Cultura urbana e territórios populares: idéias e lugares

November 22, 2017 | Autor: Clara Miranda | Categoria: Popular Culture, História Da Cidade, The Cultural Politics of Architecture and Urban Design
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Cultura urbana e territórios populares: idéias e lugares Clara Luiza Miranda PPGA-PPGAU-DAU-UFES Um lugar não é apenas uma noção de vazio que se ocupa ou se contempla, nem conjunto de objetos que preenchem espaço e obstruem a paisagem. Uso e história conferem ao lugar significados, que são sempre no plural, múltiplos e elásticos como as estradas e redes que conectam lugares entre si. Na forma de cidades os lugares seguem as pessoas. Como disse o poeta kavafis: “Novas terras você não irá encontrar, você não encontrará outros mares. A cidade irá seguir você”. Enfim, com as estradas e redes, lugares assumem a forma de exterioridade. Um texto de Peter Handke, citado por Lyotard, sentencia: “lembre-se de que não há lugar neste mundo e que cada um deve trazer seu lugar consigo”, apropriando-se do texto ao seu modo Lyotard enuncia: “em geral não há lugar; e cada coisa traz seu lugar consigo” (LYOTARD, 2000: p. 18). Por sua vez, é equívoco ter a idéia como algo que vem de dentro, elas passam através. Por isso, como os homens, suas linguagens, suas técnicas e os lugares que eles constroem, as idéias circulam. Le Corbusier, em sua conferência no Brasil “Corolário Brasileiro”, de 1929, diz a respeito das idéias: “(...) a idéia é fluida, onda que procura antenas. As antenas estão disseminadas. O próprio das idéias é pertencer a todos. (...). A idéia pertence ao domínio público. Dar a sua idéia! Ora, é simples; não há outra a saída” (1987: p.89). Esta fluidez referida por Le Corbusier casa-se ao que diz Jean-François Lyotard: “Os pensamentos não frutos da terra, os pensamentos são nuvens” e “não cessam de mudar de posição um em relação ao outro”. Os signos circulam, o que mais fazem é circular e com isso não se pode dar conta do que é feito deles em sua circulação pelo mundo. Não obstante essa apologia da fluidez, os campos disciplinares com suas atribuições e categorias estabelecidas funcionam de modo diverso. Michel de Certeau afirma que essa pretensão da cinscunscrição de um lugar “próprio” no contexto social, caracteriza um gesto da modernidade científica, política e militar. Segundo Certeau aquelas práticas, que distinguem um lugar “próprio”, de onde se podem manipular as relações de força, constituem “um tipo específico de saber”. A distinção do arquiteto do canteiro de obras, como profissional liberal, a sua entrada na academia foram obtidas mediante a apelação à versão discursiva do conhecimento arquitetônico. “A divisão capitalista do trabalho, com a sua separação entre o trabalho manual e o intelectual, entre o trabalho de execução e o de decisão, entre o de produção e o de gestão, é tanto uma técnica de dominação quanto uma técnica de produção” - citação recolhida de um dos artigos da mesa “cultura urbana e territórios populares” de Maria Tereza Cordido, de Miguel Antonio Buzzar e de Fabio de Souza Santos. 1

