”, voltando-se para o

apontaria como predominantes na poesia dos

imaginário do amor e das ilhas, “à procura de

anos 40-50, 60-70, 80-90, 2000-2010? Por

Eros, do amor e das origens” (p. 78). Assim, ela

quê? E, em relação à sua poesia, se eu lhe

conclui que o livro de Okapi, embora tenha

pedisse que elegesse os afetos predominantes,

uma paisagem subjetiva, possui um olhar pós-

você seria capaz de enumerar os principais?”;

colonial (p. 84).

“Domina

uma

vez,

a

autora

acredita

As entrevistas com os poetas foram estruturadas previamente

a

partir

formuladas

de e

perguntas que

Isso

no

invalidaria

mundo

as

38

análises?”;

contemporâneo

a

economia de mercado e até o livro entra nesse contexto. Considera possível a poesia se

foram

adequar a esse universo econômico? Como

respondidas pelos autores por escrito, uma vez

valorizar a poesia em sociedades que priorizam

que não foi possível encontrar com todos

o consumo? Como você relaciona afeto e valor

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mercadológico?”. Segundo a autora, “uma

mundo. Os ensaios, embora curtos, alcançam

parte significativa dos poetas entrevistados

esse objetivo, mesmo que utilizem abordagens

concebe o afeto em íntima correlação com

tradicionais nos estudos literários como é a

poesia” (p. 21). Além disso, em sua maioria, há

contextualização histórica através de dados

um entendimento de que tanto afeto quanto

políticos e econômicos. Assim, a forma com

poesia

de

que os poetas utilizam a linguagem é

informação que não é apenas corporal nem

explicada, por vezes simplificadoramente, por

intelectual, mas que “significa repensar o

um questionamento da literatura engajada

mundo, aprendendo sentidos inusitados que a

predominante nas décadas de 1960 e 1970.

linguagem da poesia e da arte são capazes de

Nesse sentido, por mais que a dicotomia entre

formular” (p. 21).

razão e emoção, meu corpo e o corpo político

constituem

um

outro

tipo

Não me cabe aqui julgar se a

39

procure ser esvaziada, ela continua ali, meio

interpretação feita pela autora é coerente,

que

na

espreita,

mas pensar na forma com que foi utilizado o

abordagem mais tradicional das poesias,

pensamento sobre os afetos em seu livro.

mesmo ao utilizar conceitos como afeto e

Assim, interessa-me pensar em como afetos,

afecção. Mais interessante ainda são as

afecções e corpo influenciaram a análise a qual

perguntas feitas, pois parece igualar afeto ao

a autora se propôs. Na capa do livro, aparece a

sentimento, afeto à pura subjetividade. Talvez,

pintura do artista plástico moçambicano

em vez de perguntar se a crítica pode ser

Roberto Chichorro “A paixão de Colombina”,

afetiva, a autora poderia, de fato, ter feito um

que segundo a própria autora do livro, Carmen

trabalho crítico que envolvesse o corpo de

Secco, no artigo “Uma pintura de sonhos,

seus

memórias, cores e poesia” (2011), explora

contextualização histórica apenas em seu viés

temas como o erotismo, o amor, as figuras

político e social. Tanto nas entrevistas quanto

humanas e o tema dos namorados. Na tela,

nos ensaios é possível perceber que o afeto

aparece Pierrô e Colombina abraçados, sem

aparece como temas trabalhados nos poemas,

que possamos distinguir qual é o corpo de um

temas

qual e qual é o corpo do outro, como se

subjetividade como o amor e o erotismo, mas

fossem unidos: o eu e o outro. De certa forma,

que, para a autora, possuem ligação com

a autora busca em seu livro demonstrar esse

questões políticas. Nesse sentido, a análise

entrelaçamento entre o subjetivo presente nas

crítica feita se dá na identificação dos afetos

poesias, o sentimento do eu, íntimo, mas que

presentes e como eles poderiam corresponder

está em consonância com aspectos políticos,

a uma tentativa de inserir essas temáticas em

buscando, de alguma forma, interferir nas

um contexto político de pós-independência e

sensibilidades e sentimentos em relação ao

de fuga de uma poesia engajada, como a

leitores,

principalmente

que

tradicionalmente

ultrapasse

relacionados

pela

a

à

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autora propõe. Os afetos e afecções, dessa

aparece na sua explicação inicial do que é o

forma, parecem ser domesticados na liguagem

afeto.

poética, pois dizem respeito mais ao conteúdo

interessante

das poesias do que à forma com que elas

proposto.

