Cuidado de si e aufklärung caminhos para a vida como obra de arte

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Cuidado de si e aufklärung caminhos para a vida como obra de arte

Fabio Mourilhe

Cuidado de si e aufklärung caminhos para a vida como obra de arte

Imagem Pensamento

© 2013 Fabio Mourilhe Imagem da capa: seleção do quadro Listen to my sweet pipings (1911) de John William Waterhouse. Fonte: Georgia. Orientações: Vera Portocarrero

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Mourilhe, Fabio, 1967Cuidado de si e aufklärung: caminhos para a vida como obra de arte/ Fabio Mourilhe - Rio de Janeiro: Imagem Pensamento, 2013. ISBN 978-85-67343-00-6 1. Foucault, Michel, 1926-1984. 2. Cuidado de si. 3. Aufklärung. I. Título. 2013

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Sumário Introdução...............................................................7 1

Cuidado de si...............................................11

1.1 1.2 1.3

Conhecimento de si e o acesso à verdade Deslocamento e aplicação do cuidado de si Cuidado de si e as relações de poder

2 Aufklärung e revolução: uma ontologia do presente.............................................................41 2.1 Autonomia e liberdade, individuação e assujeitamento 2.2 Aufklärung: ausgang de uma menoridade e crítica 2.3 A questão do presente 3 Estética de si e vida como obra de arte ...................................................................................59 4

Conclusão....................................................69

Referencial bibliográfico....................................75 Notas........................................................................81

Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar a possibilidade de formação da vida como obra de arte, a partir das técnicas de si e do cuidado de si ressaltados por Foucault em Hermenêutica do sujeito e do conceito de Aufklärung de Kant retomado por Foucault para tratar do contraponto entre autonomia/liberdade e obediência. Partimos do problema de que a inserção do ser humano na antiguidade e na era moderna pode ter seus pontos em comum em termos de técnicas de si, porém a articulação destas técnicas em torno de relações de poder sofreu deslocamentos em função de objetivos a serem alcançados. Nossa hipótese é a de que nas relações de poder (e como força contrária ao poder) persistem movimentos de resistência que são articulados a partir da construção contínua do sujeito. Tal articulação é possível através do cuidado de si (com a construção da vida como obra de arte). Indica a possibilidade de um pensamento renovado sobre a vida ética e uma reflexão relevante para pensar o momento atual. Os trabalhos do último Foucault indicam uma reflexão relevante para pensar o momento atual, considerando a obsessão que ainda perpassa nossa sociedade com a decifração da verdade de nossos desejos e a submissão aos mecanismos que pretendem descobrir esta verdade. Nossa proposta indica a verdade não como meta, mas como campo a ser superado continuamente. No capítulo “Cuidado de si”, são apresentadas algumas práticas de si, conforme aparecem no livro Hermenêutica do sujeito de Michel Foucault, ressaltando a atenção excessiva que se deu ao conhecimento de si e o deslocamento e a aplicação do 9

cuidado de si ao longo da antiguidade, da era clássica, do cristianismo e da era moderna, bem como sua articulação com as relações de poder. No capítulo “Aufklärung e revolução: uma ontologia do presente”, a partir de questões como autonomia e liberdade em contrapartida com a obediência, são consideradas suas articulações em um domínio público e outro privado, e trabalhados os conceitos de Aufklärung e Revolução, tendo um questionamento sobre a atualidade como pertencente a ambos. O capítulo “Estética de si e vida como obra de arte” apresenta a possibilidade de criação de subjetividades não normatizadas, ampliação do campo de liberdade sob uma perspectiva ético-estética, considerando, como prática ascética de si, a construção de um estilo próprio, uma estética da existência que oferece resistência ao poder.

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1 Cuidado de si

Inicialmente, faz-se necessário entender como se deram na antiguidade Greco-romana as práticas relacionadas a um cuidado de si, bem como compreender em que consistem estas práticas e quais seriam seus objetivos específicos em alguns contextos distintos, tendo em vista uma vontade de verdade perceptível. No curso L’Herméneutique du Sujet, as relações entre sujeito e verdade foram explicitadas e trabalhadas, na noção de “cuidado de si mesmo” (epiméleia heautoû), tendo em vista a compreensão de uma história das formas de subjetivação, uma forma de subjetivação com a forma de uma relação consigo, incluindo nos centros temáticos do saber e poder a questão do sujeito. Tendo em vista este intento, Foucault retoma um milênio entre V a.C. e V d.C., que vai das primeiras atitudes filosóficas às primeiras formas de ascetismo cristão. Um milênio de transformações que tem o “cuidado de si” como fio condutor possível. A noção de “cuidado de si” se fez presente nas culturas grega, helenística e romana em diferentes formas de filosofia com formulações diversas, como “ocupar-se consigo mesmo”, “ter cuidados consigo”, “retirar-se em si mesmo”, “recolher-se em si”, “sentir prazer em si mesmo”, “buscar deleite somente em si”, “permanecer em companhia de si mesmo”, “ser amigo de si mesmo”, “estar em si como numa fortaleza”, “cuidar-se”, “prestar culto a si mesmo”, “respeitar-se”, “não se esquecer de si” e “preocupar-se consigo”. Indica uma atitude (que em certa medida se generaliza) para consigo, para com os outros e para com o mundo, um modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações e de se relacionar com 13

os outros; uma forma de atenção ao que se pensa e ao que se passa no pensamento, o que inclui o exercício e a meditação; e a prática de ações que são exercidas sobre si mesmo, “ações pelas quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos” (FOUCAULT, 2006, p.15). Tratase de um princípio fundamental que caracterizou a atitude filosófica nas culturas grega, helenística e romana, tendo em vista o acesso à verdade e o cuidado de si. A relação entre vontade de verdade e cuidado de si se apresenta como relação digna de ser analisada na medida em que é nela que os termos se deslocam e ganham preponderância conforme momentos distintos da história do pensamento humano e articulações impostas em função de relações de poder. 1.1

Conhecimento de si e o acesso à verdade

Os modos de acesso à verdade e as transformações necessárias no ser mesmo do sujeito que permitirão o acesso à verdade são duas questões que sempre estiveram juntas no pitagorismo, em Platão, estoicos, cínicos e epicuristas, tendo como exceção Aristóteles, para quem a segunda questão teria menor importância. Para efeito de clareza foram separadas inicialmente aspectos relacionados ao conhecimento de si e acesso à verdade. No Alcebíades, Sócrates apresenta a questão do “cuidado de si”. Contudo, o objetivo exposto em textos de Platão é o “conhecimento de si”, conhecimento do sujeito, conhecimento do sujeito por ele mesmo, o que em outros contextos indica apenas uma parte do “cuidado de si”, como ocorria na origem da noção de cuidado de si como preceito délfico do “conhece14

te a ti mesmo” (gnôthi seautón) ou no pensamento grego de uma forma geral. No pensamento Ocidental, o “conhecimento de si” é a “fórmula fundadora” na relação entre sujeito e verdade. “Conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) como aparece em Delfos não tinha um valor filosófico, e nem fundamento da moral ou princípio de relação com os outros. Para Roscher (apud FOUCAULT, 2006, p.6), os preceitos délficos (o que para Defradas (Ibid) ganha o caráter de imperativo geral de prudência) se destinavam àqueles que vinham consultar o deus, como regras e recomendações rituais. Gnôthi seautón indicava a necessidade de, no momento em que as questões eram colocadas ao oráculo, examinar bem as questões que seriam colocadas, tentando focar na questão mais específica que se busca saber. Segundo Defradas (Ibid), gnôthi seautón estaria associada à necessidade de lembrança contínua de que somos apenas mortais e não deuses, não podendo, assim, nos afrontar com as divindades. Outros preceitos délficos indicados por Roscher e Defradas incluem “nada em demasia” (Medèn ágan), se referindo às demandas, esperanças e à maneira de se conduzir; e uma relação com as cauções, para que aquele que vem se consultar não faça promessas nem se comprometa com compromissos que não poderá honrar, evitando também a generosidade excessiva. Gnôthi seautón inicialmente aparece na filosofia em torno de Sócrates (conforme mostra Xenofonte em Memoráveis) e em textos de Platão, acoplado ao “cuidado de si”, como objetivo deste último, tendo aqui também o “cuidado de si” o fundamento a partir do qual se justifica o “conhece-te a ti mesmo”. Sócrates indica a necessidade de Alcibiades se educar, refletir sobre si 15

(voltar-se sobre si e comparar-se com os seus rivais) e conhecer a si, antes de governar a cidade, explicitando o princípio délfico gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo) como conselho de prudência: “olha um pouco o que és em face daqueles que queres afrontar e então descobrirás tua inferioridade” (Ibid, p.46). Porém, “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) seria, em outros contextos (como aqueles expostos acima), no quadro geral do “cuidado de si mesmo”, apenas uma das formas de “cuidado de si”. Apesar das diversas referências a práticas de concentração, retiro em si e resistência (práticas do cuidado de si) em Fédon e Banquete, temos também a relação do cuidado de si com o conhecimento de si, um cuidado de si que é reduzido à forma do conhecimento e ao conhecimento de si (FOUCAULT,2006, p.62), em uma reorganização progressiva da velha tecnologia do eu, que envolve técnicas arcaicas pré-existentes do cuidado de si. Segundo Foucault (2006, p.86), estas técnicas foram subordinadas no contexto do platonismo ao princípio do “conhece-te a ti mesmo”, pois, para conhecer a si mesmo, é necessário dobrar-se sobre si, desligar-se das sensações que nos iludem e colocar a alma em uma fixidez imóvel que a desvincule do mundo. Seguindo este processo de subordinação, a filosofia moderna teria se concentrado no conhecimento de si, marginalizando a questão do cuidado de si. Em Alcibíades, contudo, percebe-se a sobreposição de ambos. Para Foucault (2006, p.87), nenhum dos dois deve ser negligenciado em proveito do outro. Para compreender como o “ocupar-se consigo” pode levar ao “conhecer-se”, temos em Alcibíades a metáfora do olho, onde o olho pode se reconhecer 16

em um espelho ou no olho do outro: “a identidade de natureza é a condição para que um indivíduo possa reconhecer o que ele é” (FOUCAULT, 2006, p.88). Reconhecendo-se, “poderá se lembrar das verdades com as quais tem afinidade e que se pode contemplar” (verdades entendidas como princípios fundamentais e virtudes) (FOUCAULT, 2004, p.269). A identidade de natureza é uma superfície de reflexo onde o indivíduo pode se reconhecer. O olho se vê no princípio da visão, o ato da visão permite ao olho aprender sobre si mesmo, um processo onde a alma se vê ao dirigir seu olhar para um elemento da mesma natureza, aplicando o olhar ao pensamento e ao saber, princípio divino que constitui a natureza da alma (Ibid), conhecimento de si como reconhecimento do divino ou alma que se olha no espelho do divino (marcas do platonismo tardio) (FOUCAULT, 2006, p.92). Na corrente estoica e em certos textos de Plutarco, mostra-se o aprendizado através do ensino de um certo número de verdades, regras de conduta e prescrições. Estes princípios dizem em cada situação de que forma deve-se conduzir. A partir da concentração em torno destes princípios, é possível controlar desejos, apetites e temores, com um “logos que falará conforme a voz do mestre” (FOUCAULT, 2004, p.269). Foucault (2006, p.89) resume a relação entre o cuidado de si e o conhecimento de si indicada em Alcibíades: para se ocupar consigo, é preciso se conhecer. Para se conhecer, é preciso se identificar. Esta identificação passa pelo princípio do saber e do conhecimento, elemento divino. Assim, a alma poderá ser dotada de sabedoria. Com isso, poderá distinguir o bem do mal e o verdadeiro do falso. O “momento cartesiano”, por outro lado, teria 17

sido aquele que requalifica o “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), desqualificando o “cuidado de si”. O conhecimento de si como forma de consciência indica o procedimento cartesiano, colocando a evidência da existência do sujeito no acesso ao ser, e o conhecimento de si mesmo que permitia o acesso à verdade. O procedimento cartesiano requalificou, desta forma, o gnôthi seautón, ao mesmo tempo muito contribuiu para desqualificar o cuidado de si, “desqualificá-lo e excluí-lo do campo do pensamento filosófico moderno” (FOUCAULT, 2006, p.19). Este acesso à verdade, tomado a partir do desenvolvimento autônomo do conhecimento, apresentado a parte de uma exigência de transformação do sujeito e do ser do sujeito por ele mesmo, contudo, não se deu de forma imediata. Uma desconexão do acesso à verdade, pelo sujeito cognoscente, da necessidade espiritual de um trabalho do sujeito sobre si mesmo (sujeito que se transforma e espera da verdade (prática de si) sua iluminação e sua transfiguração, tendo as regras de conduta como verdades e prescrições) começou a se fazer perceber com a divisão destes dois elementos a partir da teologia com São Tomás de Aquino e a escolástica. Ao adotar como “reflexão racional fundante” uma fé cuja vocação é universal, fundava o princípio de um sujeito cognoscente que encontrava em Deus seu ponto de realização, com uma “correspondência entre um Deus que tudo conhece e sujeitos capazes de conhecer” (Ibid, p.36). Segundo Foucault (2006, p.36), este teria sido outro dos pontos a partir do qual o pensamento filosófico teria se separado das “condições de espiritualidade” 1 que os haviam acompanhado até então, principalmente em termos de “cuidado de si” 18

