DA ATRIBUICAO DE VALORES AS TRADICOES RELIGIOSAS INDIGENAS

October 4, 2017 | Autor: Robin Wright | Categoria: Indigenous Politics, Narratives, Anthropological and Literary Readings of Narratives
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DA ATRIBUIÇÃO DE VALORES ÀS TRADIÇÕES RELIGIOSAS INDÍGENAS
Robin M. Wright
Departamento de Antropologia
Universidade Estadual de Campinas


Neste artigo, quero refletir sobre a pesquisa que tenho realizado
desde os anos 70 na mitologia e história oral dos índios baniwa, povo de
língua aruaque, do Noroeste Amazônico na fronteira Brasil-Venezuela-
Colômbia. Especificamente, quero discutir algumas questões interessantes
que surgiram durante o processo de organizar uma coleção de narrativas,
chamada Waferinaipe Ianheke. A Sabedoria dos Nossos Antepassados (Vários,
1999) que fiz em colaboração com uma associação local de comunidades baniwa
chamada a Associação de Comunidades Indígenas do rio Aiary (ACIRA). Essas
questões são relevantes para a preocupação maior de como textos de
narrativas são produzidas, quais os seus contextos políticos, e como o
mesmo povo constrói através do tempo uma diversidade de tradições
religiosas. A discussão toca também na questão da transmissão dos
conhecimentos míticos, e a sua transformação em objetos de valor econômico
no mercado crescente de conhecimentos indígenas.
Vinte e nove anos atrás, quando primeiro realizei pesquisas de campo
no Noroeste Amazônico, a região era muito diferente do que é hoje. Por um
lado, as missões salesianas, apoiadas estrategicamente pela Força Aérea
Brasileira, - e, na área baniwa, as missões evangélicas das Novas Tribos do
Brasil, por outro – formaram uma poderosa e incontestada estrutura de
dominação sobre os povos indígenas. Somente umas poucas vozes tinham a
coragem de criticar e enfrentar essa estrutura. Os antropólogos que
trabalharam na região se encontraram numa situação muito delicada de
pesquisar sobre aspectos da cultura (tal como a mitologia, o ritual, e
xamanismo) que os missionários não viam com bons olhos ou, no mínimo, os
consideravam inúteis para o tipo de ideologia de desenvolvimento e
progresso forçosamente promovida por eles, principalmente através das
escolas, pela região inteira (ver meu livro, Wright, 1998).
A minha pesquisa tinha mitos, histórias orais e especialistas
religiosas – chamados maliiri – como seu enfoque central (a vida ritual
estava extremamente truncada devido à repressão missionária) que era, no
início, problemático para os índios. Os maliiri receberam o meu projeto de
pesquisa com extrema cautela e preferiam não se envolverem até que tivessem
uma garantia do que o 'Branco' não era na verdade um outro pastor norte-
americano com a intenção de desarraigar o que sobrou das suas tradições
depois de anos de campanhas pelos missionários, e que o que eles iam me
contar seria respeitado e compreendido. Mitos e conhecimentos religiosos
tradicionais eram, naquela época como agora, uma questão política mas
acontece que eu – sabendo praticamente nada do contexto político daquele
momento – escolhi a morar numa comunidade onde os maliiri e os velhos
tinham assumido o papel de guardiões das tradições contra os ataques dos
evangélicos e salesianos.
Por motives que desconheço, os velhos resolveram entre si que iam me
permitir a gravar as histórias sagradas, os cânticos, as orações e a
música. Talvez por causa da sua preocupação, que eles expressaram desde o
começo, que essas tradições estavam "acabando". Talvez seja porque
soubessem que nas comunidades evangélicas, onde as tradições tinham
sofridas muito mais perdas e ainda foram condenadas, que muitos dos velhos
tinham "esquecidos" e que uma tradição evangélica tinha quase completamente
substituída os velhos costumes. De qualquer modo, encarregaram a tarefa de
me ensinar ao mais velho da comunidade, ex-capitão e ainda maliiri, que,
apesar de certas excentricidades (como um trickster, ele gostava de inserir
piadas engraçadas e muitas vezes escandalosas nas narrativas), sabia muito.
