Culpabilidade e Pena

October 1, 2017 | Autor: André Luiz Canuto | Categoria: Direito Penal, Culpabilidade
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Culpabilidade e Pena André Luiz B. Canuto1 A culpabilidade, enquanto categoria sistemática do delito, é fruto da evolução da dogmática jurídico-penal, produzida na segunda metade do século XIX, com a separação entre antijuridicidade e culpabilidade. Essa sistematização da teoria do delito ocasionou uma transformação fundamental no estudo dogmático penal, podemos assim verificar tal sistematização a partir de Frank, que foi um dos principais estudiosos da culpabilidade. Destacava referido autor que “culpabilidade equivale a una determinada relación con el resultado, apreciada desde el prisma causal y con absoluta neutralidade descriptiva.”2. Essa afirmação é absolutamente correta, pois enfatiza um dos pontos centrais da ciência jurídico-penal, que faz parte do conceito psicológico da culpabilidade. No entanto, os avanços produzidos a partir dessa época não lograram um consenso acerca do conceito e da missão da culpabilidade no âmbito da teoria geral do delito, discussão que ainda se mantém viva, e acreditamos fazer parte da evolução dogmática contemporânea do direito penal. Com efeito, um conceito dogmático como o de culpabilidade requer, segundo a delicada função que vai realizar — fundamentar a punição estatal —, uma justificativa mais clara possível do porquê e para quê da pena. Tradicionalmente, a culpabilidade é entendida como um juízo individualizado de atribuição de responsabilidade penal, e representa uma garantia para o infrator frente aos possíveis excessos do poder punitivo estatal. Essa compreensão provém do princípio de que não há pena sem culpabilidade (nulla poena sine culpa). Nesse sentido, a culpabilidade apresenta-se como fundamento e limite para a imposição de uma pena justa. Por outro lado, a culpabilidade também é entendida como um instrumento para a prevenção de crimes e, sob essa ótica, o juízo de atribuição de responsabilidade penal cumpre com a função de aportar estabilidade ao sistema normativo, confirmando a obrigatoriedade do cumprimento das normas. Entre uma e outra concepção existe uma série de variantes que condicionam o entendimento da culpabilidade. Sendo assim, é importante esclarecer o ponto de partida metodológico sobre o qual nos apoiamos para a definição do conceito material de

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Mestre em Direito Penal ( UFPE ) e Advogado Criminalista. FRANK, Reinhard. Sobre la estrutura del concepto de la culpabilidade, Reimpresíon, IBDF: Buenos Aires,2002,p.15

Culpabilidade e Pena culpabilidade, bem como para a configuração da culpabilidade como categoria sistemática do delito. A esse respeito vale ressaltar, com Hassemer2, que a moderna dogmática penal procura critérios para precisar o conteúdo e missão da culpabilidade em um campo próximo, qual seja, nos fins da pena e sua proporcionalidade: “ El principio de proporcionalidad y de adecuación a la culpabilidad de las consecuencias jurícopenales, según el cual una conducta sólo puede tratarse como merecedora de pena cuando el empleo de los medios jurídicopenales es adecuado, necessário y proporcionado”3. Nesses termos, a culpabilidade passou a ser vista como uma categoria que conjuga tensões dialéticas entre prevenção e princípios garantistas. Atualmente, essa é a mais recente etapa da evolução histórico-dogmática da categoria da culpabilidade, tema que ainda domina as discussões sobre o conceito material de culpabilidade. Contudo, antes de analisarmos os principais estágios dessa evolução, vale a pena antecipar aqui, para uma melhor compreensão da matéria, alguns dos conceitos manejados pela doutrina quando se refere à culpabilidade. Atribui-se, em Direito Penal, um triplo sentido ao conceito de culpabilidade, que precisa ser liminarmente esclarecido. Em primeiro lugar, a culpabilidade – como fundamento da pena – refere-se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal. Para isso, exigese a presença de uma série de requisitos – capacidade de culpabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta conforme a norma – que constituem os elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A ausência de qualquer desses elementos é suficiente para impedir a aplicação de uma sanção penal. Em segundo lugar, a culpabilidade – como elemento da determinação ou medição da pena. Nessa acepção, a culpabilidade funciona não como fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja imposta além da medida prevista pela própria ideia de culpabilidade, aliada, é claro, a outros fatores, como importância do bem jurídico, fins preventivos etc. E, finalmente, em terceiro lugar, a culpabilidade — vista como conceito contrário à responsabilidade objetiva, ou seja, com o identificador e 3

HASSEMER, Winfried; Francisco Muñoz Conde. Introducción a la Criminología y al Derecho Penal, Tirant lo Blanch: Valencia, 1989, p.72. ( citamos apenas Hassemer no texto em razão da Nota Prévia Editorial da obra ).