(epiméleia heautou). De forma distinta, a questão do acesso à verdade em Espinosa no final do século XVI tratava das exigências necessárias para o ser mesmo do sujeito poder alcançá-la, frisando a necessidade de uma transformação do ser do sujeito por ele próprio, junto à questão da busca pelo conhecimento e de um bem soberano. No século XIX, diversos filósofos, como Hegel, Schelling, Shopenhauer, Nietzsche e Heidegger também colocam o acesso ao conhecimento atrelado às exigências da espiritualidade, à exigência de transformações no ser mesmo do sujeito para viabilizar este acesso (FOUCAULT, 2006, p.38). O deslocamento do conhecimento de si em relação ao cuidado de si se deu de forma muitas vezes concomitante a um direcionamento dos objetos a que se prestavam estas técnicas e a quem se destinavam. 1.2

Deslocamento e aplicação do cuidado de si

No movimento que se dá nas articulações das técnicas de si em relação ao sujeito e as relações de poder, nota-se uma diferença relacionada ao tipo de mudança que se busca alcançar e seu objetivo. Contudo, estes aspectos podem variar em termos de alcance ou de foco. Sugere-se, em Platão, que a idade para ocupar-se consigo seria a passagem para a vida adulta. Contudo, fica claro na Apologia de Sócrates o apelo a que todos os cidadãos se ocupassem consigo mesmos, como um exercício para toda a existência, e em Alcibíades aparece como um momento necessário na formação do jovem. Nas filosofias epicurista e estoica, torna-se obrigação permanente de todo indivíduo ao longo de 19

toda a sua existência (FOUCAULT, 2006, p.49). Para Epicuro (apud FOUCAULT, 2006, p.12), o homem deve se ocupar o tempo todo com a própria alma (“filosofia como exercício permanente dos cuidados consigo” (FOUCAULT, 2005, p.51)). Ocupar-se prescinde de therapeúein (termo que indica cuidados médicos, terapia da alma, serviço que se presta ao mestre ou serviço a um culto de determinada divindade). Para Demetrius (apud FOUCAULT, 2006, p.12), o cínico, (e entre os cínicos de uma forma geral) é grande a importância do cuidado de si. Deve-se dirigir o olhar para as “coisas imediatas que concernem a nós mesmos e para certas regras pelas quais podemos nos conduzir e controlar o que fazemos” (colocando de lado especulações sobre fenômenos naturais). Para os estoicos, o “cuidado de si” seria uma condição de acesso à vida filosófica, princípio de toda conduta racional para quem pretendesse obedecer ao princípio de racionalidade moral. Antes, nas práticas pré-filosóficas da Grécia arcaica, não temos como objetivo atingir uma racionalidade moral que visa a vida filosófica, mas de transformação do sujeito para permitir o contato com os deuses e a verdade. O conjunto de práticas relacionadas a um cuidado de si tem raízes muito antigas, práticas ritualizadas de muito antes de Sócrates e Platão. Estas práticas pré-filosóficas da Grécia Arcaica seriam uma forma de se atingir a verdade e o saber, de transformar o modo de ser do sujeito, uma tecnologia de si colocada em prática para este fim (FOUCAULT, 2006, p.59). Destas práticas, temos os ritos de purificação, procedimentos necessários para que o indivíduo fosse capaz de ter acesso aos deuses, realizar sacrifícios, ouvir 20

o oráculo e decifrar sonhos. Não apenas um contato com os deuses, mas um contato com o que os deuses podem nos dizer de verdadeiro. Esta era uma relação comum nas Grécia clássica e helenística, e no mundo Romano (Ibid). A técnica de concentração da alma era exigida para evitar que a alma – como sopro, que pode ser agitada e atingível pelo exterior – se dispersasse. Assim, é preciso concentrar esta alma, “recolhê-la, reuni-la, fazê-la refluir sobre si mesma, conferir-lhe um modo de existência, uma solidez que lhe permitirá permanecer, durar, resistir ao longo de toda a vida e não se dissipar quando o momento da morte chegar” (Ibid, p.59-60). A técnica do retiro, outra técnica que data da Grécia Arcaica, era uma forma de se desligar e se ausentar do mundo. “Não mais sentir as sensações, não mais se agitar com tudo o que se passa em torno de si” 2 (Ibid). A prática da resistência, vinculada à concentração na alma e ao retiro, envolve a resistência a provações dolorosas e difíceis. No pitagorismo, as técnicas de si (algumas delas técnicas da Grécia Arcaica) parecem indicar e reverberar nas práticas místicas anteriores, porém inseridas em um caráter ritualístico, movimento espiritual, religioso e filosófico. A purificação ganhou especificidade no pitagorismo, na forma de uma preparação purificadora para o sonho. Também teve aplicação nas escolas filosóficas posteriores (FOUCAULT, 2006, p.60). Para os pitagóricos, a preparação para o sonho possibilitava uma aproximação com o mundo divino, o da imortalidade e da verdade. Esta seria a razão pela qual devemos nos preparar para o sonho (Ibid, p.61). Este preparo auxiliaria na compreensão das mensagens 21

ambíguas com as quais se tem contato durante o sono. As práticas rituais relacionadas ao preparo para o sono incluíam escutar música, respirar perfume e realizar um exame de consciência. Este último era uma prática característica atribuída a Pitágoras, onde se realizava uma reconstrução do dia, lembrando das faltas cometidas e expurgando-as. Outra técnica de si encontrada entre os pitagóricos que ganhou especificidade em seu contexto próprio, a partir da técnica de resistência, é a técnica de provação. Consistia em buscar alguma coisa ou situação que tivesse a força de uma tentação e enfrentar sua presença, verificando a possibilidade de resistência. As articulações a partir do cuidado de si no contexto das obras de Platão, por sua vez, parecem apontar pela primeira vez para uma atualidade que privilegia, assumidamente, um caráter político, de preparo para a política. Em Platão, temos numerosos indícios das técnicas de si (Ibid, p.62). Em Fédon, por exemplo, temos referências a uma prática de concentração da alma, quando diz que ela deve “se reunir sobre si mesma, ... refluir sobre si, ... residir em si mesma tanto quanto possível”. Fala-se em Fédon, também, sobre uma prática de isolamento, do “retiro em si mesmo que se manifestará essencialmente na imobilidade”. A imobilidade também é apresentada no Banquete na evocação da figura de Sócrates em pé na neve. No Banquete, temos também a representação de outra técnica, da resistência à tentação, quando Sócrates, ao deitar ao lado de Alcibíades consegue dominar o seu desejo (Ibid, p.62-63). No dialogo Alcibíades de Platão, afirma-se que é preciso ocupar-se consigo mesmo, porém, de acordo 22

com o testemunho de Sócrates, corre-se o risco de se enganar, pois é preciso primeiro entender o que é ocupar-se de si. O texto começa com a exposição deste imperativo e do entendimento do que é preciso ocupar-se, do que é este eu. Posteriormente, é aplicado um objetivo a este “cuidado de si”, “de tornar-se capaz de governar os outros e de reger a cidade”. Sócrates em diálogo com Alcibíades, por sua vez, já direciona a questão para este objetivo certo: “se queres reger Atenas, vais ter que prevalecer sobre teus rivais na própria cidade, vais ter também que combater e rivalizar com os Lacedemônios e os Persas” (FOUCAULT, 2006, p.65). No preparo da jovem aristocracia ateniense para a política, daqueles que virão a ser os futuros governantes, temos as articulações de um “ocuparse consigo mesmo” a partir dos diálogos de Platão (FOUCAULT, 2006, p.55). Mostra que, se o jovem ateniense souber se conduzir como se deve, poderá governar a cidade e poderá se preocupar com a justiça (Ibid, p.89-90). Conforme indicado por Foucault (2006, p.91), sugere-se em Alcibíades que, após este processo, “ocupar-se consigo mesmo é ocupar-se com a justiça”. No diálogo Alcibíades, Sócrates deixa claro que o cuidado de si é um imperativo para aqueles que querem governar os outros. O cuidado de si é um privilegio e um dever dos governantes (Ibid, p.94). A estes jovens era conferida uma autoridade de antemão que, segundo Foucault (Ibid, p.56), podia ser questionada, pois é necessário ocupar-se consigo antes de governar os outros, o que envolve uma pedagogia própria. Em Atenas, esta pedagogia existia sem ter, contudo, o mesmo nível de desenvolvimento e empenho de Esparta e dos Persas. Esta pedagogia recebe um 23

caráter secundário perante o “ocupar-se consigo” no contexto do diálogo de Platão entre Protágoras e Sócrates, em que Sócrates indica o tempo como útil não para aprender, mas para ocupar-se consigo (Ibid, p.58). A falta de uma prática de um “ocupar-se consigo” indica então uma ignorância, do que se deveria saber e ignorância de si mesmo sem saber que ignora (ibid, p.57). No diálogo platônico Alcibíades, tenta-se definir o que seria o “ocupar-se consigo”, subdividindo-o em “o que é si mesmo” e “o que é ocupar-se” (FOUCAULT, 2006, p.58). Sobre a primeira questão, “o que é o eu”, faz-se referência ao oráculo de Delfos, à sacerdotisa Pítia e seu preceito de que é preciso conhecer-se a si mesmo. Na segunda referência ao oráculo de Delfos, também fica clara a importância de se saber o que é o eu, “elemento que é o mesmo do lado do sujeito e do lado do objeto”. “Tu te ocupas com algo que é a mesma coisa que tu mesmo... Tu mesmo como objeto” (Ibid, p.66), elemento idêntico que se articula com o cuidado. “Ocupar-se consigo mesmo” no texto do Alcibíades, a princípio, indica a referência à conhecida técnica de se ocupar com a própria alma. Na Apologia, também, Sócrates incentiva a todos que se ocupem com sua alma, a fim de que ela se torne a melhor possível (Ibid, p.67). Em Alcibíades, fica clara também a diferença entre o sujeito e o conjunto de elementos que constituem a ação. A alma, como sujeito da ação, se serve do corpo, das ações corporais, instrumentais e da linguagem. Assim, é possível perceber o sujeito em sua irredutibilidade, distinguir o sujeito dos instrumentos, utensílios e meios técnicos que ele pode por em ação (Ibid, p.68-69). 24