Um outro velho com quem trabalhei intensivamente, de uma outra comunidade
rio acima, fez questão de ensinar-me de modo 'certo.' Pois os mitos, os
Baniwa esclareceram em muitas ocasiões, têm a função pedagógica vital de
ensinar sobre as leis da vida e assim precisam ser transmitidos com
exatidão.
Até o final do meu trabalho com estes e outros velhos, acredito que eu
gravei uma boa parte das narrativas míticas, e comprometi-me a ambas as
comunidades que eu voltaria um dia com um livro de suas tradições. Vinte
anos depois, tendo praticamente aprendido todos os mitos (por transcrevê-
los na língua Baniwa, traduzir todos em inglês e português, e interpretar
uma boa parte deles nas minhas publicações), me encontrei numa posição de
poder cumprir a minha promessa e devolver tudo às mesmas comunidades em uma
forma acessível. O momento histórico fez esse ato de 'devolver'
extremamente significativo, pois coincidiu precisamente com a emergência
dos Baniwa no movimento político de recuperar as suas tradições religiosas
que por tanto tempo foram reprimidas.[i] Mais do que nunca, as narrativas
míticas e os cânticos eram peças críticas – novamente, questões políticas –
na afirmação dessa nova identidade tão bem como instrumentos para a
educação das novas gerações, como sempre foram, mas agora no contexto de
uma nova configuração. Os mitos e as cosmologias estão sendo atribuídos
novos valores para adaptar às necessidades das gerações mais novas de
compreender essas tradições como vitais no contexto atual. Do mesmo modo,
os rituais de troca e as malocas – tão central para a identidade social no
passado – estão voltando em muitas comunidades ressurgidos das cinzas de
destruição missionária para significar aspectos da nova identidade pan-
indígena do Noroeste Amazônico.
Mas o processo de 'devolver' as tradições através de um livro não era
tão simples como imaginava e envolveu algumas discussões importantes entre
os velhos narradores sobre os significados de suas tradições que não
surgiam se tivesse restringido – como muitos antropólogos fazem – o
trabalho à gravação e esclarecimento da semântica. Questões vitais foram
levantadas sobre a transmissão do conhecimento dos maliiri, da reformulação
do saber mítico para se conformar às tradições indígenas cristãs, e do uso
do saber mítico como mercadoria. Essas questões estão de fato no centro das
discussões atuais sobre a proteção dos conhecimentos dos povos
tradicionais.
No Noroeste Amazônico, há uma longa história de publicar coleções de
mitos que data do século XIX. Um grande avanço na qualidade dessas coleções
se deu no início dos anos 80 com a publicação da primeira edição de Antes o
Mundo não Existia (1980; ver Pãrõkumu E Kehíri, 1995), dos mitos de índios
Desana, povo de língua tukana do Rio Tiquié, organizada por dois narradores
Desana, com a colaboração e apoio do Padre Casemiro Beksta, a antropóloga
Berta Ribeiro e o escritor amazonense Márcio Souza. Essa coleção
representou um avanço no sentido de realizar o desejo dos narradores de
publicar as tradições de seu povo sem erros ou re-elaborações (como no caso
da Leggenda dell'Jurupary, organizada por índios Tariana e Tukano no final
do século XIX, mas que foi re-elaborada de forma lírica e poética pelo
viajante Conde Ermanno Stradelli).
Em 1995, a organização indígena do Rio Negro (FOIRN) lançou uma série
de publicações chamada Narradores Indígenas do Rio Negro com o apoio
técnico e colaboração da ONG o Instituto Socioambiental (ISA) de São Paulo
e o Instituto para Cooperação Internacional da Austria. O objetivo da
Coleção é coerente com uma das metas prioritárias da FOIRN: "de recuperar,
preservar e revitalizar a cultura dos antepassados, em particular através
de publicações das narrativas míticas, assegurando que sejam incluídas no
currículo escolar da região." [ii]
Um ano depois, o coordenador da ACIRA escreveu para mim que: "Estamos
ansiosos de receber os resultados do trabalho que foi feito em nossa área,
e que ficou guardado por tanto tempo, que ficou guardado e foi trabalhado
conforme as histórias contadas pelos nossos velhos, muitos dos quais já
foram deste mundo tão complicado. Então, ficamos satisfeitos com todo esse
trabalho e assim planejamos a sua publicação para o ano de 1997..."