O sentido particular de campo, disciplina ou sistema conceitual, em muitos casos, depende de modelo/exemplo central, ao qual se faz referencia para convalidar a estrutura social ou discurso geral ou ainda seus conteúdos (Kuhn apud WIGLEY). Segundo Mark Wigley, o discurso em arquitetura se organiza como sistema em torno de pressupostos paradigmáticos que não fazem muita questão de interrogar-se, a fim de manter um certo estado das coisas. Este tipo de atuação do discurso funciona mais como ideologia do que como ciência. De modo que opera no clássico sentido de “distorção da realidade”, mas também, como legitimação pontos de vista específicos e ainda, como integração da ação social e de mediação de um domínio social ou disciplinar (ideologia segundo Paul Ricouer, 1991). Porém, com toda carga de inércia e de resistência à mudança que supostamente um “discurso” possa engendrar, visando legitimação ou integração social, mesmo ele possui mecanismos de mediação e dispersão que implicam movimento no espaço e no tempo. Também o discurso tem lá sua fluidez, sua “plasticidade”. “Os problemas [sobretudo quando se tratam dos territórios populares] andam mais depressa que nossa capacidade de pensar”, citando Nuno Portas. De modo que neste setor as idéias correm atrás ou acompanham os problemas. Henri Bérgson cunhou a metáfora de que as categorias são um gaveteiro onde os conceitos são colocados. “Diante de qualquer objeto novo, a razão se pergunta” em que gaveta colocar? Porque o processo de pensar induz, o que se faz comumente é: designar, classificar, categorizar, conceituar. Concernem ao processo do pensamento e ao seu funcionamento. A necessidade de construção de conceitos não é apenas uma operação epistemológica, mas igualmente um projeto ontológico, pois, é uma atividade que combina inteligência, comunicação e operacionalidade (NEGRI & HARDT, 2002). Vê-se, exatamente, este esforço de produzir conceitos e de compreensão diacrônica e sincrônica de problemas nos trabalhos da mesa “cultura urbana e territórios populares” da seção “Representação e interpretação da dimensão cultural da cidade e do território do XI SHCU. A leitura destes artigos foi feita sob essa perspectiva da mudança e da circulação das idéias (discursos, teorias, conceitos, pontos de vista), considerando os lugares em vários sentidos possíveis: posição, itinerário, campo, território, cidade, favela e periferia. Os artigos foram muito oportunos para este tipo de análise. O artigo “A produção da cidade e de suas representações: das idéias clássicas às Inflexões Recentes” de Cibele Saliba Rizek assinala “alguns dos pontos de inflexão nas idéias que conformaram as representações da cidade e nas concepções relativas à compreensão de seus processos de produção”. Ainda ao apresentar novas chaves de leitura da cidade e de sua constituição recente observa que demandam “novos modos de reflexão, reconfigurações e modulações das representações clássicas sobre a cidade, sobre os processos de urbanização e 2

sobre as formas de sociabilidade". Cibele, ao perscrutar os atores da produção da cidade, demonstra que “as camadas da população de baixa renda das cidades brasileiras eram freqüentemente associadas a palavras e expressões que tinham nos conteúdos de classe, reais ou imputados", todavia, na conjuntura atual tornam-se extratos de renda específicos, nichos de mercado. De acordo com Cibele Rizek, no regime militar a integração social restringia-se à extensão do trabalho ou da incorporação, incluindo o trabalho informal das populações “marginais”. Nos anos 1980-90, houve o advento dos chamados movimentos sociais ou movimentos sociais urbanos com conseqüente visibilidade das desigualdades de condições de vida no Brasil. Neste processo, Cibele constata que emergem “novos atores se deixavam ver, permitindo um conhecimento das experiências de classe, das experiências da cidade”. Estes são: “mulheres pobres, comunidades de base, movimentos de moradia, ocupações de parcelas de terra pelas periferias, experiências de autogestão, assessorias técnicas devidamente politizadas, igrejas e correntes religiosas, movimentos de favelados, ao lado de movimentos e formas de organização sindical e política reconfigurados”. O “protagonismo” dos novos sujeitos coletivos é assumido pela “sociedade civil” e seus atores, suas esferas de interlocução e ação, em contraste flagrante com o “apagamento” que caracterizava até então “as representações e as formas de compreensão das relações entre Estado e sociedade civil na história brasileira”. Nesse contexto, segundo Cibele, a categoria classe operária ou classe trabalhadora, cede lugar para “as classes populares”, contudo, “a dinâmica das classes nas lutas pela cidade era, ao mesmo tempo, indicador de leitura e modo de compreensão das formas urbanas de sociabilidade”. Cibele Rizek prossegue “na chave dos movimentos sociais a realidade e a experiência das classes populares” tornavam-se objeto, escapando “do quadro de uma reflexão bastante categorial, ainda pulsando sob a força de um certo marxismo de corte estrutural”. Cibele Rizek verifica que as experiências inovadoras dos anos oitenta tiveram suas dimensões políticas esvaziadas, se “rotinizaram”, adaptando-se a uma nova “roupagem técnica”, “transformando as práticas, os núcleos associativos e os processos de politização das dimensões urbanas em tecnologias sociais e de gestão, em empresariamento e auto empresariamento, em empreendedorismo social ou não” Neste quadro, surgem a organizações não governamentais, “posteriormente, substituídas ou transformadas em grandes empresas de gestão das questões sociais relativas à habitação e/ou urbanização de favelas”. Cibele Rizek conclui que o posicionamento desses atores “invisibiliza” de certo modo “as dimensões da cidade como lugar do conflito”. O problema da habitação se