Neste contexto, considerando a ação de se servir que a alma assume, ocupar-se consigo mesmo designa “a posição de certo modo singular, transcendente, do sujeito em relação ao que o rodeia, aos objetos de que dispõe, como também aos outros com os quais se relaciona, ao seu próprio corpo e a ele mesmo”. Assim, para que se possa ocupar-se consigo, é necessário ser sujeito de alguma coisa (FOUCAULT, 2006, p.71), o que indica a alma como sujeito. Quer no Alcibíades ou nos diálogos platônicos de uma forma geral, salienta-se a importância do outro (Ibid, p.158) para o cuidado de si. O mestre cuida do cuidado que o discípulo deve ter consigo mesmo, possibilidade que surge a partir do amor do mestre para com o discípulo (Ibid, p.73-74). A partir do amor do mestre, temos um “princípio e modelo de cuidado” que o discípulo deve ter de si próprio enquanto sujeito. Em Alcibíades, Foucault indica as articulações do cuidado de si primeiro no que tange a esta questão do vínculo entre o cuidado de si e a relação amorosa – que se forma em referência ao outro 3 –, mas também no modo pelo qual o cuidado de si passa a ser empregado junto à medicina – prática dietética de cuidado com o corpo e os regimes – bem como sua forma econômica – relação entre cuidado de si e atividade social. Considerando a atividade social, em Plutarco, temos a sugestão de que para cuidar de si seria necessário confiar uma série de trabalhos corriqueiros a hilotas, indicando uma existência ligada a um privilégio sociopolítico e econômico. Este panorama foi confirmado por Platão. No dialogo Alcibíades, Alcibíades figura como aquele que pertence à aristocracia, porém o “cuidado 25

de si” não aparece aqui como aspecto de uma elite e sim como uma condição para a passagem de um privilégio estatutário (e de uma vida sem brilho) para uma ação política. “Não se pode governar os outros” se não se ocupa consigo mesmo (Ibid, p.48). É necessário ocupar-se da cidade, porém é preciso aprender como, é preciso conhecer a natureza do objeto com que tem de se ocupar. A partir do ocupar-se, pode-se entender o objeto do bom governo: “o bem estar, a concórdia dos cidadãos entre si” (Ibid, p.49). Assim, em Alcibíades, deve-se considerar o objetivo político ali empregado junto ao “cuidado de si”, tendo em vista a necessidade de uma modificação deste sujeito (que possui um status privilegiado) em termos políticos, mas que ainda não foi educado (possui uma educação deficiente). Alcibíades não se contenta apenas com sua família, riqueza e beleza. “Quer voltar-se para o povo, quer tomar nas mãos o destino da cidade, quer governar os outros” (Ibid, p.44). Passa por um governo efetivo de si próprio para posteriormente poder governar os outros. Vemos aqui um “cuidado de si” vinculado a um exercício de poder O objetivo político da prática do “cuidado de si” acerca dos ensinamentos de Sócrates também é ressaltado por Xenofonte. Em diálogo com Cármides, Sócrates indica que “é preciso dar um pouco de atenção a ti mesmo; aplica teu espírito sobre ti, toma consciência das qualidades que possuis, e poderás assim participar da vida política” (Ibid). A evidência do “cuidado de si” também aparece em A apologia de Sócrates, quando Sócrates se apresenta como aquele que tem por função incitar os outros a se ocuparem consigo, terem cuidados consigo e não se descuidarem de si; uma ordem 26

confiada a Sócrates pelos deuses. Buscava persuadir o outro a se preocupar com sua própria pessoa, mais do que com o que lhe pertence, visando se tornar tão excelente e sensato quanto possível. (FOUCAULT, 2006, pp.7-9). “O cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência” (Ibid, p.11). A partir de Alcibíades, Foucault (Ibid, p.41) mostra que teríamos o momento socráticoplatônico de surgimento do “cuidado de si” (epiméleia heautoú) na reflexão filosófica. Na segunda parte e no desfecho de Alcibíades, temos uma análise de uma teoria relacionada ao cuidado de si. Aqui, aparece o princípio de “ocupar-se consigo” como regra, como um “imperativo positivo”, destinada aos jovens que passam pela rua e não necessariamente para filósofos. Características proeminentes do platonismo, como a colocação do conhecimento de si como expressão maior e soberana do cuidado de si, de um conhecimento de si que permite o acesso à verdade, e de uma verdade que permite reconhecer o que há de divino em si, não estarão presentes em outras formas do cuidado de si epicurista e estoica. No contexto helenístico e romano, o “cuidado de si” se torna um fenômeno cultural de conjunto, com sua prática de incitação e a “aceitação geral de que é preciso ocupar-se consigo mesmo” (Ibid, p.13). Indica não uma origem, mas uma proveniência possível para práticas posteriores (FOUCAULT, 1979, pp.20-21) 4. Questões prementes articuladas em torno do cuidado de si e do ingresso do jovem na vida adulta5 na Grécia clássica presentes em Alcibíades, como a 27

política, pedagogia e erótica dos rapazes (onde o jovem adolescente na passagem para a vida adulta deixaria de ser objeto de desejo, de estar nas mãos de pedagogos e na hora de exercer um poder ativo), podem ser percebidas quase continuamente ao longo da história do pensamento greco-romano, porém com soluções e formulações ligeiramente distintas (deslocamentos na cultura de si pós-clássica). De um cuidado de si que era privilégio dos governantes, temos um imperativo que passa a se generalizar e envolver quase todo mundo. Porém, ainda é necessário capacidade, tempo e cultura. Esta generalização, contudo, indica um princípio de limitação, pois visa criar no indivíduo uma diferença em relação à maioria absorvida na vida de todos os dias. Assim, temos a possibilidade de articulação de um cuidado de si não só por uma elite (o status não é mais uma condição para se praticar o cuidado de si), mas também por aqueles que conseguem aplicar o princípio ético sobre si (FOUCAULT, 2006, p.94). Não é mais uma atividade particular que tem por finalidade governar os outros e como objeto privilegiado a cidade. Ocupar-se consigo agora tem uma finalidade em si mesmo (o eu como objeto do qual se cuida, algo com que se deve preocupar). Trata-se agora de uma “prática autônoma, autofinalizada e plural em suas formas” (Ibid, p.106). O conhecimento de si integrou-se no interior de um conjunto (Ibid, pp.103-104). Percebese, assim, também uma generalização com dois moldes. Uma generalização do cuidado de si na vida do indivíduo e uma coextensão (pelo menos possível e proposta) à vida de todos os indivíduos (oradores cínicos, por exemplo, se dirigiam ao público em geral). Após Platão e até os primeiros séculos de 28

nossa era, o cuidado de si passa a ser uma “obrigação permanente que deve durar toda a vida”, generalização em termos de idade que esteve indicada, por exemplo, na carta de Epicuro a Meneceu: “Quando se é jovem, não se deve hesitar em filosofar, e, quando se é velho, não se deve deixar de filosofar. Nunca é demasiado tarde para ter cuidados com a própria alma”. Este cuidado com a alma e o alcance da felicidade em todas as fases da vida passam a ser o próprio objetivo da atividade de filosofar. Para Musonius Rufus, apenas se cuidando sem parar seria possível “se salvar”, com um eixo temporal privilegiado que estaria agora na idade adulta (Ibid, pp.108-109). A pedagogia, em Sócrates e Platão, é dada como insuficiente, por isso é necessário cuidar de si. Posteriormente, a partir dos primeiros séculos de nossa era, será necessário cuidar de si não só porque é jovem e pela falha de determinada pedagogia, mas porque toda e qualquer pedagogia é incapaz de assegurar o acesso à verdade. É preciso se ocupar consigo durante toda a vida, com um privilégio para a maturidade. O adulto se preparará para a velhice (Ibid, p.95), tendo a velhice como meta, “meta positiva da existência”, a que não se deve resignar (Ibid, p.135). Com este novo centro do cuidado de si para a maturidade, de acordo com Foucault (Ibid, p.114), é acentuada sua função crítica, uma crítica em relação a si mesmo, ao seu mundo cultural e à vida dos outros. Uma função crítica sobre a função formadora. Apesar de todas as dificuldades, infortúnios e eventuais acidentes, temos, conforme Sêneca (apud FOUCAULT, ibid, p.115), uma formação para que o indivíduo possa suportar os mais diversos reveses, um mecanismo de segurança, uma armadura protetora em relação ao 29

resto do mundo em face dos acontecimentos. Assim, temos uma prática de si para este período helenísticoromano que se impõe sobre um “fundo de erros, de maus hábitos, de deformação e de dependência estabelecidas”, que se quer combater. “Correçãoliberação, bem mais que formação-saber: é neste eixo que se desenvolverá a prática de si” (Ibid, p.116). A idade de ouro do cuidado de si apresentada por Foucault em Hermenêutica do sujeito envolve a época do estoicismo romano de Musonius Rufus até a de Marco Aurélio, o período do renascimento da cultura clássica do helenismo, fase anterior à difusão do cristianismo. Inclui também as filosofias cínica e epicurista que se apresentaram como artes de viver. Para esta era de ouro, Foucault (2006, pp.105106) apresenta a prática do cuidado de si de acordo com diferentes tipos de expressão. Primeiro, como aquelas que remetem aos atos de conhecimento, com uma referência “à atenção, ao olhar, à percepção que se pode ter em relação a si mesmo”. Este se dá não só em Platão, mas também em Plutarco, quando este atenta para a necessidade de fechar as janelas para que se possa olhar para o interior da casa e de si mesmo. Em segundo lugar, mostra o cuidado de si como um “movimento global da existência que é conduzida, convidada, a girar de certo modo em torno de si mesma e a dirigirse ou voltar-se para si”, o que inclui expressões que se referem “à atividade, à atitude de refluir sobre si mesmo, retrair-se, ou então estabelecer-se, instalarse em si mesmo”. Para este tipo de expressão, indica as práticas de Epicteto, Marco Aurélio e Plotino (Ibid, p.255). Um terceiro grupo se refere a atividades, condutas particulares em relação a si. Aparentemente inspiradas em um vocabulário médico, principalmente 30

em Epicteto e sua escola de filosofia (hospital da alma): “tratar-se, curar-se, amputar-se, abrir seus próprios abscessos”, quando a prática de si assume funções de corrigir ou reparar, e quando existe a desmedida de um pathos (paixão ou doença) (Ibid, p.119). Inclui também atividades em relação a si mesmo. Como se deu em carta de Sêneca a Lucílio, é preciso “reivindicar-se a si mesmo”, é preciso fazer valer os direitos, “direitos que se tem sobre si mesmo”, direitos “sobre o eu que se acha atualmente carregado de dívidas e obrigações das quais deve livrar-se” para sair de um estado de escravidão. Assim, é necessário se liberar e se desobrigar. Aqui, podem ser incluídas também expressões com um cunho quase religioso, como “cultuar-se, honrar-se, respeitarse, envergonhar-se diante de si mesmo”, uma atitude de reverência presente em Marco Aurélio. O quarto e último grupo de expressões designa uma relação permanente consigo, seja de domínio ou de soberania (ser mestre de si), ou de sensações, como “sentir prazer consigo, alegrar-se consigo, ser feliz em presença de si, satisfazer-se consigo mesmo”, como é possível perceber em outras cartas de Sêneca a Lucílio. Outro ponto importante que ocorre com a idade de ouro do cuidado de si é que a distinção platônica entre arte do corpo e da alma passa a ser abolida pouco a pouco. A reintegração ocorre nos epicuristas e nos estoicos, para os quais a saúde do corpo estaria ligada a uma tensão na alma, conforme se percebe em relato de Estobeu. E ocupar-se consigo envolve ocupar-se com a alma e com o corpo, conforme aparece em Sêneca, Marco Aurélio, Frontão e Élio Aristides (Ibid, p.133). Posteriormente, no cristianismo, deve-se considerar a inversão sofrida pela noção de “cuidado de si” e todas as suas técnicas relacionadas, no 31