Depois de traduzir todos os textos de inglês a português, apresentei
uma primeira versão a um grupo de velhos (alguns dos mesmos com quem
trabalhei nos anos 70) e, baseado nas suas críticas, revisões e acréscimos
de narrativas, preparamos uma segunda e terceira versões, que em seguida
passou por revisões pela equipe do ISA.
Uma das primeiras questões debatidas durante a construção do texto foi
o estilo de transcrição. A minha versão preliminar seguiu modelos
etnopoéticos buscando apresentar o texto escrito de tal forma que indicasse
elementos estilísticos presentes na versão oral original - onomatopéia,
distorções de palavras na fala, quebra de linhas conforme pausas
significativas na narração, e assim por diante. Essa versão foi rejeitada
tanto pela ONG quanto pela organização indígena vinculada à ONG – embora
não pela ACIRA – a favor de um estilo que seria legível para estudantes das
escolas primárias, ou seja, pretendia-se usar o livro nas escolas – a meta
política da FOIRN – e deveria seguir o estilo dos textos publicados
anteriormente que os estudantes estavam acostumados a ler.
Outra discussão interessante centrou no título do livro. O título que
eu havia dado provisoriamente, Iakuthi Oopídali, literalmente "Fala Antiga"
ou "Fala de Antigamente" correspondia à maneira em que os velhos referiam a
seus 'mitos' ou 'histórias sagradas.' Os Baniwa da FOIRN (que pertencem a
comunidades de evangélicos, ou crentes) sugeriram, porém, que o título
fosse mudado para Waferinaipe Ianheke, isto é, "A Sabedoria dos Nossos
Antepassados." Argumentavam que "Fala Antiga" significava que as histórias
eram "do passado" quando, para eles, o povo "vivem conforme essas
histórias, não são do passado, são vivas e funcionam. Mesmo sendo católico
ou crente, uma pessoa não abandona essa sabedoria." Contrastaram o Novo
Testamento com a sabedoria dos antepassados, evidentemente porque o Novo
Testamento é precisamente uma das coisas que diferenciam um crente de um
não-crente; é o ícone da identidade crente, e, embora que os crentes
lembrem da sabedoria dos antepassados, de fato não vivem conforme tudo
contido nela. Assim, os seus rituais são cultos semanais e não as festas de
troca; ensinam os seus filhos seguindo os modelos bíblicos e não pelos
rituais de iniciação antigos, geralmente não procuram os maliiri para
tratamentos embora usem orações, cânticos e ervas medicinais. Vivem pelo
que ainda tem utilidade para eles na sabedoria dos antepassados: os ciclos
meteorológicos presentes nas histórias das origens de agricultura, a pesca,
a caça. Isto é, pelo menos em princípio, as relações entre os crentes e os
ciclos ecológicos continuam vivas.
Outras discussões surgiram durante a revisão do volume, como por
exemplo, qual é seqüência e ordem correta entre as histórias da criação ?
De fato, um narrador observou, colocar uma ordem nas histórias é muito
difícil para eles, pois muitos eventos míticos aconteceram ao mesmo tempo e
as narrativas mais importantes freqüentemente contêm outras histórias
embutidas na seqüência da narrativa. Por exemplo, um mito importantíssimo
conta sobre a vida do filho do Criador que foi responsável pela introdução
dos primeiros rituais de iniciação no mundo, além de muitas outras coisas.
O mito divide-se em episódios, cujos finais são marcados na narrativa por
frases do tipo: "É Só !!" ou "Acabou-se !!"; daí, um tempo passa (marcado
por frases do tipo: "E foi assim, assim, assim...") antes do começo da
próximo episódio. Nos intervalos, os narradores explicam, muitos outros
eventos ocorreram que poderiam ser contados como histórias separadas,
dependendo do contexto da narração. É como se fossem janelas subsidiárias
que compõem um programa maior que é a história da Criação. Naturalmente, é
impossível representar isso em papel.