De

qualquer e

que

jeito,

é

alcança

um o

livro

objetivo

poderiam mover o corpo, levar à ação, como 40

[3] Poesia e escolhas afetivas: edição e

projetos” (LEONE, 2014, p. 19). Nesse sentido,

escrita na poesia contemporânea, resultado da

segundo a autora, essas produções não podem

tese de doutorado da professora Luciana di

ser observadas sem se levar em consideração a

Leone (2014), assim como na proposta de

importância – identificada também em campos

Carmen Lúcia Secco, preocupa-se em refletir

como a filosofia, a sociologia e a crítica de arte

sobre

na

– da questão do relacional, dos modos de viver

contemporaneidade, mas se cirscunscrevendo

junto, dos coletivos artísticos, “com os seus

ao contexto argentino e brasileiro através de

desdobramentos

abordagem bastante diferente da primeira

grupalidade, a comunidade, as aproximações e

autora. Leone tem por princípio a crença em

as distâncias entre o eu e o outro, e os efeitos

uma transitividade poética, em que escrita e

e afetos” (p. 20). O livro, nessa lógica, se

leitura se relacionam a partir da ideia de

propõe a refletir sobre os modos de ler,

afetação, de modificar e ser modificado por

escrever

aquilo que se lê e se escreve. Embora ela

contemporaneidade, focando nas “escolhas

ressalte que essa transitividade e afetividade

poéticas como afetivas, critério que tanto

não

poesia

surge da experiência do convívio quanto opera

contemporânea, brasileira ou argentina, a

na formação de grupos, na organização de

autora se justifica ao apontar que uma

coletivos de produção e nos mecanismos de

importante parte dos trabalhos poéticos

consagração e visibilidade, através de revistas,

produzidos nas últimas décadas no Brasil e na

editoras especializadas, oficinas, encontros” (p.

Argentina “se constrói explicitamente a partir

27).

a

sejam

poesia

produzida

prerrogativas

da

e

na

reflexão

editar

sobre

poesia

a

na

de uma cena de leitura que alimenta as

No primeiro capítulo, “Pensamento

escolhas afetivas e alimenta a continuidade

contemporâneo: o afeto em pauta”, Leone

dos afetos produzidos e, ainda, explicitam

procura explicitar a sintonia entre a explicação

essas escolhas como as que guiam seus

do critério afetivo na poesia do presente com

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uma preocupação que percorre a reflexão

equivocada de comum. Para Esposito, a

filosófica e estética das últimas décadas sobre

comunidade

o relacional, através de noções como amizade

imunidade,

e comunidade. Em outras palavras, ela

soberano que se fecha para qualquer contágio

identifica uma espécie de “espírito de época”

(p. 42), havendo a necessidade de se repensar

que torna central as escolhas afetivas tanto na

a noção de comunidade para o contexto

poesia contemporânea quanto em outras

contemporâneo.

áreas. Afeto, então, será trabalhado em uma

contribuição de Manuel Castells e sua reflexão

dupla referência: “como afecção e como

sobre a sociedade em redes, na qual haveria

sentimento, para referir e insistir na sua

uma subversão do conceito ocidental e

dinâmica relacional, pela qual os sujeitos e

tradicional de sujeito, em que se corre o risco

discursos

de

implicados

são

vulnerados,

sua

moderna apontando

Ela

dissolução

se

fundaria

para

também

através

um

na

sujeito

busca

de

a

uma

desfigurados e reconfigurados por essa força

espetacularização do eu (p. 48-9). Mario

que varia de forma contínua” (p. 31). Ou seja,

Perniola é chamado para essa discussão

ela opta por não diferenciar afecção – “que

através de seu pensamento sobre o sentir, em

implica uma mistura de dois corpos” (p. 31) – e

que haveria a necessidade de, no mundo

afeto por entendê-los como envolvidos na

contemporâneo, um “fazer-se sentir. Tornar o

concepção de escolhas afetivas (p. 31). Além

sentir uma forma de ação” (p. 53). Nesse

disso, Leone ressalta que “a ideia de afeto se

sentido, Luciana di Leone conclama que “em

afasta de qualquer associação com a expressão

lugar de gerenciar o 'especularismo sensitivo'

