Cultura, criatividade e economia

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Criatividade, cultura e economia Pedro Quintela Publicado em Revista 4 – Imagem & Texto, Nº 3 - "O Estado da Arte" (Maio 2014), pp. 20-25. Nº Depósito Legal 359893/13 URL: http://cargocollective.com/Revista4

O debate em torno da criatividade adquiriu uma crescente visibilidade nas últimas décadas. O termo penetrou, de forma significativa, em diversos domínios técnico-científicos e assume hoje uma grande centralidade na “agenda” das políticas de desenvolvimento urbano, económico e sociocultural. Na Europa propagou-se o que Klaus R. Kunzmann designou, no artigo Culture, Creativity and Spatial Planning (2004), de “vírus da criatividade”, processo que contou com o auxílio de inúmeros técnicos, académicos, políticos e agentes económicos que, ansiosos por encontrar fundamentos para o desenvolvimento socioeconómico, acolheram e disseminaram esta nova retórica. Nos últimos anos realizaram-se vários estudos com o propósito de mapear o “setor criativo” para, a partir daí, definir estratégias de desenvolvimento – a nível local, regional, nacional e mesmo transnacional (veja-se os relatórios sobre economia da cultura e, mais recentemente, sobre economia criativa, encomendados pela ONU e pela Comissão Europeia). A vulgarização do termo “criatividade” não está, contudo, isenta de equívocos e ambiguidades. Refletindo acerca do contexto britânico, Keith Negus e Michael Pickering notavam, num artigo publicado em 2000, que a palavra se tornara numa buzzword recorrentemente utilizada por diferentes atores em múltiplos contextos sem que o seu sentido fosse claramente definido. Desde então, a discussão expandiu-se para lá do Reino Unido, mas persistem ainda muitas ambiguidades. A análise dos principais significados atribuídos à noção de criatividade é, por isso, um exercício útil para uma interpretação desta mudança recente. Historicamente, podem identificar-se três momentos capitais. Primeiro, a criatividade surge vinculada a uma dimensão transcendental e à ideia de criação divina.1 Depois, a noção de criatividade seculariza-se, consolidando o ideal romântico do “génio”, geralmente associado a artistas que criam isoladamente e, por vezes, sob influência de uma “musa inspiradora”. 2

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Cf. Rob POPE, Creativity. Theory, History, Practice, London/New York, Routledge, 2005, p. 37-38; Paul Oskar KRISTELLER, ““Creativity” and “Tradition””, in Journal of the History of Ideas, Vol. 44, No. 1, 1983, p. 106. 2 Cf. Raymond WILLIAMS, “Creative”, in Keywords – A vocabulary of culture and society. Revised edition, New York: Oxford University Press, 1983, p. 82-84; Paul Oskar KRISTELLER, op. cit., 1983, p. 105-113.

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Na década de 1950, a discussão acerca da criatividade alarga-se, “invadindo” a esfera pública. Desde então, o conceito assumiu contornos mais abrangentes, suscitando o interesse de áreas diferentes. Afirma-se então um entendimento mais complexo do ato da criação – disciplinas como a sociologia, cultural studies, psicologia ou ciências de educação deram aqui um contributo importante –, argumentando-se que não existem indivíduos, ou “produtos” inerentemente criativos, pois toda a criatividade constrói-se em contextos histórica e socialmente definidos. A criatividade passa a ser entendida enquanto atividade quotidiana e encarada como uma técnica que todos podem aprender e desenvolver. Simultaneamente, adquire uma dimensão mais dinâmica, estreitamente ligada à ideia de processo em termos culturais, históricos e sociais.3 Finalmente, é atribuído um valor económico à criatividade. A intervenção de J. P. Guilford na American Psychological Association, em 1950, constitui um momento-charneira, a partir do qual se perspetiva o papel da criatividade no Pós Guerra enquanto resposta “moderna” a problemas ambientais, sociais e tecnológicos.4 No entanto, é só a partir do fim de 1970 que a retórica da importância estratégica da criatividade para o fomento do desenvolvimento socioeconómico se torna evidente. Este processo é coincidente com o momento histórico em que, seguindo Sott Lash e John Urry em Economies of Signs and Space (1994), se inicia um movimento de convergência entre as esferas da cultura e economia, com repercussões muito profundas em ambos os campos. Do lado da cultura, a dimensão económica tem assumido uma crescente relevância, provocando profundas transformações, a diversos níveis, que alteraram os comportamentos quer dos agentes e instituições culturais, quer dos decisores políticos e económicos. Assiste-se, assim, durante as décadas de 1980 e 90, a um reconhecimento mais amplo da importância económica das artes e da cultura, que se reflete no investimento público nestas áreas. Este processo é visível em cidades como Liverpool, Manchester ou Glasgow que foram, nesta época, objeto de várias iniciativas que visavam reforçar a atenção dada às artes e à cultura, incluindo manifestações pretensamente menos “elitistas” e o desenvolvimento das “indústrias culturais”. Nestas intervenções, procurou-se evidenciar o contributo das artes e cultura para a dinamização económica e também para fomentar o multiculturalismo, a tolerância e a coesão e inserção social. Numa Europa a braços com uma acelerada desindustrialização e com complexos problemas socioeconómicos, rapidamente se difundem estratégias que associam o investimento urbano às artes e cultura, entendidas enquanto fator de competitividade económica, em especial num contexto de globalização e competição interurbana. Estas tendências emergem em Portugal a partir dos anos 1990, com a realização de grandes eventos como a Expo 98 ou as Capitais da 3

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Cf. Rob POPE, op. cit., 2005, p. 41-44. Cf. Idem, Ibidem, p. 19-20.