Pois a Criação foi uma época complexa e não seqüencial, marcada pelo
que nos podemos chamar de politemporalidade aseqüencial. Para os objetivos
do livro, porém, os narradores (maliiri, devo anotar) refletiam sobre o
assunto e, depois de muita discussão, chegaram a um acordo que a primeira
história de fato foi aquela sobre "O começo do povo-universo", seu nome
para os criadores primordiais. Em seguida veio uma série de histórias
referindo a uma época antes da existência de grupos humanos, episódios que
ocorreram no "Outro Mundo" miniatura, uma época de conflitos constantes
entre os criadores e tribos de animais e peixes primordiais, durante a qual
o povo-universo obteve os elementos essenciais (poder xamânico, fogo de
cozinha, terra para cultivar, peixe, noite, e muitas outras coisas) que
eles em seguida 'deram' para os grupos humanos, os seus 'descendentes'
(walimanai). Em seguida, o ciclo todo-importante sobre a vida do filho do
criador em que as condições foram estabelecidas pelas quais a vida e
cultura pudessem ser reproduzidas e transmitidas por todos os tempos. O
nascimento, a iniciação, e a morte foram introduzidos no mundo após o
nascimento, a iniciação e a morte do filho do criador. Tendo acertado todas
as coisas, preparado o terreno por assim dizer, o povo-universo então fez
surgir os antepassados dos grupos humanos que saíram dos buracos na
cachoeira de Hipana, no Rio Aiary, e designou os seus lugares (territórios)
na terra, deixando-os com o tabaco e pimenta sagrados para a saúde de seus
corpos e almas. Outras histórias completam o cenário. Todas essas histórias
pertencem ao que os velhos chamaram do grande ciclo de "histórias
verdadeiras", que são "realmente importantes" sobre o começo do mundo.
Quando o volume finalmente foi publicado, eu esperava uma reação da
parte das comunidades crente e líderes da FOIRN. A maior preocupação dos
velhos narradores foi a de que os crentes iam "desprezar" o volume, como os
crentes desprezaram todas as tradições no início do movimento evangélico
nos anos 50. Mas a crítica que os líderes crentes da organização indígena
expressaram foi totalmente inesperada: eles não tinham objeções ao projeto
do volume, que eles apoiaram desde o começo. O que eles alegaram foi que a
história de criação ficou incompleta, pois existia uma outra história que
falava de um tempo antes do aparecimento primordial do povo-universo (que é
a primeira história no volume) e que era um "paraíso". Um jovem líder
crente fez questão de passar uns dias com um maliiri de 98 anos para
gravar todas as histórias de criação que ele conhecia (as quais este líder
quer eventualmente publicar). Um outro líder, também crente, alegava que
sei 'tio', supostamente um maliiri, conhecia uma história sobre uma época
primordial antes do aparecimento do povo-universo e que era o verdadeiro
'começo do mundo'. A história do povo-universo, argumentava, já se referia
a uma época em que existia gente no mundo, e que havia guerras entre tribos
diferentes.
Quando perguntei aos velhos e maliiri com quem tenho trabalhado desde
os anos 70 sobre o assunto, eles responderam que sabiam nada do que os
crentes estavam falando. Como explicar essa diferença em pontos de vista
sobre a criação ? Existe algo mais que nos ajuda a entender a diferença ?
Sugiro que tenha, e que estamos diante de duas tradições elaboradas
separadamente e que deveriam ser reconhecidas como duas tradições
religiosas – uma tradição evangélica indigenizada da criação; e uma
tradição profética da criação.
Comecemos com a tradição evangélica indigenizada. Acredito que
estejamos lidando com uma reformulação pelos crentes da criação adaptada a
sua crença na existência de um paraíso primordial e não um primórdio
violento e caótico como é contada pelos não-crentes, ou católicos. O mundo
de perfeição onde o Mal não existe, é o mundo ante-primordial, antes da
criação do povo-universo e das diferenças entre parentes consangüíneos e
afins. Para os crentes, na época de sua conversão ao evangelismo e - na
verdade, cada vez que eles celebram uma Santa Ceia ou Conferência,
assembléias em massa envolvendo às vezes centenas de participantes –
retornaram-se a este mundo ante-primordial que abole todas as diferenças.