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converte em “nicho de mercado”, as classes (inclusive as populares) se dividem em diferentes estratos de renda. No artigo de Rizek, Estado e mercado, que historicamente não apresentaram soluções abrangentes para o problema de moradia popular, finalmente, recentemente, juntam recursos públicos e privados, promovendo “um rápido crescimento da produção habitacional dessas grandes empresas, voltada para um público que pode acessar o crédito habitacional e que, anteriormente, não era atendido pelo mercado formal”. Acrescenta-se, à exposição realizada por Cibele Rizek deste quadro contemporâneo de manutenção da colonização voraz dos vazios e periferias urbanas, verificam-se os mesmos erros de espraiamento rarefeito de programas habitacionais anteriores, e ficam esquecidos ou ofuscados mecanismos importantes criados em instância federal como a Lei de Assistência Técnica (lei Nº 11.8888 de 24 de dezembro de 2008) que regulamenta sobre “o direito das famílias de baixa renda à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, como parte integrante do direito social à moradia previsto pelo art. 6º da Constituição Federal”. Isso dá margem, além disso, para cismar que não são apenas as leis que pegam ou não pegam no Brasil, também as políticas públicas podem ser atropeladas por agentes muito mais poderosos, como as grandes empresas da construção civil. Cibele Rizek ainda relata além dessa conjugação entre habitação social e mercado, que muitos modos de vida urbana vêm sendo pautados pelas novas combinações entre legalidades e ilegalismos. Segundo Rizek, a plasticidade destes se constitui “em chave de uma nova leitura da cidade, para além das esperanças dos anos oitenta e dos contrapontos e supostas perversidades dos anos noventa”. Dois trabalhos da mesa Cultura Urbana e Territorios Populares centram-se nas mudanças ocorridas nas significações e nos juízos de valor ao atribuídos à favela. Os artigos são: “Março de 1983: A Guinada Na Relação Estado/Comunidades Faveladas No Rio de Janeiro” de Gerônimo Leitão e de Jonas Delecave e o trabalho “Cultura e Cidade: Visões Alternativas” de Maria Tereza Cordido, de Miguel Antonio Buzzar e de Fabio de Souza Santos. No trabalho de Gerônimo Leitão e de Jonas Delecave enumeram-se as representações sobre a favela que sistematicamente assumem uma modalidade axiológica do discurso, ou seja, constituem juízos de valor.