desdobramento na noção de cuidado do ascetismo cristão. A partir deste, é desenvolvida uma moral restritiva e rigorosa, que deve ser atribuída, segundo Foucault (2006, p.17) não ao cristianismo, mas à moral dos primeiros séculos de nossa era (morais cínica, estoica e epicurista) e de antes. Assim, regras austeras foram retomadas das primeiras práticas filosóficas para uma moral cristã e também na moral moderna não cristã, com um caráter totalmente distinto. A estrutura das regras permaneceu idêntica, mas foram transferidas “para o interior de um contexto que é o de uma ética geral do ‘não egoísmo’” (Ibid), com a renúncia de si cristã ou na obrigação para com os outros (coletividade, classe, pátria etc.) “moderna” - quer o outro, quer a coletividade. Nestes dois contextos, o cuidado de si foi dimensionado como uma forma de egoísmo, de interesse individual que se chocava com a relação com os outros e com o sacrifício de si mesmo, tendo em vista a salvação (envolvendo a renúncia de si) (FOUCAULT, 2004, p.268). Esta salvação depois da morte e a renúncia de si, de acordo com Foucault (Ibid, p.273), desequilibram e perturbam a temática do cuidado de si 6. Na era moderna, temos não mais uma renúncia de si, mas uma ênfase na necessidade de se descobrir e de se construir, graças à necessidade de objetivação do sujeito imposta pela racionalidade política. Na prática de campos de saberes como a psicanálise e o marxismo, também se nota a apropriação de técnicas de si, com ciências que ganham ares de cultos, na medida em que demandam uma conversão do sujeito e prometem, ao fim de seu curso, uma iluminação do sujeito, através de uma estrutura e de exigências de espiritualidade. Tanto no Marxismo 32

como na psicanálise, “por razões totalmente diferentes, mas com efeitos relativamente homólogos, temos o problema a respeito do que se passa com o ser do sujeito (do que deve ser o ser do sujeito para que ele tenha acesso à verdade, uma verdade relacionada a uma conformação social) e... do que pode ser transformado no sujeito pelo fato de ter acesso à verdade” (FOUCAULT, 2006, p.38-40), características de uma espiritualidade, questões fundamentais relacionadas a um “cuidado de si”. As transformações nestes casos, contudo, visam a construção do sujeito tendo em vista uma posição de classe ou no partido, a manutenção do pertencimento a um grupo, pensadas em termos de organização social. Na psicanálise temos, porém, em relação às práticas do “cuidado de si” uma manutenção de alguns aspectos recontextualizados, como a “questão do preço que o sujeito tem a pagar para dizer o verdadeiro”, agora em termos monetários, e “a questão do efeito que tem sobre o sujeito o fato de que ele disse, de que pode dizer e disse, a verdade sobre si próprio” (Ibid). Antes, nos primeiros séculos, tendo em vista sua própria ascese e o alcance do ser mesmo do sujeito, e agora visando uma construção social adequada. 1.3 Cuidado de si e as relações de poder Em História da sexualidade I, Foucault apresentava pontos de resistência relacionados ao dispositivo de sexualidade (pontos de resistência no corpo e nos prazeres) que, contudo, segundo Ortega (1999, p.33), não seriam capazes de ser colocados contra o poder subjetivante, pois não permitem “nenhuma possibilidade de resistência para além do poder”, e ficam presos às relações de poder, tendo 33

a vida e a subjetividade como objetos do bio-poder. Porém, em 1977, no texto A vida dos homens infames, Foucault (2003) suscita a possibilidade de inclusão de outra perspectiva, no que tange o sujeito. Alguém me dirá: isto é bem próprio de você, sempre a mesma incapacidade de ultrapassar a linha, de passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de outro lugar ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado do poder, do que ele diz ou do que ele faz dizer. Essas vidas, por que não ir escutá-las lá onde, por elas próprias, elas falam? (FOUCAULT, 2003).

Nesta nova fase da obra de Foucault, temos uma ênfase nestas vozes, uma ênfase na força dos indivíduos e seu potencial de contestação e modificação do poder, uma resistência em diversas frentes que se conjuga nas relações de poder (“formas de resistência aos diferentes tipos de poder como ponto de partida” (FOUCAULT, 1994, p.225)). Mais tarde, em 1984, em A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade, Foucault (2004) mostra que se apenas houvesse poder por toda parte não haveria lugar para liberdade. “Ninguém pode afirmar que para mim o poder é um sistema de domínio que controla tudo e não deixa lugar para a liberdade”. Assim, temos um deslocamento no pensamento de Foucault no qual a relação consigo (dos indivíduos livres em suas lutas, afrontamentos e projetos, constituindo-se como sujeitos em suas práticas e/ou recusando práticas a ele impostas) seria uma forma de resistência ao poder ou forma de se converter ao poder para mantê-lo sob controle, uma subjetividade ética que permite conferir autonomia e resistência a um tipo de subjetividade proveniente do bio-poder. Uma ética 34

que, nos jogos de poder, permite jogar com o mínimo possível de dominação. As práticas de si, conforme já visto, tiveram nas civilizações greco-romanas grande importância e autonomia – com um exercício de si sobre si mesmo através do qual se procurava elaborar, para se transformar e atingir um certo modo de ser – antes de serem utilizadas por instituições religiosas, pedagógicas, médicas e psiquiátricas (FOUCAULT, 2004, p.265). Em seu texto O sujeito e o poder, Foucault (1995) salienta uma prática de transposição de certos mecanismos utilizados e associados às práticas de poder (e para as práticas de poder). O fascismo e o nazismo, por exemplo, se valeram de ideias e artifícios de uma racionalidade política para implantar seus objetivos. Fica claro nestes contextos a relação entre a racionalidade e excessos políticos. A racionalização da sociedade e da cultura pode ser percebida como reflexo em diversos campos, como a psiquiatria, a medicina e a justiça, sempre com referência a uma experiência fundamental, como a loucura, a doença, a morte, a sexualidade etc. Devem, segundo Foucault (1995, p.233), contudo, ser analisadas racionalidades específicas, ao invés de uma racionalização geral. Foucault (Ibid, p.234) sugere uma postura para lidar com as relações de poder que tem como ponto de partida a utilização de diferentes formas de resistência contra diferentes formas de poder 7. Utiliza a resistência (sua posição, aplicação e métodos utilizados) como modo de esclarecer as relações de poder, para analisar estas relações poder através de suas posições antagônicas. Assim, segundo ele, para se compreender a 35

sanidade em nossa sociedade, devemos entender o que ocorre no campo da insanidade. Outras oposições correntes em nossa sociedade, indicadas por Foucault (1995, p.234), incluem a oposição entre as mulheres e o poder dos homens, entre pais e filhos, entre doentes mentais e a psiquiatria, entre a medicina e a população, e entre a administração e os modos de vida da população. Estas relações de força, como acontecimento, podem mostrar, concordando com Nietzsche, o acaso da luta que se insere no jogo da história, mas sem obedecer a um destino ou mecânica (FOUCAULT, 2000, p.148). Existe uma relação de violência e subjetivação que age sobre um corpo e ao mesmo tempo uma resistência. Uma relação de poder se articula em torno destes dois polos que lhe são indispensáveis, dois polos que funcionam através de atos de violência e consentimentos, instrumentos ou efeitos do poder. Esta relação aponta para o procedimento de análise histórica de acontecimentalização (événementialisation) caracterizado pela ruptura que faz surgir a singularidade, pelo encontro dos apoios, bloqueios, jogos de força. Implica em uma multiplicação causal, com a análise dos acontecimentos segundo processos múltiplos que os constituem, considerando o acontecimento como polígono de inteligibilidade, sem que se possa definir de antemão todos os seus lados, um polimorfismo crescente de elementos que entram em relação (FOUCAULT, 1980, pp.24-25). Relação de poder é um modo de ação que age diretamente sobre sua própria ação, “uma ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou presentes” (como a relação sintética do instante 36

apresentada por Deleuze (apud MACHADO, 2009, pp.90-91), pois pode ser ao mesmo tempo passado, presente ou futuro). Relações de poder são aquelas que podem ser encontradas em diferentes níveis e formas, e se estendem pelas relações humanas. Podem ser móveis, reversíveis e instáveis (efeitos). “Não são dadas de uma vez por todas” (FOUCAULT, 2004, p.276). Podemos pensar em relação de poder também como incitação recíproca e de luta (campo com múltiplas modalidades de luta, contra dominação, exploração e subjetivação), uma agonística e uma provocação permanente (FOUCAULT, 1994, p.238), de um mundo de forças em afrontamento. “A agonística entre relações de poder e a intransitoriedade da liberdade são tarefas políticas incessantes... inerente a toda existência social” (FOUCAULT, 1994, p.239), com liberdade e poder se enfrentando constantemente, como faces de uma mesma moeda em contraste permanente, porem gerando contextos éticos e políticos provisórios. O conceito de conduta reflete estes dois polos, como ato de conduzir e maneira de se comportar. O exercício de poder 8, para Foucault (1995, p.244), consiste em conduzir condutas. Apesar de acumular mortes e se abrigar sob ameaças, o exercício do poder não é em si mesmo uma violência9 ou um consentimento, mas sim um conjunto de ações sobre ações, uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos. “Opera sobre um campo de possibilidades onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos” (FOUCAULT, 1995, p.243) e não se refere apenas às estruturas políticas e à gestão dos estados. Para que o poder possa ser exercido, estes indivíduos ativos, segundo Foucault (1995, p.244), 37

devem ser livres – capazes de diversas reações ou modos de comportamento. Não há relação de poder quando as relações estão saturadas – com os sujeitos completamente à disposição a se tornar coisa ou objeto sobre o qual pode ser aplicada violência ilimitada –, mas sim quando, no limite, o homem pode escapar. Temos, assim, uma relação de incitação recíproca e de luta, uma provocação permanente de ambos os polos. É preciso que haja estes dois lados. Mesmo com a relação de poder completamente desequilibrada – estados de dominação onde não é mais possível uma mobilidade que permite que os diferentes parceiros modifiquem estratégias (FOUCAULT, 2004, p.266) –, para o subjugado ainda é possível matar ou se matar. Existe uma possibilidade de resistência. Se existem relações de poder no campo social, é porque existe liberdade (Ibid, p.276-277). Esta liberdade é uma “experiência do limite”, acontecimento que se dá como efeito na superfície, limite dos corpos, junto a outros processos, movimento de forças que nós não conhecemos, mas que nos atravessam (CASTRO, 2004, p.25), forças que provem dos corpos e do encontro entre os corpos. Com o abuso de poder – quando se vai além do exercício legítimo – fantasias, apetites e desejos do tirano são impostos aos outros. Aproveita-se assim do poder e da riqueza para abusar dos outros, para impor um poder indevido. De acordo com Foucault (2004, pp.271-272), na realidade este homem que é o escravo, escravo de seus apetites. O bom soberano, por outro lado, é aquele que exerce seu poder adequadamente. Exerce seu próprio poder sobre si da mesma forma, pois “o poder sobre si que vai regular o poder sobre os outros”, o cuidado de si como forma de limitar e 38

controlar o poder. Nas Mémorables de Xenofonte, indica-se a necessidade de cuidado de si do bom governante, como “condição pedagógica, ética e ontológica para sua constituição” (Ibid, p.278), pois ele não deve ser escravo de seus apetites. A noção de governamentalidade (gouverneméntalité) exige igualmente um cuidado de si por parte do sujeito, pois está relacionada ao “conjunto de práticas pelas quais é possível constituir, definir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indivíduos, em sua liberdade, podem ter uns em relação com os outros” (Ibid, p.285). A partir desta possibilidade de liberdade no contexto das práticas de si, vamos pensar a liberdade em articulação com a autonomia, no que tange os conceitos de Aufklärung e revolução.