Pedi a um crente (o mesmo cujo 'tio' supostamente é maliiri) que me
contasse a seqüência correta das histórias de criação e ele me respondeu da
seguinte maneira: a história do universo pode ser dividida em três
períodos. No primeiro, somente existia um ser, chamado "Eeko", sobre o qual
sabe-se muito pouco, mas que vivia num "paraíso" onde tudo era possível –
as roças cresceram por si mesmo, sempre tinha comida disponível, e assim
por diante. Este mundo chegou ao fim quando uma árvore primordial, chamada
a Grande Árvore de Kaali (a divindade que introduziu os cultivos à terra, e
que, aliás, ainda é uma figura importante para os crentes já que foi essa
divindade que estabeleceu o calendário agrícola) foi cortada e as plantas
cultivadas foram distribuídas pela terra. O segundo período coincidiu com a
época em que o povo-universo andavam na terra transformando as coisas,
preparando a vida para os Walimanai, seus descendentes, aqueles que iam
nascer. Este período encerrou-se quando, no final do primeiro ritual de
iniciação, o filho do criador (que ensinou à humanidade os segredos da
iniciação) foi morto num grande fogaréu. Das cinzas do fogo, uma árvore
enorme estourou da terra até o céu, que era o corpo transformado do filho
do criador. O criador cortou a árvore, e dos pedaços fabricou as flautas
sagradas com as quais ele e seus irmãos fizeram surgir os antepassados dos
grupos humanos. Os grupos humanos viveram por muito tempo no terceiro
período. Pouco antes que apareceu a primeira missionária evangélica entre
os Baniwa, os maliiri previam grandes mudanças, transformações que iam
ocorrer, como aconteceram nos períodos anteriores. Muitos maliiri de fato
interpretavam a chegada da primeira missionária evangélica na área – uma
mulher extraordinária chamada Sofia Muller (nativa de Nova Iorque) – como
sinal da transformação cósmica iminente. Foi naquela época que eles
resolveram queimar todas as flautas sagradas e jogar no rio os seus
instrumentos rituais para se tornarem crentes. Ainda acreditavam que, junto
com a transformação, a humanidade ia recuperar a sua unidade primordial –
ou melhor, a unidade ante-primordial.
A segunda tradição – que chamo de profética – data de pelo menos a
metade do século XIX (ver Wright, 2005) e tem as suas raízes no saber dos
maliiri cujas funções intensificaram-se ou aqueceram-se diante das
circunstâncias históricas, e uma das manifestações desse aquecimento foi a
adoção pelos maliiri-profetas das vestimentas de padres católicos. Mas a
transformação que essas figuras proféticas introduziram foi mais eficaz do
que a mera incorporação de rituais e apetrechos do catolicismo, e reformas
na convivialidade. De fato, chegaram a entender muito bem a hierarquia da
igreja católica; e o poder dos padres foi acrescentado ao seu poder
enquanto maliiri. Mais do que isso, após décadas de observação e reflexão
sobre a igreja, os descendentes dos antigos profetas concluíram que as suas
divindades ainda têm poder superior ao do Papa em Roma. Na minha última
pesquisa de campo com os maliiri em 2001, entrevistei o filho de um profeta
que pertence a uma longa linha que começou com o primeiro profeta Kamiko no
século XIX. Já que é considerado o maliiri mais sabido hoje, lhe pedi a
falar sobre os diversos níveis do cosmos baniwa e ele elaborou o esquema
mais complexo que já vi, consistindo de 25 camadas – ou 'mundos' – 12 acima
do nosso mundo, e 12 abaixo, cada um habitado por uma tribo diferente de
'gente'. Somente os maliiri considerados do mais alto grau de poder
conhecem e têm visitado em suas viagens extáticas, todos esses níveis. O
nível mais alto é o mundo do Criador/Transformador, cujo nome é
Nhiãperikuli, que os maliiri também chamam de 'Dio'. Embora Nhiãperikuli
seja uma divindade personificada, Ele é identificado com o universo em
geral e há também uma noção dEle como uma "Luz Resplendente", que mora numa
case de espelhos, onde a luz se reflete por toda parte, a luz brilhante do
Sol. Embora nenhum Baniwa tem lido o São Agostinho, no entanto falam da
"Cidade de Deus", mais bela do que qualquer cidade dos Brancos.
