Da câmara no barraco à rede nacional: o Evento da Favela Naval

June 1, 2017 | Autor: Braulio Neves | Categoria: Discourse Analysis, Media Studies, Critical Discourse Studies, Journalism, Television Studies, Puppetry, Accountability, Political Science, Civic Journalism, Police, Civil Society and the Public Sphere, Image Analysis, Torture, Public Sphere, Critical Discourse Analysis, STS (Anthropology), Investigative Journalism, Political Discourse Analysis, News Media Ethics, Civic Engagement, Public sphere (Communication), Television, Authoritarianism, State Complicity in Torture, Police Accountability, Análisis del Discurso, Video Analysis, Mass media, Journalism Studies, science and technology studies (STS), Surveillance, personal data, social sorting, privacy, camera surveillance, identification systems, internet surveillance, biometrics, Amateur Film, Journalism And Mass communication, Public Sphere and Public Space, Controversy, Police use of force, Shadow Theatre, Democracy & citizen participation in the public sphere, Sousveillance, Newsmaking, News Production, Habermas public sphere, News Analysis, News ethics, STS/ANT, Telejournalism, Military Police, Puppetry, Accountability, Political Science, Civic Journalism, Police, Civil Society and the Public Sphere, Image Analysis, Torture, Public Sphere, Critical Discourse Analysis, STS (Anthropology), Investigative Journalism, Political Discourse Analysis, News Media Ethics, Civic Engagement, Public sphere (Communication), Television, Authoritarianism, State Complicity in Torture, Police Accountability, Análisis del Discurso, Video Analysis, Mass media, Journalism Studies, science and technology studies (STS), Surveillance, personal data, social sorting, privacy, camera surveillance, identification systems, internet surveillance, biometrics, Amateur Film, Journalism And Mass communication, Public Sphere and Public Space, Controversy, Police use of force, Shadow Theatre, Democracy & citizen participation in the public sphere, Sousveillance, Newsmaking, News Production, Habermas public sphere, News Analysis, News ethics, STS/ANT, Telejournalism, Military Police
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Bráulio de Britto Neves

Da Câmara no Barraco à Rede Nacional: O Evento da Favela Naval

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Bráulio de Britto Neves

Da Câmara no Barraco à Rede Nacional: O Evento da Favela Naval

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Comunicação Social. Área de concentração: Comunicação e Sociabilidade Contemporânea. Orientadora: Rousiley Celi Moreira Maia (Departamento de Comunicação Social - Universidade Federal de Minas Gerais)

Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG 2000

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À memória de:

Mário José Josino, vítima na cena de 6 de março de 1997, Joaquim Gomes Neves, meu avó radiotelegrafista e José Raimundo Martins Neves, meu pai, para sempre presente.

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AGRADECIMENTOS Esta pesquisa não teria sido realizada sem o apoio e a participação de muitas pessoas, em um número bem maior do que seria aqui possível enumerar. Algumas, contudo, foram mais imediatamente responsáveis e merecedoras da mais sincera gratidão: Meus pais, José Raimundo Martins Neves (recentemente falecido) e Pompéa Peret Britto da Rocha, que me concederam conhecer das delícias do aprendizado e das paixões da Universidade Pública. A Clip e Clipping Publicidade e Produções Ltda., de Brasília (DF), que forneceu, a partir de seu extenso arquivo de imagens de transmissões de telejornais, boa parte das gravações que constituíram o objeto empírico desta pesquisa. Anselmo Duprat, Cézar Augusto Sonega (diretor do Depto de Comunicação e Imprensa da Prefeitura Municipal de Diadema) e ao Prefeito de Diadema, sr. Gilson Corrêa de Menezes, que franquearam o acesso a seu arquivo de imagens, de onde também obtive uma parte significativa do material de análise. Anistia Internacional, nas pessoas de Eduardo (Escritório de São Paulo) e Fionna MacAuley (Londres), que gentilmente me enviaram uma cópia da fita que haviam recebido da TV Globo. Os alunos da disciplina "Projeto Especial I" de 1998 (Comunicação Social, Fafich, UFMG), que me possibilitaram o acesso à primeira parte do material de análise e com os quais passei pela primeira experiência de docência. A Dra. Rousiley Celi Moreira Maia, minha orientadora. A ela sou muito grato pelo apoio, atenção e generosidade. Esses agradecimentos devem ser estendidos à sua família, Dr. Elmo, Rafael e Gabriela, de cuja paciência temo ter abusado, pelas inúmeras visitas que lhes fiz, durante o período de minha orientação. Ao professor doutor Júlio Pinto, por ter-me mostrado, entre trocadilhos e koans semióticos, que não é preciso outro mundo para que este mundo seja sem fundo. Igualmente, agradeço à Dra. Maria Céres Pimenta Spínola Castro pelo exemplo de compromisso, político com a ciência e científico com a política. Obrigado, Dr. César Geraldo Guimarães, pelas conversas iluminadoras sobre indicialidade, temporalidade e teoria da narrativa.

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Você, pequena caixa que trouxe comigo Cuidando para que suas válvulas não se quebrassem Ao correr do barco ao trem, do trem ao abrigo Para ouvir o que meus inimigos falassem Junto ao meu leito, para minha dor atroz No fim da noite, de manhã bem cedo Lembrando as suas vitórias e o meu medo Prometa jamais perder a voz! Bertold Brecht, “Ao Pequeno Aparelho de Rádio”.

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SUMÁRIO Resumo

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Introdução: QVIS CVSTODIET CVSTODES ?

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1 — Esfera e Espaços, Cenas e Escândalos: Públicos

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1.1 — Esfera Pública e Espaços Públicos

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1.2 — Potenciais de Auto-Transformação da Esfera Pública: Os Atores Sociais e o 33 Princípio da Publicidade 1.3 — Um Espaço Público Intersemiótico.

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1.4 — O Ato Videográfico como Catalisador das Interações do Espaço

45

Público-Mediático. 2 — Concepção e Instrumental Metodológico

49

2.1 — Hipóteses

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2.2 — Material Empírico

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2.3 — Instrumental Analítico..

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3 — O Ator-Midiador 3.1 — Instabilidade e Demanda Interpretativa das Vídeo-Imagens

60 60

3.1.1 — Iconicidade e Indicialidade

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3.1.2 — “Grandes Esperanças”

67

3.1.3 — Dos Índices aos Acontecimentos: Demandas Interpretativas

74

3.1.4 — Atrás da Ocular 3.2 — Apropriação do enunciado inicial pelo Ator-midiador

85

3.2.1 — Referências Verbais à Gravação Inicial

93

3.2.2 — Produtor Camuflado, Produto Autônomo.

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3.2.3 — Continuidades Visuais

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3.2.4 — Teletopologias

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3.2.5 — Tempos Verbais e Audiovisuais

101

3.2.6 — De Indícios a Emblemas

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3.2.7 —Bocas Fechadas, Vistas Grossas

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3.3 — Telenarratários

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4 —O Ator-Polícia

116

4.1 — O Ator-Polícia enquanto Actante na Narrativa do EFN

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4.2 — Narrando o Escandaloso segundo os Parâmetros do Rotineiro

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4.3 — “Procedimentos Cabíveis”: O Dever de Conhecer e a Simulação do 139 Desconhecimento 4.4 — Os anéis pelos dedos na cadeia de comando

154

4.5 — Contranarrativa: “armação dos traficantes”

159

4.6 — Véus, paisanas, cordões de isolamento, chicanas jurídicas e o silêncio.

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5 —O Ator Sociedade Civil 5.1 — Vítimas-denunciantes 5.1.1 — Denúncias primárias I: Indivíduos agredidos

178 178 172

A — Vítimas-denunciantes iniciais: Jefferson Caputi e Antônio Carlos 182 Dias B – Outras vítimas-denunciantes da PMSP, coligidas pelas reportagens. 5.1.2 — Enunciados Derivados I: Vítimas-denunciantes não testemunhais

188 192

A — Sílvio Lemos, vítima-denunciante mediático à própria revelia.

192

B — Famílias Destruídas, Pedidos de Justiça, Desejo de Vingança.

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5.1.3 — Vídeodenúncias Primárias I: O Anonimato e a “Câmera Cândida” como 204 Estratégias de Enunciação das Comunidades Agredidas 5.1.4 — Enunciados Derivados II: As Comunidades de Moradores de Periferias 204 Urbanas, Submetidas à Violência Policial A —As comunidades de periferia agredidas aproveitam a visibilidade e a legitimidade adiquiridas através das equipes de reportagem.

218

B — As Demonstrações Coletivas Públicas: Do Linchamento ao Hip-Hop, 221 passando por um “Ato Público pela paz e contra a impunidade” 5.2 — Organizações da Sociedade Civil.

242

5.2.1 — O Ministério Público

242

5.2.2 — Duas NGOs, Nenhuma ONG

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Considerações Finais

252

Referências Bibliográficas

261

ABREVIATURAS E CONVENÇÕES DE APRESENTAÇÃO DAS TRANSCRIÇÕES DOS TELEJORNAIS Para facilitar a referência às emissões televisivas examinadas nesse trabalho, cada trecho dos telejornais apresentado ao longo desse texto foi reproduzido e identificado segundo a seguinte convenção: Sigla +dia/seqüência: (Enunciador/regime[sinc/off /pseudosinc]): "enunciado " #número Onde... –"Sigla" são as abreviaturas usadas para identificar os programas noticiosos*: Programa 190 Urgente

Telejornal local (policial), exibido aproximadamente às 18h

Acontece

Telejornal local paulista, exibido na Rede Bandeirantes de TV às 12h

Aqui Agora

Telejornal local (policial), exibido no SBT aproximadamente às 18h

Bom Dia São Paulo Cidade Alerta Cinco Minutos Edição da Tarde Fantástico Informe SP Jornal da Band Jornal da Cultura Jornal da Globo Jornal da Manchete Jornal da Noite *

Características

Telejornal local paulista, exibido na Rede Globo de TV às 7h Telejornal local (policial), exibido aproximadamente às 18h Telejornal de abrangência nacional, exibido na Globonews (TV por assinatura) Telejornal de abrangência nacional, exibido na TV Manchete às 14h Programa de variedades nacional, exibido na Rede Globo de TV aos domingos, a partir das 20h Telejornal local, exibido aproximadamente às 19h Telejornal de abrangência nacional, exibido na Rede Bandeirantes de TV às 20h Telejornal de abrangência nacional, exibido na TV Cultura de São Paulo às 20h (aproximadamente) Telejornal de abrangência nacional, exibido na Rede Globo de TV 23h Telejornal de abrangência nacional, exibido na TV Manchete às 21h Telejornal de abrangência nacional, exibido na Bandeirantes às 23h

Estão grafadas em cinza aqueles programas não incorporados em nossas análises.

sigla 19U Aco AqA BDi CAl CMi EdT Fan ISP JBa JCu JGl JMa JNo

Jornal das Dez

Telejornal local paulista, exibido no canal 21 (TV por assinatura) às 22h

Jornal Meio-Dia

Telejornal local paulista, exibido no canal 21 (TV por assinatura) às 12h

Jornal Nacional

Telejornal de abrangência nacional, exibido na Rede Globo de TV às 20h Telejornal local exibido no canal 21 (TV por assinatura), horário desconhecido Programa noticioso e de entrevistas, exibido na TV Cultura de São Paulo às 21h30 (aprox.)

Jornal SP Opinião Nacional SPTV TJ Brasil – Noite

Telejornal local paulista, exibido na Rede Globo de TV às 19h Telejornal de abrangência nacional, exibido no SBT às 21h

JDe JMD JNa JSP OpN SPT TJB

–"dia" marca o número do dia do programa em relação à primeira transmissão pertinente ao conjunto textual examinado. Por exemplo, a edição do Jornal Nacional de 31 de março de 1997 (a primeira) é grafada como JNa0; a do Jornal da Band de 3 de abril, JBa3. – "seqüência": O critério utilizado para agrupar as seqüências foi principalmente a unidade de cada enunciação videográfico-televisiva, associada a uma certa situação de gravação, um lugar, a um enunciador (ou enunciadores) e/ou a um conjunto determinado de ações. –"Enunciador" é o sujeito cujo pronunciamento foi ou transmitido em directo ou registrado e reproduzido no telejornal. –"regime" é o tipo de associação entre o som e a imagem do enunciador: sinc indica que a voz está sincronizada a imagem do enunciador; off indica a locução é superposta à imagem; pseudosinc refere-se às vozes superpostas às imagens criando a impressão de estarem sincronizadas. –"enunciado" é a proposição emitida pelo enunciador, com todas as vacilações e erros que possa conter. "" anota os sons que acompanham a seqüência. –"#número" Remete às imagens coligidas no Anexo I ("Imagens Televisivas"). A inclusão das imagens busca aumentar a clareza das inferências desta pesquisa sobre as construções audiovisuais dos programas analisados, relacionadas às estratégias de enunciação pública dos emissores ligados aos telejornais (Capítulo 4: O Ator-Midiador). As referências às imagens aparecem tanto nas transcrições quanto no corpo do texto.

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RESUMO Neste trabalho, faz-se a reconstrução de um “escândalo” mediático desencadeado a partir da divulgação, pelos telejornais brasileiros, no início de 1997, de imagens em vídeo que documentavam brutalidades cometidas pela polícia militar na periferia da Grande São Paulo (na “Favela Naval” de Diadema). Este estudo aborda, numa perspectiva pragmática, algumas implicações do uso das vídeo-imagens para o funcionamento da esfera pública contemporânea. Essa esfera é concebida como uma rede na qual se interconectam diversos contextos comunicativos públicos (espaços públicos). Conforme essa concepção, pode-se dizer que o discurso público tende a assumir as feições de um “hipertexto”, que seria constituído pelo entrelaçamento entre as enunciações de atores sociais e políticos. A partir dos textos dos telejornais transmitidos nas duas semanas posteriores à primeira denúncia, investigou-se o modo pelo qual o uso público das vídeo-imagens ocasionou a formação de um contexto comunicativo nos espaços público-mediáticos e como as interações dos diversos atores foram “catalisadas” em torno de temas determinados. A análise dos textos foi feita mediante o agrupamento dos enunciados em três perspectivas de interpretação: a dos interlocutores associados aos telejornais (“ator-midiador”), a da corporação policial-militar paulista (“ator-polícia”) e a dos sujeitos pertinentes à sociedade civil, organizada e não organizada (“ator sociedade civil”). O exame dos procedimentos de aparição pública e das características narrativas das enunciações, emersas nos telejornais, permitiu discernir algumas tendências de interpretação e formas de intervenção pública peculiares a cada um desses “atores”. O progressivo entretecimento das suas interpretações mostra como o processo social de atribuição de sentido às vídeo-imagens conformou a discussão sobre temas como violência policial, Direitos Humanos e cidadania e conduziu à críticas ao funcionamento de diversas instituições oficiais brasileiras.

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INTRODUÇÃO: QVIS

CVSTODIET CVSTODES?1

(Apresentador/sinc): "Imagens estarrecedoras! Exclusivas do Jornal Nacional!..." (Apresentadora/sinc→off): "A PM de São Paulo tortura, assalta e mata em batidas policiais!" [#1]

Assim começa a edição de 31 de março de 1997 do Jornal Nacional (JNa) da Rede Globo de Televisão. Exibia-se, após uma série de advertências, auto-elogios e indignações editoriais, uma seqüência de imagens inusitada na televisão brasileira. Um grupo de policiais aparecia promovendo o que deveria ser "operação" de repressão ao narcotráfico, na obscura "Favela Naval", periferia da Grande São Paulo. Ao longo da reportagem, são relatados e fartamente ilustrados os rumos das "batidas" policiais: em três noites diferentes, apareciam policiais militares paulistas a humilhar e espancar cidadãos comuns (que não ofereciam resistência), chegando a matar um homem. Segundo a reportagem, o registro da "operação policial" em vídeo teria sido obra de um "cinegrafista amador" não identificado. A denúncia dos crimes policiais da Favela Naval escandalizou os telespectadores e a opinião pública nacional. De imediato, destacam-se algumas diferenças entre as vídeo-imagens da “Fita da Favela Naval” (FFN) e aquelas comumente exibidas nos telejornais: data e hora marcadas no canto das imagens, baixa definição e muito granuladas, devido à precária iluminação do local, tomadas a partir de um ponto de vista situado fora do espaço imediato das ações e, aparentemente, registradas sem o conhecimento dos policiais e das vítimas. Contudo, a estabilidade dos planos e a objetividade das mudanças de enquadramento traduzem a habilidade e a possível experiência profissional do cinegrafista, contradizendo o texto da reportagem. O escândalo decorrente da divulgação dessas imagens esconde algo de paradoxal, pois a pungência que lhes é atribuída não resulta exatamente de uma surpresa. A brutalidade policial urbana não é absolutamente um fato desconhecido nas ruas ou raro no "jornalismo policial": é uma prática corrente de parte das forças brasileiras de segurança pública, relatada, com freqüência, pelos veículos de comunicação. A novidade, de fato, é que essas ações tenham 1

“...é a questão que os escritores políticos de todos os tempos... puseram como questão última de toda teoria do Estado: ‘Quem vigia o vigilante?’...A resposta habitual consiste em pressupor um vigilante superior, do qual se chega necessariamente... ao vigilante não vigiado, pois não existe nenhum vigilante superior acima dele. Mas quem é este vigilante não vigiado?” (BOBBIO, 1986. p. 99.). Esse autor faz, em seguida, referência à solução “democrática” consubstanciada no panóptico de Jeremy Bentham: “... O prisioneiro é o não vidente visível, o vigilante é o vidente visível, o povo completa a escala enquanto vidente não visto a não ser por si mesmo e que é, portanto, com respeito aos outros, invisível. O vidente invisível é ainda uma vez o soberano.” (Idem).

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sido registradas e reproduzidas nos mínimos detalhes, na televisão aberta, em rede nacional e no horário nobre, "para todos os lares do país", provocando enorme comoção pública. A quase totalidade dos noticiários brasileiros relataram, durante várias semanas os desdobramentos dessa denúncia inicial. Quase que imediatamente, pôs-se em questão a legitimidade dos procedimentos "normais" então adotados para a apuração dos crimes pela corporação policial-militar, pelo governo paulista e pelas autoridades judiciárias. Logo depois, a intervenção de várias instituições públicas, com a participação de equipes de reportagem de inúmeros veículos de comunicação, revelou outras irregularidades existentes na Polícia Militar paulista. Ao longo dos dias, foram sendo trazidas a público denúncias de crimes policiais ocorridos em outros lugares e momentos, ocorrências que se iam associando em uma severa crítica, por parte da sociedade civil e da mídia, ao funcionamento das Polícias Militares brasileiras. Logo após sua primeira exibição no JNa, as vídeo-imagens denunciadoras foram propagadas para os telejornais de outras emissoras brasileiras e estrangeiras. O "caso Diadema" tornou-se uma pauta obrigatória nos noticiários dos meios de comunicação de massa,2 provocando intensa repercussão em toda a mídia. Ao se disseminarem pelos veículos de comunicação, as imagens registradas na Favela Naval foram sendo associadas a enunciados provenientes das mais diversas fontes: depoimentos de testemunhas e de vítimas dos crimes, declarações de populares, pronunciamentos de autoridades executivas, judiciais e parlamentares, comentários de advogados e juristas, de policiais etc. Uma parcela significativa dos atores políticos e sociais brasileiros passou a debater, nas mídias massivas, sobre os sentidos a serem atribuídos àquelas imagens. Durante essa produção discursiva, coletiva e pública, novos acontecimentos foram sendo produzidos, outros fatos "obscuros" foram sendo revelados. A detalhada cobertura noticiosa dada às deliberações parlamentares e ao processo judicial instaurados a partir da denúncia inicial, muito rara na imprensa brasileira, demonstra a relevância pública que lhe foi atribuída. No decorrer da cobertura desse caso, destaca-se a grande visibilidade dada ao debate e à promulgação de leis relacionadas aos direitos humanos, à redefinição das atribuições da Justiça militar e à discussão acerca do papel da polícia na 2

O Ombudsman da Folha de S.Paulo reproduziu várias mensagens que reclamavam da não inclusão da notícia dos crimes da Favela Naval na edição do dia seguinte à denúncia do Jornal Nacional, afirmando que "a reação de alguns leitores mostrava perplexidade, como quem se sente abandonado por um jornal que chegou ao que é por nunca se ausentar na hora da revolta frente à grave situação social brasileira". (SANTOS. Terror na favela e timidez na Redação. Folha de S.Paulo, p. 1-6, 6 abr. 1997, Seção Ombudsman.)

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sociedade brasileira. Com a convergência das atenções públicas para os assuntos associados ao "caso Diadema", a tramitação dos projetos de lei e a tomada de decisões judiciais sobre esses temas foram significativamente aceleradas. Essa dinâmica resultou na aprovação (com emendas) de leis em um período bem mais curto do que seria esperado pelos partidos de esquerda e organizações autônomas da sociedade civil, habituais propugnadores dos direitos humanos. Antes de compor o arcabouço teórico desta investigação e de apresentar as análises dos enunciados telejornalísticos que constituem seu objeto empírico, é preciso reconstruir o contexto desse objeto: o "Evento da Favela Naval" (EFN). A história recente da instituição policial-militar brasileira será brevemente retomada, para que possam ser discutidos alguns aspectos dos sentidos atribuídos à violência policial na sociedade brasileira e de sua representação no telejornalismo atual. Essa contextualização permitirá examinar os discursos públicos pertinentes ao EFN e suas relações com temas como violência policial e Direitos Humanos, entre outros.

As Polícias Militares sob suspeita

Um dos tópicos mais tematizados, a partir das denúncias dos crimes em Diadema — ao qual, como será visto, se acrescentaram denúncias provenientes das mais diversas localidades brasileiras — foi a questão do privilégio, gozado pelos policiais militares, de terem seus crimes investigados e julgados por instituições pertencentes às corporações policiais-militares. A suspeita de corporativismo, levantada por quase todos os veículos de comunicação e por boa parte dos interlocutores da sociedade civil, durante o EFN, foi reforçada pela rememoração pública dos diversos episódios de violências policiais que permaneceram impunes, ou, na percepção dessas vozes críticas, judicialmente processadas de modo insatisfatório. As objeções dirigidas à atuação e ao próprio modelo policial brasileiro incidiram sobre uma realidade institucional historicamente sedimentada, que nem sempre é colocada sob o julgamento da sociedade civil brasileira, de modo tão incisivo. As polícias nacionais, cuja organização enquanto instituições pertencentes ao Estado remonta ao modelo "francês" de

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polícia, e cujos padrões operacionais são herdados da sociedade escravista, tiveram no período da ditadura militar seu caráter repressivo e discricionário fortemente acentuado. 3 Para criar um instrumento de controle social capaz de enfrentar as "rebeldias individuais e coletivas" dos trabalhadores e o "inimigo

interno", a guerrilha urbana de esquerda, a

militarização e a politização das polícias brasileiras foram, naquela época, levadas ao paroxismo. Mesmo com o desaparecimento da dissidência armada e depois de formalmente encerrado o período de exceção, as PMs mantiveram a organização militar e os privilégios da jus interna corporis.4 Setores oriundos da repressão política permaneceram recorrendo aos procedimentos de ocultamento de ações ilegais e violentas, dirigidas contra o "inimigo" que agora é identificado com o criminoso comum. Alguns autores sustentam que as práticas espúrias da repressão política acabaram por impregnar a cultura profissional da parte mais violenta da corporação policial.5 Os resultados da "guerra contra o crime" e da impunidade oficiosa dos policiais violentos são duvidosos em termos da redução das taxas de criminalidade,6 mas inequívocos quanto ao desrespeito aos Direitos Humanos.7 Entre a 3

Diversos autores têm apontado que essas características são constantes históricas das polícias no Brasil; sua militarização, de fato, foi iniciada na Primeira República (PINHEIRO, 1982. p. 58.) e reforçada durante a ditadura do Estado Novo. (CANCELLI, citado por TAVARES DOS SANTOS. A arma e a flor; formação da organização policial, consenso e violência. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. n. 9(1), p.162, mai. de 1997.). Cf. também TAVARES DOS SANTOS. Idem, p. 156-60; BRETAS. Observações sobre a falência dos modelos policiais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n.9(1), p. 80-1 e 83-4, mai. de 1997; KANT DE LIMA, Polícia e exclusão na cultura judiciária. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n.9(1), p.181, mai. de 1997; DAMATTA, 1982. p. 35-43; PAIXÃO & BEATO, Crimes, vítimas e policiais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), p. 233, mai. de 1997. 4

Em 1969 o decreto-lei n°667 centralizou e transferiu o controle das polícias (doravante militares) dos governos estaduais para a coordenação da a Inspetoria Geral das Polícias Militares, órgão do Estado-Maior do Exército. Com o "pacote de abril" de 1977 e as subseqüentes interpretações do Superior Tribunal Federal, instituiu-se a Justiça Militar como a única instituição responsável pelo julgamento de policiais militares. Confundiram-se de vez violência policial e violência político-repressiva e, na prática, eliminavam-se quase por completo os direitos civis de que disporiam as classes populares e os criminosos "comuns". (BICUDO, 1983. p. 245; CARDOSO & GARCIA O inimigo é o povo ou a polícia? Entrevista com o sargento Francisco Jesus da Paz. Lua Nova, São Paulo, v. 2, n.3, out.-dez. 1995, p.43-4.) 5

É relatado que antigos membros das polícias civil e militar, associados à repressão política e à tortura, continuaram em suas funções públicas, chegando a ocupar cargos de chefia no interior das organizações policiais (PINHEIRO, 1986. p. 143-4). Em junho de 1999, se não fosse o protesto de organizações de defesa dos Direitos Humanos, um ex-torturador estaria chefiando a Polícia Federal, por indicação do Governo Federal. Segundo Barcellos (1993. p. 69-72), alguns agentes da "guerra suja" formariam uma minoria, que, privilegiada dentro das polícias, matava impunemente. 6

Como vem sendo reconhecido, a estratégia militar de ocupação de território (daí o termo "operação policial") é incapaz de dar conta da criminalidade urbana, que é dispersa e se origina de fontes não previamente identificáveis. (CARDOSO & GARCIA O inimigo é o povo ou a polícia? Entrevista com o sargento Francisco Jesus da Paz. Lua Nova, São Paulo, v. 2, n.3, out.-dez. 1995, p. 40; cf. também BARCELLOS, 1993. p. 126.) 7

Na visão de vários autores, o resultado da "guerra contra o crime" tem sido "o aumento da escalada da violência no crime e na repressão, com o agravante das tendências ao 'vigilantismo', ao enquadramento autoritário da sociedade, e ao aumento do número de mortes." (PINHEIRO, 1982. p. 88). Cf. também SOARES, 1993, p. 267-272;

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"abertura democrática" brasileira e a boa parte da "Nova República", a violência policial ilegítima (e impune) tomou proporções de uma guerra convencional: segundo levantamento feito por Caco Barcellos,8 entre 1975 e 1992, a ROTA (grupamento da PM paulista) matou de sete mil e quinhentas a oito mil pessoas, das quais 65% jamais tiveram qualquer antecedente criminal. Ao longo do EFN, foram trazidos às atenções públicas diversos procedimentos de ocultamento de ações ilegais, herdados dos órgãos de repressão política, tais como: a falsificação de documentos legais, a ocultação de evidências incriminadoras, a negligência criminosa na busca de indícios, a desqualificação dos testemunhos das vítimas, a exposição e a intimidação das testemunhas, entre outros.9 No contexto do EFN, práticas como essas foram explicitamente referidas, por diversos atores sociais, como métodos corporativistas para o acobertamento dos crimes policiais. A legitimidade dos procedimentos institucionais de investigação, das corporações policiais e da Justiça Criminal brasileira, foram duramente questionadas, com base nos depoimentos e nas evidências trazidas por vítimas, testemunhas e pelos meios de comunicação. Esses interlocutores defenderam o fim dos privilégios judiciários dos policiais militares, por considerarem que tais prerrogativas tornariam impossível o controle democrático efetivo sobre as polícias, propondo a desmilitarização e mesmo a extinção das PMs. Demandas como essas impuseram ao Congresso Nacional brasileiro a necessidade de modificações da legislação, pois, embora a Constituição de 1988 tenha garantido formalmente os direitos civis frente o poder do Estado, até aquele momento poucos dispositivos legais de controle democrático das polícias haviam sido implantados: o privilégio da justiça corporativa permanecia, o crime de tortura não havia sido definido na legislação ordinária, como não haviam sido formalmente regulamentadas as ouvidorias de polícia, existentes em apenas dois estados federados (Minas Gerais e São Paulo). Sob o efeito da comoção pública, gerada pela avalanche de notícias de novos casos e de retomadas de episódios anteriores de brutalidade policial, os legisladores foram céleres em promulgar algumas leis que efetivaram preceitos constitucionais ligados aos Direitos Humanos, leis cuja tramitação vinha se arrastando no RONDELLI, s/d: 2-3. 8

BARCELLOS, 1993. p. 129, 257-8.