de uma interioridade inatingível, que marcará

ou de manipular 'os sentidos coletivos', a

a definição romântica e escolar de lírica. Pelo

tarefa, de ida e volta, entre o comum e

contrário, o afeto se dá como resultado de

singular, e esse trânsito é pautado pela escolha

uma relação onde a fronteira entre interior e

como ação, pela escolha afetiva como ação”

exterior já não é determinável” (p. 32). Há,

(p. 54). Em outras palavras, o sentir e os

nesse sentido, uma mútua modificação entre

relacionamentos permeiam a escrita de poesia

um corpo – que pode ser um texto, uma voz –

e crítica na atualidade, importando perceber

sobre

expressão

como esses aspectos aparecem. Trazendo a

unidirecional de sentimentos (p. 32). Nesse

discussão sobre a expansão do literário feita

capítulo, ela se apropria de Spinoza e Deleuze

por Florencia Garramuño, Leone também

em suas considerações sobre afeto, mas

aponta para a necessidade de uma nova

também de Roberto Esposito e sua reflexão

crítica, que em lugar de observar os objetos

sobre comunidade, no qual ele buscou superar

como fechados em si, devem percorrer os

o entendimento moderno de agrupamento de

fluxos que os atravessam (p. 58). Em síntese,

outro,

e

não

uma

41

sujeitos com base em uma concepção

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Aline de Almeida Moura (PUC-RIO) CRÍTICAS AFETIVAS DE POESIA CONTEMPORÂNEA seja nas propostas literárias expansivas, seja na atitude crítica ou nas modulações do pensamento contemporâneo em diversas disciplinas, o que fica mais e mais evidente é o interesse contemporâneo, o imperativo ético, de mostrar os contatos, as afecções e os afetos, de pensar para além das fronteiras genéricas e disciplinares, mas sem deixar de ouvir as singularidades que elas possam ter. Ler a partir da noção de afeto participa dessa atitude, pois ela torna impossível a procura ou a afirmação de identidades de autoria ou originalidade claras (LEONE, 2014, p. 59).

estéticos (p. 64). Nesse sentido, seu foco é

Contudo, como ressalta a autora, é

comum – comum com um sentido que se

preciso ter cuidado para que as noções de

difere de igual, como trabalhado por Esposito.

afeto e de relacional não sejam esvaziadas pela

Assim, “antes que uma lógica de lutas e

sua repetição como palavra de ordem,

concorrência, parece se destacar uma lógica

apaziguando

de afetos conviviais”, em que podem ser

as

suas

potências

pensar em como funciona a publicação de poesia

em

editoras

pequenas

e

independentes, uma vez que as grandes editoras não se interessariam em divulgar novos poetas pelo grande risco financeiro. Ela aponta como essas pequenas editoras não se veem

como

concorrentes,

mas

como

garantidoras da continuidade de um projeto

sobrepor as figuras e tarefas de escritor, editor

desestabilizadoras (p. 60). No capítulo “Escolhas afetivas e edição

e leitor (p. 80). Apesar dessa característica,

de poesia”, seu objetivo é entender algumas

percebe-se

das modulações existentes de uma estética

contemporâneos não possuem definições ou

afetiva, isto é, em que se predomina o fazer

filiações, mostrando que o agrupamento é

junto, nas poesias argentinas e brasileiras

muito mais em nível de amizade do que de

contemporâneas. Para isso, ressaltando como

busca por uma linha geracional de produção

a noção de afeto tem se tornado problemática

poética. Ao analisar alguns casos de editoração

no campo artístico, ela aborda como escolhas

de livros de poesia, ela aponta, mais uma vez,

afetivas muitas vezes são entendidas como um

para a crítica que a relação amical pode levar a

dispositivo

legitimador

práticas

uma endogamia, ou seja, a formação de um

endogâmicas,

“nas

afeto seria

círculo fechado de poetas-amigos de difícil

sinônimo de relações especulares, dentro de

entrada, afirmando que essa crítica se deve a

um grupo fechado de iguais” (p. 63),

um desconhecimento do funcionamento das

procurando demonstrar, contudo, que as

edições de livros e de blogs, assim como uma

relações são bem mais dissimétricas. Assim, ela

resistência a tratar a afetividade como critério

principia

de

válido. Nesse sentido, ela reitera que “em lugar

agrupamentos na edição de livros, ressaltando

de assinalar negativamente a amizade e o

que tradicionalmente o trabalho editorial

afeto entre os organizadores e participantes, o

combina critérios econômicos, políticos e

que tentamos mostrar é a importância da

de

quais

observando

42

a

o

formação

que

os

projetos

poéticos

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escrita poética no capítulo “Poéticas do afeto:

com a naturalização dos modos de consagração predominantes na poesia produzida nas últimas décadas – a do meu tempo, a dos meus amigos –, modos de consagração das quais a crítica participa intimamente. Daí que a tarefa assumida tenha sido, desde o começo, a desnaturalização desses modos – e não sua desativação! (LEONE, 2014, p. 218-9).

endereçamento, citação e nomes próprios”.

Assim, ela procurou descortinar nesse

pergunta pelo significado do sintoma da insistência no critério afetivo” (p. 165). Além de pensar na matriz convivial na edição, Luciana di Leone também se preocupa em apontar como ela funciona como matriz de

Nele,

a

autora

diferentes

livro “as tramas da consagração literária” como

procedimentos textuais que aparecem na obra

provenientes de escolhas editoriais e de

dos poetas como, por exemplo, o de

escolhas

“apresentar o próprio texto como deformado

antologias, oficinas e blogs por ela analisada. A

por diferentes vozes” (p. 171), materializados

desnaturalização dos critérios afetivos e

no uso de aspas, caixas de diálogo, signos de

transitivos ao longo de seu trabalho teve como

interrogação. Outro procedimento observado

foco “reinvestir – de incômodo – esse afeto, e

é o uso do nome próprio de lugares, nomes e

sua relação com ideias de comunidade e

textos que referem à momentos concretos na

amizade, tão caras ao nosso pensamento

vida literária, assim como o uso de diversos

crítico” (p. 219). Ela propõe que suas reflexões

tipos de citação. Analisando as produções de

críticas sobre as escolhas afetivas possam ser

Marilia Garcia e de Aníbal Cristobo, Leone

úteis para pensar outros campos poético,

retoma a ideia de trânsito e percurso citada na

artístico

sua

possibilidade

introdução

apresenta

para

concluir

que

tais

estéticas,

ou

social, de

que

aparecem

incitando

que novas

para

formas

43

nas

a de

percursos “se realizam apenas para ser

organização social ou comunitária no nosso

afetados, como única forma de criar algum

tempo. Segundo ela, uma poética das escolhas

tipo de pertencimento, ou de comunidade,

afetivas encena relações dissimétricas, entre

quando as cartografias e as identidades

corpos que se afetam uns aos outros,

declaram seu definitivo enfraquecimento” (p.

contribuindo para a possibilidade acima

211).

mencionada. Por fim, em seu último capítulo,

Nesse trabalho, percebemos que a

intitulado “Repensando as escolhas afetivas:

noção de afeto é entendida em uma caráter

por um gesto crítico”, Leone aponta para a

mais amplo, assim como também é a sua

impossibilidade de propor conclusões, pois ela

abordagem da questão. A produção poética

acredita na tarefa de inquietação da poesia (p.

deixa de ser vista como produto de uma mente

218). Em suas próprias palavras, ela se

genial, para se mostrar como relacional – com

preocupa

outros textos, outros autores, amigos. Além

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disso, a relação com o “extra-literário”, isto é,

esconder esse caráter afetivo em critérios que,

questões de editoração, sociais e culturais,

mesmo importantes, são também arbitrários.

aparecem como fazendo parte e construindo o

De qualquer forma, sua análise, como ela bem

“intra-literário”, em uma perspectiva mais

ressaltou, não esvazia a produção poética

dialética. Sem dúvida, falar de relações de

contemporânea através de uma rotulação

afeto, seja nesse sentido amplo empregado

aleatória, mas enriquece a nossa forma de

por Leone ou em sentido mais restrito, pode

conceber tanto a produção poética quanto o

implicar interpretações equivocadas como a

olhar crítico. De fato, ela contribui para

acusação de não possuir critérios, de ser

podermos trabalhar com aspectos afetivos na

subjetivo. A contribuição do trabalho da

editoração, na leitura e na escrita, vendo

autora,

sua

corpos de carne, osso e coração que escrevem,

“desnaturalização” das relações entre editores,

que leem e que editam, não apenas mentes

leitores e autores, ressaltando, contudo, que

que produzem.