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2 Aufklärung e revolução: uma ontologia do presente

A posição platônica de abrir os olhos, sair do sono e alcançar a luz apresentada por Foucault (2006, p.11) relacionada ao “cuidado de si” como o primeiro despertar poderá indicar também um momento de passagem a uma maioridade, se pensarmos a presença do “cuidado de si” como atitude que permite levar à construção do adulto (no caso de Alcibíades) ou para a velhice no caso dos textos referentes à idade de ouro do “cuidado de si”. Parte-se, neste capítulo, das questões da autonomia e da liberdade em contraponto com a obediência, considerando suas alocações em um domínio público e outro privado, para pensar os conceitos de Aufklärung e Revolução, considerando um questionamento sobre a atualidade como pertencente a ambas. A articulação de um entusiasmo com a Revolução seria um sinal de que os homens consideram como importante a partilha de uma constituição política que atenda a todos e evite toda guerra ofensiva, vontades que indicam a Aufklärung e uma saída da menoridade. 2.1 Autonomia e liberdade, individuação e assujeitamento Em meio às relações de poder que se articulam como forças e a noção de governamentalidade – relação entre técnicas de governo dos outros e as do governo de si10 -, temos a possibilidade de uma vida ética com o questionamento ao controle da vida subjetiva e às tecnologias de poder, e a crença na autonomia e liberdade dos indivíduos. Estes aspectos caracterizam a obra de Foucault a partir de 1978. Situam-se, contudo, 43

dentro da “nova ordem mundial” e são articulados com o texto de Kant de 1784, O que é esclarecimento? (Was it Aufklärung?) 11 (CASTELO BRANCO, 2004, p.225). Ortega (Ibid, pp.35-45) indica a mudança na concepção de poder em Foucault a partir de 1976, quando o conceito de poder é substituído pelo de governo, possibilitando a inclusão das temáticas do governo de si e da autoconstituição (não só o governo de uns homens sobre os outros, mas também da liberdade dos homens). A multiplicidade de relações de força que caracterizava a noção de poder passa a caracterizar a noção de governo e o poder passa a ser entendido como uma relação social junto a outras. Os textos onde aparecem inicialmente o conceito de governo são Segurança, território e população (1977) e Nascimento da biopolítica (1978). “A análise das práticas de governo permite relacionar as ‘técnicas de poder’ com as ‘técnicas de si’” (Ibid, p.37). Deve-se considerar, que o poder e o “governo por individuação” (diferente do governo totalizante) não são repressivos, mas produtivos. É produzido um comportamento induzido, o que a mídia faz, geralmente, muito bem. São produzidas individuação e subjetividade, que não são relações de causa e efeito, e sim criações de formas de conduta. Podem ser produzidas pessoas em série e gostos em série. Séries de subjetividade. Aspectos que nos determinam e nos confirmam incluem as identidades, dossiês médicos, jurídicos e psiquiátricos. Nos reconhecemos nos moldes em que fomos produzidos e vivemos alegremente assujeitados. O último Foucault (a partir de 1978), em termos éticos e políticos, se caracteriza pela luta contra o assujeitamento, luta “contra as técnicas e 44

procedimentos que pretendem exercer o controle da vida dos indivíduos e do mundo social”. O “governo por individuação” envolve não apenas a dominação das subjetividades realizada pelo Estado, mas também a participação de instituições diversas espalhadas pela sociedade, como família, manicômio e hospital (CASTELO BRANCO, 2004, pp.226-227). Na escola, por exemplo, temos toda uma equipe de profissionais (professores, pedagogos, assistentes, médicos, psicólogos e terapeutas) dedicados a uma moldagem do aluno, mais do que um controle. “As lutas contra o assujeitamento são aquelas que combatem tudo o que liga o indivíduo a si mesmo” (FOUCAULT, 1994, p.227), enfatizando uma valorização da diferença e de uma identidade, que, sempre em devir, evita, desta forma, a submissão a outros e garante um posicionamento contra as diversas formas de subjetividade. “O objetivo principal, hoje, não é o de se descobrir, mas de se recusar o que nós somos... Devemos promover novas formas de subjetividade, recusando o tipo de individualidade que nos foi imposto há tantos séculos” (Ibid, p.232), nos subtraindo da produção social do sujeito, recusando o que ele é, tendo estas novas formas de subjetividade como objetivo político. Uma subjetividade anárquica que tem em vista a libertação de formas de subjetivação impostas (ORTEGA, 1999, pp.153-154). Assim, temos uma preocupação quanto ao estatuto da individualidade diante das técnicas de assujeitamento, quanto à passagem que vai do assujeitamento à autonomia, e a procura de uma diferença, uma diferença que o hoje pode introduzir em relação ao passado, o que indica a “pura atualidade” sugerida por Kant na questão do esclarecimento. O 45

momento presente como saída, movimento pelo qual nos desprendemos de alguma coisa, sem que nada seja dito sobre o nosso destino. Para se compreender como é possível realizar esta passagem do assujeitamento à autonomia, temos as diferenças entre as noções de público e privado, e das noções de minoridade e maioridade, indicadas por Kant. Foucault (2010, p.9) ressalta o lugar da publicação, dimensão muito enfatizada por Kant em termos de esclarecimento (Aufklärung) e a noção de público (publikum). Trata-se de uma relação concreta entre escritor (escritor qualificado ou homem culto) e leitor (um indivíduo qualquer), que é analisada por Kant. Foucault (Ibid) mostra que essa relação entre escritor e leitor no século XVIII não se dava no âmbito da Universidade e nem pelos livros, e sim por comunidades intelectuais, que incluíam revistas e sociedades ou academias relacionadas a essas revistas. Essas sociedades e suas revistas, segundo ele, organizavam de forma concreta “a relação entre... a competência e a leitura na forma livre e universal da circulação do discurso escrito”; e correspondem à noção de público, a noção de um público que se dirige à publicação. O uso público das faculdades não trata de nenhuma atividade política ou função administrativa. Aqui, temos um sujeito universal que, como sujeito racional, se dirige a um conjunto de seres racionais. Por outro lado, fica claro, tanto no texto de Kant quanto no texto homônimo de Mendelssohn, que haveria a necessidade de uma liberdade absoluta, não só de consciência mas de expressão em relação a todo o exercício da religião (que é um exercício privado e não universal onde se submete a um mestre). Em 1784, a 46

cerca do livro Jerusalém de Mendelssohn, Kant coloca que o autor conseguira conciliar religião e liberdade de consciência, o que também é frisado por Mendelssohn em seu O que é esclarecimento, onde um judeu autêntico, que trabalha em uma loja judaica, adquire “sem mestre” conhecimentos vastíssimos nas ciências, fato que indica o mérito de seu reconhecimento. Ambos deixam clara a necessidade de restringir a religião a um âmbito privado. Kant compara a atitude do judeu citado por Mendelssohn, como atitude que deveria ser assumida pelos cristãos em relação a sua religião (FOUCAULT, Ibid, pp.10-12). Segundo Foucault (Ibid, pp.34-35), o uso privado (particular) das faculdades é aquele que fazemos em nossa atividade profissional, em nossa atividade, como funcionários ou elementos da sociedade ou do governo, com princípios e objetivos que visam o bem coletivo. “Somos peças de uma máquina”, situadas em um lugar preciso e com um determinado papel. Neste caso, funcionamos como indivíduos e não como sujeitos universais. Fazemos um uso particular e privado de nossa faculdade dentro de um conjunto, conjunto este que tem uma função global e coletiva. Indo além de uma liberdade de consciência, parece necessário apontar também para uma consciência de liberdade que aponte para uma possibilidade de saída no processo de esclarecimento. 2.2 Aufklärung: Ausgang de uma menoridade e crítica Para definir o que é Iluminismo, Kant (1784b, A 481) indica “a saída do homem de sua menoridade, pela qual ele próprio é responsável (culpado)”. 47

Entende-se menoridade como a “incapacidade de se servir do seu entendimento sem a direção de outrem”, quando os homens se colocam sobre a direção dos outros, em uma menoridade de que o próprio homem é responsável (porém não se trata de uma impotência natural ou infância da humanidade, nem uma privação por ordem jurídica e nem de uma autoridade ilegítima, pois, segundo Kant (Ibid), os homens seriam capazes de se guiar a si mesmos, e não o fazem por certo defeito ou falta). Considera-se como sua causa uma falta de decisão e de coragem para utilizar seu próprio entendimento sem a direção de outros. Ouse saber! (Sapere aude!). Se os homens se encontram em um estado de menoridade não é porque outros se apossaram do poder, mas porque os homens não são capazes ou não querem dirigir a si mesmos e assim outros tomam a sua direção. Assim, temos uma atitude ou modo de comportamento onde, por complacência ou por um obséquio que se assemelha a uma artimanha, uns assumem a direção de outros; e, por outro lado, um estado de menoridade, um estado de conformação onde a capacidade de entender, de se preocupar e de decidir é delegada a terceiros. O estado de menoridade estaria justamente na obediência junto à ausência do uso da faculdade de raciocinar. Segundo Foucault (Ibid, p.34), um “senhor no mundo” (a razão e/ou o rei da Prússia – que seria um agente para um governo de si que se faz de forma universal (discussão e raciocínio públicos, e uso público de entendimento) e, por outro lado, de uma obediência pela qual serão constrangidos todos os membros da sociedade) – diria: “raciocinem o quanto quiserem, mas obedeçam”. “Quanto mais liberdade para o espírito vocês deixarem, mais vocês terão 48

certeza de que o espírito do povo será formado para a obediência” (quando o conhecimento se torna uma ideia justa, pode-se descobrir o princípio de autonomia, quando o obedeça estará fundado sobre a própria autonomia (FOUCAULT, 1990)). Foucault (2010, p.35) conclui que haveria menoridade quando se sobrepõe o princípio de obediência com a falta de raciocínio tanto no uso privado como no uso público de nosso entendimento. Com esta confusão do obedecer com o não raciocinar, oprimi-se o uso público e universal do nosso entendimento e temos a menoridade. Haverá maioridade apenas quando for possível restabelecer a articulação de forma justa entre estes dois pares. “Na menoridade, se obedece em qualquer circunstância”, tanto no uso privado como no uso público e desta forma não se raciocina. Se os homens não conseguem sair de sua menoridade, haverá indivíduos capazes? Para Kant (apud FOUCAULT, Ibid, p.33), haveria indivíduos que escaparam da preguiça e da covardia e adquiriram autoridade sobre os outros. Kant (1784a, A 392-393) fala sobre uma resistência (tendência universal) que desperta a força do homem e “o induz a vencer a inclinação para a preguiça e, movido pela ânsia das honras, do poder ou da posse, a obter uma posição entre os seus congêneres, que ele não pode suportar, mas dos quais também não pode prescindir”. Para se apossar da direção dos outros, se apoiam em sua própria autonomia. Porém, não são capazes de fazer com que a humanidade saia de sua menoridade, porque aqueles habituados à menoridade não suportam a liberdade concedida fora do jugo. Podem se libertar também para eles mesmos entrarem no jugo, o que seria para Foucault a lei de todas as revoluções, onde os 49

libertadores serão os novos algozes. Se existe um livro que substitui o entendimento, se um diretor de consciência substitui a consciência moral e se o que se pode saber, decidir e prever da própria vida são substituídos pelas diretrizes de um médico, então não é necessário se preocupar, o que caracteriza para Kant (1784b, A 481-482) um estado de menoridade. O estado de dependência está na maneira como o indivíduo faz estas três autoridades (livro, diretor de consciência e médico) agirem por ele. Segundo Foucault (Ibid, p.30), estes três exemplos estão relacionados às três críticas, considerando o entendimento, a consciência moral e o problema do médico (que vai constituir o domínio próprio da Crítica da faculdade do juízo). Assim, a questão da menoridade e da Aufklärung devem ser consideradas de acordo com as três críticas, se completando e se convocando. A Crítica da razão pura nos ensina a fazer um uso legítimo do nosso entendimento, dentro dos limites da nossa razão (até onde se pode saber? Até onde se pode raciocinar sem perigo? (FOUCAULT (1990)), mas também é necessário realizar concretamente individualmente e autonomamente sem nos referir à autoridade de um livro. Eis aqui dois princípios complementares. Ao extravasar os limites da razão, somos levados a apelar para uma autoridade, que vai nos colocar em um estado de menoridade. A Crítica da razão prática, por sua vez, nos ensina que não devemos depender de um “destino ulterior” determinado, mas devemos fazer o uso de nossa consciência para determinar nossa conduta (uma vontade livre de acordo com a lei moral). Uma autonomia (sair da menoridade pela Aufklärung) e também uma limitação realizada pela reflexão crítica. 50