9

PINHEIRO, 1982. p. 64-86.

16

Congresso, como é o caso da lei que define o crime de tortura, votada em 1997 a partir do escândalo dos crimes de policiais em Diadema.10 A vigilância sobre os instrumentos de coerção física e controle social é um tema bastante antigo para o pensamento político. No aspecto normativo dessa questão, diz-se que no Estado Democrático de direito as instituições policiais deveriam operar segundo o princípio democrático de "Ordem sob a Lei". Esse princípio ofereceria uma formulação apropriada para tratar a questão do uso da coerção física enquanto instrumento para mediação de conflitos. 11 Retirada do domínio do cidadão comum, o emprego legítimo da força física é reservado às instituições e pessoas ligadas ao Estado, mais exatamente, ao sistema de Justiça criminal. Por sua vez, os agentes do Estado seriam submetidos aos controles democráticos. No Estado de direito, portanto, o uso legítimo da violência nos procedimentos de policiamento seria limitado pelas "regras do due process of law".12 Tomando o aspecto operacional do trabalho de detecção de crimes e captura de criminosos, deve-se considerar que a atividade policial é pouco passível de coordenação por regras preestabelecidas. O "arcabouço jurídico formal", que serve para impor os limites necessários para que a ação discricionária policial permaneça sendo um instrumento de defesa dos direitos individuais, não é, contudo, capaz de recomendar o curso das ações policiais.13 Como o trabalho de investigação criminal é "uma atividade profissional... altamente discricionária... que, para ser adequadamente realizada, exige um grande grau de autonomia e iniciativa", 14 a 10

O editorial da Folha comenta o possível oportunismo da ação dos legisladores, na aprovação (em 3 de abril de 1997) pelo Senado Federal do projeto de lei que tipifica os crimes de tortura e estabelece punições mais rigorosas para os que praticarem esse hediondo delito, de triste memória na história recente do país: "Por mais alvissareira que possa ser considerada a aprovação desse projeto de lei pelos senadores, é praticamente inevitável associá-la à execrável seqüência de crimes praticados por PMs em Diadema, na Grande São Paulo, que vieram a domínio público na semana passada. Na verdade, há apenas poucos dias, esse projeto sobre tortura, que tramita no Congresso desde 1994, não havia sido nem sequer analisado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. As atrocidades registradas recentemente em Diadema serviram, ao que tudo indica, para que os parlamentares se dessem conta da inadiável necessidade de haver dispositivos legais que punam com maior severidade esses crimes. (...)" (Editorial. Folha de S. Paulo 7 de abril de 1997. Seção Editorial. A reboque da Tragédia. p.: 1-2. Seção: Opinião). Cf. também HUMAN RIGHTS WATCH, 1997. 11

Conforme Paixão e Beato, a "dupla domesticação" (dos criminosos e dos agentes do Estado) é uma tarefa é paradoxal: as definições de "ordem" e de "lei" referem-se a diferentes dimensões de justiça, substantiva (Ordem), mas é formal (Lei). (PAIXÃO & BEATO, Crimes, vítimas e policiais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. p. 235-6.) 12

Cf. BOBBIO, 1986. p. 99.

13

PAIXÃO, Segurança privada, direitos humanos e democracia. 131-141. 14

IANNI E IANNI, citado por BEATO, 1999. p. 11.

Novos Estudos CEBRAP, n.31, out. 1991. p.

17

atividade do policial se apóia necessariamente em "uma boa dose de senso prático" e na transmissão do conhecimento acumulado por profissionais mais experientes. 15 Em outros termos, trata-se de um ofício sustentado por um conhecimento venatório. 16 Ora, o que mais falta à prática policial no Brasil é a aplicação desse princípio venatório. Ao identificar em todo cidadão um inimigo em potencial, o policial "já sabe", pelos traços aparentes de determinado "elemento", que ele é "suspeito". Há nesse "saber automático" uma perversão autoritária da idéia de "tino policial" e do conceito de "ação discricionária".17 As características das vítimas e dos crimes policiais cometidos em Diadema e denunciados nos telejornais correspondem aos traços das vítimas e às circunstâncias típicas dos crimes policiais no Brasil: seu alvo padrão são homens na faixa dos vinte anos de idade, negros ou pardos, pobres, migrantes nordestinos, em geral trabalhadores não-especializados, cuja renda mensal não chega a 100 dólares, que moram na periferia das grandes cidades e são pouco instruídos (geralmente, primeiro grau incompleto).18 Para o criminalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni,19 tais traços definem o sujeito com "cara de prontuário", que é o alvo preferido do aparelho repressivo estatal:

É aquele que —só por pertencer a determinada classe ou minoria, ou por enquadrar-se em um estereótipo — torna-se vulnerável à ação do sistema repressivo penal. Ou seja, não precisa praticar nenhum delito para ser suspeito. Basta existir e estar na rua. (...) a pessoa em estado de vulnerabilidade é aquela que o sistema penal seleciona e usa para justificar o seu exercício de poder. E o estado de vulnerabilidade decorre ou da simples condição social ou biótipo, ou do comportamento pessoal em tornar-se vulnerável pela prática de crime. (...) Para 15

Tal como o trabalho de médicos ou e cientistas (BEATO, 1999. p. 11). O princípio venatório caracteriza-se por um absoluto cuidado na exploração minuciosa de todas as possíveis pistas sobre uma ocorrência, antes de avançar hipóteses e sem se deixar impressionar pelos indícios aparentemente extraordinários. A falta de atenção a detalhes aparentemente "insignificantes" e "óbvios" conduz o investigador a inconscientemente "torcer os fatos" para encaixá-los em hipóteses apressadas. (GUINZBURG, 1989.; SEBEOK & UMIKER-SEBEOK, 1991. p 28-30.). 17 Segundo Muniz Sodré, essa seria a típica operação do pensamento totalitário que, "em um passe de imagem", pretende saber tudo sobre o outro "diferente", para em seguida exilá-lo "legitimamente" fora do mundo dos "iguais". Cf. NAGIB, A Imagem do Negro. Imagens n°4, abril de 1995. p. 114a-116a. (Participação de MUNIZ SODRÉ no seminário promovido pela Folha de São Paulo e pela Imagens em 21 de dezembro de 1994) 18 BARCELLOS 1993. p. 75, 130; Especial para a Folha. 'Cara de Prontuário' é Alvo Constante. Folha de S. Paulo, 6 de abril de 1997. p. 3-2. Editoria: Cotidiano; CARDOSO & GARCIA O inimigo é o povo ou a polícia? Entrevista com o sargento Francisco Jesus da Paz. Lua Nova, São Paulo, v. 2, n.3, out.-dez. 1995, p. 40b-41a; DA SILVA, Representação e ação dos operadores do sistema penal no Rio de Janeiro Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), 1997. 16

19

O jornal Folha de S. Paulo se refere ao livro "En Busca de las Penas Perdidas", de Zaffaroni, no qual se elabora a "teoria da vulnerabilidade". (Especial para a Folha. 'Cara de Prontuário' é alvo constante. Folha de S. Paulo, 6 de abril de 1997. p. 3-2. Editoria: Cotidiano)

18 Zaffaroni, pessoas poderosas, bem vestidas, têm alto grau de invulnerabilidade ao aparelho repressivo penal. Precisariam esforçar-se muito (praticar muitos crimes) para entrarem no sistema. (...) Isso significa que o sistema penal é seletivo e discriminatório, porque seleciona em especial os pobres e/ou pretos ou mulatos. 20

E, como assinala a Folha de S. Paulo,

...na Favela Naval, as pessoas encaixam-se no perfil definido pelo especialista argentino. São pobres. Não sabem ao certo o que é cidadania. Vivem em um lugar marginalizado, onde o Estado é praticamente ausente. O papel do Estado é preenchido por bandidos. A polícia não coíbe a ação criminosa e aterroriza os moradores. Eles não protestam por temerem uma reação ainda mais violenta. 21

Não restam dúvidas, portanto, de que as ocorrências denunciadas nos telejornais são representativas de uma situação-limite vivida por uma parcela significativa dos cidadãos brasileiros pobres. Devemos também considerar o significado do "escândalo", no plano das condições de trabalho dos policiais brasileiros. Sabe-se que, apesar de produzir "a verdade que menos vale" no sistema judiciário criminal,22 o policial brasileiro detém um "enorme poder", pois é ele que decide quem ingressa ou não nos processos judiciários.23 Às tensões resultantes desse paradoxo, somam-se os conflitos internos às corporações policiais militares: os policiais dos níveis hierárquicos inferiores (colocados na "linha de frente" da "guerra contra o crime") são marginalizados e submetidos a condições de trabalho muito adversas, 24 trabalhando "sempre na margem da vida, ou no limite da norma social, exercendo um poder de modo próximo ao excesso".25 No EFN, essas contradições da atividade policial, implícitas no conjunto dos

20

Especial para a Folha. 'Cara de Prontuário' é Alvo Constante. Folha de S. Paulo, 6 de abril de 1997. p. 3-2. Editoria: Cotidiano. 21

Especial para a Folha. 'Cara de prontuário' é Alvo Constante. Folha de S. Paulo, 6 de abril de 1997. p. 3-2. Editoria: Cotidiano. 22

KANT DE LIMA, Polícia e exclusão na cultura judiciária. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n.9(1), mai. de 1997. p. 182. Cf. também OLIVEIRA. A polícia e o mito da paz. Folha de S. Paulo, 27 de dezembro de 1997. p. 32. Editoria: Cotidiano 23 24

Beato, op. cit.: 12;

KANT DE LIMA, Polícia e exclusão na cultura judiciária. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n.9(1), mai. de 1997; CARDOSO & GARCIA. ‘O Inimigo é o povo ou a polícia?’ Entrevista com o sargento Francisco Jesus da Paz. Lua Nova n.? data?.p. 41-3; CASOY, 1986. p. 154; TAUTZ. O delegado dos excluídos. Entrevista com Hélio Luz. Caros Amigos, Ano 1, n.19, out. 1998. p. 34b; BEATO, 1999. p. 10-12).

19

discursos de emissores ligados à polícia, foram abertamente tematizadas pelos policiais agressores, que, através delas, tentaram justificar os abusos de poder de que foram acusados.

Plano e Contraplano do Evento da Favela Naval

Utilizou-se, para a designação das vídeo-imagens da FFN, uma terminologia que visa acompanhar suas mudanças de estatuto, associadas ao seu deslocamento entre diferentes contextos comunicativos. Ocorrência é o happening (ou “fenômeno”) que inicialmente é acessível apenas à experiência local dos sujeitos envolvidos. O Acontecimento é o relato público da ocorrência ou a ocorrência já tomada publicamente como um fato. Nessa condição, a ocorrência tende a se autonomizar em relação às condições locais de sua origem, pela mediação de matrizes cognitivo-narrativas que permitem sua circulação pública. O Evento ou acontecimento reflexivo é configurado quando os discursos públicos transbordam a função meramente descritiva de representação das ocorrências, interpretando-a reflexivamente. No evento mediático, cada novo enunciado redefine o sentido dos acontecimentos e enunciados precedentes, ao mesmo tempo que se torna disponível para interpretações subseqüentes.26 Para compreender o que torna as vídeo-imagens da FFN e sua entrada e permanência na esfera pública singulares, é preciso compreender questões mais gerais relacionadas à representação mediática dos direitos humanos, da violência urbana e da brutalidade policial. O tratamento dedicado pela mídia ao relato dos desdobramentos dos crimes cometidos em Diadema parece ter constituído uma exceção quanto à abordagem mediática tipicamente adotada para ocorrências desse tipo. A perspectiva predominante no discurso da grande imprensa brasileira sobre a violência urbana e a brutalidade policial tem sido conformada à "concepção popular de justiça". "Pobre, criminoso, perigoso": é assim que, em 1983, Alba Zaluar caracteriza a imagem preconceituosa que se faz dos moradores de bairros periféricos dos grandes centros urbanos brasileiros. Uma parte não desprezível das representações colocadas em circulação nos 25

TAVARES DOS SANTOS. A arma e a flor; formação da organização policial, consenso e violência. Social; Rev. Sociol. USP, S. n. 9(1), mai. de 1997.p. 161-2. 26

Tempo

Esses termos foram elaborados a partir os trabalhos de Molotch & Lester (1993), Mouillaud (1997) e da apresentação da semiótica peirceana feita por Pinto (1993).

20

espaços público-mediáticos vêm reforçar a discriminação social e legitimar a brutalidade policial contra a população marginalizada:

...por que esse intenso e incansável interesse pela violência e suas manifestações nas classes populares urbanas por parte dos meios de comunicação de massas? Ou, por que a noção das classes perigosas suplantou em certos setores da opinião pública a noção de classes trabalhadoras justamente agora quando o processo político do país passa a ser caracterizado por uma abertura? 27

Com a "redemocratização" brasileira, abriram-se espaços para o debate sobre os direitos à cidadania das classes populares urbanas. Com isso, o apartheid social e a polícia africaner 28 brasileiros passaram a necessitar de legitimação frente à opinião pública. A violência simbólica de parte do discurso mediático responde a tal demanda:

O espelho pobre-criminoso-perigoso veio a calhar. Por meio dele cria-se a ilusão do irrecuperável, do inútil, do nocivo socialmente, que tem que ser contido através da manutenção de um aparato policial sempre presente, vigilante, rápido e implacável na reafirmação dos limites rígidos impostos às classes populares urbanas no Brasil de hoje.29

A mídia brasileira tende a produzir uma representação epifenomenal da violência urbana: mostra apenas o resultado imediato dos atos criminosos e raramente "cobrem" seus desdobramentos judiciários. Essa representação fragmentada da violência urbana e da brutalidade policial dificulta a condensação desses fenômenos em um conjunto passível de problematização abrangente e gera apenas uma sensação difusa de pânico pela sobreexposição às imagens de violência.30 Além disso, a visualização seletiva dos delitos cometidos por pessoas situadas na periferia social serve como uma reafirmação negativa dos "valores da homogeneidade social", na medida em que se delimita para o Outro socioeconômico e étnico 27

ZALUAR, 1983. p. 276.

28

Vários autores apontam semelhanças entre os métodos das polícias brasileira e do regime segregacionista sulafricano. Ref. BENTES, Aqui Agora: o cinema do submundo ou o tele-show da realidade. Imagens. n 2. agosto de 1994. p. 47; SHIRLEY, Atitudes com relação à polícia em uma favela no sul do Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. p. 226; CARDIA, O medo da polícia — e as graves violações dos direitos humanos. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. p.262. 29 30

ZALUAR, 1983.

Cf. CARDIA. Mídia e violência. série). p. 67-9.

Comunicação & política, v.I, n.2, dezembro de 1994-março de 1995 (nova

21

um território inseguro que ele deveria supostamente habitar. 31 A representação pública desse Outro como "perigoso", conjugada com a criação, no público, da sensação de insegurança permanente, favorece a chamada "cultura do medo", que enseja percepções privatistas do espaço público urbano e dá suporte aos discursos autoritários de defesa da ordem, ao arrepio da lei e aos Direitos Humanos.32 Será relevante notar como esse tópico, sugerido pelas condições peculiares do processo de produção das imagens denunciadoras, foi cuidadosamente evitado pelos telejornais, durante a "cobertura" dos desdobramentos da denúncia dos crimes policiais, que colocaram em evidência diversos elementos indicativos das condições de trabalho dos profissionais da mídia no Brasil. Nas denúncias que marcam o início do evento em questão, fica nítido como as intervenções dos telejornais duplicaram os procedimentos típicos da justiça criminal. Apregoando sua capacidade de intervir "imediatamente" na cena do crime, os telejornalistas puseram-se a testemunhar atos criminosos, coletar depoimentos dos envolvidos, identificar e julgar sumariamente os culpados e mesmo puni-los com o vexame público, procedimentos que foram se tornando recorrentes no processo de produção de notícias sobre crimes. 33 A participação ativa dos telejornais e sua interação com as instituições judiciárias revelaram aspectos interessantes das diferentes temporalidades dos processos sociais e de seu entrelaçamento. No caso específico do trabalho da imprensa no Evento da Favela Naval, os telejornais afastaram-se, pelo menos temporariamente, da tendência, existente no jornalismo policial, à se

31

RONDELLI, s/d: 8-10.

32

"... o medo torna-se parte do problema, quando deixa de ser a reação natural e saudável de vítimas potenciais, para converter-se na chave de leitura dos fenômenos sociais e na matriz das soluções propostas" (Soares, 1996: 247-9.) A representação "despótica" da violência enquanto "crime" (central para o discurso popular), representao como "facticidade isolada e de significação dada ou insofismável", e conduz à identificação de "soluções... que desprezam mediações institucionais ou legais", dirigidas a um "Estado tirânico" pretensamente auto-suficiente. (Idem: 36-7, 48-51); Cf. também CARDIA Mídia e violência. Comunicação & política, v.I, n.2, dezembro de 1994-março de 1995 (nova série). p. 70-3; PAIXÃO, Segurança privada, direitos humanos e democracia. Novos Estudos CEBRAP, n.31, out. 1991. p. 138-9; CALDEIRA, 1991 e PAIXÃO, 1988 (citado por PAIXÃO.Segurança privada, direitos humanos e democracia. Novos Estudos CEBRAP, n.31, out. 1991. p. 138). 33

BENTES. Aqui Agora: o cinema do submundo ou o tele-show da realidade. Imagens. n 2. agosto de 1994. p. 45a-47b; BUCCI. "O Fator Leo Minosa". Imagens n.2., ago. 1994. p. 64b; RONDELLI. Media, representações sociais da violência, da criminalidade e ações políticas. Comunicação&política v.1 n.2. dez. 1994 – mar. 1995. p. 101-3.

22

converter em um virtual "policiamento jornalístico".34 Nesse momento, os operadores da mídia parecem ter deixado de dirigir sua violência simbólica contra as comunidades pobres, 35 que, assim, reduziram (em parte) sua habitual ojeriza com relação aos profissionais da imprensa.36 O Evento da Favela Naval parece ser um objeto privilegiado para o exame dos usos públicos da videografia, por ter ocorrido, em grande medida, devido ao uso não rotineiro dos dispositivos de produção e difusão de enunciados videográfico-telejornalísticos. Nas reportagens que invadiram a televisão brasileira, após a denúncia do JNa, os telejornais abandonaram as representações mediáticas habituais da violência urbana e se distanciaram da acomodação à "versão oficial" sobre a atuação da polícia militar. Parece ter ocorrido uma mudança de perspectiva, visualmente perceptível: abandonando o ponto de vista da câmera no camburão, os acontecimentos passaram a ser visualizados a partir da câmera no barraco. Isso possibilitou trazer para a publicidade mediática os temas da brutalidade policial e da sua impunidade oficiosa, entre outros. Nessa mudança de ponto de vista, a mediatização das vídeo-imagens transbordou a mera função de representar o mundo. A publicização não-oficial atuou como uma espécie de catalisador das interações públicas entre os atores políticos e das transformações nas identidades públicas de diversos sujeitos coletivos, processos capazes de eventualmente desencadear mudanças sociais e políticas significativas. O que conferiu o status de acontecimento publicamente relevante à denúncia mediática que inicia o EFN não foi apenas a gravidade dos crimes, mas também — talvez, principalmente — 34

Que outro nome dar a esse formato de telejornalismo que "rouba os atos de outras instituições sociais"? Ref. RONDELLI. Media, representações sociais da violência, da criminalidade e ações políticas. Comunicação&política v.1 n.2. dez. 1994 – mar. 1995. p. 102. 35

"Eu acho que a imprensa não mata, mas contribui. (...) Indiretamente mata. Às vezes até pela omissão, pelo silêncio, mata mais. Deixar de falar, muitas vezes, é mais grave do que você se posicionar politicamente." (PINTO DE ALMEIDA, S. et alii. Caco Barcellos; dedo na ferida. Caros Amigos, Ano 1, n.2, mai. de 1997, p. 22c). Cf. também RONDELLI. Media, representações sociais da violência, da criminalidade e ações políticas. Comunicação&política v.1 n.2. dez. 1994 – mar. 1995. p. 100-1; SHIRLEY, Atitudes com relação à polícia em uma favela no sul do Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. p. 215, 217. 36

A rejeição das comunidades marginalizadas aos profissionais da imprensa é apontada como provável resposta ao desprezo destes com relação ao (já precário) direito de privacidade dos "suspeitos", e à recorrente promoção, pela imprensa, de "cruzadas morais contra o crime", que provocam intervenções policiais perturbadoras da frágil ordem comunitária (RONDELLI. Media, representações sociais da violência, da criminalidade e ações políticas. Comunicação&política v.1 n.2. dez. 1994 – mar. 1995. p. 103-4, 106. SHIRLEY, Atitudes com relação à polícia em uma favela no sul do Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. p. 220.). Cf. também Barcellos, 1993. p.38-9.

23

o processo de produção de seu relato. A realização do flagrante videográfico dos policiais militares cometendo crimes brutais em serviço mostrou que a prepotência do terror físico dos policiais pode ser desafiada pela astúcia (terror simbólico) 37 de um cinegrafista desarmado. Realizado segundo uma perspectiva avessa à da "versão oficial" e à do telejornalismo subserviente, o registro em vídeo daqueles crimes alterou a natureza daquelas ocorrências. O conhecimento sobre aqueles crimes policiais não se restringiu apenas à não-publicidade de remotas periferias urbanas. Apareceu na hora do jantar, para todos os lares do país. A publicização mediática daquelas ocorrências trouxe sérias implicações para os sujeitos direta ou indiretamente envolvidos. Imediatamente após a denúncia do JNa, vários atores sociais e políticos vieram a público para se manifestarem, buscavando incorporar as vídeoimagens exibidas às suas perspectivas e interesses particulares. Nesta pesquisa, pretende-se reconstruir, a partir do quadro teórico relacionado à esfera pública contemporânea, os processos pelos quais o uso das vídeo-imagens (videografia, televisão) na denúncia inicial desencadearam uma intensa produção noticiosa a respeito das ocorrências e dos temas a ela correlatos na mídia brasileira, consubstanciando um acontecimento reflexivo,38 público e virtualmente ilimitado. A perspectiva adotada nesta análise toma o Evento simultânea e complementarmente como processo político-público e texto videográfico. Essa percepção exigiu a adoção de uma perspectiva híbrida para sua interpretação. Em seu aspecto político, constituiu-se como um processo público-mediático, no qual a participação dos meios técnicos ultrapassou largamente a mera representação "transparente" de fatos, condicionando desde o início as interações comunicativas públicas e conformando-as às características das práticas sociais envolvidas nos seus usos público-mediáticos. Enquanto texto, o EFN apresenta-se como uma produção discursiva predominantemente narrativa, intersemiótica, audiovisual e lingüística, e heterogênea, porque tecida pelas e nas intervenções de enunciadores de natureza bastante diversificada, social e politicamente situados. Para a compreensão do uso público das vídeo-imagens, este trabalho lançará mão da análise do texto telejornalístico como ferramenta para explicitar o modo pelo qual os diferentes atores

37 38

Ref. VIRILIO, 1994. caps. "A Imagem Pública" e "Candide Camera" MOUILLAUD, 1997. p.65-6.