Os maliiri da tradição profética, como os seus antepassados, afirmam
que ainda há uma hierarquia de saber e poder entre a sua tradição e a
religião católica, embora que estejam evidentemente misturadas. Pois,
segundo eles, imediatamente abaixo do mundo do Criador é o mundo do maliiri
primordial, seu irmão, uma divindade muito antiga chamada Dzuli, que é a
fonte de todo poder e saber xamânico. Esta divindade tem múltiplas
manifestações, uma das quais é um homem branco. Dzuli/Homem Branco, diz-se,
transmite instruções constantemente para o Papa em Roma através de
mensagens escritas em papel (devem ser os encíclicos) as quais, para os
Baniwa, são equivalentes à alma do Branco (para os Baniwa, a palavra
falada, não escrita, é o veículo para a transmissão espiritual). Assim,
para os maliiri da tradição profética, a fonte de todo poder spiritual
ainda é indígena, efetivamente invertendo a estrutura da hierarquia e poder
imposta neles pelos missionários e igreja católica.
Além disso, a tradição profética contem uma visão muito distinta sobre
este mundo e as qualidades positivas e negativas ('gente boa' ou 'gente
ruim') associadas aos diferentes níveis do cosmos. O tema é complexo demais
para apresentar aqui; basta dizer que a visão utópica dos profetas se
diferencia completamente da dos crentes, da mesma maneira que divergem as
suas visões sobre a natureza do mundo primordial e a sua salvação.
Concluindo, demais vezes, as coleções publicadas de mitos dizem pouco,
ou às vezes sequer mencionam qualquer coisa, sobre como os textos foram
colhidos, organizados, ou retrabalhados em peças literárias. Simplesmente
são apresentados ao público, prontos, com muita pouca discussão. Espero ter
mostrado como o processo de produzir a coleção de mitos baniwa envolveu
negociação dos textos em quase todas as suas etapas. Talvez a
característica mais marcante do projeto inteiro de produzir a coletânea foi
a sua natureza política. Desde o momento de recolher e gravar os textos, no
contexto político de repressão cultural e divisão interna entre os Baniwa;
até o momento de 'devolver' o material em forma acessível às comunidades
baniwa, cumprindo com o dever do antropólogo diante das expectativas
indígenas; até o momento de re-apresentar a coletânea ao público, no
contexto político de revitalização cultural e unificação interna – todos
eram momentos definidos pela política de identidades religiosas. Mitos,
enquanto expressões fundamentais de identidade, são intimamente vinculados
aos contextos políticos e interagem com eles; apresentar uma coleção de
mitos como se estivesse divorciada de seus contextos essencializa as
tradições, o que possa satisfazer alguns públicos, mas tem nada a ver com a
sua função.
Espero também ter mostrado como duas tradições distintas têm
desenvolvidas através da indigenização de, primeiro, o Catolicismo, através
das tradições proféticas mais antigas do século XIX, e segundo, através do
movimento evangélico, o qual em grande parte derivou-se da tradição
profética embora transformando-a em maneiras fundamentais. O livro
Waferinaipe Ianheke eu diria está mais na linha da tradição profética,
embora haja divergências que são parcialmente representadas entre os
narradores. Isto porque sempre fiz questão no campo de gravar mitos e
outras tradições tanto das comunidades católicas quanto evangélicas. Duas
tradições históricas distintas surgiram da mesma fonte essencial e
consolidaram-se através do tempo. Naturalmente, ambas as tradições deveriam
ser representadas em qualquer publicação referente às histórias de criação.

Gostaria também de mencionar um fato que tem infelizmente complicado
toda a questão de recuperar ou revitalizar as tradições, inclusive os
mitos, as práticas de cura dos especialistas, e mesmo as danças. É que,
como resultado do crescente interesse nos mitos e saber indígena pela
sociedade não-indígena, os velhos narradores percebem que eles podem
explorar o mercado para obter recursos financeiros às quais eles de outra
forma não teriam acesso. Assim, qualquer forasteiro que visita uma
comunidade e liga o seu gravador pedindo para um velho contar uma história,
agora tem que pagar um preço em dinheiro. E, dependendo da tradição – mito,
canto – o preço pode ser bem alto.