Segundo Foucault (2010, p.31), esta relação entre crítica e Aufklärung não é explícita, mas existem indícios sugeridos por Kant, como no caso dos homens libertos que teriam medo de cair (em termos de Aufklärung) e, ao mesmo tempo, com a imagem do voo da razão que, indo além dos limites, não sabe ao certo se poderá ser sustentada em termos de crítica. Nesta complementaridade entre crítica e Aufklärung, temos uma agonística, uma relação de forças em nós. Em busca de uma definição de Aufklärung, Foucault (Ibid, p.26) também se atém sobre a palavra “saída” (Ausgang). Na época de Kant, a definição de um momento presente se distinguia por alguma característica própria ou acontecimento dramático, algum acontecimento iminente ou como um momento de transição. Segundo Foucault (Ibid, p.27), a Aufklärung sugerida por Kant não seria nem pertencimento, nem iminência e nem realização, e nem passagem de um estado ao outro. Define o momento presente como saída ou partida (Ausgang), quando nos libertamos de alguma coisa, “sem que nada seja dito sobre para onde vamos”. Trata-se de um desprendimento que está sendo realizado e que é o que há de significativo da nossa atualidade. Não mais apenas um discurso de descrição, mas um discurso de prescrição. Para entender a Aufklärung (como saída de um estado de menoridade e como possibilidade de autonomia) é preciso entender, de acordo com Kant (apud FOUCAULT, Ibid, p.33), como funciona este estado de menoridade. Ele se caracteriza pela participação de dois pares “indevidos e ilegítimos” aqui já salientados: o par obediência e falta de raciocínio; e o par (ou confusão entre duas coisas) privado e público. 51

“Na maioridade, desconectam-se raciocínio e obediência”. Utiliza-se da obediência no uso privado e da “liberdade total e absoluta” do raciocínio no uso público. A Aufklärung promove a liberdade no âmbito universal, “tanto um processo em curso quanto a audácia do saber, da decisão de ser livre” (CASTELO BRANCO, 2004, p.230), “um processo que se toma coletivamente e também um ato de coragem a se efetuar de forma pessoal” (FOUCAULT, 1994, p.565). Restringe a obediência apenas ao papel privado (papel particular definido dentro do campo social) (FOUCAULT, 2010, p.35), Envolve a elevação do campo da política à universalidade da questão ética, tendo lugar um exercício da liberdade (uma liberdade que é insubmissa e que diz sempre não às forças que procuram controlála (CASTELO BRANCO, 2009, p.290)). Assim, temos a necessidade de um cálculo estratégico junto ao trabalho de libertação, onde existe uma atitude-limite que é sempre renovável, com o encontro de novos limites e ultrapassagens, atuando no contraponto das experiências totalitárias (CASTELO BRANCO, 1994, pp.231-235). De acordo com Foucault (1990), a partir das relações entre Aufklärung e atitude crítica, temos uma desconfiança de que excessos de poder e governamentalização estariam relacionados aos excessos da razão, de que a razão seria historicamente responsável. A atitude crítica para Foucault envolve uma análise dos limites da racionalidade política. Até quando a razão pode funcionar? Excessos são cometidos em nome de uma racionalidade política. O que se percebe é que nossa sociedade vive debaixo de 52

uma terrível truculência. Pedir que a filosofia fosse juíza da razão, não seria pedir demais? 2.3 A questão do presente A partir da possibilidade do exercício de liberdade podemos pensar a questão da atualidade, do presente, do que acontece hoje e agora. Um “agora dentro do qual estamos todos, e que é o lugar, o ponto do qual escrevo” (FOUCAULT, Ibid, pp.12-13). O que é esse presente? Foucault (Ibid, p.13) mostra o modo pelo qual a questão é abordada por Kant. Considera a determinação de um elemento do presente que se quer reconhecer e se distinguir entre todos os outros. Mostra em que este elemento é a expressão de um processo (devir) (que concerne ao pensamento, conhecimento e filosofia – que faz sentido para a reflexão filosófica); e mostra também em que e de que modo quem fala, como pensador, como estudioso, como filósofo, que faz parte ele próprio desse processo, tendo “certo papel a desempenhar nesse processo em que será, portanto, ao mesmo tempo elemento e ator”. Assim, temos em Kant “a questão do presente como acontecimento filosófico a que pertence o filósofo que fala sobre ela”, “a filosofia como prática discursiva que tem sua própria história”, a filosofia como uma superfície de onde surge sua própria atualidade. Esta atualidade é interrogada como acontecimento e este acontecimento é aquele do qual se diz o sentido, razão de ser, fundamento do que se diz e singularidade filosófica; uma prática que, segundo Foucault (Ibid, p.14), não pode ser evitada pelo filósofo. Torna-se objeto da reflexão do filósofo não apenas o pertencimento a uma doutrina, tradição ou comunidade humana, mas o pertencimento a um 53

presente, um “conjunto cultural característico da sua própria atualidade”. Assim, temos a filosofia como superfície de onde brota a atualidade, a filosofia como “interrogação sobre o sentido filosófico da atualidade a que ela pertence”, interrogação de um conjunto do qual a filosofia faz parte e em relação ao qual ela precisa se situar. Aufklärung também se situa em relação ao seu passado, porém também em relação ao seu futuro, designando-se como um processo ou o conjunto das operações que devem ser realizadas no presente, trazendo, assim, a questão da modernidade com a própria atualidade. Em termos de discurso, temos uma prática que leva em conta sua atualidade para encontrar seu lugar próprio, dizer o sentido da atualidade, designando e especificando seu modo de ação (“designa a si mesmo, diz o que é e o que é preciso ser feito”). Além disso, trata de um período específico que formula sua própria divisa e que indica o que deve ser feito em relação à história geral do pensamento, da razão e do saber, e em relação a seu presente e às formas de conhecimento, de saber, de ignorância, de ilusão. Segundo Foucault (Ibid, pp.14-15), entre o século XVI e começo do século XVIII, houve uma ênfase de um discurso da modernidade e sobre ela, com uma polaridade entre Antiguidade e modernidade (onde se colocava em questão qual seria o modelo correto a ser seguido), e uma autoridade que poderia ser aceita ou rejeitada. No século XIX, também temos uma caracterização semelhante de modernidade em Baudelaire (apud FOUCAULT, 2006c, p.342), quando este se refere ao transitório, fugidio e contingente da modernidade, para indicá-la como uma descontinuidade do tempo, ruptura da tradição, 54

sentimento de novidade. Temos, assim, uma certa maneira de filosofar que seria, segundo Foucault (Ibid), uma das grandes funções da filosofia moderna, de se interrogar sobre sua própria atualidade; mais uma atitude do que um período da história, “uma escolha voluntária que é feita por alguns”, uma atitude voluntária e difícil (FOUCAULT, 2006c, p.341-343). Para uma atitude de modernidade (que é o próprio esclarecimento), Baudelaire (Ibid) mostra a imaginação conferindo valor ao presente, não só por imaginá-lo de modo diferente ou transformando-o sem o destruir, “mas captando-o no que ele é”. Uma atitude de modernidade como “um ethos filosófico12 ..., uma crítica do que somos, pensamos e fazemos”. Antes, um questionamento sobre o que é a atualidade também foi levantado por Kant, segundo Foucault (Ibid, p.16), no contexto da Revolução (no caso a Revolução Francesa) no texto Idéia de uma história universal com um propósito cosmopolita, onde se pergunta “o que é a Revolução”. Porém, questionase primeiro “se existe um progresso constante para o gênero humano”. Para isto, seria necessário saber qual é a causa de um progresso possível, causa que só terá algum efeito se agir na realidade. Assim, a determinação desta causa indicará apenas efeitos possíveis e a realidade destes efeitos só poderão ser assinalados se um acontecimento for isolado (acontecimento ligado a uma causa). Tenta-se isolar um acontecimento no interior da história, acontecimento que será o sinal de uma causa permanente e constante que agiu (sempre foi, é rememorativo), age (acontece atualmente, é demonstrativo) e agirá (vai acontecer permanentemente assim, é prognóstico), e que guia os 55

homens no caminho do progresso (o acontecimento que nos permite decidir é um sinal). “A causa que torna possível o progresso... assegura uma tendência geral do gênero humano em sua totalidade”, existindo em torno de nós como acontecimento com “sinal rememorativo, demonstrativo e prognóstico de um progresso permanente que arrasta o ser humano em sua totalidade”, que é um acontecimento que tem por sinal a Revolução (FOUCAULT, Ibid, p.17). Este acontecimento (de valor demonstrativo, prognóstico e rememorativo) não consiste, contudo, em altos feitos revolucionários, mas apenas um “entusiasmo com a Revolução”, acontecimentos quase imperceptíveis, suscitando “um sentimento em todos os membros” e alentando uma esperança após muitas revoluções transformadoras (KANT, 1784a, A 406). Para Kant (Ibid), o sentido não está na Revolução em si. O significativo é a maneira como ela é recebida por espectadores que não participam dela, mas a veem, que assistem e que se deixam arrastar por ela, o que acontece na cabeça dos que não fazem a Revolução, que não são seus atores principais. “Não é a gesticulação revolucionária que constitui o progresso”. “Para dizer a verdade, se fosse para refazer, essa Revolução não seria refeita” (conhecendo e sabendo como a Revolução se desenrola, o homem sensato não a faria, pois a “própria Revolução é um desperdício”). Os êxitos e fracassos da Revolução têm pouco a ver com o progresso ou um sinal de progresso que se busca (FOUCAULT, Ibid, p.18). Este “entusiasmo com a Revolução” seria, para Foucault (Ibid, p.19), primeiramente, um sinal “de que todos os homens consideram que é do direito de todos se dotar da constituição política que lhes convém e que 56

eles querem” (“um estado de cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão todas as disposições originárias do gênero humano” (KANT, Ibid)); e, em segundo, que esta constituição evitaria toda guerra ofensiva. Estas vontades seriam a causa do entusiasmo com a revolução e indicam o próprio processo de Aufklärung, tendo a Revolução como aquilo que assegura e continua este processo. Estas vontades são tidas por Kant como um fim que será alcançado (os sinais precursores de nossa época assim mostram), onde o gênero humano alcançará um estado com uma constituição que se deseja e que impeça a guerra ofensiva. Na natureza humana, para Kant (apud FOUCAULT, Ibid, p.20), haveria uma disposição, uma faculdade de progredir que nenhuma política teria. Somente a natureza e a liberdade reunidas na espécie humana (de acordo com os princípios internos do direito) permitem a emergência desta faculdade, porém, de maneira indeterminada e como acontecimento contingente. Mesmo um fracasso de uma Revolução não poderia comprometer a força desta faculdade, porque ela, como acontecimento, está profundamente enraizada nos interesses da humanidade e tem influência em todas as partes do mundo, lembrado em circunstâncias favoráveis e momentos de crise. Assim, temos a Revolução como um acontecimento, cujo conteúdo é sem importância, mas que sua existência no passado indica algo que vai acontecer novamente, constitui algo que não será esquecido no futuro e indica a “continuidade de um caminho em direção ao progresso”. Aufklärung e Revolução indicam formas pelas quais Kant trata da questão da atualidade, 57

uma ontologia do presente. A Aufklärung como um acontecimento singular que inaugura a modernidade europeia e como processo permanente que se manifesta em torno da história da razão, com a evidência de uma autonomia e autoridade do saber; e a Revolução como acontecimento que é ruptura e subversão na história (fracasso “quase necessário”), mas também com um valor operacional na história e no progresso da espécie humana. Além desta ontologia do presente, a partir da filosofia de Kant, podemos intuir também uma analítica da verdade. Em sua obra crítica (das três críticas), principalmente na primeira, apresentam-se as condições para que um conhecimento verdadeiro seja possível, o que leva ao surgimento de toda uma seção da filosofia moderna que desde o século XIX se preocupa em desenvolver uma analítica da verdade. Em termos de ontologia do presente (ou de atualidade ou de nós mesmos), temos o nascimento, em Aufklärung e no texto sobre a Revolução, de uma tradição crítica que não se preocupa com a questão das condições de um conhecimento verdadeiro possível, mas que se preocupa com a questão da atualidade. “Qual é o campo atual das nossas experiências? Qual é o campo atual das experiências possíveis?” (FOUCAULT, Ibid, p.21).