24

políticos se confrontaram na e com a publicidade televisiva, tentando representar e legitimar publicamente suas idéias, identidades e interesses. No capítulo 1, será definido o campo temático desta investigação. A partir das recentes formulações das noções de esfera pública e espaços públicos, entre outras, serão estabelecidos os fundamentos necessários para a compreensão de algumas características da produção discursiva pública, composta pelas contribuições de emissores situados nos contextos sociais os mais diversos e amplamente difundida através dos meios de comunicação. Como esta pesquisa trata especificamente das interações comunicativas tal como emersas na televisão, serão abordadas com particular cuidado algumas peculiaridades dos processos pelos quais as vídeo-imagens são dotadas de sentidos compartilhados. Essas referências serão fundamentais para a compreensão do modo pelo qual tais imagens são utilizadas e interpretadas de maneiras diferentes pelos atores sociais e políticos, no contexto do Evento da Favela Naval. No capítulo 2, são apresentadas as hipóteses de investigação e o aparato conceitual empregado na análise do material empírico. Esse capítulo procura explicitar o modo pelo qual os conceitos que compõem o quadro teórico foram operacionalizados para a análise dos textos videográficos, em conformidade com os problemas levantados e com as características específicas do EFN, percebido como produção discursiva e processo político público. No capítulo 3, abordam-se especificamente a participação dos telejornais (principalmente do Jornal Nacional e do Jornal da Band) no contexto do EFN. Enfatiza-se a análise de atuação do “ator-midiador” na “construção do escândalo” e na configuração do espaço das controvérsias públicas, através da ampla divulgação das agressões policiais em Diadema. Para melhor elucidar os processos de publicização mediática dos telejornais, examinaram-se também as características específicas do uso testemunhal das vídeo-imagens e dos processos de incorporação dessas imagens nos discursos públicos. Nos capítulos 4 e 5, são abordadas as interações comunicativas suscitadas pela denúncia telejornalística inicial. No capítulo 5, “O Ator-Polícia”, foram analisados os enunciados provenientes dos sujeitos ligados à Polícia Militar de São Paulo, relacionando-se suas características peculiares à perspectiva e às possíveis estratégias de intervenção públicomediáticas, próprias a este conjunto de enunciadores. No último capítulo, fazemos a análise dos pronunciamentos oriundos d’“O ator sociedade civil”, isto é, dos sujeitos não investidos

25

de atribuições oficiais nem associados à produção mediática. Pesquisaram-se as proferições e procedimentos de enunciação aos quais os cidadãos — dos indivíduos agredidos pelos policiais na “cena” da Fita da Favela Naval (FFN) até as organizações autônomas da sociedade civil —lançaram mão para acessar os espaços públicos e público-mediáticos, manifestando e buscando validar seus pontos de vista.

26

CAPÍTULO 1 ESFERA

E

ESPAÇOS, CENAS

E

ESCÂNDALOS: PÚBLICOS

“Cada cabeça, uma sentença”, diz o condenado cuspindo no chão. “Cada sentença, uma cabeça”, diz o carrasco cuspindo nas mãos. (Alberto Pimenta)

O percurso feito para delinear o campo temático desta pesquisa compõe-se de quatro seções, nas quais os aspectos definidores do EFN enquanto objeto teórico são examinados de modo mais minucioso. A primeira Seção faz o recorte temático principal e desenvolve uma breve retrospectiva sobre a história do conceito de esfera pública, buscando demonstrar o modo pelo qual o atual modelo reticular de esfera pública provê um quadro teórico apropriado para a compreensão dos processos comunicativos característicos do Evento da Favela Naval (EFN). A partir desse modelo reticular de esfera pública, extraem-se os elementos para examinar as inter-relações entre espaço público amplo e espaços temáticos segmentados. Na segunda Seção, procura-se conectar uma tipologia dos atores sociais com procedimentos típicos de intervenção nos espaços públicos. Na terceira, discute-se mais especificamente sobre como o uso intensivo da radiodifusão e da videografia conforma as práticas discursivas públicas, através de dispositivos de enunciação peculiares à mídia e ao telejornalismo em particular. Na quarta Seção, aponta-se a maneira pela qual as imagens videográficas podem, em determinadas circunstâncias, acelerar a dinâmica das interações discursivas dos espaços públicos. Ao transportar experiências locais para uma publicidade ampla, o uso público da videografia contribui para desencadear o rompimento de padrões estabilizados de representação da vida social, provocando debates abrangentes sobre certas realidades sociais, que podem ter desdobramentos efetivos na ordem social.

1.1 - Esfera Pública e Espaços Públicos

O conceito de esfera pública é desenvolvido por Jürgen Habermas, na célebre obra Mudança Estrutural na Esfera Pública, de 1967.39 Essa construção teórica foi, inicialmente, concebida a 39

Publicada no Brasil, em 1984, pela Editora Tempo Universitário.

27

partir da abstração e generalização das características da atividade discursiva originalmente voltada à crítica literária. Tal atividade logo passaria à crítica política das monarquias absolutistas, vindo a ser, finalmente, institucionalizada nos parlamentos, através das revoluções burguesas. A proposição inicial do conceito recebeu críticas variadas, pois apresentava muitas limitações. Algumas se deviam ao percurso investigativo adotado por Habermas, que concebia a esfera pública através de generalizações feitas a partir da reconstrução de uma realidade histórica específica, o aparecimento da esfera pública liberalburguesa. Outras limitações da proposição original relacionam-se à adoção de um modelo comunicativo transmissivo, de base behaviourista. Tais limitações acabaram por ser incorporadas às teorias da sociedade de massa e da indústria cultural. A despeito desses problemas, a atitude de fundo da formulação inicial parece permanecer válida: buscar desvendar a dimensão normativa subjacente tanto às práticas comunicativas concretas (sóciohistoricamente situadas), quanto às interações comunicativas públicas em geral. Em escritos recentes, Habermas acolhe boa parte das críticas e reconhece algumas limitações importantes da proposição inicial do conceito de esfera pública. Segundo ele, muitos destes problemas teriam sido acarretados por uma excessiva idealização da esfera pública liberal, por um lado, e pela negligência à capacidade de resistência crítica dos receptores dos meios massivos, por outro.40 Nesse sentido, o autor de Mudança Estrutural na Esfera Pública admite a eclosão historicamente coeva de outras esferas públicas não-burguesas — constituídas por mulheres, minorias étnicas, trabalhadores. A interferência dos processos informais de exclusão próprios aos espaços públicos burgueses também é reavaliada.41 Através de sucessivas revisões, a noção de esfera pública passou a ser construída não mais a partir de uma realidade histórica específica, mas através da generalização das condições fundamentais das interações dialógicas.42 A idealização de uma esfera pública unitária, cenário da disputa apenas dos grandes coletivos organizados, é abandonada em favor do reconhecimento das possibilidades críticas provenientes do confronto entre sujeitos coletivos formalmente organizados e a pluralidade de redes informais de associação da sociedade civil. 40

A esse respeito, Habermas justifica-se, assinalando a inexistência de pesquisas empíricas sobre a recepção dos produtos da mídia comercial. Tais pesquisas demonstrariam uma série de estratégias de resistência por parte do público, jogando por terra a hipótese “hipodérmica” de uma dominação mediática. (Cf. HABERMAS, L’espace publique 30 ans après. Quaderni: La revue de la communication, n.18, outono de 1992. p.187.) 41

Fraser. In: Calhoun, 1993. p.118-119.

42

Aqui, faz-se referência à Teoria da Ação Comunicativa de Habermas.

28

Passou-se a considerar que a existência de uma pluralidade de espaços públicos é, na verdade, constituidora da política democrática e do processo de deliberação pública. 43 É o que Habermas chama de “redescoberta da sociedade civil”. A partir dessas revisões, a forma que serve de metáfora básica da estrutura da esfera pública deixou de ser o círculo, associado à univocidade da assembléia, e passou a ser a rede, composição de múltiplos espaços interconectados:

A esfera pública pode ser melhor descrita como uma rede para a comunicação de informações e de pontos de vista (...); os fluxos de comunicação são, no processo, filtrados e sintetizados de modo que conjugam-se em feixes de opiniões públicas topicamente especificadas.44

No modelo reticular da esfera pública, os espaços públicos poderiam ser agrupados em dois conjuntos de “ambientes comunicativos” interconectados: os espaços públicos segmentados (temáticos) e o espaço público amplo (generalista). Ambos se constituem em processos da mesma natureza: são espaços sociais simbolicamente constituídos nas interações dialógicas, nas quais os sujeitos envolvidos são capazes de se atribuir mutuamente liberdade comunicativa (relação eu – tu), indo além do mero contato de observação recíproca (relação eu – ele). Esses espaços, em princípio, permaneceriam sempre acessíveis a novos interlocutores. O espaço público amplo e generalista seria a versão mais extensa e geral desse espaço simbólico. Contemporaneamente, o volume e a complexidade das interações de natureza pública ultrapassam largamente os limites da comunicação “face a face”, e passam a ser sustentados pelos meios de comunicação os mais variados. Cada meio, da oralidade à telemática, conforma o aparelho sensório-cognitivo, estrutura as conexões entre os interlocutores e hierarquiza as enunciações e os enunciadores, de maneiras peculiares.45 Devido à sua vasta abrangência e à facilidade de acesso às suas emissões, a televisão tornouse o suporte principal das interações políticas públicas nas democracias de massa contemporâneas, conformando o espaço público amplo predominantemente como espaço 43 44 45

Fraser. In: Calhoun, 1993. p.118-121. HABERMAS, 1996. p. 360. LEVY, 1993.

29

público-mediático. O espaço simbólico comunicativamente gerado através dos meios eletrônicos alarga e generaliza o contexto público, permitindo a inclusão de grandes contingentes humanos nos processos político-públicos. Mas, por concentrar o acesso à enunciação mediática, também tende a marginalizar esses contingentes, limitando-os a ocupar apenas a posição de “receptores”, “consumidores” ou “espectadores”. A capacidade de colocar discursos em circulação pública concentra se nos centros de poder político e econômico. A esfera pública contemporânea, portanto, constitui-se através das diversas redes estabelecidas pelos meios de comunicação, mas se conforma às assimetrias políticas e econômicas de cada sociedade. O espaço público-mediático, ao ampliar a acessibilidade dos enunciados de natureza pública, tende a restringir a complexidade dos conteúdos e a diversidade das perspectivas dos discursos capazes de emergir e circular nesse espaço expandido.46 No entanto, deve-se assinalar que o caráter generalista do espaço público amplo, resultante da incapacidade em se especializar em determinados temas, é também o que garante que os negócios públicos possam ser minimamente conhecidos e compreendidos pela maioria dos cidadãos. Os espaços públicos segmentados e temáticos, por outro lado, seriam constituídos autonomamente no seio da sociedade civil e estabeleceriam entre si variadas interconexões. Apesar de também instaurarem, no processo de sua diferenciação, mecanismos que limitam sua acessibilidade geral,47 esses espaços contribuem para a condensação de identidades coletivas e configuram espaços interlocutivos despidos dos protocolos e limites (formais e informais) prevalecentes no espaço público amplo. Por isso, os espaços públicos segmentados são capazes de incluir sujeitos excluídos do espaço público amplo em processos comunicativos de ação política. É através da vivência da ação política baseada na comunicação pública propiciada nesses contextos comunicativos segmentados que as identidades coletivas são constituídas e os discursos públicos convergem para determinados padrões de coerência. Os espaços temáticos e segmentados são instrumentos de intervenção

46 47

HABERMAS, 1996. p.361.

“As esferas públicas segmentadas são constituídas com a ajuda de mecanismos de exclusão; no entanto, uma vez que as audiências não podem se enrijecer em organizações ou sistemas, não há regra de exclusão que não seja dotada de uma previsão para sua revogação.” (HABERMAS, 1996. p. 374.)

30

dos sujeitos coletivos marginalizados na esfera pública política,48 para a “dramatização”49 e tematização de seus problemas e reivindicações nos espaços amplos e generalistas. Os espaços temáticos segmentados são, em boa medida, produto da atividade de organizações autônomas da sociedade civil e podem ser considerados como resultantes do processo moderno de racionalização generalizada da vida social. A racionalização do cotidiano faz com que os processos de transmissão cultural, integração social e socialização necessitem, em muitas situações, de instrumentos institucionais formais dotados de certa autonomia, como os articulados pelas “organizações autônomas da sociedade civil”. 50 No espaço público amplo, tais organizações buscam generalizar publicamente seus temas, disputando a visibilidade no espaço público amplo com outros tipos de atores coletivos (tecnoburocracias estatais, organizações do mercado, corporações profissionais etc.). Os espaços públicos temáticos segmentados são parcialmente permeáveis ao espaço público amplo. Os enunciados provenientes desse atingem os públicos temáticos, mas o seu sentido deriva-se de referências oriundas de cada contexto interpretativo, constituído pelas interações de cada ambiente comunicativo segmentado. Os espaços públicos amplos e generalistas são também parcialmente permeáveis aos enunciados provenientes dos públicos temáticos segmentados. Os temas dos espaços segmentados podem eventualmente emergir para a atenção do conjunto da sociedade e desencadear uma interpretação pública ampla, da qual participam atores sociais variados. O processo de publicização e de generalização de seus interesses pode mesmo chegar a resultar na tomada de decisões judiciais ou legislativas, no âmbito dos chamados “públicos fortes”.51 O modelo reticular de esfera pública conforma um quadro apropriado para a construção do objeto teórico desta pesquisa, porque permite visualizar, com maior clareza, o processo de interpretação social dos acontecimentos públicos, considerado como a urdidura de uma rede de interações simbólicas entre interpretações provenientes de sujeitos coletivos diferenciados,

48

FRASER. In: CALHOUN, 1993. p. 121-8.

49

HABERMAS, 1996. p. 359.

50

COHEN & ARATO. In: HONETH et al. (Orgs.), 1992. p. 131-132; COSTA. Esfera pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, n.38, mar. 1994. p.38-52. 51

“Públicos fortes” seriam aqueles espaços públicos cuja a atividade de interpretação coletiva de temas é atribuído real poder decisório: parlamentos e tribunais. (Ref. FRASER. In: CALHOUN, 1993. p. 132-136)

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no espaço público generalista. As implicações discursivas dessa reticularidade da interpretação pública dos acontecimentos delineiam uma textualidade de caráter peculiar:

O texto único “da” esfera pública, um texto continuamente extrapolado e ampliado radialmente em todas as direções, é dividido por fronteiras sociais internas em textos arbitrariamente pequenos para os quais tudo mais é contexto; ainda que sempre se possa construir pontes hermenêuticas de um texto para o próximo. 52

A interpretação unívoca de um enunciado público é um ideal que não se pode efetivamente realizar, muito embora a busca da concordância em algum nível de interpretação esteja implícita em todo ato comunicativo. A suposição básica do autor é que cada interpretação é conformada pelo ambiente interlocutivo próprio a cada público. A interpretação, nesse sentido, não é a mera “recepção” dos enunciados mediáticos, mas também — no caso do objeto em questão, principalmente — a interpretação enquanto enunciação públicomediática.53 Pelo fato de essas interpretações voltarem também aos espaços públicos como novos enunciados e/ou acontecimentos, torna-se impossível determinar um término dessa interpretação plurívoca e reflexiva, pois seus objetos estão permanentemente a se deslocar. A textualidade do “discurso da esfera pública”, tomado como um todo, seria bem descrita conforme o modelo dos hipertextos computacionais:

A metáfora do hipertexto dá conta da estrutura indefinidamente recursiva do sentido, pois já que ele conecta palavras e frases cujos significados remetem-se uns aos outros, dialogam e ecoam mutuamente para além da linearidade do discurso, um texto que já é sempre um hipertexto, uma rede de associações. O vocábulo “texto”, etimologicamente, contém a antiga técnica feminina de tecer. (...) Os coletivos também cosem, através da linguagem e de todos os sistemas simbólicos de que dispõem, uma tela de sentidos destinada a reuni-los e talvez a protegê-los dos estilhaços dispersos, insensatos, do futuro; uma capa de palavras capaz de abrigá-los da contingência radical que perfura a camada protetora dos sentidos e mistura-se à sua revelia. 54

O texto da esfera pública mediática, além de hipertextual, é também intersemiótico, por articular suportes e regimes significantes muito variados, tanto nos processos de sua 52

HABERMAS, 1996. p. 374

53

No caso do EFN, estaremos lidando com uma parte destes enunciados, publicizados através dos telejornais entre 31 de março e 14 de abril de 1997. É, portanto, segundo a dimensão “produtiva” da interpretação que esta análise será desenvolvida, abstendo-se de incursões sobre a “recepção” do Evento. 54

LEVY, 1993. p. 73.

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produção, quanto na forma “acabada” de seus produtos. Esse fato implica “novas” condições para os procedimentos de intervenção comunicativa na esfera mediática. Os analistas e críticos da mediatização técnica da esfera pública usualmente a associam a maiores limitações em termos de circulação pública dos enunciados em geral. As condições específicas da televisão sugerem que a publicização de enunciações predominantemente lingüísticos encontre maiores dificuldades do que encontrariam enunciados cuja composição incorpora elementos audiovisuais de modo mais expressivo. Essa tendência parece se tornar mais aguda no caso da tematização pública de assuntos não rotineiramente abordados no discurso mediático (acidentes e escândalos), para os quais o apoio às “evidências” de imagens tecnicamente capturadas se faz mais necessário. Essa suposição, apoiada em análises sobre o processo de produção de notícias e na observação de processos público-mediáticos semelhantes ao EFN, instiga a examinar como a publicização inicial das imagens dos crimes policiais de Diadema se desdobrou em um processo de tematização pública. Deve-se chamar a atenção do leitor para algumas peculiaridades do objeto desta dissertação: é a produção de uma vídeo-imagem que desencadeia um processo comunicativo público, estabelecendo, no espaço mediático, um contexto temático ou cena (ou espaço de aparência 55) onde variados atores sociais e políticos adquirem visibilidade pública, literal, no caso do espaço televisivo/telejornalístico.

55

Este termo, introduzido por Hannah Arendt, associa a publicidade a dimensões existenciais da vida humana: o “espaço da aparência” seria aquele lugar onde os homens tornam-se reais por criar e compartilhar o mesmo campo perceptivo (ARENDT, 1993. p. 211.). Para Vollrath, o estabelecimento do espaço de aparência precede toda e qualquer forma de organização institucional do poder: trata-se do próprio fenômeno do surgimento do poder. Os sujeitos coletivos só se consubstanciariam como entidades do campo político através da emergência em uma cena pública. Os conflitos vividos cotidianamente só poderiam ser tematizados pelas instâncias de poder legítimo na medida em que e segundo a forma pela qual são problematizadas publicamente. A aparição mediática de sujeitos e/ou assuntos, portanto, não pode ser negligenciada como “mera aparência” ou “aparência ilusória”, já que é no momento mesmo em que aparecem publicamente, atualizando e transformando a cena pública, que configuram suas definições e identidades políticas. (VOLLRATH, 1977, p.163-4, citado por QUÉRÈ, L'espace public: de la théorie politique à la métathéorie sociologique. Quaderni n.18, outono, 1992, p. 75-91.) A compreensão da publicização como uma semiose leva a divergir, em parte, da concepção de espaços de aparência delineada por Arendt. Como esta autora, evitamos ontologizar as identidades e os atos públicopolíticos. Contudo, não consideramos a emersão dos atores, discursos e atos na esfera pública como um “fenômeno” que determinaria suas “essências”. Segundo a perspectiva semiótico-pragmática, as coisas que estão por emergir como objetos (PINTO, 1995. p. 37) na cena pública se encontram circunscritos a determinados contextos não-públicos ou de publicidade limitada, mas já são realidades em transformação. Seu transporte para o contexto público determina transformações fundamentais, nas suas qualidades sensíveis, nas suas propriedades semânticas e nas suas funções enquanto mediadores de relações intersubjetivas. Mas isso não faz da emersão pública sua origem (mesmo porque, para a semiótica, determinar a origem dos processos de significação, além de ser impraticável, esclarece muito pouco sobre como se dão as metamorfoses dos objetos de sentido).

33

O conceito de esfera pública, apesar de ter sofrido sucessivas alterações e de ter alcançado uma grande abrangência, sofre ainda algumas limitações em sua formulação atual. Dentre elas, parecem particularmente relevantes os problemas impostos pela natureza intersemiótica (lingüística e extralingüística) dos enunciados mass-mediáticos. Há uma brecha teórica quanto à compreensão do papel desempenhado pelas imagens técnicas nos processos da esfera pública contemporânea. Da mesma maneira, a análise do funcionamento dos espaços eletronicamente mass-mediatizados demanda um instrumental analítico específico para a abordagem da textualidade das mídias audiovisuais. A compreensão das peculiaridades dessas mídias é atualmente uma tarefa importante, se se observa a defasagem entre a centralidade adquirida pelas mídias eletrônicas como suporte das comunicações públicas e a pequena produção teórica disponível acerca da incorporação dessas mídias nos processos da esfera pública. As teorias relacionadas à esfera pública têm sido construídas com base em modelizações predominantemente lingüísticas das interações comunicativas, o que acarreta dificuldades para sua articulação em estudos empíricos56 de eventos audiovisualmente mediados. O interesse mais geral desta pesquisa é oferecer subsídios para uma explicação mais abrangente sobre as implicações políticas do uso público das imagens técnicas, em específico do emprego das vídeo-imagens nos discursos público-mediáticos.

1.2 - Potenciais de Autotransformação da Esfera Pública: Os Atores Sociais e o Princípio da Publicidade

Como indicado na Seção anterior, assume-se aqui a compreensão das relações entre a atividade dos públicos segmentados e as do público amplo como aspecto crucial para o entendimento mais geral do funcionamento da esfera pública contemporânea. As organizações da sociedade civil estabelecem-se como contextos interlocutivos públicos, temáticos e segmentados. Institucionalizadas e formalizadas, as relações que configuram tais contextos fornecem uma base organizacional formal que serve às “tarefas de preservação e renovação de 56

O próprio Jürgen Habermas reconhece sua perplexidade diante da atuação das mídias em processos como os da derrocada dos socialismos de Estado, em 1989. (HABERMAS. L'espace public, 30 ans après. Quaderni, n.18, outono, 1992. p. 187.). Para uma discussão mais detalhada sobre as limitações da modelização lingüística da noção de esfera pública, cf. LEE. In: CALHOUN, 1993. p.402-417.

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tradições, solidariedades e identidades”.57 A ação dessas organizações é dirigida também para o “exterior”: ao estabelecer um contexto comunicacional autônomo, elas intervêm no espaço público amplo, buscando generalizar seus interesses particulares, tematizar questões específicas e influenciar a opinião pública. A ocorrência de intervenções desse tipo é denominada por Habermas como “fluxo comunicativo espontâneo”. O espaço público amplo, conformado pela mídia massiva, apresenta várias formas de filtragem e limitação da entrada desses fluxos comunicativos. Contudo, os dispositivos de produção das próprias empresas de comunicação ocasionalmente podem permitir a formação de espaços comunicativos para a tematização de assuntos específicos, cuja abordagem não só permite como pode até mesmo demandar a manifestação público-mediática

de

fluxos

comunicativos

espontâneos.

Oriundos

das

interações

comunicativas cotidianas e mediados por organizações autônomas da sociedade civil, tais fluxos são conectados a enunciados provenientes de atores políticos diferentemente constituídos, como corporações profissionais, partidos políticos, empresas capitalistas, poderes públicos etc. Através das sucessivas revisões da noção de esfera pública, a argumentação de Habermas não só passou a considerar correta a interpretação segundo a qual teria havido desde o início da modernidade uma pluralidade de públicos em concorrência, como também aponta a importância dos processos de comunicação marginais aos espaços públicos amplos, dominantes. O autor reconhece, por exemplo, ter negligenciado a relevância da esfera pública plebéia, estabelecida a partir da cultura popular tradicional. 58 Habermas, entretanto, mantém o cerne de suas proposições: a esfera pública política contemporânea, mesmo exibindo ainda o patriarcalismo característico da esfera pública liberal burguesa, permanece definindo-se normativamente pelos princípios de integração e de igualdade. Em “A Esfera Pública, 30 anos depois”, Habermas recorre aos estudos de Michel Foucault para caracterizar a reflexividade própria ao modo discursivo da esfera pública liberal, contrapondo-a às regras formadoras dos discursos do poder aristocrático. Nesse contexto 57 58

COHEN & ARATO. In: HONETH et al. (Orgs.), 1992. p. 132.

Habermas relata que suas convicções foram transformadas quando descobriu na cultura popular um meio nada passivo de onde, através da influência de intelectuais radicais, recorrentemente irrompem revoltas por meio das quais se manifesta um “contraprojeto face ao mundo hierárquico do poder, suas cerimônias e sua disciplina cotidiana”. Tal transformação teria decorrido da leitura de Rabelais e seu mundo, de M.Bakhtine. (HABERMAS, 1992. p. 165-6.)

35

político, tais regras atuam como mecanismos de exclusão do outro: não se dispõem, nem mesmo utópica ou projetivamente, a constituir uma linguagem comum; pelo contrário, operam como estratégias de objetificação da alteridade. Portanto, fora do discurso e da cultura dominantes e de sua esfera pública representativa, o povo é obrigado a se manifestar através de um contradiscurso e de uma contracultura. Na visão de Habermas, tais condições divergem fundamentalmente daquelas encontradas na esfera pública liberal (burguesa). Nesta, o universalismo discursivo é autoreferenciado e em princípio permeável a críticas. Como tais críticas seriam sempre tornadas internas à esfera pública, esta seria sempre potencialmente autotransformável:

...a esfera pública burguesa se articula sobre discursos que não somente o movimento operário, mas também seu outro excluído, o movimento feminista, poderiam aderir para transformá-lo do interior, mas também para transformar as estruturas da própria esfera pública. Os discursos universalistas da esfera pública burguesa eram situados, desde a origem, sob premissas auto-referenciais; eles não podiam ficar imunizados contra uma crítica interna, uma vez que eles se distinguem dos tipos de discursos de Foucault pelo seu potencial de autotransformação.59

A partir da constatação dessa diferença, o autor de Mudança Estrutural na Esfera Pública reinterpreta as condições de funcionamento da esfera pública. A interpenetração funcional de grandes coletivos organizados (burocracias estatais, oligopólios capitalistas, partidos, sindicatos), considerada como fator de esvaziamento do potencial crítico dos espaços públicos e de subversão do princípio da publicidade (instrumentalizada para a legitimação de decisões não-públicas), deixou de ser assumida como uma tendência irreversível de transformação da esfera pública. Processos tais como a formação de novos atores políticos, de espaços públicos alternativos e a problematização pública de demandas surgidas no cotidiano constituiriam fatores de regeneração da esfera pública. Através da pluralidade de espaços públicos, os confrontos entre coletivos organizados de variadas origens e temáticas constituir-se-iam atualizações dos “potenciais de autotransformação” das regras discursivas do espaço público. Nesse sentido, a capacidade de atores sociais organizados de acessar o espaço público e

59

HABERMAS. L'espace public, 30 ans après. Quaderni, n.18, outono, 1992, p. 167-8. Para as citações do texto “Espace Publique, 30 ans après”, estará sendo usada como base a tradução de Vera Lígia Westin e Lúcia Lamounier, feita a partir da versão francesa, publicada em Quaderni, outono, 1992. Os números de páginas referem-se a esta edição.