Culpabilidade e Pena delimitador da responsabilidade individual e subjetiva. Nessa acepção, o princípio de culpabilidade impede a atribuição da responsabilidade penal objetiva, assegurando que ninguém responderá por um resultado absolutamente imprevisível e se não houver agido, pelo menos, com dolo ou culpa. Um visão dogmática bem delineada relativa à culpabilidade é a realizada por Klaus Günther, que identifica duas principais posições deste instituto do direito penal. A primeira tem como fundamento a culpabilidade na liberdade do autor de agir de outro modo no momento do fato. A segunda renuncia justamente à tarefa de fundamentar o significado da culpa a partir do autor, assimilando tal significado pelos fins preventivos da pena.4 Aquela, a teoria normativa pura; e esta, o funcionalismo. O sujeito culpável na teoria normativa pura é aquele que naquela determinada circunstância escolheu agir contra o Direito, na medida em que poderia ter direcionado sua vontade para uma finalidade lícita. A capacidade de autodeterminação do indivíduo, conjugada com o incontornável conteúdo ético do Direito Penal, dá-se sobre a base de uma Menschenbild5, segundo a qual todo indivíduo imputável é capaz de inferir a legalidade de suas ações e conformar seu comportamento à luz dessa compreensão. Quando não o faz, merece ser punido (abordagem inegavelmente retributivista). Nas palavras de Günther: “a culpabilidade aproxima-se, assim, de uma autonomia ou autodeterminação moral".6 A culpabilidade normativa foi tomada de Aristóteles, bem assim a própria expressão “Culpabilidade pela conduta de vida”. “Para Aristóteles, a personalidade que se afasta da virtude escolhe a si mesma. Segundo ele, o homem qte se afasta da virtude, vai caindo numa vertente de vício que em determinado momento já não lhe deixa qualquer liberdade para ser virtuoso, porque, com seus atos anteriores, procedeu como aquele que joga uma pedra e depois não é mais cápaz de detê-la. É bastante ciará a semelhança existente entre este pensamento e a actio libera in causa: o homem era livre no momento em que escolheu uma personalidade viciosa; depois, uma vez no vício, não é livre, mas sua conduta é reprovável porque escolheu o caminho do vício.”7

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GÜNTHER, Klaus. A Culpabilidade no Direito penal atual e no futuro. São Paulo; Revista Brasileira de Ciências Criminais RBCCrim - Revista IBCCRIM Nº 24 / 1998, p.78-92. 5 Na Antropologia Filosófica termo comum para a ideia de que alguém da essência que as pessoas tem. 6

GÜNTHER, Klaus. A Culpabilidade no Direito penal atual e no futuro. São Paulo; Revista Brasileira de Ciências Criminais RBCCrim - Revista IBCCRIM Nº 24 / 1998, p.78-92. 7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; e José Henrique Pierangeli, Manual de direito penal brasileiro, v.I, parte geral, 10.ed, ver.,atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p.546

Culpabilidade e Pena Já o sujeito culpável do funcionalismo é aquele que, em um contexto fático dado, contraria as expectativas normativas, quando, por estar inserido no contexto comunicativo, poderia ter sucumbido a elas. Também aqui pode qualquer ser humano acessar a legalidade de suas ações, por confronto às expectativas normativas, conhecidas por meio dos processos comunicativos. Roxin, contornando o tema dos fundamentos e legitimação do direito penal : “La culpabilidad es un tema eterno del Derecho Penal y su principal problema específico: tanto en su existencia y en sus presupuestos como en la constatación de su fundamento y medida está expuesta a dudas que nunca serán despejadas; y ello, no obstante, debe al mismo tiempo servir de soporte y legitimación al Derecho Penal. Por eso mismo nunca há cesado la discusión que sobre la culpabilidad se mantiene em Derecho Penal.” eu encaro como insolúvel o problema do livre-arbítrio e assumo que as pessoas, até um certo limite, para o qual são impelidas por meio de sua constituição e do ambiente, possuem uma segura liberdade de decisão”.342 Assim, quando frustra a expectativa social, imperioso que a teia comunicativa seja restaurada por meio da reafirmação do valor violado, que se dá quando da imposição da pena (abordagem prevencionista).8 A Menschenbild do funcionalismo, portanto, altera os nomes dos atributos daquele homem iluminista, mantendo-o, no essencial, inalterado. Há que se registrar uma exceção notória. Günther Jakobs, ao adotar um modelo de funcionalismo sistêmico radical, abstrai as qualidades intrínsecas do ser humano, que passa a integrar a natureza (ambiente), sendo relevante para o sistema apenas a comunicação, da qual ele participa sob a forma de papel social. Jakobs reduz o indivíduo a mero “‘subsistema físico- -psíquico’, mero centro de imputação ou sujeição de responsabilidades”. Em sentido semelhante, a posição de Schunemann: “ En Jakobs llegan a su máxima expresión la abstracción y la eliminación de la realidad, que convierten en un simple acto de comunicación el proceso de legítimo ejercicio de violencia estatal que, a menudo, acaba con penas de prisión de muchos años, o incluso de por vida”.9 Felizmente tal posição, confrontante da dignidade humana, tem encontrado apoucado eco doutrinário.