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3 Estética de si e vida como obra de arte

O campo atual de experiências exige um posicionamento do sujeito, que passa por um posicionamento em relação a práticas de sujeição que o constituem. Porém, não necessariamente apenas com regras de conduta impostas (códigos morais, conjunto prescritivo de regras morais), mas com práticas de liberdade 13 que permitem a desconstrução contínua do sujeito. De um cuidado de si a uma prática ética de si, com um sujeito que se inventa continuamente, tendo a origem do sujeito como a própria invenção 14. Trata-se da possibilidade de criação de subjetividades não normatizadas e alternativas às subjetividades impostas, decorrente de um posicionamento ético-estético, considerando a capacidade do sujeito de realizar sobre si operações que permitem transformações e a construção de formas de existência desejadas 15, que, desta forma, permitem a ampliação do campo de liberdade. FOUCAULT (2006, p.20) mostra a necessidade do sujeito se modificar, se transformar, se deslocar até “outro que não ele mesmo” 16, uma transformação ou conversão do sujeito, para ter direito ao acesso à verdade. “A verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito”, pois, “tal como ele é, não é capaz de verdade”. Foucault (Ibid) exemplifica duas formas de transformação na espiritualidade 17 Ocidental, através das quais o sujeito pode ter acesso à verdade, um “retorno da verdade”. Quando um movimento arranca o sujeito de sua condição atual e ele ascende, possibilitando que a verdade venha até ele e o ilumine, um movimento do éros (amor); e a outra pela qual o sujeito deve se transformar para ter acesso à verdade, um trabalho/elaboração/ascese (áskesis) de si para consigo, elaboração de si para consigo, quando o 61

sujeito é o próprio responsável pela transformação. A verdade, segundo Foucault (2006, p.21) é o que ilumina o sujeito, dá beleza e tranquilidade de alma, completa o sujeito e o transfigura. É o que indica a possibilidade de uma ética própria para o sujeito. A ambiguidade da moral em termos de singularidade e universalidade (que transcendem a relação entre público e privado), no que tange à aplicação dos conjuntos de regras e valores propostos aos indivíduos por aparelhos prescritivos (em jogos de força 18), é perceptível, pois permite tanto compromissos, como escapatórias, com conformações (respeito) a códigos morais (“modos de sujeição” 19, modos de se sujeitar) ou resistências (negligências, divergências), diferentes formas de se conduzir moralmente. Com estas resistências, uma ética de si, uma “moralidade dos comportamentos”, temos a possibilidade de um “comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos”, tendo o sujeito como “sujeito moral da ação”, quando é possível determinar sua “substância ética”, parte do próprio sujeito que serve como “matéria principal de sua conduta moral” (FOUCAULT, 1998, pp.26-27), que dará forma ao sujeito. Uma relação consigo, elaboração ascética de si, que mostra a possibilidade de uma resistência diante do poder. Assim, pode-se perceber que a construção de si passa não apenas pela construção de um comportamento de acordo com uma regra dada20, mas também com sua própria conduta, envolvendo ações morais que implicam em uma relação consigo, com parte do indivíduo servindo como objeto desta prática ética (a possibilidade da criação de si como sujeito ético), possibilitando uma realização moral de si. 62

Porém, segundo Foucault (1998, p.28), não existe ação ética (individual, particular) que não se refira a uma conduta moral (incluindo modos de sujeição, asceses e práticas de si), nem conduta moral que não possa levar à criação de um sujeito ético. A ação ética seria indissociável de atividades de si, sejam estas atividades relacionadas (diretamente ou não) ou semelhantes a práticas de um ou outro sistema de códigos morais, indicando assim uma liberdade na ética da existência21 como uma decorrência de jogos de força que constituem o poder. Nesta relação com jogos de força onde poder e códigos morais se conjugam, temos a possibilidade de elaboração da própria vida como obra de arte (busca de uma ética pessoal, ética da existência, estética da existência – estilização da atitude em conformidade com uma reflexão moral de si) quando as práticas de si figuram no centro da experiência moral 22, diferente do cristianismo, onde a ideia de Deus era o centro da experiência moral, diferente de uma orientação em função de codificações morais outras, diferente de uma conformação a códigos de comportamento outros. Na era de ouro do cuidado de si, para se conduzir bem, para praticar adequadamente a liberdade, era necessário se ocupar de si mesmo, cuidar de si para se conhecer e para se formar, superar a si mesmo para dominar os apetites que poderiam comprometê-lo. E com o cuidado de si, seria possível a liberdade. “Liberdade significa não escravidão... Ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem dos seus apetites”23, para que possa “estabelecer consigo mesmo uma certa relação de domínio, de controle, chamada de arché – poder, comando” (FOUCAULT, 2004, p.270). Assim, é delineada uma ética como prática racional 63

da liberdade na Antiguidade, com relação direta com o cuidado de si e como problema essencial (Ibid, p.268). Apesar das ressalvas sobre os problemas inerentes aos gregos indicados por Foucault, temos a possibilidade de uma ética de si na Antiguidade por traduzir uma experiência moral centrada na relação consigo “não ligada a nenhum sistema social, jurídico ou institucional” (ORTEGA, Ibid, p.153) e sim uma “valorização de aspectos privados da existência, valores pessoais de conduta e o interesse que se tem por si”, com “o enfraquecimento do quadro político e social” (FOUCAULT, 2005, p.47). Ética no sentido grego, o éthos, era uma maneira de ser – de se conduzir e de fazer – visível para os outros. O éthos se traduzia pelos hábitos e pela forma de reagir aos acontecimentos. Um belo éthos demandava algum tipo de liberdade. Para que uma prática de liberdade possa tomar a forma de um éthos e servir de exemplo é necessário um trabalho de si sobre si mesmo (Ibid, p.270). A busca de uma ética da existência, no contexto da idade de ouro do cuidado de si, era “um esforço para afirmar sua liberdade e dar a sua própria vida uma certa forma na qual era possível se reconhecer, ser reconhecido pelos outros e na qual a própria posteridade podia encontrar um exemplo” (FOUCAULT, 2006b, p.290), ideal de ter uma vida bela e de deixar a memória de uma existência bela. Estes ideais seriam o resultado dos valores e modos de comportamento (da era de ouro do cuidado de si), que indicam a beleza que será realizada em vida; e a vida como matéria para a obra de arte. Trata-se de uma filosofia que propõe ao homem uma arte de vida, através da ascese 24 e de 64

técnicas de si que permitem levar a um exercício de autotransformação, como procura Foucault em História da sexualidade 3. Esta prática de transformação se dá em Foucault através da escrita. Esta obra de arte realizada em vida, a arte de viver, arte da existência, tekne tou bien, exige uma ascese de si por si mesmo. Entre as técnicas de si, a escrita – o ato de se escrever para si e para os outros – recebeu papel importante na era de ouro do cuidado de si, considerando a meditação e a leitura em exercícios ascéticos descritos por Epicteto e Plutarco, etapa essencial para a qual tende toda a ascese, considerando a organização dos discursos recolhidos e reconhecidos como verdadeiros, permitindo a transformação da verdade em ética 25. Das práticas realizadas na era de ouro, a escrita de si assumiu formas específicas, como os hypomnemata e as correspondências. Os hypomnemata em sua utilização como livros de vida ganharam um uso corrente na era de ouro do cuidado de si. Nestes, eram incluídas citações, fragmentos de obras, exemplos e ações das quais os autores teriam sido testemunhas. “Constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas” (FOUCAULT, 1992, p.137). Os hypomnemata permitiam um conjunto de discursos para si ao qual se podia recorrer. Este exercício de escrita pessoal dos hypomnemata poderia servir de matéria prima para a composição de correspondências, forma que expande a anterior, servindo como manifestação para si próprio e para os outros. Ambos os casos servem como exemplos de uma atividade ético-poética que funciona como autotransformação e autoformação. Esta autotransformação poderá levar à 65

construção de um estilo. Uma noção de estilo ou estilização da existência é um conceito incorporado na obra de Foucault com certa influência da noção de estilo utilizada por Peter Brown para analisar a Antiguidade. Peter Brown utilizou os conceitos de “estilo”, “autoestilização”, “estilo de vida” para descrever estilos de existência, elementos singulares que tiveram um papel fundamental na Antiguidade. Brown (apud ORTEGA, 1999, p.84) mostra que o rápido estabelecimento do cristianismo foi o resultado do aparecimento de vidas estilizadas: celibato, virgindade, homens do deserto, amigos de deus e homens sagrados. O surgimento destas novas formas de existência indica uma intenção de se separar das tradições culturais, religiosas e sociais pagãs, que levaram ao surgimento do homem de desejo, no qual Santo Agostinho coloca a sexualidade no centro, uma forma de subjetividade e interioridade cristãs que apontam para a anulação de si. De forma ascética, porém com uma afirmação de si e recusando a negação da sexualidade do homem de desejo de Agostinho (homem de desejo que prezava pela interpretação e pelo autoexame para coibir a vontade própria (“a vontade decaída” da sexualidade, vontade rebelada contra a vontade de deus), o dandismo representa o homem moderno. Visa o cultivo da ideia de beleza em sua vida através da satisfação de suas paixões e pensamento. Não aceita o “movimento perpétuo” da modernidade, mas assume uma atitude em relação a este movimento, “uma vontade de ‘heroificar’ o presente” (Foucault, 2006c, p.342). Além disso, o homem moderno não aceita simplesmente a si mesmo no fluxo dos momentos que passam, mas “toma a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura” (“em uma indispensável revolta do homem 66

em relação a ele mesmo”) (Ibid, p.344), um ascetismo indispensável para se posicionar na modernidade. Este ascetismo em Baudelaire indica uma “doutrina da elegância”, que impõe uma disciplina mais severa do que as religiões, um ascetismo que o dândi “faz de seu corpo, de seu comportamento, de seus sentimentos e paixões, de sua existência” como obra de arte. Um homem moderno que não parte em busca de si mesmo, de segredos e de uma verdade escondida, mas busca inventar a si mesmo, com uma modernidade que assim o impõe. Baudelaire (apud FOUCAULT, 2006c, p.343) indica o pintor moderno como aquele que trabalha e transfigura o mundo quando este dorme. Segundo FOUCAULT (Ibid), contudo, não se trata de uma anulação do real, mas um jogo entre a “verdade do real e o exercício de liberdade”. Pode fazer com que as coisas fiquem mais do que reais, mais do que belas e as coisas singulares tragam uma “vida entusiasta como a alma do autor” (BAUDELAIRE apud FOUCAULT, 2006c, p.343). Ligado às transformações da vida urbana no século XIX, temos a autoestilização própria do dandismo, graças à desordem característica das cidades, acenando com a “possibilidade de transcender as forças culturais” (ORTEGA, 1999, p.100), com a possibilidade do indivíduo sair de si. De acordo com Ortega (Ibid), estas possibilidades de relacionamento consigo suscitadas pela cidade do século XIX para a criação de relacionamentos consigo não normatizados (o que caracterizou o dandismo) “se perdem no século XX com a organização de uma cartografia urbana em circuitos claros e inteligíveis”, com a codificação precisa da vida da cultura e do individualismo burgueses, 67

caracterizados pela obsessão com a “segurança, defesa da propriedade, previdência social, vida confortável dos membros da família” (CASTELO BRANCO, 2009, p.295) (moral do interesse burguês). Indo além desta codificação da vida e além de um domínio especializado de concepção artística aplicado a objetos e ditado por experts, temos a possibilidade de conceber a vida do indivíduo como obra de arte, quando o indivíduo se torna seu próprio artífice, resultando em uma estética da existência que oferece resistência ao poder, instituído com valores e formas de vida criativos, solidários, generosos e ousados.