Nas décadas de 1950 e 1960, as favelas eram consideradas um problema – “cuja solução era, invariavelmente, a erradicação, com a remoção de seus moradores para conjuntos habitacionais [de baixo custo] na periferia distante”. A concepção predominante nesse período era a de que as 4

favelas eram “perigosos sintomas de doença social” – “algo a ser erradicado materialmente” (Perlman apud Leitão & Delecave). Gerônimo Leitão e Jonas Delecave mostram que a “perspectiva da favela como um assentamento marginal começaria, contudo, a perder respaldo técnico e, também, político”. Eles indicam que para essa reversão contribuíram as operações que possibilitavam “a participação dos usuários em diferentes etapas do processo de planejamento e da construção de suas moradias”. Além disso, Leitão e Delecave citam trabalhos de Turner e de outros autores como Carlos Nelson Ferreira dos Santos como contribuições importantes para a revisão paulatina da caracterização das favelas como “anomalias sociais”. No linguajar dos técnicos que atuaram nos primórdios da criação do Banco Nacional de Habitação

(BNH), as favelas eram consideradas “assentamentos subnormais”, cuja erradicação, seria providenciada com a transferência da população para conjuntos habitacionais construídos na periferia, o que constituía uma das metas principais das políticas de habitação que empreendiam. Vários problemas decorrentes do inchaço ou espraiamento das regiões metropolitanas apontaram para a necessidade de reformulação das políticas governamentais implementadas até então, no campo da habitação de interesse social. “Nesse período, o caráter expressivo da produção informal da moradia já era objeto de atenção de estudiosos” que analisavam a incapacidade dos programas governamentais no atendimento à crescente demanda da população de baixa renda. Leitão e Delecave colocam ainda, que nos anos 1980, “ocorre a expansão das favelas nas zonas periféricas e surgem nas áreas centrais aglomerados de moradias precárias e provisórias, caracterizando, mais uma vez, a ocupação irregular de áreas públicas e privadas como um dos mecanismos mais freqüentes de acesso à terra para a população mais pobre.” Ressalta-se que da análise realizada por Leitão e Delecave as ressignificações e re-valorações do termo favela se acompanhavam de mudanças na abordagem técnica do problema, alinhavado ao objetivo central de apresentar a relação Estado/comunidades faveladas. Os autores designam que março de 1983, data demarcada pela posse do Governador Leonel Brizola, ocorre a guinada na relação estado/comunidades faveladas no Rio de Janeiro. Os autores apresentam mecanismos e medidas de intervenção que realizam desde regularização fundiária, à construção de infra-estrutura e de unidades habitacionais. A idéia de remoção foi colocada de lado, e os moradores passaram a investir em alvenaria para fixar moradia. Os autores citam o relato de Sandra Cavalcanti: “Quando o governador Brizola permitiu que as construções pudessem ser em alvenaria, em 1983, houve uma revolução. (...). A alvenaria mudou o morro.”

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Sandra Cavalcanti, segundo Leitão e Delecave, expressa opinião de uma parcela da população carioca de que não haveria “possibilidade de promover a integração entre a favela e a cidade formal” devido distinção ou antagonismo das “regras que regem a estruturação desses espaços”. De acordo com os autores esta visão perdeu espaço para outra postura que “reconhece a favela como parte integrante da cidade oficial, traduzindo uma alternativa legítima de acesso à moradia pela população mais pobre”. Gerônimo Leitão e Jonas Delecave discorrem sobre o reconhecimento do direito à cidade: políticas habitacionais, na cidade do Rio de Janeiro, nas décadas de 1990 e 2000. O Programa Favela-Bairro constituiu-se o paradigma do período. Os autores apontam críticas e méritos listados por outros pesquisadores. Citam Davidovich que, por exemplo, questiona a visão da favela adotada por esse programa – “definida como uma “entidade homogênea e sem conflitos” – o que impossibilitaria a percepção de “importantes diferenciais” existentes dentro das comunidades faveladas”. Para essa crítica o programa homogeneizava o caráter plural e diversificado das favelas. Leitão e Delecave citam uma avaliação do programa realizada em 2003, por um estudo conduzido pelo Instituto Pereira Passos, em conjunto com o Instituto de Pesquisa e Planejamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este estudo compara dados de sete favelas onde foi implementado o Programa Favela-Bairro e os de outras cinco, nas quais não foram realizados projetos de urbanização. “A avaliação sobre a situação da comunidade dez anos depois é bem melhor onde foi feito o Favela-Bairro. De uma forma geral, os indicadores sociais melhoraram em todas as comunidades. Mas, nos índices de infra-estrutura, a melhora foi mais significativa onde houve o programa”. Gerônimo Leitão e Jonas Delecave patenteiam, em seu artigo enfim, que a relação entre Estado e as comunidades faveladas passou por diferentes fases ao longo dos últimos cem anos. “Negação, confronto, tolerância e, por último, aceitação – ainda que com restrições de alguns setores da sociedade” – esses termos expressam as diferentes etapas dessa relação. “A favela também se transformou”, são lugares onde “famílias já vivem há algumas gerações.” No artigo “Cultura e Cidade: Visões Alternativas” as visões sobre favelas ou setores de produção “autoempreendida” da cidade são vinculadas ao discurso epistêmico, relacionado às práticas de saber da arte e arquitetura. Os autores: Maria Tereza Cordido, de Miguel Antonio Buzzar e de Fabio de Souza Santos analisam três casos. Os trabalhos realizados na década de 1960, por Hélio Oiticica (“Parangones”, “Penetráveis”) a partir da vivência no Morro da Mangueira, Rio de Janeiro. O segundo caso é a proposta de trabalho de três jovens arquitetos de São Paulo (Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre), fundamentadas nas condições precárias de trabalho no 6