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ROXIN, Claus. Culpabilidad y prevencion em derecho penal, REUS:Madrid,1981, p.147

SCHUNEMANN, Bernd. La culpabilidad: estado de la cuestión. In: Roxin, Claus; Jakobs, Günther; Schunemann, Bernd; Frisch, Wolfgang; Köhler, Michael. Sobre el estado de la teoría del delito. Madrid: Civitas, 2000, p. 100.

Culpabilidade e Pena Também intocada a percepção da existência de valores universalmente compartilhados, agrupados sob a rubrica de bens jurídicos penalmente relevantes. Ao Direito Penal incumbe protegê-los contra o ataque daqueles sujeitos já referidos. O que lhes confere o estatuto de relevância? A resposta tende a ser tautológica: são relevantes aqueles escolhidos pelo legislador, e ele os escolhe porque são relevantes. Uma saída recursiva é o apelo a determinados princípios como os da intervenção mínima ou fragmentariedade que: todavia, não vinculam nem ao aplicador e muito menos ao legislador. Há que apresentar, por fim, o terceiro pilar da culpabilidade: o da indissociabilidade entre o crime e a pena, ou nas palavras de Brandão “Por conta da relevância da culpabilidade, é através dela que se atribui a consequência do crime, ou seja, a pena.”10 Já no século XVIII, o sistema penal projetou um autorretrato essencialmente punitivo, em que “o procedimento penal hostil, autoritário e acompanhado de sanções aflitivas é considerado o melhor meio de defesa contra o crime”.11 É fruto direto das teorias da dissuasão ou da retribuição, que excluem as sanções de reparação pecuniária ou alternativas como propriamente penais e aptas às finalidades já apontadas. Nas palavras de Álvaro Pires, conceberiam a proteção da sociedade ou a afirmação das normas de modo; (i) hostil, “por representarem o agressor como um inimigo de todo o grupo e por estabelecerem uma equivalência necessária entre o valor do bem ofendido e o grau do sofrimento que se deve infligir ao transgressor”; (ii) abstrato, “porque, mesmo reconhecendo que a pena causa um mal concreto e imediato, concebem que esse mal produz um bem imaterial e mediato para o grupo”; (iii) negativo, já que “excluem qualquer outra sanção ou medidas que visem reafirmar a norma por meio de uma ação positiva”; e (iv) atomista, “porque a pena - na melhor das hipóteses -, não deve se preocupar com laços sociais concretos entre as pessoas a não ser de forma secundária e acessória”.12 Como bem o colocou Pierre Ayreault, em 1576, “o mal se sana pelo mal”.13

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BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal - Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.p.201. PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, n.68, março de 2004, p.43. 11

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PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, n.68, março de 2004, p.43. 13 PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, n.68, março de 2004, p.43.

Culpabilidade e Pena A pena, ademais, seria uma punição obrigatória ou necessária. Vide Beccaria, para quem a certeza da pena é mais importante do que sua severidade, ou Kant, para quem a pena é um imperativo categórico, isto é, há uma obrigação moral de punir.14 Nesse diapasão, o pilar aqui tratado, embora date do século XVIII, foi alçado à máxima consequência com a perspectiva funcionalista: seja sob o enfoque garantista, seja sob aquele prevencionista, a culpabilidade é a última barreira à aplicação da pena que será, segundo o primeiro enfoque, a mais individualizada e justa para odiidividuo, ou, de acordo com o segundo, a mais eficaz na estabilização normativa (respeitadas, para os mais moderados, as garantias individuais). À prática de um injusto culpável há que se impor uma pena em sentido forte. Essa proposição merece o estatuto de pilar porque condiciona a formulação mesma da culpabilidade: quem nela busca contornos materiais rigorosos, o faz com vistas a minimizar a imposição de males aflitivos; quem o faz a partir da necessidade preventiva da pena coloca o mal na definição mesma do conceito.

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PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, n.68, março de 2004, p.44.

Culpabilidade e Pena REFERÊNCIAS BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, v.1- 17 ed.rev.atual. de acordo com a lei n.12.550 de 2011 – São Paulo: Saraiva,2012. BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal - Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008. FRANK, Reinhard. Sobre la estrutura del concepto de la culpabilidade, Reimpresíon, IBDF: Buenos Aires,2002. GÜNTHER, Klaus. A Culpabilidade no Direito penal atual e no futuro. São Paulo; Revista Brasileira de Ciências Criminais - RBCCrim - Revista IBCCRIM Nº 24 / 1998. HASSEMER, Winfried; Francisco Muñoz Conde. Introducción a la Criminología y al Derecho Penal, Tirant lo Blanch: Valencia, 1989. PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, n.68, março de 2004 ROXIN, Claus. Culpabilidad y prevencion em derecho penal, REUS:Madrid,1981. SCHUNEMANN, Bernd. La culpabilidad: estado de la cuestión. In: Roxin, Claus; Jakobs, Günther; Schunemann, Bernd; Frisch, Wolfgang; Köhler, Michael. Sobre el estado de la teoría del delito. Madrid: Civitas, 2000. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; e José Henrique Pierangeli, Manual de direito penal brasileiro, v.I, parte geral, 10.ed, ver.,atual. – São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2013.

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