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propor reformas de interesse coletivo seria em princípio inerente ao próprio espaço público, mesmo nas condições de sua mediatização técnica. Para compreender o sentido dos enunciados presentes no EFN, é necessário delinear um quadro para a compreensão da mediação da esfera pública e da opinião pública no processo de tomada de decisões. Partindo da discussão sobre a esfera pública, buscar-se-ão algumas indicações para a proposição de uma tipologia para os atores sociais cuja aparição pública (mediática) é propiciada pelo Evento. Devemos levar em consideração as alterações dos objetivos críticos da noção de esfera pública. Habermas defende a necessidade de implementação de dispositivos jurídicoinstitucionais que sustentem formalmente as condições comunicativas que limitam democraticamente o “processo de colonização do domínio do mundo vivido pelos imperativos do sistema”. Para ele, tais dispositivos favorecem a “a força de integração social da solidariedade —'a força produtiva da comunicação'“, garantindo o funcionamento democrático da esfera pública.60 Contudo, o autor também reconhece a insuficiência da adoção de tais dispositivos: as decisões legislativas só adquirem responsabilidade e compromisso com a verdade se forem permeáveis aos processos não-formais de comunicação. A consolidação da legitimidade das decisões seria então resultado da convergência entre “a formação política da vontade estabelecida institucionalmente e os fluxos de comunicação espontâneos não penetrados pelo poder”,61 que caracterizam um espaço público dirigido principalmente para a exploração e resolução dos problemas e não propriamente encarregado de tomadas de decisões formais. As opiniões públicas, entendidas não como o agregado quantitativo das pesquisas de opinião, mas como “amalgamação de consensos públicos amplos”, necessitam ser cristalizadas como decisões públicas, ou seja, devem ser assumidas por assembléias institucionalizadas (“públicos fortes”). Isso, por duas razões: primeiro, por ser preciso estabelecer uma instância publicamente responsável pela tomada de decisões; depois, pela necessidade de ser arbitrado um término, ainda que provisório, para cada processo deliberativo público. A opinião, incapaz de governar, limitar-se-ia a influenciar o poder administrativo, conferindo ou retirando a legitimidade pública de seus atos. Embora a esfera pública ampla possa agir “como um cerco 60

HABERMAS. L'espace public, 30 ans après. Quaderni, n.18, outono, 1992, p. 178.

61

HABERMAS. L'espace public, 30 ans après. Quaderni, n.18, outono, 1992, p. 183. (Grifo do autor)

37

[ou sítio]” sobre as burocracias públicas, permanece incapaz de substituí-las em sua “obstinação sistemática”.62 Habermas identifica dois tipos de forças atuando na esfera pública contemporânea, cada qual com peculiares padrões procedimentais de intervenção nos espaços públicos, ou seja, conforme formas típicas de apropriação do princípio da publicidade. Os coletivos interessados na satisfação de interesses particulares ou particularistas, provenientes da “razão de empresa” capitalista ou da “razão de Estado” das tecnoburocracias estatais, tendem a influenciar a tomada de decisões públicas para que os processos decisórios se desenvolvam externamente às deliberações públicas. Para tanto, mobilizam estratégias que visam, muitas vezes, esvaziar a esfera pública de seu papel de avaliadora de interesses e definidora de políticas públicas. Para serem efetivas, no entanto, essas estratégias devem ser travestidas como interesses gerais de toda a sociedade. Atuando no sentido oposto, as organizações da sociedade civil procuram politizar a esfera pública, fortalecendo-a como instância de deliberação e de regulação do processo de tomada de decisões. Tais organizações (correspondentes à racionalização das instituições de conservação e reprodução do mundo da vida) têm na tematização pública seu principal instrumento de pressão sobre os processos de tomada de decisões: a publicização é, para essas instituições, a principal ferramenta para trazer situações-problema surgidas no cotidiano para o âmbito dos espaços públicos, para demonstrar o caráter geral de seus interesses, influenciar o sistema administrativo e mesmo para intervir no funcionamento dos espaços mediáticos.63 Os “grupos de interesse”, também denominados “usuários da esfera pública”, tenderiam a atuar através de “negociações intransparentes”, valendo-se de seus recursos organizacionais e de instrumentos de pressão não-públicos, como lobbys, greves, propinas, tráficos de influência etc. Em geral, seu padrão procedimental de intervenção pública é caracterizado pela tentativa de estabelecer um “particularismo generalizado” no trato com as decisões públicas, ou seja, um tipo de processo de tomada de decisões no qual cada organização coletiva defende seu próprio interesse apenas enquanto interesse particular, barganhando com 62

HABERMAS. L'espace public, 30 ans après. Quaderni, n.18, outono, 1992, p. 184. O campo semântico do termo usado na tradução francesa, “siège”, é sugestivo: pode significar o assento (um trono), uma sede (de um governo, de uma faculdade), um sítio (estado de exceção) ou cerco (assédio militar). 63 Adota-se aqui a tipificação de “organizações da sociedade civil” versus “grupos de interesse” tal como delineada por COSTA, 1994.

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outros coletivos concorrentes concessões unicamente em função dos objetivos egoísticos de cada um.64 As “organizações da sociedade civil”, ao contrário, encontram na entrada dos “fluxos comunicativos espontâneos” no espaço público amplo seu instrumento primordial para a transformação dos consensos dominantes na opinião pública e do funcionamento da própria esfera pública. Esses conjuntos de atores confrontam-se nos espaços públicos buscando tematizar e legitimar publicamente seus interesses. A capacidade de definir os temas públicos é atribuída, de modo decrescente, aos membros do sistema político cujo poder de influenciar a agenda pública independe do respaldo popular, aos que são dependentes do respaldo popular e às organizações da sociedade civil.65 No caso destas, usualmente, o processo de publicização traduz-se pelo transporte de “’situações-problema’ emergentes no nível das relações cotidianas, do mundo da vida para o plano público”. 66 As organizações da sociedade civil empenhar-se-iam em difundir amplamente os assuntos discutidos na periferia da esfera pública e em incorporar as situações-problema à agenda dos centros políticos. Esses centros são os espaços comunicativos onde tais interesses podem ser generalizados e legitimados através da opinião pública.67

64

Segundo Habermas, a lógica do particularismo generalizado (a conhecida lógica do “É dando que se recebe” da política brasileira) aborda a política como administração e o espaço público político como sistema, um ambiente organizacional autônomo em relação à sociedade civil e à esfera do mercado. Esta construção é minuciosamente desconstruída e criticada por Habermas (1996, p. 341-351.). 65

O poder de influência sobre a agenda pública pode ser descrito também através do decrescente valor ilocutório e perlocutório dos enunciados de determinados sujeitos: à medida que o pronunciamento de determinado ator constitua-se como ato discursivo e que este ato tenha o poder de determinar mudanças no estado das coisas. Embora a capacidade ilocutória e perlocutória dos sujeitos tenda a corresponder ao lugar ocupado dentro da hierarquia política e econômica de um contexto social, a mediatização apresenta um elevado grau de autonomia na determinação de caracteres extra-proposicionais a enunciados de sujeitos não rotineiramente privilegiados. (RODRIGUES. In: TRAQUINA (Org.), 1993. p. 27-33.) 66 67

COSTA, 1994. p. 45.

Habermas, J. Facticidade e Validade. Contribuições para a teoria do discurso do direito e do Estado constitucional democrático. p. 460. citado por COSTA. Esfera pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, n.38, mar. 1994. p. 46.

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1.3 - Um Espaço Público Intersemiótico

O exame dos procedimentos concretamente mobilizados pelos diferentes atores políticos no contexto do EFN demanda a apreciação das condições impostas pelas diferenças de suportes técnicos dos espaços mediáticos. Trabalhos de autores como Pierre Levy e Regis Debray têm mostrado que os meios de armazenamento e de difusão social do conhecimento atuam de modo determinante, tanto na estruturação do aparelho sensorial e cognitivo dos indivíduos, quanto na configuração dos sistemas culturais.68 A compreensão das propriedades dos suportes mediáticos torna-se uma referência imprescindível para a construção do arcabouço teórico desta pesquisa. Este trabalho recorre a estudos amplamente aceitos para esclarecer como os agenciamentos lingüísticos e técnico-imagéticos peculiares aos espaços mediáticos se articulam no seu uso público-político. As condições da aparição pública dos sujeitos são bastante diferenciadas, conforme os meios de comunicação utilizados: as dificuldades de enunciação daquele que escreve um texto no jornal são diferentes daquelas enfrentadas por um orador que se apresenta em uma assembléia, compartilhando o mesmo espaço físico, e muito diversas daquelas implicadas na elaboração de um enunciado televisivo ou em uma entrevista conduzida por uma reportagem telejornalística. O enunciador do livro ou do artigo de jornal dispõe, na maioria das ocasiões, de uma grande variedade de estratégias verbais para construir sua identidade enquanto autor do texto, inscrevendo-a nele. A emergência da publicidade televisiva fez com que as diferenças provenientes dos parâmetros corporais (idade, sexo, etnia etc.) passassem a ser muito mais valorizadas do que anteriormente o eram na expressão escrita, permitindo — e freqüentemente exigindo — a exibição do corpo em uma publicidade ampliada e pervasiva.69 No espaço público mediatizado, diferente dos contextos comunicativos onde há partilha do espaço-tempo físico, a realidade dos atos e eventos não é mais garantida pela percepção direta da presença de outros indivíduos. É a própria existência da mídia que permite a confirmação, indireta e sempre em alguma medida hipotética, da percepção individual que constitui a 68

O tipo de abordagem adotada por Levy e Debray tem o mérito de esclarecer os vínculos entre os sistemas culturais humanos e o uso social de dispositivos de produção, difusão e apropriação de conhecimento. (LEVY, 1993; DEBRAY, 1995.) Procura-se nesta pesquisa adotar uma perspectiva semelhante, para examinar alguns aspectos das transformações ocorridas na esfera pública, decorrentes de sua mediatização pelo uso intensivo da videografia e da radiodifusão. 69 WARNER. In: CALHOUN, 1993. p. 380-2; FRASER. In: CALHOUN, 1993.

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experiência do mundo como realidade. As interações comunicativas mediadas pelo texto impresso ou televisivo se realizam como enunciados públicos em um espaço simbólico autonomizado que se tornou independente da partilha de um mesmo lugar físico. O abandono da co-presença espacial, além disso, parece ter determinado uma dessensorialização das interações públicas. Com o surgimento das mídias teleaudiovisuais, a aparição pública dos sujeitos tornou-se ainda mais problemática.70 Nesse contexto, os atores que pretendam aparecer publicamente devem se submeter ao escrutínio de um olhar que testemunha ações e acontecimentos a partir de um espaço privado (íntimo, protegido). O destinatário, remoto, parece demandar a exibição de imagens do corpo que sirvam a variados propósitos de identificação e/ou desidentificação.71 A televisão reinstala a visibilidade como fundamento das comunicações públicas. Trata-se, sem dúvida, de uma ressensorialização das interações do espaço público.72 No caso da televisão, tal retorno é limitado aos sentidos corporais da audição e da visão, os componentes do aparelho sensorial humano voltados para a percepção distanciada dos objetos. Por meio desses “sentidos tele”, a presença dos sujeitos é “restituída” tão-somente como uma forma pictórica e uma fonte sonora, representando o corpo sem peso, odor, textura ou calor; isto é, apresenta-se como uma presença fantasmática. Assim, a capacidade de sujeitos, ações e acontecimentos alcançarem a publicidade televisiva vincula-se em boa medida à sua capacidade de tomar a forma de entidades audiovisuais. O enunciador que expõe e dispõe sua imagem corporal para a apropriação por um vasto contingente de sujeitos pode ter, se tanto, uma percepção vaga, tardia e também tecnicamente mediatizada de como tal apropriação se realiza.

Segundo Warner (In: CALHOUN, 1993), isso pode ser compreendido como decorrência da homotopia entre enunciados políticos e comerciais nos espaços mediáticos, exemplificada da forma mais acabada pelo uso generalizado do marketing político como estratégia eleitoral. Enquanto espaço público político, a esfera mediática sustenta, ainda que precariamente, o princípio da auto-abstração. Mas, enquanto espaço mercadológico vinculado à dinâmica da sociedade de consumo, as mídias audiovisuais não procedem mais a desincorporação abstrata dos enunciadores, mas a montagem de um corpo visível, no qual as marcas (distintivas dos sujeitos minorizados) são revalorizadas, enquanto possibilidades de vinculação a marcas (de mercadorias). As aparições públicas do ator político passam a dever se conformar ao ponto de vista do consumidor. 70

WARNER. In: CALHOUN, 1993. p.387-397. Para Warner, o acesso ao espaço mediático exige, do sujeito, que ele disponha de uma iconicidade corporal montada, e seja assim capaz de satisfazer a demanda dos telespectadores pela imagem do corpo do enunciador. 71

72

THOMPSON, 1996. p. 129.

41

Pode-se distinguir o espaço televisivo também pelos recursos de representação do espaço. É característico dos espaços mediáticos, principalmente eletrônicos, o apagamento das distâncias físicas. Isso impõe um desafio à construção da retórica (lingüística e imagética) do telejornalismo. A teletopologia cria um problema para a percepção do espaço, pois, ao elidir a topologia física, apaga também os parâmetros que permitem diferenciar o espaço físico próximo do espaço distanciado representado. Em outros termos, os “túneis televisivos” estabelecem um paradoxo. Por um lado, eles constituem um espaço simbólico para as interações comunicativas que é bastante independente dos constrangimentos dos espaços físicos — o que serve, inclusive, para apoiar as pretensões retóricas dos telejornais à transparência, à imediatez e à onipresença. Por outro lado, na medida em que a teledifusão “anula” as distâncias físicas, ela apaga justamente aqueles traços a partir dos quais tais pretensões retóricas poderiam ser validadas. Descolada dos espaços físicos, e ao mesmo tempo conectando lugares diferentes, a difícil tarefa da retórica telejornalística é representar o aqui. Em geral, o “lugar-aqui” de cada imagem é restituído através do uso da representação visual do espaço da perspectiva cônica, herdada do renascimento. No entanto, isso apenas faz com que os paradoxos da “telepresença” se desloquem para dentro da tela: o olhar televisivo é caracteristicamente um olhar por várias vistas, de vários aquis ao mesmo tempo, como no caso de transmissões ao vivo com várias câmeras.73 [#2] Se, em geral, os espaços mediáticos são marcados pela desespacialização, pela nãodialogicidade e pela unidirecionalidade, é preciso considerar as particularidades da enunciação na mídia televisiva. Deve-se observar que a “textualidade televisiva” incorpora e põe em articulação as textualidades dos suportes precedentes, corporais, orais, manuscritas, impressas, fotográficas, fílmicas etc.74 A centralidade dos componentes icônico-indiciais na organização dos enunciados audiovisuais torna mais abertos e instáveis seus sentidos, fazendo 73

A tendência claustrofóbica da tela pequena da televisão seria contrabalançada por recursos de representação das distâncias físicas, dentre os quais a perspectiva geométrica aparece como dispositivo visual privilegiado. (GHEUDE. Double vue - l'espace vidéo à la télévision. Communications n. 48, 1988. p.199-213.) Para Gheude, o uso da perspectiva na televisão não visaria representar um espaço aberto (como no Renascimento), mas sim um espaço interconectado e reversível: “É necessário este ponto de vista [distanciado], impossível mas realista, para que seja fundado a super-vista da televisão, a inversão de interior e exterior, para que seja mostrável em uma geometria mundana um espaço que escapa às leis do mundo” (Idem, p. 207). Embora seja restituído o aqui de cada imagem, freqüentemente encontramos na tela imagens de lugares diferentes ou vistas diferentes de um mesmo objeto, associadas fora de qualquer parâmetro da perspectiva geométrica. Gheude chama tal efeito da televisão de “dupla vista” ou “imagem transversal”: “...o dispositivo vídeo não é somente a visualização da passagem do interior ao exterior do ponto-aqui, ele muda o estatuto da tela e o da imagem. Em sua tela de controle, a televisão seleciona suas imagens-fichas e recompõe uma imagem impossível, novo equilíbrio entre detalhe e conjunto, entre interior e exterior, entre o próximo e o longínquo.”(Idem, p. 211). Temos como um exemplo no nosso material empírico, em JNa0/13-15.

42

com que a atribuição de sentido a esses enunciados seja fortemente dependente dos contextos e dos repertórios de interpretação dos sujeitos que os acessam. Tipicamente, as imagens técnicas são marcadas por uma vagueza semântica que, na sua exposição pública, impõe para seus intérpretes tarefas de organização narrativa e atribuição de sentidos morais. O sujeito enunciador televisivo goza de vantagens quanto ao vasto contingente de receptores de seus enunciados; agencia também estratégias não-verbais que permitem relações de identificação impossíveis na mídia impressa. Contudo, esse enunciador corre riscos muito maiores devido à dificuldade de lidar simultaneamente com diversos processos de produção de

sentido

e

também

com

relações

bem

menos

racionalmente

constituídas

e

argumentativamente reguláveis, como as relações de simpatia ou antipatia, projeções inconscientes e identificações pessoais. Embora não seja o caso de discutir os critérios de distribuição do acesso aos dispositivos técnicos e discursivos de controle da enunciação televisiva, deve-se ter em consideração que as estratégias de apropriação do espaço público de cada ator social são limitadas pela desigual proximidade de sua participação na produção telejornalística. Ou seja, o sucesso das intervenções públicas dos atores se relaciona à sua capacidade de estabelecer compromissos mútuos com os atores sociais responsáveis pela operação dos espaços público-mediáticos (os componentes do “ator-midiador”), capacidade que tem correspondências com as hierarquias existentes nas sociedades. Deve-se, portanto, considerar algumas peculiaridades dos espaços público-mediáticos tal como agenciados pelo telejornalismo. A publicização por radiodifusão faz com que os textos dos telejornais tendam a ser estruturados em um desenvolvimento temporal e linear. O uso da videografia, principalmente como dispositivo de produção de imagens “capturadas do real”, torna a indicialidade uma dimensão fundamental para a interpretação do texto telejornalístico.75 Esse texto tem uma natureza híbrida, em que se associam elementos lingüísticos e técnico-imagéticos; disso decorre uma multiplicidade de níveis de articulação simbólica, que vão das nuances da expressão oral às regras de continuidade visual. Tais articulações, além de estabilizar a simbolicidade das vídeo-imagens, definem as LEE. In: CALHOUN, 1993. p. 402-418. FARGIER. Les effets des mes effets sont mes effets. Communications n. 48, 1988. p. 99. 75 Estas peculiaridades das enunciações videográfico-televisivas serão tratadas de modo minucioso adiante, no capítulo dedicado à análise dos enunciados do “ator-midiador” (Capítulo. 4). 74

43

possibilidades de correspondência entre as imagens capturadas e a experiência cotidiana não mediatizada. Uma quarta característica importante aponta a necessidade de atentar para as circunstâncias específicas da produção de enunciados videográfico-telejornalísticos. Para analisar as enunciações televisuais o pesquisador deve referir-se a duas instâncias de enunciação: a primeira é a do enunciador mediador (“ator-midiador”) cuja atividade, mais ou menos escamoteada, traz ao público a “presença” de outras pessoas; a segunda é a do enunciador aparente (emissores da sociedade civil, dos poderes públicos, do mercado etc.) cuja presença em certo espaço-tempo é publicizada na forma de uma aparição televisiva. Como será visto no Capítulo 4, as atividades de atribuição dos sentidos às vídeo-imagens que dão início ao EFN, realizada pelos atores mediáticos, tomam a forma de “operações de camuflagem” do processo da produção e de semantização dessas imagens. O exame de tais operações permitirá também compreender por que a atividade de “midiação” é quase sempre mantida “fora de pauta”, apesar de ser condição de possibilidade das enunciações público-mediáticas.76 As vídeo-imagens objetificam a presença: isso deve ser dito a respeito dos dois sujeitos envolvidos, tanto daquele que, exposto diante da objetiva da câmera, tem registrada sua “presença presente” quanto daquele outro que, enquanto se oculta detrás da ocular, inscreve sua “presença ausente” nas vídeo-imagens. No setting das enunciações telejornalísticas, notase facilmente o quanto os sujeitos envolvidos na produção das vídeo-imagens se cercam de estratégias para fazer aparecer sem aparecer, astutamente transferindo a condição de objeto da atenção pública para outros lugares e outros sujeitos. 77 O enunciador telejornalístico procura ocupar uma posição na qual lhe esteja disponível um leque amplo de estratégias para passar a outros sujeitos o peso da objetificação, seguindo as regras do “rito de objetividade telejornalística”. Esse outro enunciador, posto no centro das atenções públicas, por sua vez, pode recorrer a outras estratégias de aparição público-mediática, transferindo alhures o foco do atribuído interesse público. É o caso, por exemplo, do governante que atribui as 76

A dupla origem dos enunciados videográfico-telejornalísticos fica evidente quando se abordam algumas enunciações como as realizadas com o recurso da candid camera (câmara “cândida”, ou escondida: ref. TIMELIFE BOOKS. The camera. 1973. p. 152-3 e 164). Nenhum enunciador é em última instância capaz de controlar os sentidos que inadvertidamente produz em sua aparição pública, ainda mais em condições de “quasi-interações mediadas” (THOMPSON, 1995). Este sujeito partilha a condição de enunciador com um outro desconhecido. A reificação tecnológica da “objetividade” ou do “realismo” nos dispositivos de captura de imagens técnicas intensifica esta situação paradoxal, mas não a cria, já que as identidades são desde o início “assintóticamente” produzidas sem nunca alcançarem uma definição final absoluta. (Cf. LACAN, 1998.) 77 LATOUR 1996. p. 85-97.

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responsabilidades dos acontecimentos a seus subordinados, ou ainda o do transeunte cujo enunciado é tomado como sendo representativo da perspectiva do conjunto da opinião pública. Em todos os casos, as situações de exposição televisiva implicam uma exposição pública virtualmente ilimitada, na qual os atos, discursos e identidades dos enunciadores são submetidos à interpretação de sujeitos invisíveis e inacessíveis, que escapa ao controle daqueles que se expõem publicamente, e cuja imprevisibilidade as estratégias públicomediáticas de enunciação buscam minimizar. A partir das condições de aparição pública dos espaços televisivos, é que se busca, nesta pesquisa, extrair indicadores das estratégias de aparição televisiva dos atores envolvidos no EFN, mídia, Estado e sociedade civil. Neste trabalho, as enunciações públicas são compreendidas como produções discursivas elaboradas a partir de quadros cognitivos, que Mouillaud chama de “dispositivos”. 78 Esses dispositivos já se encontram publicamente disponíveis, mas também estão sempre sendo reconfigurados e atualizados situacionalmente. Nessa perspectiva, os acontecimentos, temas e atores políticos aparecem publicamente através da sua incorporação em mediações simbólicas e transindividuais, que prefiguram o vocabulário, os percursos narrativos, os padrões de argumentação e os procedimentos de enunciação de cada proferição concreta. Tais quadros não são provenientes de consciências individuais capazes de originar de modo autônomo ações e discursos. Pelo contrário, a inteligibilidade e sensatez das condutas sociais são como qualidades emergentes, correlativas a construções simbólicas coletivamente partilhadas e a “operações intersubjetivas de constituição do espaço comum, de composição de figuras reconhecíveis pelos sentidos”.79 Nos espaços público-mediáticos, o telejornalismo é um importante depositário do repertório de construções simbólicas e procedimentos de representação da realidade política. Apesar da posição central que ocupam para a publicização mediática, os telejornalistas não são, contudo, autônomos para determinar o uso desse ou daquele dispositivo de enunciação. Como será visto adiante, o agenciamento desses dispositivos é a resultante das pressões dos sujeitos em interação em cada enunciação concreta.

78 79

MOUILLAUD. In: MOUILLAUD & PORTO (orgs.), 1997. p. 29-36.

TAYLOR, citado por QUÉRÈ. L'espace public: de la théorie politique à la métathéorie sociologique. Quaderni n.18, outono, 1992, p. 89.

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Segundo Mouillaud, os dispositivos antecipam o texto, conformam e criam um campo de expectativas sobre as ocorrências, sem chegar a ter uma existência autônoma em relação a elas. Esses conjuntos textuais e procedimentais de mediatização preparam os sentidos dos acontecimentos, mas são também sensíveis a estes. Os dispositivos sempre se reconfiguram em algum grau, podendo, no limite, romperem-se pela pressão daquelas ocorrências que tentam conformar como enunciações públicas. Assim, segundo o autor francês, o texto fundador e/ou disruptor precede o dispositivo: emerge de uma situação-problema original e concreta, da qual os sujeitos vão conformando princípios de organização dos enunciadores, dos textos enunciados, dos procedimentos de enunciação/apropriação de enunciados, ou seja, de dispositivos, regras e formatos. “A pressão dos textos 'fora-de-norma' pode deformar o dispositivo ou, até mesmo, fazê-lo implodir”. 80 Há, portanto, uma relação de circularidade ou co-determinação entre textos e dispositivos. Nesta pesquisa, os esforços de investigação foram simultaneamente dirigidos aos conteúdos proposicionais dos enunciados, públicomediaticamente proferidos, e aos procedimentos de enunciação, agenciados pelos atores políticos. Tal atenção foi imprescindível tanto para compreender as interpretações do vídeo-enunciado inicial (a Fita da Favela Naval), quanto para delinear os padrões procedimentais de aparição público-mediática dos atores políticos. Ao longo do EFN, os enunciadores situam-se duplamente no Evento: procuram estabelecer, através de seus enunciados, uma representação de seu relacionamento com os acontecimentos precedentes; ao fazê-lo, reconfiguram todo o hipertexto dos discursos público-mediáticos. A configuração do EFN como um contexto comunicativo permite e/ou constrange os atores políticos a interpretar enunciados de outrem, e também os obriga a submeter suas proferições às interpretações posteriores. Como se sabe, esse lugar ubíquo da aparição pública é pressuposto aos contextos comunicativos públicos em geral, desde os mais arcaicos até os mais “pós-modernos”. Em tal situação (sempre um pouco trágica), o sujeito que se pronuncia diante de um público, forçosamente, tem sua identidade exposta aos riscos da imprevisível problematização pública. 1.4 - O Ato Videográfico como Catalisador das Interações do Espaço Público-Mediático Pode-se dizer que o uso da videografia, em determinados contextos sócio-históricos, favorece a formação de campos de visibilidade temáticos no espaço público-mediático. Em condições 80

MOUILLAUD. In: MOUILLAUD & PORTO (orgs.), 1997. p. 33.