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Cultura, nacionais e europeias, que evidenciam a chegada de uma nova geração de políticas públicas que associam a regeneração urbana à arte, cultura e turismo. Simultaneamente, generaliza-se o investimento das autarquias na recuperação ou criação de novos equipamentos e eventos culturais, a par da valorização do património histórico e monumental, frequentemente associados a processos de “enobrecimento urbano” (gentrification) e a estratégias de branding e marketing urbano. Foi neste contexto que se adensou novos discursos políticos em torno do valor económico das artes e da cultura. 5 Do ponto de vista económico, a noção de criatividade também tem sido, desde os anos 1980, reconceptualizada. Torna-se numa “ferramenta” que visa produzir “ideias apropriadas”6, valorizando essencialmente a capacidade de responder, assertivamente e com inovação, aos desafios do capitalismo contemporâneo.7 Simultaneamente, acrescem preocupações com o desenvolvimento de “ambientes organizacionais” capazes de estimular a criatividade, colocada naturalmente ao serviço da empresa. Neste contexto, acentuam-se novos paradigmas de gestão do trabalho em rede e ao projeto, que tendem a encarar a criatividade como sinónimo de “flexibilidade”, “inovação” ou “eficiência”. Esta convergência entre as esferas da cultura e da economia aprofundou-se nos últimos 15 anos. As primeiras abordagens consistentes às “indústrias criativas”, do ponto de vista político, surgem no Reino Unido no início da década de 1990. Contudo, rapidamente se estendem a toda a Europa, apoiadas numa retórica técnico-política que enfatizava o “potencial” económico deste setor, e num conjunto de metodologias de “mapeamento”, “medição” e “intervenção” que, de forma muitas vezes acrítica, foram adotadas em diversos países. Também em Portugal foram realizados, desde 2007, vários estudos para o fomento das indústrias culturais e criativas, a nível nacional, veja-se os relatórios O Setor Cultural e Criativo em Portugal, de 2010, e A Cultura e a Criatividade na Internacionalização da Economia Portuguesa, de 2013, mas sobretudo regional e urbano (os municípios da região Norte têm sido particularmente dinâmicos, procurando beneficiar dos apoios criados pelo Programa ON.2 2007-2013, que identificava como estratégico o desenvolvimento dum cluster regional de indústrias criativas). Se inicialmente o debate se centrou nas “indústrias criativas” – uma noção ambígua e contraditória mas que garantia uma certa ancoragem em áreas mais próximas do universo das 5

Para um aprofundamento destes tópicos no plano internacional, cf. Terry FLEW (2012), The Creative Industries. Culture and Policy. London/New Delhi, Sage; David HESMONDHALGH, The Cultural Industries. 3rd Edition, Los Angeles/London/New Delhi/Singapore/Washington DC, Sage, 2013. Justin O’CONNOR, The cultural and creative industries: a review of the literature, London, Creativity, Culture and Education, 2007. No plano nacional, cf. Claudino FERREIRA, "Cultura e regeneração urbana: novas e velhas agendas da política cultural para as cidades", in Tomo, 16, 2010, p. 29-56. 6 Segundo a definição de criatividade proposta por Teresa AMABILE, “Motivating Creativity in Organizations: On Doing what you love and loving what you do”, in California Management Review, 40(1), 1997, p. 40. 7 Cf. Craig PRICHARD “Creative bodies – critically reading “creativity” in management discourse”, julho de 2001, in http://www.mngt.waikato.ac.nz/ejrot/cmsconference/2001/papers/creativity/prichardcreativitypaper.pdf [consultado em 01.08. 2013].