canteiro de obras e na prática popular da autoconstrução. O terceiro caso trata dos desdobramentos de uma intervenção realizada a partir de 1983, nas favelas do município de Diadema, São Paulo. Os autores advertem que os exemplos “a primeira vista possam parecer muito distintos, guardam inúmeros aspectos em comum. O centro da análise é a mudança ocorrida na visão sobre a relação entre as classes em certas áreas da cultura brasileira”. Cordido, Buzzar e Santos introduzem seu artigo com uma análise crítica das relações entre modernismo e cultura popular, incluindo momentos em que os traços primitivos da cultura nacional foram referência. Estes que são preteridos em seguida para “a representação de trabalhadores exemplares e a idealização da vida popular”, exaltação episódios da história do país ou da sua paisagem. A arquitetura moderna incorporou este “projeto”. “Neste projeto, a iniciativa das elites contrastava com o papel passivo atribuído ao “povo”, embora este figurasse como fonte da cultura nacional e destinatário de tal política. Mais decisivo era o papel auto-atribuído de mediadores das “elites”: a coleta, seleção, reelaboração e difusão da produção cultural, na qual era essencial a mediação do Estado. Nestas produções, a referência ao popular comparecia apenas como um ingrediente na construção da identidade oficial moderna; não visava o reconhecimento da alteridade cultural ou as necessidades da maioria da população.” De acordo com Cordido, Buzzar e Santos a política habitacional conduzida por arquitetos, “instalados nos Institutos de Previdência”, atuava na “erradicação das urbanizações existentes e sua reconstrução nos moldes de matriz moderna”. O déficit habitacional era maior do que os recursos disponíveis para resolvê-lo, a modernização perpetrada ficou assim restrita as chamadas “ilhas de racionalidade”. Este modelo operativo recebeu fortes críticas. Os exemplos escolhidos por Cordido, Buzzar e Santos diferentes estratégias que apontam para a mudança substantiva ocorrida na relação entre “cultura brasileira e a população carente”. Dentro do contexto de resistência ao regime militar, estes exemplos se estruturam tanto a partir de elementos provenientes do projeto Nacional-popular quanto de outros advindos de sua critica. O primeiro caso do artigo de Cordido, Buzzar e Santos é a deriva de Hélio Oiticica no Morro da Mangueira. No trabalho de Oiticica, na década de 1960, há a superação das formas do segundo modernismo, e mesmo de sua estratégia de interação com a “cultura popular”. A atuação deste artista colocava em cheque a totalidade do projeto político-cultural moderno. Oiticica dizia: “Não se trata mais de impor um acervo de idéias e estruturas acabadas ao espectador, (...) mas de dar ao indivíduo de hoje, a possibilidade de “experimentar a criação”, de descobrir pela participação (...), algo que para ele possua significado” (CATALOGUE apud Cordido, Buzzar e Santos, 2010). A relação entre a cultura popular e o trabalho de Hélio Oiticica, de acordo com a análise desses autores, permite constatar possibilidades de aproximação, imersão e trocas entre vanguarda e 7