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específicas, a publicização de um enunciado videográfico pode tornar-se capaz de catalisar a dinâmica das interações comunicativas públicas, dando visibilidade ampla a assuntos problematizados de modo sistemático e rotineiro apenas no âmbito dos espaços públicos segmentados. Nas circunstâncias encontradas na eclosão do EFN, o uso público-político da videografia transformou-a em um instrumento privilegiado para a problematização pública de realidades da vida social, de modo bastante específico e intenso. Nesse evento, o choque da denúncia telejornalística das ocorrências dos crimes policiais em Diadema e o escândalo dela decorrente configuram-nas como um acontecimento de extrema relevância pública, desencadeando intensos debates na sociedade brasileira. No conjunto dos espaços públicos, diversos atores políticos buscaram definir quais as interpretações legítimas das vídeo-imagens denunciadoras, interpretações não apenas discursivas como operativas: deliberações parlamentares, decisões judiciais, atos administrativos. Houve um rompimento explícito das expectativas públicas sobre a polícia, pela divulgação de fatos escandalosos,81 criando na mídia um espaço temático que acolheu e deu visibilidade a atores sociais e políticos bastante variados. O uso insistente das imagens técnicas como “atestados de verdade” de enunciações públicomediáticas e os procedimentos rotineiros de narrativação próprios ao telejornalismo não devem

ser

considerados

“espetacularização”

exclusivamente

da esfera pública.

ou

aprioristicamente

Percebidos

em suas

como

fatores

de

ambivalências, esses

procedimentos podem ser eventualmente benéficos, pois favorecem uma apropriação mais empática dos enunciados telejornalísticos pelo público.82 J.B. Thompson, ao discutir as possibilidades de revitalização democrática do espaço público, cita o evento mediático 81

O “escândalo”, nesse caso, resultou menos do rompimento de expectativas no plano do “conteúdo” (crimes policiais não são novidade para a sociedade brasileira) do que no plano do “enquadramento” das ocorrências: a exibição mediática dos crimes policiais do ponto de vista da comunidade atingida é inusitada para o público brasileiro. Esse deslocamento de ponto de vista, contudo, foi tematizado muito superficialmente pelos telejornais. Esses fatos confirmam a percepção de Castro (1997. p. 205): “É como se o acesso mediatizado à realidade faça com que o segredo se desloque continuamente para os campos em que a realidade é apropriada, de forma direta, pela experiência, algo que é cada vez mais dificultado ao cidadão comum que não participa dos círculos do poder, nem dispõe de conhecimentos especializados que o habilitem a ingressar nos circuitos tecnocráticos.”. A autora cita Rodrigues: “Paradoxalmente, é através do mecanismo de revelação das margens do tecido social, da criação da ilusão da totalidade da transparência total, do acesso direto e espontâneo à totalidade da experiência... que os media contribuem para a camuflagem das zonas de sombra do poder, desviando delas pudicamente o olhar.” (RODRIGUES, 1990. p. 162) 82 Habermas refere-se explicitamente a importância da “dramatização” das situações-problema como instrumento para seu transporte para os espaços públicos amplos. Há portanto que se distinguir a “encenação” de consensos da “dramatização” pública de questões não-problematizadas, provenientes da vida cotidiana. (HABERMAS, 1996. p. 359)

47

desencadeado pela exibição da videogravação do espancamento do motorista negro Rodney King em Los Angeles para reavaliar as possibilidades de usos politicamente criativos dos atos videográficos e a sua apropriação telejornalística:

Esta abordagem da publicidade mediada também nos capacita a compreender por que a aquisição de visibilidade pode colocar em movimento uma cadeia de eventos que desdobram-se de maneira imprevisível e incontrolável. Imagens e mensagens da mídia podem atiçar profundas divisões e sentimentos de injustiça que são experienciados pelos indivíduos durante seu dia-a-dia. A mídia pode politizar o cotidiano tornando-o visível e observável por vias que anteriormente seriam impossíveis, portanto transformando eventos cotidianos em catalisadores para ações que transbordam para muito além dos lugares imediatos onde estes eventos ocorreram.83

O autor caracteriza as interações entre os atores políticos no espaço público mediatizado como “lutas por visibilidade”. Como será observado nos enunciados que compõem o texto do EFN, alguns dos atores parecem querer ser vistos e ouvidos na televisão, durante o maior tempo e da melhor maneira possível (as empresas de comunicação, o “povo-falante” da rua, os deputados da CPI, os advogados dos policiais acusados). Outros, no entanto, se esforçam ao máximo para não serem colocados no foco das atenções públicas (os acusados e suas famílias, as testemunhas e as vítimas temerosas de represálias). O caráter estratégico dos espaços públicos tele–audiovisuais, como será investigado, coloca em uma situação de confronto os atores sociais mediados (da sociedade civil e dos poderes públicos), e também os atores sociais mediadores (as equipes de reportagem das empresas de comunicação). À medida que se desenvolvia o EFN, o foco do atribuído interesse público se deslocava continuamente, passando de um ator para outro e pelas diversas estratégias de interpretação das vídeo-imagens iniciais, que pareceram funcionar como catalisadores da dinâmica das interações público-mediáticas. Catalisadores são as substâncias que aceleram processos químicos, que sem sua presença ocorreriam muito lentamente ou não ocorreriam de determinada maneira. A substância catalisadora é constantemente transformada mas não é consumida nas transformações de que participa. É capaz de se conectar a outros reagentes, combiná-los entre si e, em seguida, deles se desconectar, recompondo-se. Um enunciado público catalisador, nesse sentido, disporia, 83

THOMPSON, 1996. p. 248 (Grifo e tradução do autor)

48

em alguma medida, da capacidade de correlacionar os discursos e as perspectivas mais diversas e, ainda assim, permanecer disponível para que novas correlações sejam estabelecidas. Assim, em circunstâncias determinadas, a dinâmica da esfera pública pode ser catalisada pela emersão de vídeo-imagens como as da FFN, ensejando a formação de um espaço de visibilidade pública no qual as interações entre os atores políticos e sociais seriam intensificadas e tematicamente focalizadas. Convocados pelo “espetáculo da escandaleira”, os atores sociais mobilizam seus recursos retóricos e organizacionais para suportar (no sentido duplo) e aproveitar as situações de exposição pública, durante o maelstrom comunicativo desencadeado pela publicização do enunciado inicial do EFN. Isso se deve ao fato de que o escândalo, que dá proeminência aos enunciadores, pode também comprometê-los.84 Enquanto oportunidade de aquisição de visibilidade, o evento mediático escandaloso acarreta grandes perigos para a estabilidade das identidades públicas de enunciadores que pretendam se apropriar dele. A situação justifica a panóplia de procedimentos defensivos e o constrangimento de quem não dispõe de dispositivos capazes de desviar alhures, e para outrem, o processo de objetivação.85 Na análise dos enunciados do EFN, será feita uma reconstrução dos processos através dos quais os diversos enunciados se inter-relacionam no espaço comunicativo dos telejornais, tecendo a complexa teia de relações que constituiu, como contexto público temático, o “hipertexto” do Evento da Favela Naval. Pretende-se retraçar como os atores sociais construíram conjuntamente os sentidos da ocorrência e do acontecimento iniciais, no intuito de examinar como as diferentes estratégias de intervenção na esfera pública manifestaram-se concretamente. Com base nesse entendimento, esta pesquisa espera ajudar a esclarecer como as vídeo-imagens são incorporadas aos discursos dos espaços públicos políticos, tornando mais inteligíveis as relações estabelecidas pelos enunciadores entre si e com a esfera pública.

84

De fato, a palavra “escândalo” tem duas acepções: (a) “Repulsão ou indignação que causam as ações, os discursos, as pessoas de mau exemplo”, a mais conhecida, em que o sujeito se distancia de seu objeto de aversão; (b)”Tudo o que é causa de errar ou de se cair no erro ou no pecado; Provocação ao erro pelo exemplo de uma má ação ou de um discurso corruptor;”. (CALDAS AULETE, 1958. p. 1852-3.). Escândalo enquanto mau-exemplo é a acepção menos usual, mas é particularmente reveladora, para a compreensão das intervenções dos atores da esfera pública em situações como a gerada no início do EFN: há, naquilo que atrai a atenção, uma estranha proximidade entre o aversivo e o sedutor. 85

TUCHMAN. In: TRAQUINA (Org)., 1993. Cf. também LATOUR, 1996, p. 85-97.

49

CAPÍTULO 2 CONCEPÇÃO

E

INSTRUMENTAL METODOLÓGICO

Este é o exemplo do crime ordinário, embora bárbaro. Nele nada há de especificamente outré. Você observará que, por esta mesma razão, deveria ser considerado de solução difícil. ...a facilidade com que foram concebidas essas várias fantasias e a verdadeira plausibilidade que cada uma delas assumia deveriam ser entendidas como indicativas mais das dificuldades do que das facilidades ligadas à explicação do enigma. Tenho por esta razão observado que é pelos cumes, acima do plano ordinário, que a razão tateia seu caminho, se bem que, de qualquer modo, na sua busca da verdade, e em casos tais como esse, a pergunta devida não é tanto “o que ocorreu?”, mas “o que ocorreu que nunca antes ocorrera?” (Edgar Allan Pöe, “O mistério de Maria Roget”.)

2.1 - Hipóteses

Tendo já percorrido o conjunto de temas e referências teóricas da pesquisa, as hipóteses de investigação, já brevemente enunciadas na Introdução desta dissertação, podem ser retomadas. Este texto pretende compreender o Evento da Favela Naval segundo sua dualidade de construção discursiva hipertextual e de processo político público. Assim, as hipóteses adotadas nesta pesquisa são complementares: I - A publicização mediática do enunciado inicial do EFN constitui um campo temático público para onde convergem enunciados de diversos atores políticos cujas interações tornam reflexivo o acontecimento, promovendo sua expansão como um hipertexto público-mediático. II - Cada ator político intervém publicamente, emitindo enunciados que incorporam as vídeo-imagens denunciadoras e as interpretações precedentes em discursos narrativos consistentes com sua perspectiva e com alguns possíveis padrões procedimentais de intervenção na esfera pública. Note-se que as duas proposições estão entrelaçadas. O enunciado videográfico inicial tem um apelo de "testemunho objetivo", convocando interpretações narrativas; contudo, dado seu caráter indicial, tais tentativas de assimilação discursiva permanecem inconclusivas, mantendo aberto o campo de interpretação. Em cada nova interpretação inscrevem-se

50

diferentes estratégias de apropriação dos espaços públicos, concretamente mobilizadas pelos atores coletivos. Em tal perspectiva, podem-se traçar alguns padrões procedimentais de intervenção de diferentes tipos de atores sociais, no decorrer da "urdidura" do hipertexto do EFN, dentro do qual cada enunciado individual corresponde a um nó que reconfigura e interpreta uma rede de argumentos anteriores.

2.2 - Material empírico

O material analisado nesta pesquisa é constituído por gravações de trechos de transmissões de telejornais e outros programas noticiosos televisivos, emitidos entre 31 de março e 14 de abril de 1997. Esses trechos correspondem a "matérias" relacionadas ao Evento da Favela Naval, ou seja, a denúncia dos crimes cometidos por policiais na esquina das ruas Naval e Afonso Brás (Diadema), entre 5 e 7 de março de 1997, e a cobertura das "repercussões" da denúncia. A decisão de limitar esta análise às duas primeiras semanas do Evento resultou do trabalho de pesquisa temática nas edições da Folha de S. Paulo do ano de 1997. 86 Utilizando o browser instalado para a pesquisa no arquivo eletrônico, selecionaram-se aquelas matérias relacionadas ao EFN, através das palavras-chave "Diadema", "Favela Naval", "Rambo", "cinegrafista amador" e "vídeo". Constatou-se que mais de um terço do total das menções aos termos, ao longo de todo o ano de 1997, estava concentrada nas duas primeiras semanas de abril. Além disso, como a pesquisa visa acompanhar a construção da denúncia e os desdobramentos desta em termos da criação de um campo temático no espaço televisivo, considerou-se que os dados mais significativos teriam emergido nos primeiros dias do Evento. O material empírico foi obtido através de três diferentes fontes: de empresas de clipping eletrônico87 (Ícone Vídeo, de Belo Horizonte; Clip e Clipping, de Brasília), gravações feitas pelos alunos de graduação em Comunicação (disciplina "Projeto Especial I") e a reprodução do material arquivado pela Prefeitura de Diadema (clipping feito pela paulistana Spy Clipping). 86 87

CD-ROM Folha edição 98.

Infelizmente, as empresas de comunicação contatadas por este autor (a TV Globo e a TV Bandeirantes) se negaram a fornecer as gravações das suas transmissões. Recorrendo às empresas de clipping eletrônico, tivemos acesso à gravação daquelas "matérias" consideradas por elas como concernentes ao assunto, mas não às edições completas dos telejornais.

51

O corpus empírico é composto pelos seguintes transmissões televisivas: 31 de março

Band: Jornal da Noite Globo: SPTV, Jornal Jornal da Globo

Nacional,

2 de abril

Band: Acontece, Jornal da Band, Jornal da Noite Canal 21: Jornal do Meio-Dia, Jornal das Dez

1° de abril

Band: Jornal da Band

CNT: 190 Urgente, CNT Jornal

CNT: CNT Jornal

Cultura: Jornal da Cultura

Globo: SPTV, Jornal Nacional

Globo: SPTV, Jornal Nacional

GloboNews: Jornal das Dez

Record: Informe SP, Cidade Alerta

GNT: Cinco Minutos

SBT: Aqui Agora, TJ Brasil – Noite

Manchete: Edição da Tarde 3 de abril

Band: Jornal da Band

8 de abril

Canal 21: Jornal SP, Jornal das Dez CNT: CNT Jornal

Globo: Jornal Nacional 9 de abril

Globo: SPTV, Jornal Nacional

Band: Jornal da Band Globo: Jornal Nacional

SBT: Aqui Agora, TJ Brasil

GNT: 190 Urgente 10 de abril

4 de abril

Band: Jornal da Band

Band: Jornal da Band

Canal 21: Jornal SP Globo: Jornal Nacional

Canal 21: Jornal SP, Jornal das Dez CNT: CNT Jornal

11 de abril

Canal 21: Jornal SP Cultura: Jornal Opinião Nacional

Globo: Bom Dia São Paulo, SPTV, Jornal Nacional

da

Cultura,

Globo: Jornal Nacional

SBT: TJ Brasil

SBT: Aqui Agora, TJ Brasil 5 de abril

Band: Jornal da Band

12 de abril

Band: Jornal da Band SBT: Aqui Agora, TJ Brasil

6 de abril

Globo: Fantástico

13 de abril

(Nenhum)

7 de abril

Band: Jornal da Band

14 de abril

Band: Acontece, Jornal da Band

Cultura: Jornal da Cultura Globo: SPTV, Jornal Nacional SBT: TJ Brasil

Canal 21: Jornal Meio-Dia, Jornal SP, Jornal das Dez Globo: SPTV, Jornal Nacional Manchete: Jornal da Manchete

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Deve-se notar que, a despeito da extensão do material telejornalístico consultado, a análise concentrou-se em dois telejornais: o Jornal Nacional (JNa) da Rede Globo de Televisão, e o Jornal da Band (JBa), da Rede Bandeirantes. Edições de outros telejornais foram também examinadas, quase sempre para explorar determinados aspectos das aparições de alguns enunciadores que aparecem tangencialmente ou não aparecem naqueles telejornais. Outras edições, posteriores a 14 de abril, foram também examinadas, para esclarecer detalhes sobre a participação de determinados emissores no Evento.88

2.3 - Instrumental analítico

O esforço de construção de um instrumental analítico específico para a realização desta pesquisa deve-se às dificuldades encontradas no manuseio do material empírico, para a produção dos dados de análise, e também às especificidades da instrumentalização analítica das referências teóricas aqui utilizadas. Ao longo do trabalho de investigação dos textos que compõem o objeto empírico, evidenciouse a necessidade de conceber um instrumental que não negligenciasse a composição híbrida do texto telejornalístico. O objetivo desse instrumental, portanto, é explicitar, através das articulações entre os componentes lingüísticos e audiovisuais dos enunciados, as diferentes formas de intervenção no espaço mediático incorporadas pelos atores políticos aos textos televisivos. Para "rastrear" padrões procedimentais de intervenção na esfera pública, impôs-se a necessidade de criar instrumentos que permitissem tratar as transmissões como um hipertexto aberto e "encarnado", no qual se inscreveram não só enunciados como também modos de

88

17 de abril: Globo: Bom Dia São Paulo; 18 de abril: Globo: Jornal Nacional; 22 de abril: Canal 21: Jornal do Meio-Dia, Cultura: Jornal da Cultura; 23 de abril: Globo: Bom Dia Brasil, SPTV, GNT: Cinco Minutos, Rede Vida: Rede Brasil; 24 de abril: Globo: Bom Dia Brasil, SPTV; 25 de abril: Globo: SPTV, Record: Cidade Alerta; 26 de abril: Manchete: Jornal da Manchete; 28 de abril: Globo: SPTV, Manchete: Jornal da Manchete, Record: Jornal da Record, SBT: TJ Brasil; 29 de abril: Band: Jornal da Noite, Canal 21: Jornal das Dez, Globo: SPTV, SBT: TJ Brasil; 30 de abril: Band: Jornal da Noite, Record: Jornal da Record; 2 de mai.: Cultura: 60 minutos.

53

enunciação. A compreensão desses modos exigiu uma abordagem mais pragmática89 do texto videográfico em questão. Embora não tenham sido encontrados exemplos de metodologias preexistentes capazes de satisfazer de pronto as exigências específicas desta pesquisa, trabalhos que se apoiaram principalmente no esforço de reinterpretação de dados empíricos foram tomados como referência. Investigações como as realizadas por Soares e Carneiro ou por Sanchis 90 demonstram que mesmo dados coletados através de dispositivos muito comprometidos com pressupostos ideológicos podem prestar-se a interpretações esclarecedoras sobre os objetos de investigação, desde que reorganizados segundo categorias teóricas apropriadas. Essas parecem ser também as condições do texto videográfico do EFN: todos os enunciados, quaisquer que sejam seus enunciadores — a começar pelos atores da mídia —, estão impregnados de estratégias de apropriação da esfera pública. Por serem refratários a categorizações muito genéricas ou abstratas e a quantificações mais imediatas, esses enunciados exigem uma "leitura" minuciosa não só do seu conteúdo, mas principalmente dos procedimentos de enunciação. A análise do material empírico foi feita em três etapas: na primeira, os telejornais foram transcritos e organizados; na segunda, os enunciados foram agrupados conforme três perspectivas discursivas, denominadas "ator-midiador", "ator-polícia" e "ator sociedade civil"; na terceira, mais interpretativa, cada enunciado foi detidamente examinado, buscando-se identificar as particularidades de cada situação de enunciação e suas características enquanto narrativas. A organização inicial do material foi feita através da decupagem das edições do Jornal Nacional, do Jornal da Band e de alguns outros telejornais cuja referência se tornou necessária para caracterizar o discurso de cada ator. A árdua tarefa da decupagem, muito semelhante àquela outrora91 utilizada para a análise de filmes, serviu para ampliar o espaço de investigação do texto televisual. Nas condições originais da sua exibição, a radiodifusão do 89

GUIMARÃES. Algumas notas sobre a interlocução entre a análise do discurso e a teoria da comunicação. In: MARI et alii (Orgs.), 1999. 90

CARNEIRO & SOARES. Os quatro nomes da violência: um estudo sobre éticas populares e cultura política. In: SOARES et alii, 1996. SANCHIS. Da Quantidade à Qualidade - Como detectar as linhas de força antagônicas de mentalidades em diálogo. s/d. 91

Cf. BELLOUR, 1997. p. 20-25.

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texto telejornalístico determina a coincidência entre o processo de apropriação pública e o momento da transmissão. Nessas condições, o texto televisual tem uma natureza efêmera, pois fica à disposição dos telespectadores apenas durante um momento único e passageiro. Como se sabe, a relação entre o produtor e o apropriador do texto televisivo é muito assimétrica, pois o produtor dispõe de mais tempo e de recursos muito mais sofisticados que os acessíveis pelo público telespectador, para a interpretação das ocorrências. Ao examinar o mesmo texto gravado em fita, procurou-se explicitar as marcas do processo de produção do telejornal. O deslocamento do suporte do texto telejornalístico, da radiodifusão para o registro em videoteipe, muda sua temporalidade: inscrito com certa permanência e desdobrado como texto verbal digitalmente manuseável, o texto audiovisual dos telejornais torna-se mais acessível a interpretações aprofundadas. O uso do registro videográfico e das transcrições, além da simples "praticidade", promove um primeiro "distanciamento teórico" e torna os enunciados aleatoriamente acessíveis (como um texto escrito). Isso favorece a visualização da estrutura dos discursos em conjunto, e no modo como são agrupados dentro de cada edição, de cada seqüência e em cada enunciado individual. Tendo à disposição um registro das transmissões dos telejornais, foi possível para o pesquisador analisar cuidadosamente os recursos de articulação

lingüístico-audiovisuais

empregados92

e

avaliar

a

contribuição

desses

agenciamentos para a formação do campo de visibilidade do EFN. Posteriormente, seguindo a ordem cronológica das transmissões, os enunciados foram reagrupados segundo as pertinências dos emissores empíricos às perspectivas dos atores da esfera pública, cujas enunciações pretendia-se examinar em conjunto. A definição de ator político segue aqui a categorização proposta por Habermas93 e foi instrumentalizada para a análise dos discursos narrativos através da noção de actante. 94 Desse modo, cada um dos três atores políticos em questão foi constituído segundo uma determinada perspectiva discursiva distinta que é relacionada às diferentes posições da esfera pública. O ator-polícia é composto pelos enunciadores que se encontram associados às burocracias do Estado, conexas ao poder executivo, e mais exatamente, à corporação policial-militar paulista. O ator-midiador agrupa 92

Embora não seja o caso desta pesquisa, este procedimento tem implicações interessantes para a reflexão sobre as diferentes características da produção de sentido através da videografia/videoscopia. Cf. FARGIER, Les Effets de mes effets son mes effets. Communications, n. 48, 1988. 93 HABERMAS, 1996. (Cap. 8 - A Sociedade Civil e A Esfera Pública Política, Seção 8.3.3., tradução do original alemão pelo prof. Menelick de Carvalho Neto). 94

REIS & LOPES, 1988. p. 144. Cf. também GREIMAS & COURTÉS, s/d. p. 12-14; BAPTISTA, Narratologia. Imagens, n.2, 1994.

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os emissores devotados à atividade de produção e circulação de discursos públicos. O ator sociedade civil, finalmente, congrega todos os sujeitos que, situados na "periferia da esfera pública", vêm a público, no contexto do EFN, se manifestar. Esse “ator” inclui desde as pessoas situadas na chamada "esfera pública anárquica", constituída nas conversas cotidianas informais, até os enunciadores que representam as chamadas “organizações autônomas da sociedade civil”, que constituem espaços públicos temáticos específicos. Nessa definição, cada ator é constituído pelas proferições de muitos enunciadores concretos, que se encontram em situações de enunciação bastante variadas. Essas categorias de agrupamento tiveram a função heurística de permitir definir, dentre uma grande pluralidade de proferições públicos, linhas de convergência entre os discursos narrativos concretos. Evidentemente, houve diversos emissores que se encontraram — por seus esforços retóricos ou não — em posições “fronteiriças” e se situaram, de modo ambivalente, em mais de um desses grupos. Na terceira etapa do trabalho, já agrupados os enunciados pertinentes a cada ator, procedeu-se a um exame minucioso das operações de enunciação e das características das narrativas propostas em cada enunciado emitido no contexto do EFN. Como esses enunciados eram muito numerosos e freqüentemente muito fragmentários, foram reunidos em conjuntos de características narrativas e de enunciação semelhantes. No caso do ator-midiador, houve um cuidado específico em evidenciar as operações lingüístico-audivisuais de semantização das vídeo-imagens, que o telejornalismo agencia de modo privilegiado. Trata-se da utilização de recursos de narrativação tipicamente audiovisuais, de recorte espaço-temporal (enquadramentos e cortes) e de justaposição significante (efeitos de continuidade da edição de imagens, de som, uso de efeitos digitais e de caracteres). Para analisar o uso desses recursos de produção de discursos, utilizaram-se como parâmetro as teorias clássicas da montagem, 95 apoiadas em pesquisas específicas sobre procedimentos de enunciação através de imagens técnicas em geral e do suporte videográficotelevisivo em específico.96

95

EISENSTEIN. A Forma do Filme, s/d. EISENSTEIN. O Sentido do Filme, s/d.

96

Além dos textos citados em outras partes desta pesquisa, foram de fundamental relevância os seguintes textos:

BARTHES, 1984; DELEUZE. Ano Zero - Rostidade. In: Mil Platôs, v. 3, 1996; MACHADO. Máquinas de Aprisionar o Carom. In: Máquina e Imaginário, 1993; MACHADO, 1990; GHEUDE, M. Double Vue. Communications n.48, 1988; NOVAES (Org.), 1991.