Justificar a pesquisa por dizer que vai produzir um livro só faz
sentido se os próprios indígenas tenham interesse em colocar as tradições
no papel. Raramente, explicam eles e com razão, os resultados da pesquisa
antropológica foram devolvidos às comunidades em alguma forma útil. Assim,
penso que a única maneira de reverter essa situação é, primeiro, proteger
todas as formas de saber religiosa indígena (inclusive o dos especialistas
religiosos, os mitos, cantos, e o dos que forjaram tradições cristãs
indígenas) através de leis nacionais e internacionais), e, segundo,
fornecer a capacitação e os recursos para que os próprios povos possam
conduzir a sua pesquisa sobre essas tradições se assim quiserem. A pesquisa
em colaboração com especialistas não-indígenas (antropólogos,
historiadores, ecólogos, botânicos, entre outros) também pode ser muito
útil. Obviamente, qualquer pesquisador deveria obter a autorização da
comunidade indígena ou – como acontece no Brasil hoje – de um Conselho
Nacional que emite parecer sobre todos os projetos de pesquisa entre os
grupos indígenas isolados.


BIBLIOGRAFIA
VÁRIOS. Waferinaipe Ianheke. A Sabedoria dos Nossos Antepassados. São
Gabriel da Cachoeira: ACIRA/FOIRN. Coleção Narradores Indígenas do Rio
Negro, volume 3. 1999.
UMUSI PÃRÕKUMU E TORÃMÃ KEHÍRI. Antes o Mundo Não Existia. São Gabriel
da Cachoeira: UNIRT/FOIRN. Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro,
volume 1. 1995.
WRIGHT, ROBIN. Cosmos, Self and History in Baniwa Religion. For Those
Unborn. Austin: University of Texas Press. 1998.
WRIGHT, ROBIN. História Indígena e do Indigenismo no Alto Rio Negro.
Campinas: Mercado de Letras. 2005.
-----------------------
[i] No final dos anos 80 início dos 90, desenvolveu-se um movimento
político e cultural da maior importância entre os povos indígenas do
Noroeste Amazônico. Não é um exagero dizer que este movimento, coordenado
pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – que atualmente tem
mais de 50 associações indígenas locais afiliadas a ela – transformou
profundamente a situação dos povos indígenas desta região. De uma
dependência quase total nos missionários e outros agentes de contato até os
anos 70, a uma autonomia e auto-determinação no século XXI.
Outro fator importante foi a substituição dos missionários evangélicos
americanos por brasileiros. Os missionários americanos nos anos 50 e 60
foram em grande medida responsáveis para os conflitos dentre e entre as
comunidades baniwa sobre questões de lealdade religiosa. Os evangélicos
criaram comunidades separatistas que, além de condenar os católicos, tinham
uma postura de evitar os Brancos em geral (menos os missionários e os
comerciantes). Com a criação da Federação e as associações locais, os
evangélicos inicialmente mantiveram a sua postura separatista, tratando o
novo movimento político como "algo dos católicos, coisa do CIMI." [o
Conselho Indigenista Missionário, associação de missionários mais
vinculados ao movimento indígena]. Com o advento de pastores evangélicos
brasileiros e a influência crescente do movimento político em geral na
região, o discurso separatista foi aos poucos substituído pelo
estabelecimento de uma relação relativamente pacífica entre católicos e
crentes, e a sua participação na criação de associações políticas locais.
Estas são compostas tanto por católicos quanto crentes, embora que algumas
associações bem-sucedidas estão completamente controladas por crentes e
outras por não-crentes, reproduzindo assim a antiga divisão religiosa. A
história dos conflitos religiosos deixou marcas indeléveis nas relações
atuais entre as diversas sub-regiões do povo Baniwa, e ainda há muitas
questões a serem trabalhadas.

[ii] As primeiras duas publicações de mitos eram dos Desana, da
família lingüística tukana, que representa um terço da população indígena
da região do Noroeste Amazônico. Para o povo Baniwa, de lingual aruak – que
representa uma parte importante da população total (cerca de 6 mil pessoas
só no lado brasileiro), até o ano de 1997, as únicas coleções de seus mitos
foram publicadas em alemão e inglês, inacessíveis aos Baniwa.
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