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artes e cultura8 – a verdade é que, nos últimos anos, se tem verificado um alargamento da noção de “economia criativa”. À medida que o conceito de criatividade se torna mais lato, a discussão afasta-se da relevância (também económica) das artes e cultura, passando a interessar-se por aspetos mais relacionados com as políticas públicas para a competitividade económica. Como referem alguns especialistas em economia da cultura e políticas culturais, como Kate Oakley9, Andy Pratt e Paul Jeffcut10, a nova abordagem à “economia criativa” conduz a um afunilamento das políticas públicas de apoio às artes e cultura, visto que apenas assumem importância política as atividades que contribuem para a geração de riqueza. Embora o tema do trabalho esteja presente na generalidade dos documentos sobre a nova “agenda” da criatividade – opção compreensível, se atendermos ao potencial económico das indústrias criativas, nomeadamente, em termos do número de empregos criados – constata-se que estes estudos têm um cariz macroeconómico, apresentando análises pouco preocupadas com as condições específicas em que o trabalho é desenvolvido. Por outro lado, muitos relatórios identificam formas particulares de organização do trabalho – onde predomina, por exemplo, o trabalho em regime de freelance –, enaltecendo frequentemente a independência, flexibilidade e pró-atividade dos “criativos”. Analisando a célebre tese apresentada por Richard Florida, em The Rise of the Creative Class, Cities and the Creative Class (2002), acerca da relevância dos “talentos” e das “classes criativas” identificamos argumentos em torno do trabalho criativo que, no essencial, valorizam o talento individual, a capacidade de empenho, o sacrifício pessoal e empreendedorismo destes profissionais. A retórica em torno do trabalho criativo reflete um discurso político otimista que, de um modo consistente e reiterado, negligencia o dark side associado ao mercado laboral. Investigações de sociólogos como Pierre-Michel Menger salientam o pioneirismo dos artistas na aplicação dos princípios de economia flexível, numa “lógica de projeto” típica do capitalismo contemporâneo. De facto, a recente retórica da “criatividade” reconverteu características tradicionalmente atribuídas aos artistas em paradigmas do trabalho contemporâneo. Como argumentam Luc Boltanski e Ève Chiapello, em França o capitalismo contemporâneo reconstituiu-se a partir da chamada “crítica artística”, exercida no contexto do Maio de 1968, originando o que designam de um “Novo Espírito do Capitalismo”, que se caracteriza justamente pelo elogio da criatividade, flexibilidade, polivalência e trabalho em rede.

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Existem diferentes definições do setor, não havendo ainda um consenso claro sobre esta matéria. Para uma sistematização dos principais modelos e críticas, cf. Terry FLEW op. cit., 2012. 9 Kate OAKLEY, “The disappearing arts: creativity and innovation after the creative industries”, in International Journal of Cultural Policy, Vol. 15. No. 4, Nov. 2009, 2009, p. 403-413. 10 Andy PRATT, Paul JEFFCUTT, “Creativity, innovation and the cultural economy: snake oil for the twenty-first century?”, in Idem (ed.), Creativity, innovation and the cultural economy, Oxon/New York, Routledge, 2009, p. 3-19.

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Num artigo recente, intitulado Looking for work in creative industries policy, Mark Banks e David Hesmondhalgh identificam alguns motivos para a relutância política em analisar os aspetos mais negativos do emprego no setor cultural e criativo. Para estes investigadores, o reconhecimento da precariedade laboral preponderante em setores tidos como a vanguarda da “Nova Economia” contemporânea, inevitavelmente questionaria certos argumentos do discurso neoliberal que fundamenta a “agenda” criativa. Fora do mainstream, certas investigações vêm denunciando as situações de desigualdade e exploração laboral que predominam no setor cultural e criativo. Estas investigações têm permitido erigir uma crítica à retórica (política e teórica) da criatividade, rompendo com um (longo) posicionamento acrítico da academia. Muitos agentes, instituições artísticas e culturais incorporaram esta nova realidade da “agenda” criativa evitando analisar os modos de organização de trabalho que tipicamente caraterizam o setor. São relativamente recentes os focos organizados, de crítica à viragem neoliberal nas políticas culturais contemporâneas, por vezes denunciando a precariedade laboral que continua a ser predominante no setor cultural e criativo (pela consistência do trabalho realizado, destaca-se o combate à precariedade dos profissionais do espetáculo franceses, através da Coordination des Intermittents et Précaires d'Ile de France). Embora seja importante interpretar os sinais de mudança, é também necessário reconhecer que as repercussões concretas, em matéria de políticas públicas para o setor cultural e criativo, são ainda escassas. O Programa Europa Criativa 2014-202011, recentemente lançado pela Comissão Europeia, atesta justamente a importância do termo “criatividade” no léxico político-comunicacional atual. Este programa substituiu as iniciativas anteriores Cultura e Media e, pelo menos no plano retórico e simbólico, assume uma nova ambição, secundarizando as tradicionais noções de arte e cultura. Por outro lado, e embora uma das prioridades do Programa seja contribuir para o desenvolvimento económico e o aumento do emprego na Europa, não encontramos aqui uma reflexão aprofundada sobre o emprego no setor cultural, nem tão-pouco propostas que visem contribuir para melhorar as condições precárias em que se desenvolve o trabalho de artistas e criativos. A crítica da “agenda da criatividade” exige um esforço de todos os que intervêm na esfera das artes e da cultura. Só através da análise profunda de um setor que contém em si mesmo realidades muito heterogéneas é possível problematizar seriamente algumas das conceções homogeneizantes e simplistas que se têm afirmado acerca do contributo das artes, da cultura e da criatividade para o desenvolvimento económico, sociocultural e territorial. Também o alargamento do debate crítico e aberto, envolvendo e mobilizando as várias partes interessadas 11

Mais informações no website: http://ec.europa.eu/culture/creative-europe/index_en.htm

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nesta discussão, parece ser crucial para impulsionar mudanças urgentes nas políticas públicas para as artes, cultura e criatividade.

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