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No caso dos atores "midiados" (ator sociedade civil e ator-polícia), mereceram particular atenção os procedimentos utilizados por esses atores nas situações de enunciação televisiva propostas pelos midiadores (gravação ou de transmissão em direto dos enunciados). A esse respeito, tomou-se como principal referência os trabalhos de análise de telejornais franceses realizados e expostos pelo prof. Maurice Mouillaud.97 Em todos os enunciados, fez-se o escrutínio de sua configuração enquanto discursos narrativos. Optou-se por utilizar a narratividade como principal critério de análise, levando em consideração as características do objeto em questão. O EFN foi desencadeado pela publicização de vídeo-imagens de atribuída qualidade indicial. O procedimento mais ancestral e também mais corriqueiro de incorporação discursiva (ou semantização) de índices é a construção de narrativas. Boa parte dos discursos narrativos são elaborados para reconstruir cadeias causais ou para sugerir regras de transformação, com referência às quais um dado objeto trazido à atenção pode ser tomado como resultado, físico e/ou lógico. 98 Desse ponto de vista, durante o EFN, a forma pela qual cada enunciador concreto "ajusta" as vídeo-imagens (e seus sentidos já disponíveis) em uma dada configuração narrativa traduz, em boa medida, as peculiaridades da perspectiva desse emissor sobre os "fatos" — ou melhor, revela quais as interpretações que esse ator considera mais apropriadas para trazer a público, conforme seus interesses particulares. Os parâmetros

da análise narratológica mostraram-se particularmente úteis para

operacionalizar o exame dos enunciados telejornalísticos. A teoria da narrativa e da semiótica pragmática foram fundamentais para esta pesquisa, constituindo os instrumentos que orientaram sua perspectiva sobre o material empírico e o trabalho de investigação. Por ora, basta mencionar aqueles conceitos da narratologia que tiveram maior relevância para a consolidação dos percursos narrativos típicos de cada ator político. As anacronias de freqüência mostram a disposição (ou capacidade) dos enunciadores em tomar a FFN como um "exemplo", no discurso iterativo, ou como uma "exceção", no discurso 97

Em comunicação realizada em junho de 1997, o professor expôs suas análises sobre uma entrevista concedida pelo presidente Mitterrand a um jornalista, através da qual se evidenciava a relação de dupla coação entre um enunciador "midiador" e outro "governante"; o trabalho mostrado em seguida foi o estudo da representação telejornalística do funeral do ex-presidente francês François Mitterrand, em que o professor mostrava a aglutinação de tempos e espaços distanciados que os eventos mediáticos constituem. 98

GUINZBURG, 1989. p. 143-179

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singulativo. O uso de uma ou outra freqüência traduz as diferentes formas de representar a temporalidade das ocorrências: ou segundo uma forma fragmentada, em que, por suas diferenças, cada fato aparece isoladamente; ou em uma forma articulada, na qual, por suas semelhanças, os fatos são reunidos em um conjunto e apontam para uma percepção mais generalizante dos acontecimentos. As anacronias de velocidade tiveram uma aplicação semelhante: a construção cênica (isocrônica) dos relatos mostra uma propensão dos enunciadores a ficarem "colados" nas ocorrências; já o uso de sumários conota a disposição para generalizações, nas quais os emissores agrupam diversas ocorrências em uma única emissão narrativa. O uso da extensão demonstra uma sobrevalorização de atos, gestos e discursos, que, geralmente, são "pinçados" por serem considerados especialmente iluminadores;99 inversamente, as elipses caracterizam a inclinação do emissor a omitir determinados acontecimentos, cujo relato é por ele considerado desnecessário ou pouco apropriado. A pessoa da narração (narrador homo/auto/heterodiegético) aparece em alguns momentos caracterizando um movimento de aproximação ou de distanciamento do enunciador em relação às ocorrências. De modo semelhante, variações de focalização ou perspectiva narrativa conotam pretensões dos emissores, ou a "tudo" saberem, quando isso lhes parece conferir maior legitimidade pública, ou a serem ignorantes em relação a determinados aspectos das ocorrências, caso em que os enunciadores tentam parecer "inocentes" em relação a fatos cujo conhecimento os comprometeria. A grande relevância do exame das operações de mudança de nível narrativo e de voz foi demonstrada durante todo o trabalho de análise. As remissões de cada enunciado narrativo a declarações provenientes de outros emissores, demarcadas de várias maneiras, são os procedimentos que constituem as conexões entre os diversos fragmentos discursivos, configurando a "hipertextualidade" do EFN. A natureza dessas conexões varia conforme os atores e suas retóricas específicas. Os "atores midiados" (ator sociedade civil e ator-polícia) podem lançar mão apenas dos recursos sintáticos próprios à expressão oral para reproduzir as proferições alheias. Os midiadores, no entanto, dispõem de um leque mais diversificado de procedimentos desse tipo,

99

Cf. ARNHEIM. The Two Authenticies of the Photographic Media. Leonardo v.30 n.1, 1997.

58

agenciando também as formas pragmáticas de remissão, oferecidas pelos recursos de expressão videográfica. Segundo Mouillaud, a reprodução de (conexão com) enunciados alheios...

...põe face a face universos de discursos diferentes, que devem ser articulados no interior de uma enunciação única, aquela do locutor que reproduz o enunciado de um outro locutor. O enunciado produzido deve possuir uma isotopia (...), deve, em um certo nível, fazer desaparecer a solução de continuidade entre discursos. Entretanto, para que tenha efeito de reprodução, é necessário que a diferença do enunciado de citação seja mantida. Se ele desaparecesse sem que nenhuma marca permitisse identificar uma parte do enunciado como a propriedade de um outro enunciador, a citação se perderia no processo geral da intertextualidade. 100

A reprodução, portanto, em um limite, constitui-se pela apresentação mimética da enunciação alheia, pragmaticamente distinta da "enunciação portadora". No caso do telejornalismo, isso acontece no (raríssimo) caso da reprodução integral das vídeo-imagens registradas de uma proferição. O outro limite é a assimilação intertextual do enunciado alheio, quando os conteúdos e procedimentos da enunciação externa são incorporados à enunciação portadora, com o apagamento das marcas dessa incorporação. O exemplo, no contexto telejornalístico, é a divulgação de informações sem indicação da fonte, quando a equipe de reportagem assume a produção de conteúdos provenientes de fontes externas. Entre um extremo e outro, o telejornalismo desdobra inúmeras formas intermediárias de reprodução, associando operadores sintáticos e pragmáticos, recursos lingüísticos e audiovisuais. Dentre eles, destacam-se: — A "dublagem" em off, na qual a imagem do enunciador (cuja voz ocupa o background sonoro) "ilustra" o relato de sua proferição, cujo resumo (nem sempre fiel) é feito pela locução em off do repórter. O presumível efeito desse tipo de reprodução é a atribuição de veracidade e autoralidade a uma proferição que, em última análise, constitui uma interpretação, elaborada pelo telejornal a partir da emissão original. — O "pseudo-sinc", em que o enunciado verbal do enunciador midiado é editado e "coberto" por sua própria imagem. A intenção desse procedimento, geralmente, é 100

MOUILLAUD, 1997. p.122-3. Esse autor parte de reflexões de M. BAKHTINE (Marxismo e Filosofia da Linguagem), originariamente utilizadas na análise de textos literários, e as emprega na avaliação de textos jornalísticos.

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"limpar" as vacilações e ambigüidades de uma emissão alheia, tornando-a mais incisiva ou consistente, sem que a exterioridade da fonte seja comprometida. O “pseudo-sinc” pode ter também usos mais maliciosos, por exemplo: a reportagem pode usar a voz e as imagens de determinado enunciador para “fazê-lo dizer” o que não disse, realmente. Tais procedimentos, tipicamente telejornalísticos, podem ser compreendidos como adaptações, para o contexto televisivo, de procedimentos de reprodução bem conhecidos, usados pelo jornalismo impresso: — A "reprodução polifônica", através da qual as proferições dos midiadores "comportam marcas que delimitam o enunciado reproduzido, mas esse é nada mais que um fragmento (palavra ou sintagma), que não é susceptível de autonomia." Nela, a chamada "componente semântica" do enunciado externo é "reciclada" pela intervenção do midiador; mas, como a ação verbal (que “constitui o núcleo do discurso”) é conservada, “lida-se com um modo de reprodução que está muito próximo da reprodução direta do enunciado completo”. 101 — A "estratégia da amálgama", que ocorre quando "os enunciados que, referindo-se a um discurso primário, não permitem que, dos mesmos, sejam recuperados os índices por limites claros e estáveis". Através desse procedimento, o midiador inclina-se mais à assimilação intertextual do enunciado alheio, dificultando a percepção dos limites entre suas declarações e as que lhe são externas, através da substituição dos vocábulos alheios pelos seus. A reprodução fica impregnada da interpretação do midiador, que reproduz a emissão externa em conformidade aos seus objetivos particulares.102 A apresentação final das análises foi organizada, não segundo a cronologia exata das enunciações, mas tomando como referência os conjuntos de procedimentos de enunciação e percursos narrativos que se distinguiram como particularmente característicos de cada ator, considerando-se que esta disposição seria a mais adequada para a avaliação das hipóteses da pesquisa.

101

MOUILLAUD, 1997. p. 133-7.

102

MOUILLAUD, 1997. p. 137-9.

60

CAPÍTULO 3 O ATOR-MIDIADOR “Começo a acreditar, Watson”, disse Sherlock, “que cometi um erro ao me explicar. ‘Omne ignotum pro magnifico’, você sabe, e minha pobre e modesta reputação, tal como é, sofrerá um naufrágio se me faço assim tão cândido.” “...vejo que acabo por me trair sempre que dou explicações... Resultados sem causas são muito mais impressionantes.” (Arthur Connan Doyle,“A Liga dos ‘Cabeça Vermelha’” e “O Escrevente do Cambista”.)

Este capítulo apresenta as análises dos enunciados do EFN que caracterizam o modo de intervenção dos atores da mídia (telejornalistas e telejornais) na esfera pública, durante o Evento estudado. Na Seção 3.1 parte-se da discussão das propriedades semiósicas das vídeoimagens para questionar seu uso como provedoras de “testemunhos objetivos”, emprego privilegiado na produção dos textos dos telejornais. Na Seção 3.2, analisam-se alguns problemas do uso público político das vídeo-imagens durante o EFN. A Seção 3.3 trata das características do narratário dos telejornais, através das quais serão examinados alguns aspectos importantes da relação que os midiadores buscam estabelecer com seu público.

3.1 — Instabilidade e demandas interpretativas das imagens em vídeo

As especificidades dos processos de significação das imagens técnicas constituem uma referência fundamental para a construção do quadro analítico desta pesquisa: não se pode esperar alcançar alguma compreensão sobre o funcionamento dos espaços televisivos sem uma concepção clara da maneira pela qual as vídeo-imagens são coletivamente apropriadas como signos publicamente relevantes. A importância desse aspecto é particularmente pronunciada no EFN, por este ter-se desencadeado a partir de uma enunciação videográfica de características incomuns. As vídeo-imagens serão caracterizadas segundo uma abordagem semiótico-pragmática, para melhor explicitar a relevância da dimensão do uso dos dispositivos de enunciação telejornalística para a compreensão do papel desempenhado pelo ator-midiador no EFN.

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3.1.1 — Iconicidade e Indicialidade

Há muitos caminhos para definir as vídeo-imagens. Em cada percurso diferente estão implicados distintos projetos teóricos e mesmo ideológicos. Serão brevemente descritas as características das vídeo-imagens enquanto imagens, para, em seguida, abordarem-se as questões trazidas pelo “apelo factual” que as chamadas imagens técnicas alcançam, no âmbito do senso comum. Uma trajetória comumente adotada para a caracterização da videografia é a realização de um inventário das capacidades pictográficas e fonográficas desse suporte. Distinguir as vídeoimagens a partir de qualidades sensíveis peculiares significa tratá-las segundo a sua capacidade de representar objetos por com eles compartilhar algumas qualidades sensíveis; ou seja, significa defini-las segundo sua iconicidade. As vídeo-imagens são imagens audiovisuais em movimento. O vídeo é um dispositivo capaz de reproduzir as características luminosas dos objetos em movimento e também as ondas sonoras emitidas em um determinado ambiente. As vídeo-imagens representam as transformações das qualidades sensíveis (acústicas e visuais) dos objetos, durante intervalos de tempo determinados. Por essa capacidade, a videografia se assemelha muito ao cinema. No entanto, chega a superar a capacidade desse de representar objetos em suas durações, já que, na videografia, o registro da imagem visual (obtida através do dispositivo da camara oscura) é realizado através da temporalização103 dessa imagem através de processos análogos aos empregados no registro da imagem acústica. Ambas imagens, videográficas e fonográficas, são transformadas em um sinal eletrônico. Esse sinal é magneticamente registrável e eletromagneticamente transmissível. Por se constituírem enquanto sinais eletrônicos, as vídeoimagens dispõem de uma plasticidade e transmissibilidade singulares: podem ser gravadas, manipuladas e depois exibidas “em play-back”(video-grafia), bem como captadas, transmitidas e exibidas “em direto” (video-scopia).

103

A temporalidade da componente pictórica da videografia é mais fundamental que a da cinegrafia, pois ao contrário desta, não é determinada a priori em relação ao tempo, como o são os fotogramas no cinema (cada um com todos os pontos sincrônicos). No vídeo, a forma dos objetos no espaço é representada pela síntese temporal de pontos e linhas luminosas (cada ponto registrado em um instante diferente). Para uma discussão detalhada sobre os aspectos pictográficos da videografia, cf. MACHADO, 1990. Caps. “O retalhamento da figura” e “Definição e pregnância da imagem”.

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A caracterização das especificidades das vídeo-imagens a partir de suas capacidades miméticas (iconicidade) é válida e útil para esta discussão, na medida em que possa mostrar algumas características importantes dos enunciados mediáticos: a criação de “presenças ubíquas” nas transmissões e a introdução de conotações, através de recursos de recorte e montagem na criação de continuidades visuais. Entretanto, uma tal caracterização é ainda insuficiente para uma compreensão daquela que se tornou a principal “utilidade pública” das vídeo-imagens, o seu emprego enquanto “testemunhos objetivos”. Para tanto, é preciso primeiro retomar conhecidas referências da teoria da comunicação: “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução” e a “Pequena História da Fotografia”, de Walter Benjamim.104 A partir das formulações desses textos, poder-se-iam definir as vídeo-imagens como imagens técnicas ou imagens tecnicamente reproduzidas. A concepção benjaminiana de imagem técnica incluiria o vídeo na categoria das imagens aqueiropoietas (literalmente: produzidas sem as mãos),105 classe que se estende da fonografia à holografia, e que teria sido inaugurada pela imagem fotográfica: “Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas, que agora cabiam unicamente ao olho”.106 Sem mãos, só com os olhos: essa definição não parece ser muito exata, se se levar em consideração que são mãos humanas que constroem os dispositivos “capturadores” de imagens, que apontam para este ou aquele objeto e que os disparam; isso para não mencionar as freqüentemente complexas operações de edição de imagens e de articulação com textos lingüísticos. Mas, como será visto, essa inexatidão será útil para esta análise, pois manifesta a tão corriqueira idealização da “produção automática” de testemunhos pelas câmeras. Tal definição tem, pelo menos, o mérito de chamar atenção para a importância do processo de produção das imagens na definição de suas funções significantes. Quando se caracterizam as imagens técnicas a partir das especificidades do processo de sua produção, já se está começando a trilhar um percurso pragmático. Um aprofundamento do tema por essa via leva a tratá-las como signos, ou seja, objetos que significam algo para alguém. Tal definição favorece e também exige um exame cuidadoso dos processos concretos de produção de 104

BENJAMIM, 1985. Cap. “A Obra de Arte na época de suas Técnicas de Reprodução”

105

DUBOIS, 1994. p. 23-56

106

BENJAMIM, 1985. p. 167.

63

imagens e do caráter processual do fenômeno da significação. As vídeo-imagens só podem significar algo desde que sejam interpretadas, isto é, sejam incorporadas em um processo de transformação de signos que as antecede, perpassa e ultrapassa. A adoção de uma visada conforme à semiótica pragmática107 não é impune nem inocente. Quer dizer: implica que o pesquisador se abstenha de estabelecer uma ontologia das vídeoimagens, ou seja, leva-o a evitar tentar defini-las segundo suas possíveis “essências”. Os riscos e dificuldades da utilização da semiótica peirceana ficam patentes ao se observar a freqüência com que alguns autores utilizam de maneira enviesada o dispositivo cognitivo proposto. Muitos teóricos, interessados em utilizar as categorias da semiótica peirceana, parecem ser acometidos de uma obsessão classificatória que os leva a ontologizar as categorias dessa perspectiva sobre os signos. Essa tendência leva a tomar, equivocadamente, as classificações de signos108 como se fossem categorias essenciais. Esse engano, recorrente, torna todo o dispositivo conceitual incongruente com o objeto que visa abordar. Torna-se inútil tentar decidir se tal signo é um ícone, índice ou um símbolo, pois nenhum signo é. Os signos representam algo para alguém por serem aquilo que são e também não–serem o que são, isto é, sua função significante é definida por sua capacidade de se transformar, de estar no lugar de outra coisa (para alguém).109 Portanto,

§94. Em conseqüência do fato de todo signo determinar um Interpretante, que também é um signo, temos signos justapondo-se a signos. A conseqüência deste fato, por sua vez, é que um signo pode, em seu exterior imediato, pertencer a uma das três classes, mas pode também determinar um signo de outra classe. Contudo, isto, por sua vez, determina um signo cujo caráter precisa ser considerado. Este assunto precisa ser cuidadosamente considerado, e deve-se estabelecer uma ordem nas relações dos estratos de signos, se me é lícito assim chamá-los, antes que se possa tornar claro o que se segue. 110 107

A construção da semiótica como disciplina, da teoria pragmática do sentido, é resultado do esforço de uma longa tradição de pensamento que, no ocidente, remonta aos estóicos. A sua proposição mais sistemática, como um ramo da lógica (“lógica do vago”), é obra de Charles S. Peirce e ocorreu aproximadamente na passagem do século XIX para o século XX. 108

A vítima preferencial destes enganos é a famigerada tríade ícone-índex-símbolo.

109

É um equívoco comum tomar o signo como objeto primordial da semiótica; este o é apenas secundariamente. Cada signo individual constitui-se como um momento da semiose (ou semiofania), esta sim o verdadeiro tema da semiótica. A semiose é o processo de tradução, ou seja, de transformação (por causação final) de um signo em outro. É o processo de interpretação cuja origem e cujo término são abertos. O signo constitui um segmento arbitrariamente recortado no desdobrar-se ilimitado da semiose, segmento que não produz sentido por si, mas na sua qualidade de ser transformável em outro. Ref. PEIRCE, 1990. p.167-9.; PLAZA, 1987. p. 18. 110

PEIRCE, 1990. p. 29. (Grifo do autor).

64

Compreender as relações de transformação do sentido é, portanto, a verdadeira tarefa da semiótica, se se assume o caráter inevitavelmente multi–estratificado dos signos. 111 Esta Seção irá abordar as particularidades semiósicas das vídeo-imagens, quer dizer, avaliá-las segundo sua capacidade em se transformar em outros signos, o que permitirá, em seguida, examinar as condições da sua utilização pelo telejornalismo comercial no contexto do EFN. Definindo as vídeo-imagens segundo os processos de sua produção, pode-se dizer que são (apresentam-se como) imagens técnicas capturadas. Segundo essa classificação, a videografia seria agrupada junto com a fotografia, o cinema, a fonografia e até com a datiloscopia, no conjunto das imagens “capturadas”, isto é, produzidas mediante interações físicas com seus objetos. Distinguimos assim as imagens técnicas capturadas daquelas produzidas por técnicas de síntese, como o desenho, a litografia ou as imagens computacionais. 112 Pode-se afirmar que boa parte da produtividade semiótica das vídeo-imagens deve-se à facilidade com que elas podem ser tomadas como índices, ou seja, enquanto signos que exibem conexões existenciais, físicas, com os objetos do mundo. Peirce define a fotografia desta maneira:

§281. As fotografias, especialmente as do tipo “instantâneo”, são muito instrutivas, pois sabemos que, sob certos aspectos, são exatamente como os objetos que representam. Esta semelhança, porém, deve-se ao fato de terem sido produzidas em circunstâncias tais que foram fisicamente forçadas a corresponder ponto por ponto à natureza. Sob esse aspecto, então, pertencem à segunda classe dos signos, aqueles que o são por conexão física. 113

Na perspectiva semiótico-pragmática, o traço que caracteriza a fotografia e, em geral, as imagens tecnicamente capturadas, é a sua capacidade de não apenas partilharem com seus objetos um volume apreciável de qualidades sensíveis (iconicidade), mas também de o fazerem por serem materialmente afetadas por eles (indicialidade).114 111

Para uma compreensão da produtividade dos signos o maior apoio heurístico provém das categorias signo, objetos dinâmico e imediato, interpretantes imediato, dinâmico e final. Para definições sucintas destas categorias, cf. PINTO, 1995. 112

Adota-se aqui a distinção feita por Boissier (Une esthétique de la saisie. Revue D’Esthétique, n. 25, 1994.)

113

PEIRCE, 1990. p. 65. (Grifo do autor.).

114

“§248. Um Índice é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de ser realmente afetado por este Objeto. (...) Na medida em que o Índice é afetado pelo Objeto, tem ele necessariamente alguma Qualidade em comum com o Objeto, e é com respeito a estas qualidades que ele se refere ao Objeto. Portanto, o Índice envolve uma espécie de Ícone, um Ícone de tipo especial; e não é a mera semelhança com seu Objeto, mesmo que sob estes aspectos que o torna um signo, mas sim sua efetiva modificação pelo Objeto.” (PEIRCE, 1990. p. 52. Grifo do autor.)

65

É preciso notar que a “efetiva modificação” do signo pelo objeto define o sentido (interpretante) desse signo apenas no momento e conforme as qualidades segundo as quais este é assumido enquanto signo. A exibição da conexão existencial entre signo e objeto é o efeito mais imediato do índice, ou seja, seu “interpretante imediato”. Esse interpretante será objeto de outras relações de significação, que poderão determinar novos interpretantes (ditos interpretantes dinâmicos) de características diferentes.115 Mas a maneira como o signo é inicialmente disposto para a interpretação condiciona todas as interpretações subseqüentes do signo. A idéia de um condicionamento da semiose torna evidente que a utilização de qualquer objeto como signo sempre pressupõe a mediação de algum projeto do que este objeto deverá vir a significar (interpretante final). Esta dimensão de autocontrole do signo delimita, no leque das possíveis interpretações do signo, aquela “região” a que se pretende dar relevância, restringindo o número de possibilidades interpretativas em cada momento (interpretantes imediatos) e limitando os desdobramentos relevantes do signo “inicial” em outros signos (interpretantes dinâmicos).116 No caso dos signos indiciais, o interpretante final busca controlar a dinâmica interpretativa, de maneira que, em uma determinada semiose, os interpretantes permaneçam remetendo às conexões existenciais do signo “inicial” com o objeto. Portanto, a indicialidade não é atributo do objeto (foto, vídeo-imagens, buracos na parede). É um efeito da sua utilização como signo, mediada por operações de indicialização partilhadas pelos sujeitos (fotógrafos, cinegrafistas amadores ou não, equipes de reportagem, público telespectador etc.). Este tipo de operações predomina durante os momentos iniciais do EFN e em geral nos enunciados “denunciadores”. As vídeo-imagens são assumidas como signos publicamente relevantes, a partir de uma regra geral que diz que são índices de alguma ocorrência. É essa regra que permite que a coisa (a fita) possa ser articulada simbolicamente em um discurso narrativo como seu assunto principal, ou seja, como seu objeto (cenas/crimes). Na incorporação dos índices em um relato, esses signos são dispostos de maneira a serem discursivamente acolhidos como exemplos de algumas regras gerais (e não de outras), casos que vêm validar um conjunto restrito de regras. Cada enunciador conecta os vários índices 115 116

PEIRCE, 1990. p. 167-8

“Tudo que me atrai atenção é índice. Tudo o que nos surpreende é índice, na medida em que me assinala a junção entre duas porções de experiência. Assim, um violento relâmpago indica que algo considerável ocorreu, embora não saibamos exatamente qual foi o evento. Espera-se, no entanto, que ele se ligue com alguma outra experiência.”. (PEIRCE, 1990. p. 67. Grifo do autor)

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disponíveis, obedecendo ao conjunto de regras que lhe parece mais apropriado para a composição de seus enunciados públicos. Essa seria presumivelmente a característica semiósica marcante dos desdobramentos controversos, através dos quais o acontecimento inicial adquire reflexividade enquanto um evento público-mediático. O importante a reter aqui é que, em nenhum momento, nem na apropriação das vídeo-imagens como índices, na denúncia que constitui o acontecimento, nem durante sua articulação narrativa enquanto actantes, na controvérsia pública que configura o Evento como campo temático, é possível abordar os desdobramentos que constituíram o EFN como sendo necessariamente determinados por alguma força proveniente apenas das vídeo-imagens. A perspectiva interacionista adotada nesta pesquisa leva a considerar que a objetividade fundamenta-se na intersubjetividade, não na dicotomia entre sujeito da consciência e mundo objetivo. É a partir da mútua percepção dos sujeitos que se torna possível estabelecer a realidade objetiva, fundamentando a existência do ambiente partilhado (incluindo os próprios sujeitos). O equívoco fundamental da concepção realista de objetividade (a “objetividade objetiva”) encontra-se na presunção de que os fatos poderiam ser, em alguma instância, autônomos em relação aos valores e que poderiam, sozinhos, definir nexos causais ou apontar conclusões lógicas, ou, em outros termos, de que os índices, por si sós, seriam capazes de propor regras gerais (legissignos)117. Como será visto nas duas próximas seções, o ideal (ou ideologia) da objetividade jornalística, assim como a apropriação das vídeo-imagens enquanto “testemunhos objetivos”, são ambos profundamente marcados por essa idéia de “objetividade objetiva” — que, de resto, as próprias imagens técnicas vêm desafiar.118

117

A objetividade é cega para a atuação inevitável de um quadro preexistente de regras, assim como para o caráter sempre quasi-necessário das conclusões. Na perspectiva da objetividade, um signo causa seu sentido (causação eficiente); para a semiótica, ele projeta seu sentido (causação final). Se um objeto é percebido como signo, isso só ocorre como resultado de uma proposição anterior, que define a relação de significação: se eu nunca tiver visto um furo na parede como resultante do disparo de uma arma de fogo, jamais será possível tomar o buraco como indício de um ato violento. Se concluo que pode ter havido um crime, tal idéia não se encontra escrita na parede (ou na tela): é preciso apostar que tal buraco, na parede, é um buraco de uma bala disparada por um policial. (PEIRCE. 1990. p. 259-69; ECO. Chifres, cascos, canelas: algumas hipóteses acerca de três tipos de abdução. In: ECO & SEBEOK, 1991.) 118

É possível dizer que o objetivo subjacente à criação de dispositivos produtores de imagens técnicas deve-se a tentativas de criar processos de produção de signos independentes da intervenção da subjetividade. Segundo Max Kozloff, o resultado foi o contrário: “Coube a uma ferramenta inventada na era do positivismo revogar o alvará da imagem mítica, isso é, imagem responsiva. Quem poderia ter esperado que essa máquina, concebida racionalmente como toda máquina deve ser, iria descortinar um espetáculo muito irrazoável —algo não moldado ou imaginado por nosso desejo.” (KOZLOFF. A pintura e a invenção da fotografia. Art Forum, set. 1981. p. 324.)