de

fato,

está

em

44

não é necessariamente prejudicial essa rede. Como ela analisou, muitas vezes o editor tenta

[4] Procurei apontar para como as duas

apontou Leslie Fiedler, em seu texto de 1984

propostas lidaram com a questão dos afetos na

“Cross

the

border

crítica literária, ressaltando que cada uma tem

Postmodernism”, passamos de uma era

suas contribuições e problemas. Se por um

racional, analítica, em que a recepção crítica

lado, Carmen Lucia Tindó Secco tratou afetos e

era algo natural, para um mundo emocional,

afecções como temas recorrentes na poesia de

romântico, sentimental, exigindo uma postura

Angola e Moçambique; por outro Luciana di

alternativa da crítica. Em sua leitura, uma

Leone se preocupou como relações afetivas

crítica renovada não deve ser textual ou

apareceram na poesia do Brasil e Argentina

formalista, mas assumir que o trabalho de arte

tanto na escrita, quanto na edição. De fato,

de fato existe em um contexto, necessitando

concordo com Leone no que tange a existência

da paixão e apreensão dos leitores. “Not

de um zeitgeist preocupado com afetos e

words-on-the-page but words-in-the-world or

afecções, que aparece tanto nos textos por ela

rather words-in-the-head” (FIEDLER, 1984, p.

analisados, como em outros tantos autores e

152), embora nós, estudiosos de literatura,

em outros tantos campos de saber. Como

ainda

hoje



estejamos

close

that

tentando

gap:

formas

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alternativas

de

lidar

com

essas

novas

de estar no mundo.

produções e também como essa nova forma

[5] 45

Outro trabalho muito interessante

discurso” (TEIXEIRA, 2006, p. 147). Ela, que leu

sobre a relação entre crítica e afeto é

Osório e Gullar, construiu um sentido para a

desenvolvido pela professora da Universidade

exposição,

Federal Fluminense Lúcia Teixeira. Seu atual

namorados, os estudantes, os turistas que

projeto de pesquisa se debruça sobre práticas

podem não os ter lido, tendo como ponto-

semióticas que utilizam o corpo como meio de

chave a ideia de que “o corpo que vê e se

produzir sentido. Ela trabalha, por exemplo,

movimenta percebe do mundo as sensações,

com críticas de arte que recorrem aos afetos e

mas as sensações já se manifestam recobertas

afecções causado por determinada obra

de discurso, a percepção do mundo estando

artística em sua construção textual. No artigo

sempre

“Razão e afeto: a argumentação na crítica de

experiência” (p. 147).

assim

como

submetida

à

os

casais

semiotização

de

da

arte” (2006), Teixeira tem como pressuposto

Partindo de Greimas e Fontenelle

teórico a semiologia francesa tal como

(1993), a autora identifica uma práxis comum

abordada por Fiorin (1996) e Greimas (1993)

nos textos de crítica da cultura:

para analisar como Ferreira Gullar e Camilo Osório,

assim

como

a

própria

autora,

construíram um determinado saber sobre a exposição “Abrigo poético – Diálogos com Lygia Clark”, ocorrida no MAC – Niterói, de setembro a dezembro de 2006. A autora identifica a sua ida à exposição, assim como o movimento

de

outros

corpos

com

o

espera-se, num texto de crítica de arte, a debreagem de vozes que confirmem a palavra do enunciador, a referência a recursos técnicos da obra de arte analisada e aos efeitos que produzem, como demonstração da competência do crítico, a valorização do percurso de aprendizagem do artista e o reconhecimento de seu trabalho; espera-se, enfim, um movimento discursivo que, ao mesmo tempo em que fala da obra e do artista, instala a autoridade do crítico (TEIXEIRA, 2006, p. 148-9).

pensamento de Merleau-Ponty: “a visão não é um certo modo do pensamento ou presença em si, é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro à fissura do ser. É nesse movimento de sair e retornar que o sentido toma forma, vira