cultura popular, assim como apontar sua cisão, ilustrada pelo episódio da dificuldade de acesso à cultura da população do Morro ao MAM-RJ na mostra “Opinião 65”. O segundo caso, abordado por Cordido, Buzzar e Santos trata da proposta encaminhada por Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre que teve por base “duas constatações: cerca de oitenta por cento das casas na periferia eram construídas sem a participação de qualquer profissional”. E da crítica radical as precárias condições de trabalho dos operários nos canteiros de obras, e da ausência de racionalidade nos mesmos. Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre exploram o Binômio arquitetura/construção e a defasagem entre a prática e a realidade dos canteiros. Os jovens arquitetos demonstraram que, citando Cordido, Buzzar e Santos: “A Arquitetura Moderna Brasileira ignorava as reais condições de produção e do processo de trabalho, o aspecto final da obra arquitetônica apenas escondia e distorcia a baixa racionalidade da construção. Nos processos habituais, o trabalhador, mais do que apenas relegado a um papel passivo, era simplesmente desprezado.” Cordido, Buzzar e Santos consideram estas conclusões perturbadoras, e mostram como estas conduziram aos arquitetos interpretações críticas das relações entre a dominação de classe e trabalho; dos laços entre design moderno e capitalismo; e entre produção e processos tecnológicos. Quando o fator essencial da produção se torna o conhecimento intensivo - alguns consideram que se vive sob um “capitalismo cognitivo” - voltam à tona, trabalhos como o de Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo Lefèvre que confrontam as correspondências entre conhecimento, técnica e dominação social. Pois, muito precocemente, perceberam a atuação dos arquitetos (incluem-se práticas modernas e contemporâneas) alheia não apenas do canteiro de obras, mas à diversidade e alteridade da vida social. Nos protocolos operativos previstos por estes arquitetos o trabalhador era parceiro. Havia o respeito à cultura popular e o reconhecimentos de suas práticas de construção que fundamentava uma racionalidade “consistente com o contexto produtivo”. Formularam também um modelo participativo, que culminava por rechaçar a aliança entre a modernização e o modelo da grande indústria. O último caso abordado por Cordido, Buzzar e Santos é um programa elaborado por Fingerman em

Diadema

que

se

desdobrou

em

reinterpretações

e

resultados

inesperados

de

institucionalização. O programa inicial se definiu como construção de casas populares, visando à "integração sócio-espacial das comunidades”, de acordo com a "condição real e expectativas de cada indivíduo". O programa se colocava como instrumento de orientação técnica que incentivava e reafirmava “valores culturais do cliente" (PROCAP apud CORDIDO, BUZZAR e SANTOS, 8