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3.1.2 — “Grandes Esperanças”

A especulação sobre as singularidades de suportes comunicacionais, que há muito tempo tem ocupado os teóricos,119 parece ser renovada toda vez que um novo tipo de equipamento tem seu uso disseminado. Contudo, parece pouco frutífero buscar definições de “essências” desse ou daquele dispositivo técnico, já que se trata de compreender os processos semiósicos pelos quais tais suportes são usados para produzir sentido para alguém. Torna-se, portanto, desnecessário desfiar aqui o rosário das implicações da indicialidade típica das imagens de captura,120 pois “...seria difícil, senão impossível, citar como exemplo um índice absolutamente puro, ou encontrar um signo qualquer absolutamente desprovido de qualidade indicial.”121 Não obstante, parece ser de fundamental importância entender por que as imagens técnicas, filhas da modernidade ocidental, são insistentemente assumidas como “testemunhos objetivos” pelo senso comum.122 Essa forma de conceber as imagens tecnicamente capturadas mostra-se ainda mais paradoxal depois que se sabe da facilidade com que, atualmente, elas podem ser manipuladas, ou quando se tem conhecimento da já longa história de fraudes perpetradas a partir de tais concepções. A identificação das imagens técnicas como produtoras de “testemunhos objetivos” fundamenta-se no ideal, ao mesmo tempo utópico e ideológico, da “objetividade objetiva”. Sontag chama de “heroísmo da visão” a incorporação desse ideal à produção de fotos:

A história da fotografia podia ser vista como a luta entre dois imperativos diferenciados: o embelezamento, que tem origem nas belas-artes, e a veracidade, que não só corresponde a uma noção de verdade à margem dos valores, que é uma herança das ciências, como também, um ideal moralizante da veracidade, adaptado dos modelos literários do século XIX e da (então) nova profissão do jornalismo independente. O fotógrafo, como o romancista pré-romântico e o repórter, devia desmascarar a hipocrisia e combater a ignorância. 123 119

Para uma ilustração “cênica” do debate do que seria singular no vídeo, ref. FARGIER. Les effets des mes effets sont mes effets. Communications n. 48, 1988. 120

É o que faz exaustivamente Dubois (1994) para alcançar a definição do “fotográfico”.

121

PEIRCE, 1990. p. 76.

122

A identificação das imagens técnicas capturadas como “testemunhos objetivos” é o objetivo da sua produção, no contexto jornalístico, e também a norma da qual se deriva o reconhecimento destas imagens como objetos de sentido, e, ao mesmo tempo; em uma palavra, a factualidade constitui seu legissigno.

68

Embora a autora denuncie certos “efeitos colaterais” do olhar fotográfico, não lhe é possível deixar de reconhecer as idealizações quanto ao uso da câmera na produção de “verdades à margem dos valores”, e nas atribuições heróicas de seu operador. Relata ela que na “imaginação popular” dos anos 20, “o fotógrafo tinha se tornado um herói moderno, tal como o aviador e o antropólogo, sem ter necessariamente de deixar a sua terra”. 124 A idealização do ato fotográfico enquanto ação política encontra-se, por exemplo, na defesa feita por Walter Benjamim do uso da fotografia para a produção do “choque visual”:

A câmera se torna cada vez menor, cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do espectador. (...) Não deve o fotógrafo, sucessor dos áugures e arúspices, descobrir a culpa em suas imagens e denunciar o culpado? 125

O leitor objetará, com razão, que o texto benjaminiano é excessivamente comprometido com os objetivos das vanguardas dos anos 20, principalmente os do surrealismo. E que, além disso, seu modo de tratar a significação (vide o conceito de aura) é muito debitário de concepções representacionistas. O que se quer aqui, contudo, é destacar o modo pelo qual Benjamin concebe o uso político das imagens técnicas. O valor político das imagens não está associado diretamente à pretensa objetividade realista, mas derivado principalmente do abalo que elas possam provocar no quadro de expectativas dos sujeitos. Em todo caso, deve-se reconhecer que, infelizmente, esses diferentes aspectos são muito freqüentemente confundidos analiticamente.126 A apreensão do sentido das imagens técnicas pelo senso comum deriva-se nitidamente do apelo da sua atribuída “factualidade automática”. Essa tendência parece projetar-se na teoria, pois boa parte das abordagens sobre as imagens técnicas apóiam-se em concepções “internalistas” (representacionais) da significação e da comunicação. Segundo tais concepções, as imagens técnicas seriam capazes de, por si sós, gerar seus significados públicos. Por exemplo, as imagens dos “bairros de lata” serviriam, universalmente, como denúncias das desigualdades sociais. Nesse ponto, as objeções de Susan Sontag mostram-se 123

SONTAG, 1986. p. 82-3. (Grifos do autor).

124

Ibidem. p. 82-3.

125

BENJAMIN, 1985. p. 107

126

BENJAMIM, 1985; SONTAG, 1986; DUBOIS, 1994.

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válidas: nenhuma imagem técnica apóia permanente e inequivocamente uma tomada de posição moral ou ética.127 Passado o momento de deslumbramento do início da massificação do acesso à fotografia (final do século XIX), ao longo do século XX viu-se emergir e submergir, tantas outras vezes, a defesa de um uso “messiânico” das imagens técnicas, empregadas como “instrumentos revolucionários”. Não é o caso de fazer aqui uma retrospectiva sistemática desta “tradição”, mas é útil examinar, de modo sucinto, alguns dos substratos desse discurso, principalmente no caso das vídeo-imagens. Com o surgimento do videoteipe portátil, nos anos 70, entra em cena uma nova versão das idealizações tecnológicas. Projeta-se uma revolução nas comunicações, alavancada pela difusão das videocâmaras portáteis e do seu uso subversivo: a “televisão de guerrilha” ou a “tevê faça-você-mesmo”.128 O videoteipe é integrado às utopias políticas como instrumento privilegiado para o exercício de uma “comunicação horizontal”, pluralizada e de posições reversíveis (produtor e receptor como lugares intercambiáveis). A idealização do uso das vídeo-imagens, junto com uma sobre-idealização geral das “novas tecnologias de comunicação”,129 permanece associada ao ideal positivista de objetividade do final do século passado, como pode-se observar no texto do chileno Frank Gerace:

O videoteipe portátil resolveu os problemas que impediam que o povo mesmo escolher a visão de sua realidade que se documenta. Os equipamentos são fáceis de manejar, não tão complicados e não tão caros. (...) O cidadão armado com a câmera começa a dar-se conta das implicações da realidade que o rodeava e que antes passava desapercebida ante seus olhos.130 127

A autora cita a diferença da sensibilidade do público americano diante das fotos da guerra da Coréia e da do Vietnã. (SONTAG, 1986. p. 26-8). Esta dependência do contexto corrobora a adoção da abordagem pragmática do tema: de resto, qualquer signo está submetido a tais injunções. 128

Teleguerrilha é “a aplicação das técnicas da guerrilha ao reino do progresso. A televisão guerrilheira é uma organização de base. Ela trabalha com o povo e não de cima dele. A um nível elementar, não é nada mais que uma tevê ‘faça-você-mesmo’. Mas o contexto desta noção é que a sobrevivência em um meio de informação necessita de instrumentos de informação.” (SHAMBERG e RAINDANCE CORPORATION. Guerilla Television, 1971. Citado por STURKEN. Les grandes esperances e la construction d’une histoire. Communications, n.48, 1988. p. 132) 129

Idealização presente, por exemplo, no texto de Frank Gerace, de atribuída inspiração freireana: “O que buscamos é colocar a tecnologia a serviço do povo. Isto se faz possível hoje em dia com a nova tecnologia.(...) A câmera fotográfica, o gravador a pilhas e o instrumento revolucionário que fará a participação possível como nunca, o videoteipe portátil.” (GERACE, 1971. p. 55.) 130

GERACE, 1971. p. 101. Grifo do autor.

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Pode-se lamentar a ingenuidade de idealizações como a do “videoteipe como instrumento revolucionário” ou da “realidade que se documenta”, e será sempre preciso criticar o ponto de vista positivista implícito nessa concepção do processo de significação das vídeo-imagens. Entretanto, não é descabido supor que na idealização de usos políticos da videografia resida algo além da mera utopia. Se se “descontam” os problemas decorrentes da ilusão do “internalismo”, pode-se perceber que há uma demanda, por instrumentos capazes de servir à problematização pública de determinadas condições de vida, que permanece sendo concreta e democraticamente legítima, para amplas camadas da população. A sobrevivência das “grandes esperanças” depositadas no uso público-político da videografia aparece em diversos enunciados do EFN, emitidos principalmente depois do momento da denúncia mediática inicial.131 Em um primeiro momento, as referências ao “heroísmo da câmera” originaram-se principalmente dos midiadores: JBa4/2 (Âncora/sinc): “Boa noite, tudo bem?... O Jornal da Band começa hoje com uma reportagem exclusiva. Nós descobrimos o personagem que faltava na história da violência policial... na favela de Diadema. É o cinegrafista que arriscou a vida...para filmar as cenas de agressão que chocaram o Brasil e o mundo. Ele não aceitou ser identificado porque tem medo de morrer. Nós vamos chamá-lo de... Antônio.”

A repetição ao longo de toda o JBa4 de anúncios dessa “reportagem exclusiva” evidencia, além da tentativa de atribuir a esse “furo” méritos comparáveis aos da denúncia mediática inicial (realizada pelo telejornal concorrente), uma atualização do ideal da “câmera heróica”. Uma primeira indicação da idealização e abstração da figura do cinegrafista aparece na ilustração, feita em computação gráfica, que aparece na abertura da matéria: representado forte e musculoso, o cinegrafista idealizado pelo designer gráfico do telejornal, contudo, segura a camcorder com o braço errado (o esquerdo). [#3] Essa tendência à idealização da figura do cinegrafista aparece também no modo como o produtor da FFN insere a si próprio nas ocorrências:

131

Faz-se aqui referência ao momento em que o ator-midiador presumivelmente já considerava as ocorrências registradas na FFN estabilizadas enquanto acontecimento publicamente relevante. Como será visto adiante, no momento da denúncia inicial, que ocupou aproximadamente os noticiários do primeiro e do segundo dia do EFN, a narrativa telejornalística focalizou as ocorrências em si (os crimes), e deixou bastante obscuro o processo de sua produção e publicização.

71

JBa4/17 [#4] (…) (Repórter/pseudo–sinc): “‘Cê ‘tava sozinho?” (Cinegrafista/sinc–extracampo): “Tava eu, e mais um rapaz. * Tava acompanhado.” (Repórter/sinc): “Tinha proteção , alguma arma, alguma coisa? Nada?” (Cinegrafista/sinc): “-Nada!” (Repórter/sinc): “E ‘cê não sentiu medo, não ficou apavorado não de ver aquilo tudo acontecendo?” (Cinegrafista/pseudo–sinc): “/Eu sen... senti sim, medo todo mundo sente. Acho que o medo virou a coragem de vim fazer isso.” (…) (Repórter/sinc): “ Que pensava quando você tava vendo aquelas imagens?” (Cinegrafista/sinc): “Olha, não dava pra pensar. Só dava pra só ter raiva...tendeu? Raiva, ódio.” (...)

JBa4/18 [#5] (Âncora/sinc — em direto): “Mas o... o... a... a razão que levou você a filmar foi... foi qual? O que que te... o que que te passou pela cabeça ‘— eu preciso ir lá filmar!’” (Sombra do cinegrafista/sinc, idem): “É... é... é o velho ditado, é... é... a força que a gente tem de cinegrafista, de radialista... é procurar matéria. Eu fui procurar e acho que encontrei! Entendeu?” (...) (Âncora): “Agora... por que que você deu a fita pra Pê-eme?” (Sombra do cinegrafista): “Por que que eu dei? Fazer justiça. Porque eu sei que a Pê-eme tem pessoas boa lá dentro.” (Âncora): “Qual foi o motivo que, depois de três semanas, te levou... a entregar a fita à pê-eme?” (Sombra do cinegrafista): “Olha eh... eu tinha de mostrar e pra... e pra fazer justiça, pr’aquelas pessoa que também sofreram... que morreram... entendeu? Então eu agi também um pouco... levei pra pê-eme por causa disso. P’r’esse lado... de justiça.”

JBa4/20[#6] (Âncora): “... Me descreve agora com mais detalhes o teu sentimento de cinegrafista... no momento em que... naqueles diversos momentos, ao longo de três noites, você viu cenas de... de barbaridade.” (Sombra do cinegrafista): “Olha, não tem nem como se di... ah... se descrever. Você... você... começa trremer, fica com raiva, começa chorar, tendeu?... começa... da vontade de sair correndo, gritando, tentando ajudar... dá vontade de tudo, mas ao mesmo tempo cê não pode fazer nada.” (Âncora): “Agora, mas... mas... apesar disso, a... a... a sua filmagem foi muito firme. Ela durante o tempo todo não há... não há indício de que você tenha tremido, ou que a imagem fique balançando, e *

Para reproduzir os diálogos das entrevistas com maior verossimilhança, principalmente nos trechos em que os interlocutores se interrompem com muita freqüência, transcrevemos em caracteres itálicos e inserimos entre os “brackets” e depois de um travessão as falas do outro emissor, citado imediatamente antes do enunciado transcrito (ex.: “”). Os sons incidentais também são incluídos, em caracteres itálicos, entre os “brackets”, sem o travessão (ex.: “” é um tiro; “” é um bofetão).

72 como... o que levou muita gente, inclusive nós aqui da Band, a suspeitar, de que você... de fato era... um cinegrafista profissional. Como é que você conseguiu, com toda essa tensão, manter essa firmeza na hora de testemunhar aquelas cenas de tanta brutalidade?” (Sombra do cinegrafista): “Ah... são... o... o jeito eh... o... já tanto tempo de televisão que a gente traba... que a gente tá no meio, vê tanta coisa, que você sabe controlar.” (Âncora): “Quanto tempo cê tem de televisão, Antônio?” (Sombra do cinegrafista): “Eu tou com dezesseis... pra dezessete ano.”... (...)

Apesar do “heroísmo”, logo se evidenciaram os limites dos compromissos entre a cinegrafia e a Justiça: [#7] (Âncora): “... Bão... Então me diz uma coisa. Eh... você... estaria disposto a ir depor na Justiça, caso fosse necessário, pra dar mais informações do que você deu a Afonso Mônaco na nossa reportagem?” (Sombra do cinegrafista): “Não. Não, porque o que eu dei... A minha parte eu já fiz. Eu dei a fita integral, inteira, pra corregedoria.” (Âncora): “Mas por que não, se você é movido por um forte sentimento de justiça, Antônio?” (Sombra do cinegrafista): “Eh? ...eu sou movido a forte sentimento de justiça, mas não sou movido a caixão! Caixão, de defunto.” (Âncora): “ ... ...Por quê? Você tá... ainda tá com medo de morrer?” (Sombra do cinegrafista): “Ôpa! Quem não tá? Até o Papa levou tiro!”

A esquiva do cinegrafista autônomo, que sugere uma confirmação das críticas da pretensa função política das imagens técnicas,132 não pode ser sustentada por muito mais tempo. Como o JNa4 delatou o prenome do cinegrafista (“Francisco”) e, logo depois, autoridades judiciárias e legislativas tomaram conhecimento de sua identidade, Francisco Romeu Vanni logo optou por “sair da sombra” e se identificar publicamente, como uma forma de proteção contra represálias.133 [#8] Note-se que o tom elogioso utilizado pelo JBa para qualificar a ação do cinegrafista autônomo torna-se, conotativamente, um auto-elogio aos jornalistas, “heróis modernos”:

132

Estas críticas seriam dirigidas ao pretenso descolamento dos pertencimentos sociais, históricos, políticos que o sujeito que captura imagens operaria sobre si mesmo no ato de capturá-las. (SONTAG, 1986. p. 99-104). A estetização e a pulsão de apropriação/domesticação imaginária do mundo, que Sontag critica duramente, parecem ser uma manifestação de uma tendência do senso-comum, em tratar como ficção (ou “cena”) aquelas realidades excessivamente brutais, “absurdas”. (SOUKI, 1999. p. 59-61) 133

Cf. a entrevista de FRV, em direto e sem disfarce, no OpN24.

73

JBa7/1 (Âncora/Sinc): “Boa noite, tudo bem? Essa noite nós vamos começar com uma notícia que dá uma idéia do poder da imagem, da liberdade de imprensa... e da força da indignação popular. Nunca a justiça andou tão rápido. Em apenas dez dias, o promotor de Diadema encaminhou à Justiça a denúncia contra os dez pê-emes... que participaram da violência na favela. A Juíza Maria da Conceição aceitou imediatamente a denúncia... e marcou a primeira audiência dos acusados. Será na próxima sexta-feira.”

Mais tarde, contudo, esse mesmo telejornal oferece algumas indicações de que o “heroísmo da visão” não se trata de um “mito” apenas pertinente ao meio social dos jornalistas e radialistas: JBa12/2 (Apresentador/sinc) “As imagens que envergonham o Brasil provocam uma febre...em cinegrafistas amadores. O registro da violência policial em São Paulo e no Rio mexeu com a venda de câmeras de vídeo. O movimento nas lojas cresceu....junto com a esperança de se conseguir cenas de impacto.”

Nesta edição do JBa, a cinegrafia “amadora” é destacada, com entrevistas com cinegrafistas cujas imagens foram exibidas em telejornais, ou compradores de videocâmaras com semelhantes intenções. JBa12/7 (Repórter/off): “Flagrantes como o da tortura aplicada por policiais militares no beco da vergonha em São Paulo....provocaram nos últimos dias uma corrida às lojas que vendem esses equipamentos...tão inocentes...quanto úteis. (Repórter/sinc): “As lojas de eletrodoméstico estão aproveitando a febre dos cinegrafistas amadores para faturar. A procura aumentou e as câmeras baixaram de preço. Estão custando, no máximo, mil e duzentos reais pagos em mais de vinte vezes. Esta loja recebeu ontem...dez filmadoras, que rapidinho sumiram das prateleiras. As únicas que sobraram...são as da vitrine...que também já estão vendidas.”

Neste fragmento, as cenas da FFN servem de “ilustração” inicial da matéria, indicando que nesse momento as ocorrências criminosas chegaram a se tornar o pano de fundo do relato sobre a “febre” da difusão das videocâmaras. Como será visto adiante, no contexto do EFN, as idealizações do uso da videografia são recorrentes.134 Observe-se também que o JBa, que nesse momento já havia reconhecido enfaticamente que o cinegrafista da FFN era um “profissional”, volta a identificá-lo como “amador”. Os dois “cinegrafistas amadores” entrevistados (JBa12/3 e JBa 12/4) não só têm estatutos, como também objetos de gravação muito diferentes de FRV. A adolescente que casualmente 134

Vide notas da Seção 5.1.3b.

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registrou um incêndio defronte sua casa e o comerciante que “filma” acidentes na Via Dutra não dispunham de experiências de trabalho em televisões comerciais, e tampouco produziram um registro planejado de ocorrências, nem estas exigiam qualquer furtividade do cinegrafista para a gravação. As dessemelhanças com o cinegrafista da FFN demonstram a propensão retórica do telejornal em constituir o “cinegrafista amador” como lugar de enunciação virtualmente acessível a qualquer pessoa, assimilável ao público em geral. Ora, se as inovações nas tecnologias de comunicação têm sido tão freqüentemente idealizadas como instrumentos de ação política democrática, é porque a difusão do emprego de novos suportes tende a desestabilizar os usos tornados rotineiros nos meios de comunicação preexistentes. Por permitir a proposição de novas formas de relações intersubjetivas, as novas mídias explicitam as fragilidades dos usos estabilizados e renovam as expectativas de “choques”, capazes de romper o círculo vicioso dos procedimentos rotineiros dos meios massivos e de, assim, desencadear um processo interpretativo alternativo.135

3.1.3 — Dos índices aos acontecimentos: demandas interpretativas

Ao contrário do que as “vanguardas” ou a “imaginação popular” esperariam, há motivos para se acreditar que a produtividade política dos atos videográficos não resulta propriamente de uma “heróica” objetividade “inerente”, que é sempre condicionada pelos contextos de sua interpretação. Paradoxalmente, parece que o poder do uso público das imagens técnicas capturadas advém, ao mesmo tempo, da promessa, implícita, de realizar o ideal da “objetividade objetiva” e da impossibilidade de cumprir essa promessa. Isso porque, apesar da “mágica factualidade” atribuída às imagens capturadas tecnicamente, a sua narrativação e a derivação de sentidos morais constituem tarefas sempre inconclusas. Como assinala Max Koszloff, é “quixotesco indagar se uma fotografia apresenta uma estória convincente ou não, como se fosse da exclusiva competência do fotógrafo fazer dessa uma 135

Bourdieu faz severas críticas ao que chama de “circulação circular da informação”, denunciando a lógica viciosa do jornalismo, que se configura como uma “espécie de jogo de espelhos refletindo-se mutuamente”. Este autor considera que esta lógica pode produzir uma censura tanto ou mais eficaz quanto aquela que é mantida, de modo explícito, por uma burocracia central. A despeito desta avaliação, o sociólogo francês deixa entrever a possibilidade de rompimento deste círculo: “Para romper o círculo, é preciso proceder por transgressão, mas a transgressão não pode ser senão através da mídia; é preciso conseguir produzir um ‘choque’ que interesse ao conjunto da mídia ou pelo menos a um dos meios de comunicação e que poderá ser reforçado pelo efeito de concorrência”. (BOURDIEU,1997. p. 34-35, grifo do autor)

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questão relevante. Se desejamos derivar significados de ocorrências fotográficas, devemos localizar e construir um roteiro provável.”136 Adotando esse ponto de vista, deve-se considerar que a suposição de um tal “roteiro”, que dá início à objetificação lingüístico-narrativa das imagens capturadas, é uma tarefa ao mesmo tempo compulsória e interminável: os símbolos circunscrevem, envolvem e se articulam com os índices, mas estes, por serem constituídos como vestígios materiais de uma ocorrência singular, permanecem heterogêneos em relação aos argumentos e narrativas. O recurso à conexão da imagem técnica capturada com signos lingüísticos (por exemplo, a locução off justaposta às vídeo-imagens) é sempre muito precário:

A legenda é uma luva que se põe com facilidade. Não se pode impedir que qualquer argumento ou alegação moral baseado em uma fotografia (...) seja minado pela pluralidade de significados que qualquer fotografia supõe... 137

Por representar o mundo de uma maneira fragmentária, as imagens técnicas capturadas são incapazes de, por si sós, afirmar posições morais. Isso ocorre não só por sua demanda de transposição para uma narrativa verbal ou simbólica, mas também pelo fato de que a potência crítica dessas imagens depende de que aqueles que as interpretam estejam inseridos em contextos culturais e políticos concretos propícios a uma perspectivação crítica. A problemática da atribuição de sentidos às imagens técnicas, sua incapacidade de sozinhas narrar e dar aportes para a compreensão de algum acontecimento, é, em última análise, irremovível.138 Aparentemente, a videografia e a televisão estariam em melhores condições para contornar esse problema: por representarem durações, já seriam enunciados narrativos e talvez mesmo já configurassem suas interpretações. Contudo, a captura temporal que a videografia permite não autoriza que dela se deduza uma aquisição imediata de narratividade ou significado simbólico.139 Ao contrário, parece-nos que a ampliação da variedade de qualidades sensíveis 136

KOZLOFF. Art Forum, set. 1981. p. 328.

137

SONTAG, 1986. p. 102

138

Como, de resto, qualquer signo, para ser interpretado, isto é, para ser signo (e não representâmen), já se encontra em um contexto interpretativo qualquer. Este contexto, por mais afastado que seja daquele da produção do signo, é que define as possibilidades interpretativas. 139

A narratividade e o movimento contínuo dos corpos, por exemplo, são resultados de cuidadosas intervenções interpretativas introduzidas através da edição, tais como as “regras de continuidade visual”, importadas do

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captadas contribui para aumentar apreciavelmente a extensão sígnica140 das imagens, dificultando ainda mais o estabelecimento de um sentido unívoco. Isso porque, à já anárquica proliferação de elementos pictóricos, se acrescentam uma profusão de novas qualidades sensíveis, da duração, do movimento e de elementos acústicos, entre outros. Seguindo essa linha argumentativa, tem-se a tendência de concluir que o poder das imagens técnicas em intervir no espaço público seria muito limitado, por ser excessivamente circunstancial. É mais produtivo, portanto, abordar a questão sob a perspectiva inversa, examinando a debilidade das intervenções públicas das imagens técnicas. A precariedade do estabelecimento de relacionamentos simbólicos pode então ser compreendida como uma fértil abertura interpretativa. Susan Sontag declara que “a fotografia nos mantém em desequilíbrio, uma condição que, muito estranhamente, renova seu interesse narrativo...” 141 Como se sabe, a interação física que produz as vídeo-imagens é cercada, a montante e a jusante, 142 de construções simbólico-argumentativas que provêem seus sentidos prováveis ou aceitáveis, em um contexto comunicativo determinado. A montante, temos toda uma escolha de temas, lugares, momentos, luzes, o treinamento do profissional cinegrafista, textos diversos (da programação da data e hora na câmera até as perguntas do repórter) etc. A jusante, variadas operações de re-enquadramento, montagem, legendamento, narração, entre outras. É preciso assinalar que, no caso da fatura da FFN, a “disciplina do olhar”, adquirida pelo treinamento profissional do cinegrafista, imprimiu-se nas imagens da FFN, organizando os movimentos e enquadramentos em uma protonarrativa, cujos traços são congruentes com os procedimentos de elaboração discursivo-narrativa do telejornalismo comercial. A préinterpretação proporcionada pela cinegrafia da FFN é relatada de modo lapidar em JNa: cinema pelo telejornalismo. Deleuze postula que nada há de imediatamente narrativo ou que garanta a unidade dos movimentos dos objetos na imagem cinematográfica. Estas representações seriam derivadas da submissão das chamadas imagens-tempo (como cinema e o vídeo) à lógica do aparelho sensório-motor. (DELEUZE, 1990) 140

Nos termos da semiótica peirceana, a extensão de um signo define a pluralidade de interpretantes dinâmicos contidos no interpretante imediato. Cada contexto interlocutivo (espaços públicos temáticos autônomos, grupos de interesse, entre outros) dispõe de regras interpretativas, ou seja, legissignos que propõem interpretantes finais para o signo. O que parece ocorrer, no caso em análise, é que nenhum destes interpretantes finais logram se impor por si sós, e dependem de serem sustentados através das inter-relações com outros interpretantes finais, eventualmente concorrentes. 141 142

SONTAG, 1986.