Através da análise de seu corpora, Teixeira identifica tanto em críticas de arte do pré-modernismo,

do

modernismo

e

do

momento contemporâneo a reiteração desse esquema

discursivo,

“bem

como

a

possibilidade de ir além dele, em textos que

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associam à racionalidade da explicação e

contemporâneas” (p. 154). Talvez por razão do

descrição a disseminação, no discurso, dos

saber acadêmico já ter se consolidado no

impactos da obra apreciada sobre o sujeito

contexto atual e, este ter como um de seus

crítico” (p. 149). Em outras palavras, aspectos

pressupostos, a busca pela objetividade e

afetivos também são incorporados no fazer

imparcialidade.

crítico, dotando o texto tanto de um saber técnico

quanto

de

um

“acontecimento

Retomando a figura do relâmpago, tanto em seu sentido “inesperada fulguração”,

estético”, conforme suas palavras. Ela também

quanto

explora neste artigo as estratégias utilizadas

precedido de uma espera tensa e sucedido por

nos textos que propiciariam a adesão dos

um

leitores para o que foi escrito, mesmo que

representa o acontecimento estético” (p. 153-

tenha sido expressão subjetiva dos críticos.

4), Teixeira aponta para a crítica de arte como

Nesse sentido, ela entende que “o contrato

uma tarefa de explorar o signo verbal em

proposto pelo crítico ao leitor não se completa

profundidade e em lateralidade, expandido

se

certa

seus sentidos e dizendo, como também afirma

sensibilização do discurso, imposta pela obra

Costa Lima, o indizível. Aquilo que está lá, mas

de arte que a provoca” (p. 153), pois esta

que não conseguimos ver. Ela aponta para a

atitude garantiria “ao

necessidade

a

crítica

não

acolher

senso

uma

comum

a

no

de

comentário

da

“deslumbramento

pensado

crítica

e

ser

que,

nostálgico,

como

um

manutenção da arte na esfera das coisas

relâmpago, um clarão, uma surpresa estética

superiores do espírito” (p. 153).

através do arranjo do texto. Ela explora como

Lúcia Teixeira provoca ao questionar a

o corpo do crítico, o seu afeto também

força argumentativa da paixão no discurso,

aparece em seu texto, servindo até mesmo

respondendo que seria a “força de sensibilizar

para legitimar a sua abordagem.

o outro, a força de estabelecer comunhão com

O interesse pelo trabalho de Lúcia de

o leitor” (p. 154). Ela retoma Perelman (1996)

Teixeira está em sua procura por descortinar

para reforçar que o “mal da argumentação

os movimentos utilizados pelos críticos de arte

apaixonada (…) não é a falta de argumentos,

para legitimar a sua análise de determinada

mas é a má seleção de argumentos, e desse

obra. Assim, ela demonstra a utilização de

mal procuram fugir os que procuram criar um

recursos como biografia e referência a história

efeito de imparcialidade e objetividade em

da arte como dando autoridade para o crítico.

seus discursos” (p. 154). A autora conclui que

Afinal, ele teria algum conhecimento prévio

na crítica de arte, através da análise de seu

mais avançado que os leitores/espectadores

corpora, que “a paixão é bem-vinda em textos

comuns que legitimariam a sua fala. De igual

do

modernismo

modo, a inserção do corpo do crítico, dos

brasileiro, mas é dissimulada nas críticas

afetos, da peixão no discurso não seria

pré-modernismo

e

do

46

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necessariamente deslegitimador se tratado de

confusão entre tratar de afetividade com

uma “forma adequada”. Percebemos, então,

subjetividade

tanto nas críticas de jornal de Antonio Candido

biográficos do próprio crítico. Assim, lendo as

e Luiz Costa Lima, nas críticas acadêmicas de

obras de Leone e Secco não sabemos o quanto

Carmen Lúcia Tindó Secco e Luciana di Leone,

elas foram afetadas pelo seu corpora, pois elas

e na análise da crítica de arte feita por Lúcia

não explicitam isso em suas análises. Além

Teixeira um temor de ser subjetivo, mesmo

disso, podemos verificar através do cotejo

que discussões contemporâneos indiquem à

dessas diversas críticas, diferentes abordagens

inexistência da objetividade. Nesse sentido,

que levam em consideração afetos e afecções,

Candido e Costa Lima se justificam; Lúcia

o corpo como fazendo parte de uma saber

Teixeira

da

literário, artístico e cultural, contribuindo para

subjetividade; mas, muitíssimo interessante,

pensar na renovação da crítica proposta por

nem Leone nem Secco recorrem a aspectos

Leslie Fiedler de pensar as palavras-na-cabeça

subjetivos no modo com que elas lidam com a

e não apenas palavras-no-papel.