2010). “Destinava-se não só a proporcionar melhores condições de habitação, mas também incentivar a organização política dos habitantes”. Cordido, Buzzar e Santos assinalam os avanços obtidos com o programa de Diadema mas que a mobilização foi menor que a desejada. “A experiência não levou em conta algumas condições que envolvem este tipo de intervenção, tais como a relação entre habitação e mercadoria, e mesmo a recomposição política dos envolvidos”. Talvez se pudesse somar, ainda outro fator: o quanto de investimento pessoal e social que demanda a “propriedade” da residência em detrimento de outras necessidades físicas e existenciais. O artigo de Daniela Zanetti “A Cidade e a Comunidade: Representações da Diversidade Cultural e das Experiências Urbanas no Cinema de Periferia” traz análises de curtas-metragens exibidos em festivais de cinema de periferia, trabalhos reconhecidos como originários e/ou representativos das favelas, periferias e subúrbios. Abordam-se “diferentes estratégias adotadas por seus realizadores para construir seus próprios discursos e o modo como acionam e/ou (re)elaboram representações sobre seus espaços de convivência e de experiência (individual ou coletiva) do cotidiano”. Indivíduos, grupos e comunidades que dispunham de pouca ou nenhuma visibilidade simbólica tornam-se protagonistas: atores, produtores, diretores, personagens. Esta posição de agente para este setor da sociedade brasileira está a léguas de distância da posição “modernista” de “artistas e intelectuais, papel auto-atribuído de mediadores das “elites” referido anteriormente (CORDIDO, BUZZAR e SANTOS, 2010). Isso representa uma novidade em relação ao reconhecimento da alteridade, da diversidade desse setor da sociedade brasileira, e mesmo, relativamente ao estabelecimento de parceria e da assessoria – significa autonomia. Destaca-se neste artigo a noção de lugar-conceito, em relação ao qual a autora adverte: a intenção é evitar delimitar no plano do real quais são os territórios que pertencem às periferias e quais pertencem ao centro, pois o seu foco é “a posição simbólica no campo social que a idéia de periferia institui. A periferia, no plano do real, nos escapa. Ela existe em nosso imaginário e é definida a partir da produção, adesão e manipulação de elementos simbólicos.” Daniela tem razão, pois, realmente “no plano do real, [a periferia] nos escapa”. Numa lista de algumas tentativas de conceituar a periferia indica-se a de Eduard Bru. Segundo Bru, a periferia assimila-se às partes da cidade onde o binômio: capacidade de uso e capacidade de significação estão em desequilíbrio em qualquer dos seus componentes. Contudo, isso pode suceder tanto nos centros das cidades quanto nos subúrbios e favelas. No quadro de uma periferia que permanece marcada pela situação de encravamento, pela distância (social), pela redução da velocidade, pela interrupção ou intermitência dos fluxos de recursos e tecnologias, entre outros. Paul Virilio coloca que a coexistência de distintas velocidades de trânsito é o que torna a periferia imprecisa (VIRILIO, 1996). Imprecisão ou indefinição não 9

consta como característica dos territórios populares. Os artigos analisados destacam a heterogeneidade dos territórios populares. Às definições de Bru e de Virilio podem-se levantar objeções, a principal é que não há lugares fora dos fluxos da urbanização extensiva. O mundo inteiro está interconectado, neste a periferia é produtiva. A cidade e a periferia estão em toda parte, com as novas tecnologias da informação e da comunicação. A periferia é um conceito que foge. Ainda, se pode comentar que com a assunção do projeto, da coordenação da produção cultural midiática pelas culturas populares, se realiza então o desejo de Andre Gorz, expresso no artigo de Cordido, Buzzar e Santos: “a reunificação do trabalho e da cultura” Retornando à noção de lugar-conceito, este é um recurso que Daniela Zanetti usa para abordar a “periferia midiatizada”, vista não apenas nas mídias oficiais, mas também em diferentes “plataformas” (festivais, cineclubes, Internet, etc.) e que são produzidos e/ou protagonizados pelos próprios moradores destes espaços. Produções que evidenciam a diversidade cultural e a heterogeneidade presentes em territórios normalmente representados como homogêneos. Zanetti argumenta que é o reconhecimento das diferenças através do cinema. “Apesar das condições técnicas (limitação no uso dos equipamentos disponíveis, deslocamento, etc.) e institucionais (delimitação de temas, orientações nas abordagens, etc.) que eventualmente possam limitar/conduzir a criação/realização destes trabalhos”. Daniela analisa a apropriação do termo periferia de modo generalizado na mídia teve início ainda nos anos 90, e desencadeou um fenômeno que envolve a cultura e a economia das periferias. No ponto de vista dos próprios produtores da “periferia” a sua delimitação como lócus deve ser privilegiado nos filmes realizados por eles, bem como as falas de seus moradores e seus representantes. Considerações finais Na leitura realizada do artigo de Cibele Rizek destacam-se os agentes, os atores e as formas de atuarem nos processos de urbanização e de socialização: Estado, mercado, sociedade civil, classe operária ou classe trabalhadora, as classes populares, classe c, extrato de renda, nicho de mercado em distintas conjunturas com seus distintos projetos, posturas e interações, que parecem imiscuídos numa mudança de agenda daquelas classes sociais, do Estado e do mercado. As classes populares, neste recorte, sofrem seguidas mudanças conceituais, o que mostra o advento de novas concepções e novas associações que expressam as mudanças de percepção dentro do quadros acadêmicos, técnicos e na sociedade civil. No artigo de Gerônimo Leitão e de Jonas Delecave destacam-se as ressemantizações e as variações conotativas que o termo favela recebe nos processos históricos tratados, as formas de 10