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4 Conclusão

Conforme podemos perceber na obra do último Foucault, a criação de si – passando por técnicas impingidas e reafirmando-as para si como práticas possíveis para a criação do indivíduo – pode ampliar o campo de liberdade do indivíduo e servir como resistência ao poder, como resistência às práticas de subjetivação impingidas. Esta criação de si se refere à emergência de uma estética, estética da própria vida. Para compreender esta criação da vida como obra de arte, mostra-se relevante o estudo de algumas técnicas de si que emergiram a partir da antiguidade e sua articulação em contextos distintos e com objetivos diversos, práticas que serviram tanto para a constituição de uma liberdade e ética pessoais, como para a constituição de normas de conduta e processos de subjetivação individuantes. No primeiro caso, podemos conceber uma verdade que está na própria prática de si, que concerne o próprio indivíduo e a coletividade. No segundo caso, temos uma verdade induzida em função do interesse de poucos e uma busca de uma verdade em função da normatização. Para além de uma prática de conhecimento de si que busca conhecer uma verdade (ato de conhecimento que, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade), temos uma prática de si que é a própria verdade, uma filosofia como forma de pensamento que se interroga sobre a possibilidade de haver verdadeiro ou falso, se é possível ou não separar o verdadeiro do falso. A partir da busca pelo conhecimento de si, predominante no platonismo, que visa atingir uma verdade e tem como meta a construção de sujeitos, tendo em vista o preparo do jovem aristocrata ateniense 71

para governar, podemos pensar em uma extrapolação para a era moderna, onde a prática de subjetivação e vontade de verdade não envolvem necessariamente verdades possíveis que o indivíduo pode criar para si. Estas verdades que o indivíduo cria para si, por outro lado, ficam em conformidade com as propostas que emergiram na era de ouro do cuidado de si e a proposta de Foucault como forma de resistência. O deslocamento do conhecimento de si em relação ao cuidado de si (a preponderância do conhecimento de si) se deu de forma simultânea ao redirecionamento dos objetos a que se prestavam estas técnicas (do indivíduo a um conhecimento de si) e a quem se destinavam (do indivíduo à sociedade). Nos pontos pelos quais as técnicas de si se deslocaram através dos tempos, temos um privilégio para uma arte da existência, justamente quando estas técnicas se destinam e tem como objetivo a criação de si pelo próprio indivíduo. Este objetivo ganhou ênfase tanto no ascetismo presente na era de ouro do cuidado de si como na forma de resistência proposta por Foucault. Como resistência, a arte da existência exige uma prática de si constante ao longo da vida (com uma acentuação da função crítica, uma crítica em relação a si mesmo, ao seu mundo cultural e à vida dos outros, temos uma formação para que o indivíduo possa suportar os mais diversos reveses, um mecanismo de segurança, uma armadura protetora em relação ao resto do mundo em face dos acontecimentos), quando um processo de autotransformação pode ter efeito. A proposta ética de transformação passa a ser suscitada como forma de resistência a partir do último Foucault, onde fica clara a reapropriação mútua de 72

técnicas de si como forma de poder ou resistência (reapropriação pelo poder ou pela resistência). Por outro lado, ambos, poder e resistência, em relação, permitem a emergência de singularidades em meio a uma agonística constante. Em termos de relação de forças, deve-se considerar a visão de Nietzsche também em concordância com o último Foucault, como o acaso da luta que se infere na história, porém com o conceito de governo que, substituindo o conceito de poder, traz em si tanto o poder como a resistência. Considerando a possibilidade de resistência, podemos relacionar a maioridade com a atitude, capacidade de construir a si (negando as diversas formas de subjetividade construídas por individuação, desta produção social de sujeitos), que passa pelo contato com as técnicas inerentes ao poder, tendo em vista não uma conformação a este, mas a liberdade, liberdade da qual, contudo, só se adquire consciência com o esclarecimento, a saída da menoridade, a capacidade de governar a si mesmo sem a direção de outros. Contudo, não é proposta uma anarquia total e sim a possibilidade de raciocinar que se almeja mesmo em constrangimento pela obediência, uma articulação, de forma justa, de raciocínio e obediência. Indica não abrir mão da razão ou ir além da razão, mas ir além da subserviência da menoridade, a não escravidão do pensamento. Porém, se considerarmos toda a truculência realizada em nome da razão (excessos realizados pelos excessos de poder), ir além da razão seria plausível e indicado, o que indica também a atitude crítica. De forma semelhante, as técnicas de si utilizadas como técnicas de poder são técnicas que podem e devem ser 73

vivenciadas, tendo em vista não a construção de sujeitos em série, mas uma ultrapassagem destas práticas de subjetivação, indicando não um fim, mas novos limites a serem ultrapassados, tendo em vista a criação de si pelo próprio indivíduo, em processo contínuo. Com esta construção de si, temos uma possibilidade de expressão do sujeito no momento presente, mostrando quem fala em um processo relacionado ao conjunto de características da atualidade. A partir da atitude em relação à atualidade como maneira de sentir, pensar, agir e, conduzir e se posicionar temos uma aproximação ao que os gregos chamam de ethos, modo de ser e forma de agir do sujeito, como pertencimento e tarefa. Neste sentido, apresenta-se uma prática filosófica de se questionar sobre sua própria atualidade, considerando um acontecimento que será sinal de uma causa permanente e constante, sinal de um entusiasmo com a revolução, na maneira como a ideia de revolução é recebida pelos espectadores que a assistem e se deixam levar por ela. As vontades de uma constituição comum que evite a guerra ofensiva, causa deste entusiasmo com a revolução, indica o processo de esclarecimento. Tendo o esclarecimento como aquilo que viabiliza um posicionamento ético em relação a si e um sinal rememorativo de que é preciso se transformar, a revolução (acontecimento que é ruptura e subversão na história) é aquilo que assegura este processo e possibilita a criação da vida como obra de arte e a transformação de si no campo atual da experiência.

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Referencial bibliográfico

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Notas Foucault (2004, p.279) define espiritualidade como aquilo que se refere ao acesso do sujeito a um certo modo de ser a às transformações que o sujeito deve operar em si para atingir este modo de ser. 1

No estoicismo Romano, temos uma diferenciação radical para a noção de retiro onde, no processo de retirar-se de si mesmo, o sujeito era cortado do mundo exterior. Com técnicas de purificação das representações dos estoicos, por outro lado, era possível discernir as representações puras das impuras, as que podem ser admitidas e as que devem ser excluídas (FOUCAULT, 2006, p.63). 2

A relação entre o cuidado de si e a erótica será desconectada pouco a pouco nas civilizações gregas, helenísticas e romanas, se transformando em “uma prática singular, duvidosa, inquietante, talvez até condenável” (FOUCAULT, 2006, p.75). 3

Proveniência se refere ao termo Herkunft utilizado por Foucault com referência à obra de Nietzsche, como o tronco de uma raça, o pertencimento a um grupo (com mesmo sangue, tradição ou estatura). A partir de começos inumeráveis, a análise da proveniência permite dissociar o eu, colocando em evidência em sua síntese vazia “mil acontecimentos agora perdidos”, permite reencontrar “sob o aspecto único de um caráter ou de um conceito a proliferação de acontecimentos através dos quais... eles se formaram” (FOUCAULT, 1979, pp. 20-21). 4

Foco constante da filosofia grega, principalmente o que compõe a forma socrático-platônica de discurso filosófico. 5

Nos gregos e romanos, de forma distinta, o cuidado de si em vida e a própria reputação são as únicas preocupações. Assim, temos a importância do cuidado de si: no que se faz e no lugar que se ocupa perante os outros, permitindo a aceitação da morte e até o desejo por ela. “Apressamo-nos em envelhecer, precipitamo-nos para o final que nos permitirá nos reunirmos conosco mesmos” (FOUCAULT, 2004, p.273-274). 6

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O cuidado de si seria, de acordo com FOUCAULT (2004, p.272), uma maneira de controlar e limitar o poder. 7

Para FOUCAULT (1995, p.242), o exercício de poder é um modo de ação de alguns sobre outros. 8

Assim como relação de poder não é má em si mesma, mas que comporta perigos (FOUCAULT, 1994, p.374). 9

No governo, pode-se tratar da condução de um estado, casa, alma, consciência ou de si (ORTEGA, 1999, p.38). 10

O texto O que é o esclarecimento? (Was ist Aufklärung?) foi escrito no mês de setembro de 1784 por Kant e publicado na revista “Berlinische Monatsschrifl” de dezembro do mesmo ano. 11

Modo de ser do sujeito que é visível em seus costumes, aspecto, maneira de caminhar, a calma com que enfrenta a vida, uma escolha voluntária de uma forma de pensar, agir, sentir e se conduzir, se apresentando como pertencimento e tarefa (CASTRO, 2004, p.154). 12

FOUCAULT (2004, pp.265-266) frisa que o trabalho de si indica um caminho para uma prática de liberdade e não processo de liberação, pois não existe uma natureza humana que foi mascarada após processos históricos, econômicos e sociais (e sim um sujeito que é inventado seja com modos de subjetivação seja com o cuidado de si). Apesar de existirem processos de liberação de povos, estas práticas de liberação política geral não são suficientes para definir práticas de liberdade, que permitirão que os indivíduos possam decidir formas aceitáveis para sua existência ou vida política. “É por isso que insisto nas práticas de liberdade, mais do que em processos de liberação. 13

A relação entre origem e invenção é apontada por FOUCAULT (1973, pp.14-15) sobre a obra de Nietzsche, quando este segundo autor analisa questões específicas, como a religião e a poesia, mostrando que estes não teriam origem, pois foram inventados, fabricados, não existindo anteriormente. “Um dia, alguém teve a ideia...”. Inventados a partir de relações de poder, religião e poesia 14

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são invenções, por um lado como rupturas, e por outro como algo com um começo inconfessável (por sua mesquinhez e por ser baixo). Em Entretien avec Michel Foucault, FOUCAULT (apud ORTEGA, Ibid, pp.43-44) mostra que a experiência (considerando a prática de si) seria o meio pelo qual o homem (animal de experiência) pode construir a si mesmo, mudando continuamente, constituindo uma serie infinita de subjetividades que nunca alcançam um final. 15

FOUCAULT (2004, p.275) mostra que o sujeito é uma forma (não uma substância) nem sempre idêntica a si mesma, pois as relações consigo próprio variam conforme a necessidade, quando são constituidos, por exemplo, o sujeito político que vai votar, aquele que toma a palavra na assembleia ou aquele que realiza os desejos em uma relação sexual. Existem interferências e relações entre estes diferentes tipos de sujeito, mas “não estamos na presença do mesmo sujeito”. Em cada caso, temos relações distintas que se estabelecem consigo mesmo. 16

Uma “espiritualidade” que envolve buscas, práticas e experiências, como purificações, asceses, renúncias, conversões do olhar, modificações de existência, etc. 17

Jogos de força onde as regras são transmitidas de forma difusa e não sistemática, com “elementos que se compensam, se corrigem e se anulam em certos pontos” (FOUCAULT, 1998, p.26) permitindo rotas de fuga. 18

“Modos de sujeição” (modos de se sujeitar) podem ser entendidos como as “maneiras pelas quais o indivíduo estabelece sua relação com essa regra e se reconhece ligado à obrigação de pô-la em prática” (Ibid, p.27). 19

Deve-se considerar, contudo, as práticas de si não como algo que o sujeito invente, mas esquemas culturais impostos, sugeridos e impostos, que servirão para constituir um indivíduo ativo. 20

A ética, para FOUCAULT (2004, p.267), seria uma prática de liberdade e a liberdade uma condição ontológica da ética. No 21

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mundo greco-romano, o cuidado de si constituiu o modo pelo qual a liberdade individual foi pensada como ética, com o cuidado de si atravessando todo o pensamento moral. FOUCAULT (2006b, p.290) indica esta prática como característica da idade de ouro do cuidado de si. 22

Não ser escravo “de uma cidade, daqueles que o cercam, daqueles que o governam, de suas próprias paixões” (FOUCAULT, 2004, p.268). 23

Ascese como exercício de si no pensamento, que corresponde à atividade de autotransformação (Conforme Foucault (1994, pp. 383-412) em À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail en cours). 24

Processo descrito por Plutarco como etopoiética (FOUCAULT, 1992, p.135). 25

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