aponta

para

a

validade

e

inserção

de

aspectos

47

crítica. Ressalto, com isso, a existência de uma

[6] A análise dos artigos e livros feita neste

afetar muito a prática do crítico, com algumas

texto, embora apresente o problema do

exceções. Noto, em congressos e artigos, que

recorte bastante curto e aleatório, pode nos

muitas vezes o estudioso de literatura aplica

possibilitar algumas reflexões sobre o trabalho

métodos sem se preocupar de fato com o tipo

crítico, principalmente no que se refere à sua

de saber que ele produz, fazendo com que

relação com aspectos afetivos, afectivos e

sejam reproduzidas abordagens consideradas

corporais.

antiquadas

Primeiramente,

centralidade

da

dicotomia

ressalto

a

para

o

pensamento

objetividade/

contemporâneo. Ainda faltaria mais dados

subjetividade. Isso demonstra que as reflexões

para comprovar essa hipótese, mas o que

teóricas que colocam em questão essa divisão,

quero ressaltar são essas diferentes práticas

parecem ter pouca efetivação na prática. Além

analisadas que, de uma forma ou de outra, não

disso, as discussões no âmbito da sociologia,

fecharam os olhos para a necessidade de se

antropologia, etc., ligadas ao social e que

procurar novas maneiras de lidar com

demonstram uma crescente importância do

fenômenos literários e culturais mais atentos

corpo e dos sentimentos, parece também não

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com as atuais discussões – e isso inclui mesmo

reafirmo a necessidade de se contemplar esse

o Antonio Candido.

aspecto, sem ter medo da subjetividade, sem

Como assinalou Luciana di Leone,

ter medo de arriscar novas formas de adentrar

devemos ter cuidado com as “palavras de

nos fenômenos literários e culturais. Afinal,

ordem”, que podem transformar questões

negar a afetividade também é uma afetividade,

sobre os aspectos afetivos e corporais na

como apontou Nietzsche na epígrafe desse

produção de um saber literário em algo

texto.

48

pacificador e que não nos modifique. Contudo,

[ REFERÊNCIAS ] CANDIDO, Antonio. “Crítica e memória”. In: O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2010, p. 33-42. FIEDLER, Leslie A. “Cross the border – close that gap: Postmodernism”. In: PÜTZ, Manfred and FREESE, Peter (eds.). Postmodernism in American literature. Darmstadt: Thesen, 1984, p. 151-166. GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. LEONE, Luciana di. Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. LIMA, Luiz Costa. “A linguagem como matéria em Luci Collin”. Acessado em 29/06/2016.

In:

SECCO, Carmen Lucia Tindó. Afeto & Poesia. Ensaios e entrevistas: Angola e Moçambique. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2014. ------------------------------------. “Uma Pintura de Sonhos, Memórias, Cores e Poesia”. In: CHICHORRO, Roberto: Quimeras Enluaradas num Denso Azul Suburbano. Catálogo da exposição realizada em Amadora, Portugal, na Câmara Municipal de Amadora, Galeria Municipal Artur Bual, de 30 de junho a 31 de julho de 2011, p. 25. TEIXEIRA, Lúcia. “Razão e afeto: a argumentação na crítica de arte”. In: Alfa. Vol 50, número 1. São Paulo: UNESP, 2006, p. 145-158.

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AFFECTIVE CRITICISM ON CONTEMPORARY POETRY: BUILDING RELATIONSHIPS Abstract: Taking as a starting point the concept of affect, understood both in its broadest sense as links and relationships build- whether between individuals or between text and reader / critic - based on the caring and attachment, as in its more philosophical sense, as addressed in Espinosa, the aim of this work is to think about how some critical works in contemporary poetry deal with the emotional and corporal involvement at the moment of their analysis. In this sense, we have analyzed the book Afeto & Poesia. Ensaios e entrevistas: Angola e Moçambique (2014), by Carmen Lucia Tindo Secco and the book Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea (2014), by Luciana di Leone, as well as some papers that focus on these issues. Although with short and random corpus, we hope to allow some reflections on the critical work, especially with regard to its relationship with affective, emotional and corporal aspects.

49

]

Keywords: Criticism. Contemporary Poetry. Affect.

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