abordagem técnica e estatal destes territórios correspondem àqueles atributos em termos conceituais: sintoma de doença social, assentamento marginal, soluções correspondentes erradicação, deslocamento; assentamentos subnormais soluções correspondentes erradicação e transferência assumida numa política habitacional; produção informal de caráter expressivo ações ou soluções correspondentes objeto de estudo, de autocrítica disciplinar, de programas participativos e fixação de residência. No artigo de Maria Tereza Cordido, de Miguel Antonio Buzzar e de Fabio de Souza Santos tendo o foco (desta leitura) privilegiado a relação entre cultura popular e artistas e arquitetos, ambas “categorias” recebem no texto lido diferentes designações também relacionadas a mudanças de contexto histórico. No primeiro caso as atribuições são: povo, “indivíduos populares (não exatamente as pessoas pobres) os que „detêm os traços primitivos‟ [nacionais]”; no segundo caso: elites, intelligentsia, vanguarda, técnico da forma. Apresentam-se também denotações distintas para os aspectos "primitivos" da cultura popular e o arcaico, que aparecem em diferentes conjugações ou contraposições com os conceitos de modernização e com o movimento moderno. Finalmente, a periferia de Daniela Zanetti, com seu lugar-conceito tergiversa a categorização para alcançar o lugar próprio, a singularidade de cada olhar autônomo materializado nos filmes analisados. Artigos CORDIDO, M. T. L. B., BUZZAR M. A. e SANTOS, F. L. S. Cultura e Cidade: Visões Alternativas. Vitória, ES: XI SHCU, 2010 LEITÃO, G e DELECAVE, J. Março de 1983: A Guinada Na Relação Estado/Comunidades Faveladas No Rio de Janeiro. Vitória, ES: XI SHCU, 2010 RIZEK, C. S. A produção da cidade e de suas representações: das idéias clássicas às Inflexões Recentes. Vitória, ES: XI SHCU, 2010 ZANETTI, D. A Cidade e a Comunidade: Representações da Diversidade Cultural e das Experiências Urbanas no Cinema de Periferia. Vitória, ES: XI SHCU, 2010

Referencias bibliográficas BRU, E. Coming from de south. Barcelona: Actar, 2001 CERTEAU, M. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 1982 HARDT, M. e NEGRI, A. Império. São Paulo: Record. 2002 LE CORBUSIER. Corolário Brasileiro. In SANTOS, M. C. R. (Org.). Le Corbusier e o Brasil. São PAULO: Tessela: Projeto, 1987. LYOTARD, J. F. Peregrinações, Lei, Forma, Acontecimento. São Paulo: estação Liberdade, 2000 RICOUER, P. Ideologia e Utopia. Lisboa: Edições 70, 1991 11

VIRILIO, P. Velocidade e Política. São Paulo: Estação Liberdade, 1996 WIGLEY, M. A desconstrução do espaço. In: Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996, pp. 152-71

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