“Montante” e “jusante” são termos metafóricos utilizados por Dubois (1994. p. 85-6) para se referir aos procedimentos intencionais que controlam a produção das imagens capturadas e aos procedimentos intencionais que reorganizam as imagens capturadas, articulando-as como enunciados para serem reproduzidos e exibidos. No vídeo, a pré-produção está a montante da gravação, e a pós-produção a jusante.

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JNa4/14 [#9] (Repórter/off): “Ele soube por um amigo... que desde dezembro policiais militares estavam agindo com violência na Favela Naval. Francisco ouviu toda a história, mas não acreditou em tanta violência. Ele foi então até o local, conversou com moradores, fez ponto num bar...até que ficou convencido que deveria gravar as imagens... Não foi difícil escolher o local. A janela... deste sobrado inacabado.” (Repórter/sinc): “O casal que morava nesta casa já foi embora com medo de represália. Os vizinhos disseram que o casal decidiu permitir a filmagem...porque também não suportava mais... a tortura dos policiais...”

(Repórter/off): “Na noite do dia dois de março, instalou o equipamento...e com uma visão privilegiada... esperou a chegada dos policiais. Aos sete minutos do dia três, ele dispara a câmera. Francisco, nervoso, custa a ajustar o equipamento...e cochicha com o primo... que o acompanhava. . Nas primeiras imagens, tem o cuidado de gravar o número... para identificar o carro da polícia. Quem aparece... primeiro é o soldado Gambra, o Rambo. Com uma lanterna, ele checa o local. Precisou fazer ginástica... para mostrar Sílvio apanhando... e quando ouve o tiro, se assusta. Mesmo assim, se preocupou em mostrar que havia testemunhas no local. Acompanhou a blitz até o fim... duas horas e vinte oito minutos depois. À meia-noite e trinta e seis do dia cinco, está de volta... mas fica pouco tempo... o suficiente para flagrar Rambo... colocando o pente na arma automática. Às onze e dezoito do dia seis... ele recomeça o trabalho... e nem poderia imaginar... que cinqüenta minutos depois... estaria flagrando um assassinato. .”

Se, no caso da cinegrafia da FFN, não seria exato dizer que entre os agenciamentos simbólicos precedentes e subseqüentes ao registro, no ato de captura, as vídeo-imagens permaneceram “mudas” acerca daquilo que realmente teria ocorrido143, também não se pode dizer que o vídeo-enunciado tivesse “automaticamente” garantida a sua narratividade factual. O relato do jornalista que organizou a denúncia telejornalística inicial indica-o claramente:

“(...) Chamei todo mundo para uma sala e coloquei a fita, sem dizer para ninguém sobre o que era. Os caras nem sabiam o que iriam fazer. Ficou todo mundo estarrecido! Vimos a fita pela segunda vez e eu disse: «Isso pode ser uma mentira, isso pode ser forjado». Levei o material a um laboratório, para avaliar se aquilo não era uma montagem e para verificar se, com a experiência dos peritos, era possível perceber alguma simulação. Eles me deram ok e disseram que a fita era autêntica. Reuni novamente meu pessoal e disse: a fita é boa, mas só temos matéria se localizarmos as vítimas e testemunhas.”144

As imagens tecnicamente capturadas, como, de modo geral, os índices, permanecem irredutíveis às articulações discursivas que propiciam, não se deixando “consumir” por elas.

143

Como afirma, de modo um tanto essencialista, Dubois (1994. p. 159), a respeito do instantâneo fotográfico.

144

Entrevista: Marcelo Rezende Imprensa, n.123, dez. 1997.

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Não cessam de oferecer novas possibilidades de incorporação em diferentes percursos narrativos, mas jamais são integralmente absorvidas nesses relatos.145 Enquanto índices, as imagens técnicas capturadas produzem uma descontinuidade (um “furo”, um “choque”) no tecido simbólico-argumentativo dos discursos públicos. Essa “zona de sombra” das imagens técnicas capturadas (que é também a do acontecimento enquanto índice) pode ser compreendida como um espaço vazio que, em permanente deslocamento, possibilita a transformação do seu sentido e permite que as imagens indiciais se desdobrem em outros signos.146 O lugar de vazio, que cava as descontinuidades nas narrativas e argumentos “normais e rotineiros”, impõe à produção discursiva pública um enigma. A forma inicial de proposição desse enigma irá condicionar os percursos narrativos dos discursos dos diferentes atores políticos.

3.1.4 — Atrás da Ocular

A problemática da atribuição de uma objetividade intrínseca às imagens tecnicamente capturadas é transportada para a produção de relatos factuais pela mídia comercial. Como se viu, não é por acaso que o uso “informativo” da fotografia (incluindo seu uso pela polícia) surgiu junto com o jornalismo de massa: as duas práticas sociais partilham diversas funções públicas e também pressupostos ideológicos.147 A “objetividade automática” atribuída às imagens tecnicamente capturadas oferece uma sustentação aparentemente “material” para a retórica realista, que subjaz a boa parte dos produtos do telejornalismo. Segundo Tuchman,148 a objetividade é um ritual estratégico do jornalismo, um dispositivo retórico através do qual os produtores de notícias tentam minimizar os riscos de sua atividade. Compreendendo-a dessa forma, torna-se possível entender também a generalizada incorporação dos processos de produção de imagens técnicas no fazer jornalístico. O uso 145

Compreendendo-se a indicialização como a identificação de objetos “grávidos” de narrativas, pode-se também perceber que essa irredutibilidade indicial aparece em determinadas discursos narrativos como as parábolas (cf. LEMINSKI,1990. p.172-3) ou nos relatos históricos (BENJAMIN, 1985. p. 203-4). Alguns autores chegam a considerar que a capacidade de “revelar ocultando” (LEMINSKI) do texto, que “não se entrega” (BENJAMIM), seja a própria definição de narrativa. 146

MOUILLAUD, 1997. p. 40.

147

SONTAG, 1986. p. 82-3.

148

TUCHMAN. In: TRAQUINA, 1993. p. 74-90.

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indicializante das imagens técnicas ocupa uma posição privilegiada dentre os procedimentos produtivos, pois reifica como “determinações técnicas” das máquinas as pretensões de objetividade do discurso jornalístico. No entanto, as operações de indicialização das imagens nos enunciados públicos devem ser constantemente camufladas, pois sua explicitação demonstraria o caráter convencional de toda objetividade, mesmo (ou ainda mais) no caso da aparente “objetividade automática” das imagens tecnicamente capturadas. Assumindo a perspectiva dos produtores de notícias, pode-se perceber que ambos os processos (operações de indicialização e de camuflagem) são instrumentos imprescindíveis para o desempenho da sua função de gerentes do espaço mass-mediático e mediadores das interações públicas. Os sujeitos envolvidos na produção noticiosa estão expostos a riscos bem concretos. A estrutura das empresas de comunicação é organizada em vários níveis hierárquicos (repórteres, editores locais, editores temáticos, editores gerais etc.), submetendo os jornalistas a um constante controle interno; não há tempo para pesquisas prévias, assim como correções posteriores consomem tempo e recursos escassos; deve ser reduzida ao mínimo a possibilidade de que a empresa seja processada por difamação, situação em que a rotina da redação é rompida, a empresa é onerada com multas e o veículo perde credibilidade — e, portanto, leitores (ou telespectadores) e anunciantes.

Em suma, cada notícia acarreta perigos para o corpo redactorial e para a organização jornalística. Cada notícia afeta potencialmente a capacidade dos jornalistas no cumprimento das suas tarefas diárias, afecta a sua reputação perante os seus superiores, e tem influência nos lucros da organização. Dado que cada jornal é composto de muitas notícias, estes perigos são múltiplos e omnipresentes.149

Esse autor sustenta que a “objetividade” é o principal instrumento retórico para minimizar os variados tipos de pressões exercidas sobre o jornalista e cita vários procedimentos adotados nesse sentido. É importante associar os usos da videografia a cada um destes procedimentos, para, em seguida, retirar algumas implicações relevantes quanto à problemática da objetividade videograficamente mediada do telejornal, primeiro relativas aos jornalistas e organizações (ator privilegiado em termos de imagem pública) e, logo depois, a outros diferentes atores sociais.

149

TUCHMAN, In: TRAQUINA, 1993. p. 78.

80 A — Verificação dos fatos.

A consulta a fontes variadas que se confirmem mutuamente é sempre recomendada (apuração), mas isso pode, eventualmente, não ser necessário, quando o enunciado é muito convergente com os padrões cognitivos consensuais do ambiente redacional. Como foi visto na Seção anterior, quando a fonte das vídeo-enunciações é obscura, como o era a da FFN, torna-se necessária a análise técnica especializada para aferir sua autenticidade. Além disso, foi preciso coletar (e de preferência, capturar como vídeo-imagens) declarações de “testemunhas oculares” que a confirmassem. No caso da produção da denúncia mediática inicial, isso foi muito facilitado pela cinegrafia, que forneceu diversas informações relevantes para a apuração das ocorrências (por exemplo, o número das viaturas usadas pelos policiais agressores). Os testemunhos, videografados, além sustentar a suposição da indicialidade das vídeo-imagens para os jornalistas, permitiram que sua veracidade fosse sustentada perante o público “telespectador”. B — Apresentação de possibilidades conflituais.

Quando as fontes (enunciadores) se contradizem e não é possível verificar o fundamento das suas pretensões de validade, a “objetividade” determina o que deve ser tornado público. O uso de “fulano disse algo, mas sicrano disse o contrário” permitiria, em tese, que o leitor ou telespectador decidisse qual seria a versão mais válida. Para evitar a acusação de parcialidade, o jornalista, confrontado com enunciados cuja verdade é inconfirmável, baseia-se na verdade das próprias enunciações. A controvérsia é uma estratégia de defesa necessária ao produtor de notícias. Suas pretensões de “objetividade”, no entanto, são dificilmente sustentáveis, pois a reprodução de discursos de fontes divergentes implica apropriar-se de opiniões que se pretendem “fatos”, mas cuja efetiva factualidade é insondável. Aliás, no caso de discursos que defendam princípios ou proponham juízos éticos ou normativos, sua objetividade só se confirma a posteriori, como uma decorrência da sua circulação pública, já que os valores só ganham existência e efetividade na medida em que passem a ser compartilhados pelo conjunto dos atores sociais e políticos. O uso da videografia no contexto de uma controvérsia mediática tem desdobramentos contraditórios. No contexto dos ideais de objetividade e imparcialidade jornalísticas, a “mágica factualidade”, comumente atribuída às imagens técnicas, permite que o problema da veracidade de uma ocorrência pareça ser resolvido “automática” ou “tecnicamente”, desde

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que se aceite que a videografia possa “naturalmente” produzir “testemunhos objetivos” despidos de valores. As imagens técnicas, no entanto, não falam nada e mostram muito: a relação que usualmente se estabelece com elas, quando se tenta extrair seu sentido, tem analogias interessantes com a relação mágica que o público e os antigos manipuladores de bonecos do teatro de sombras oriental estabeleciam com esses “objetos falantes”. Os bonecos, embora fossem objetos artificialmente produzidos pelos manipuladores, pareciam convidar (ou convocar) as pessoas a manipulá-los e utilizá-los para produzir sentidos. Muito estranhamente, postos para “falar”, pareciam adquirir vontade própria e produziam sentidos diferentes daqueles que se supunham haver sido neles incorporados durante o processo de sua produção e na sua manipulação, a ponto de fazer as pessoas esquecerem-se de tê-los construído. 150 Os dois capítulos seguintes dessa dissertação oferecem uma imagem parcial de como os processos de autonomização semântica dos “objetos de sentido” podem ocasionar interações comunicativas públicas de grande complexidade, como parece ter ocorrido na interpretação coletiva das vídeo-imagens da FFN depois da denúncia mediática inicial. C — Apresentação de provas auxiliares.

Para corroborar ou “derrubar” uma afirmação, são utilizadas “provas” cuja suficiência é determinada pelo senso comum profissional do jornalista, ou seja, pela sua percepção do que é aceito ou não na comunidade dos jornalistas como sendo “objetivo”, “impessoal” e “imparcial”. Ou seja, o tipo e o montante de índices e enunciados indiciais necessários para sustentar um enunciado é determinado socialmente. Assim como ocorre com a fotografia, a apropriação da imagem videográfica como prova válida é determinada por uma convenção amplamente aceita — embora, como se viu, bastante contraditória. Além da questão da labilidade da atribuição de sentidos às imagens, o que torna essa convenção mais problemática é que sua prevalência atual se dá apesar da vertiginosa evolução das tecnologias digitais, que alargou muito o leque de intervenções sobre as imagens videográficas. Para sustentar o rito de “objetividade”, é necessário manter tais intervenções 150

PIMPANEAU, 1977 e 1978; FÀBREGAS. In: DEMIANAKOS, 1986; GILLES. In: DEMIANAKOS, 1986; KHAZNADAR & KHAZNADAR. In: DEMIANAKOS, 1986. Bruno Latour desenvolve, numa perspectiva simétrica, na ciência moderna e nas tradições religiosas “arcaicas”, uma interessante reflexão sobre os processos pelos quais os sujeitos investem de subjetividade e autonomia semântica os objetos que eles mesmos constroem. (LATOUR, 1996.) Suas reflexões parecem ser particularmente elucidativa para a compreensão do processo de produção dos “fatos” pelo jornalismo.

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“invisíveis”, camufladas para o olhar “leigo” e/ou desaparelhado do público. No contexto do EFN, observa-se que algumas das acusações feitas contra os policiais foram sustentadas apenas pela edição de imagens: JNa0/7-8 [#10] (Repórter/sinc): “O Pelotão com dez pê-emes usando carros novos... voltaria dois dias depois... e uma nova face do crime seria revelada... a da corrupção. Para liberar as pessoas paradas no bloqueio....eles passaram a cobrar pedágio. Os policiais tomavam o dinheiro... de quem eles consideravam suspeito”. (Repórter/off): “... O primeiro homem, de camiseta e short. O pê-eme conta o dinheiro do rapaz e guarda. É o pedágio.”

Vista na íntegra, a FFN mostrou que, no momento seguinte, o policial entregava de volta os papéis ao passante. Assim, embora não seja infirmada de todo a hipótese de extorsão, a pretensão de que houvesse na Fita evidências desse crime não pode ser sustentada. Quanto às “provas”, viu-se acima que uma mesma gravação pode fornecer “pistas” para a averiguação da sua própria autenticidade. Algumas “provas auxiliares” validáveis perante o público podem mesmo resultar da utilização de variados recursos de edição de imagens (recortes do campo pictórico, alterações de sua duração, montagens e distorções variadas do tempo e das formas etc.). Isso acontece, por exemplo, quando as faces dos policiais agressores, registradas na FFN, são destacadas por recursos de edição, fazendo-as parecer com as fotografias dos arquivos da PM, às quais as reportagens só tiveram acesso no dia seguinte (JNa1/5).151 É interessante notar que a FFN passou por várias avaliações “auxiliares”, destinadas a infirmar as sucessivas alegações dos acusados: o exame pelos técnicos associados aos repórteres, o laudo técnico-pericial solicitado pelo Ministério Público de Diadema (JNa4/16, JNa7/3), uma perícia técnica nos laboratórios de criminologia e de fonética forense da Unicamp (JNa14/5), sendo finalmente avaliada a partir da reconstituição do crime, na Favela Naval (SPT23). D — “O uso judicioso das aspas”.

Um tipo de prova suplementar pode ser fornecida pela citação, no qual o enunciador e sua enunciação contemplam o ideal do fato que fala por si. Assim, o jornalista pode expressar suas opiniões pela boca de outrem, como um ventríloquo, sem ser submetido à censura de

151

Ref. nota 3 do cap. 5.

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seus superiores e sem se comprometer publicamente. “Aspas” podem também ser usadas para retirar ou limitar a legitimidade de um enunciado, como na frase que acaba de ser lida. Como foi visto no capítulo anterior, os recursos de citação, no audiovisual, são bem variados e diferenciados daqueles agenciados pela mídia impressa. Contudo, podem ser interpretados como tendo um uso estratégico bem próximo. Os dois capítulos seguintes exemplificam os usos desses recursos, que apresentam no EFN uma diversidade surpreendente. E — A estruturação seqüencial da informação.

Esse atributo formal visa conferir, retoricamente, uma maior “objetividade” aos enunciados, através de uma organização textual que destaque os aspectos da notícia considerados mais importantes. Como os enunciados telejornalísticos desenvolvem-se necessariamente no tempo, diferentemente das notícias impressas, que relatam primeiro os aspectos mais importantes e depois os acessórios (permitindo ao leitor mudar de notícia à vontade ou dispensar a leitura do final dos textos), a produção da notícia de televisão necessita organizar seus enunciados de forma unívoca e homogênea. A princípio, a continuidade temporal favoreceria o aprofundamento temático. Em geral, as telenotícias são apresentadas em um desenvolvimento narrativo mais ou menos linear, com constantes retomadas e reiterações de temas que visam adaptar as notícias à atenção dispersa atribuída ao telespectador, que (normalmente) não pode voltar a transmissão para retomar trechos mal compreendidos.152 A predisposição da televisão em seriar os acontecimentos manifesta-se pelo próprio desenvolvimento cronológico do EFN: em várias ocasiões, fica claro que os telejornais “reservam” alguns “trunfos” para edições posteriores.153 A seriação das reportagens tem evidentes vantagens mercadológicas: o preço dos espaços (tempos) publicitários é valorizado, pois pode-se estipular a tele–audiência previsível dos noticiários. No texto do EFN, é recorrente o emprego de catáforas (“ganchos”), que anunciam as “atrações” a serem posteriormente exibidas. Na maioria das vezes, são entrevistas e informações “exclusivas”. 152 153

WEAVER, 1993. In. TRAQUINA, 1993. p. 297-300

Como o JNa4, que exibe reportagem sobre a produção da FFN e sobre o cinegrafista, para “derrubar a exclusividade” da entrevista de Francisco Romeu Vanni no JBa4. O JBa5 exibe declarações de FRV que foram omitidas na edição do dia anterior, guardando a matéria para o sábado (5 de abril de 1997), quando as ocorrências noticiáveis são mais raras. A exibição da segunda videodenúncia, no JNa7, parece ter obedecido determinações semelhantes (ref. Seção 5.1.3b).

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Por exemplo: a chamada de programação JNa1ch/2 que coloca vicariamente o telespectador no lugar da vítima, o depoimento do “sobrevivente” das agressões policiais (JNa1) e a entrevista com o cinegrafista da FFN (JBa4). A tendência à linearização do discurso dos telejornais parece ser demonstrada pela organização das edições iniciais (JNa0 e JNa1, JBa1 e JBa4), que causam a forte impressão de terem sido planejadas como relatos acabados. Parte dessa organização, como será visto nas seções subseqüentes, relaciona-se à criação das continuidades visuais e discursivas, que caracterizam a denúncia inicial e os ardis empregados para a apropriação da autoria da FFN pelo JNa. F — Distinção entre espaços informativo-objetivos e analítico-opinativos.

Esse procedimento tem o objetivo de circunscrever dentro dos conjuntos textuais (a edição do jornal, a transmissão do telejornal) os enunciados mais polêmicos, remetendo-os a um enunciador individual. A distinção permite que esse enunciador faça juízos de valor explícitos, que, de outra forma, deverão ser camuflados através de outros procedimentos. Os enunciados, as situações e procedimentos de enunciação e as formas de reprodução de enunciados alheios, agenciados pelos emissores pertinentes ao ator-midiador, são derivados, em sua maior parte, das qualidades do lugar ocupado por esse ator enquanto meta-enunciador, e do telejornalismo enquanto dispositivo de constituição de um espaço comunicativo acessado por outros atores. No entanto, vê-se, no início do Evento da Favela Naval, que esses emissores abandonaram sua típica condição de “gerentes” do espaço público-mediático e intervieram, ativamente, nesse espaço. Tal mudança de papel era justificada pelo “dever de denunciar” (JNa0/5), que os midiadores atribuíram a si próprios no momento inicial. A grande diversidade de formas pelas quais opiniões e fatos são diferenciados (e indiferenciados) então existente no telejornalismo brasileiro emerge com nitidez no contexto televisivo do EFN. Essa variedade aparece na distribuição dos diferentes tipos de enunciação e nos diferentes “tipos” de locutor. Nos dois telejornais, a emissão de enunciados de cunho explicitamente judicativo e interpretativo foi intensa no momento da denúncia inicial. Naquele momento, todos os enunciadores empíricos pertinentes ao ator-midiador, independentemente de sua posição funcional, faziam referências valorativas explícitas ou conotadas em suas proferições. Tal tendência atenuou-se com o passar do tempo, os discursos

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de caráter opinativo tendendo a retornar aos momentos específica e tipicamente dedicados e aos seus emissores habituais. No JNa, os apresentadores introduzem “em direto” as “matérias”. Freqüentemente, expressam não verbalmente suas “opiniões” (inflexões vocais, expressões faciais, movimentos de corpo); outras vezes (como no JNa0, JNa1 e JNa7), acrescentam manifestações explicitamente opinativas. Além dos apresentadores, aparece também, em alguns momentos, um apresentador das opiniões editorais do telejornal; nessas enunciações, o caráter “editorial” do discurso é explicitado verbal e visualmente, no cenário eletrônico sobre o qual a imagem do apresentador é inserida.[#11] Pode-se dizer que, no JNa, os espaços opinativos são bem demarcados, mas o relato factual é, em geral, impregnado de interpretações judicativas. Os repórteres ocupam funções diferenciadas: os “heróicos” repórteres “investigadores” fazem denúncias e apresentam as notícias “exclusivas”; outros, mais “pacatos”, simplesmente apresentam dados estatísticos ou relatam declarações alheias, em gravações externas. Geralmente, os repórteres aparecem nas matérias pré-gravadas e editadas; sua aparição em direto representa um esforço de produção que deve ser justificado estrategicamente, ou como recurso para a representação da imediatez do telejornal; outras vezes, como será visto adiante, as entradas “ao vivo” servem para intensificar certas emissões. As opiniões nas enunciações dos repórteres são, geralmente, conotadas no texto escrito e recitado, mais do que através de recursos de expressão vocal ou facial. No JBa, o âncora — identificado como “repórter” na vinheta de abertura do telejornal— apresenta e comenta as notícias em direto. As “matérias”, relatadas pelos repórteres, são reproduzidas (play-back). Esses jornalistas utilizam, algumas vezes, recursos não-verbais para ironizar ou manifestar suas desconfianças diante de determinados enunciados (geralmente provenientes do ator-polícia). Há, nesse telejornal, uma menor diferenciação entre os diferentes lugares de enunciação.

3.2 — Apropriação do enunciado inicial pelo Ator-midiador

Nesta Seção, será examinado o modo pelo qual algumas contradições da “objetividade objetiva” se manifestaram concretamente nos enunciados do início do EFN. Em boa medida, a

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emergência dessas contradições ocorre nessa fase por ser sido nesse momento que os atores mediáticos se permitiram assumir o lugar de enunciadores aparentes e de atores políticos, antes de cedê-lo para os atores pertinentes aos poderes públicos e à sociedade civil. Ao se colocar no lugar “heróico” daquele que denuncia os fatos escandalosos do cotidiano, o atormidiador arrisca-se a denunciar também a si próprio, explicitando a parcialidade dos procedimentos rotineiros de produção de imagens e relatos noticiosos. Supõe-se aqui que os diferentes recursos retóricos, usados pelos “midiadores” para evitar que os procedimentos de produção noticiosa sejam problematizados, constituem elementos preciosos para caracterizar a sua relação com a esfera pública, no decorrer do EFN. O desenvolvimento do EFN encontra-se simbolicamente mediado por dois dispositivos, 154 que definem as formas e procedimentos de produção discursiva dos atores, principalmente do ator-midiador: a “denúncia” e a “controvérsia”. É possível dizer que a denúncia mediática inicial corresponde ao que Habermas chama de “transporte da situação-problema” para a esfera pública: uma porção da experiência de caráter originalmente não-público, local e indistinto é apontada como objeto para a interpretação pública, sendo-lhe atribuído um interesse geral. Como foi visto anteriormente, as vídeo-imagens, enquanto coisas, nada “provam”, antes que se convencione o que estariam provando. Para que “testemunhem” algo, devem ser interpretadas segundo uma regra geral, que, no caso da FFN, é a do seu uso factual, tipicamente “jornalístico”. Essa primeira demarcação, a presunção da indicialidade da FFN, estabelece as condições gerais para os desenvolvimentos interpretativos posteriores. O primeiro desses desdobramentos é a atividade de apuração, na qual a equipe de reportagem, que faz o “jornalismo investigativo”, procura confirmar a veracidade das imagens, através da obtenção dos testemunhos. Só depois de produzido o “fato” é que o JNa pode dar o “furo” e assim tratar a notícia como um “escândalo” público. Na continuidade da comoção pública gerada pela denúncia mediática inicial, os procedimentos furtivos cedem lugar à “cobertura jornalística”, que é necessária ao relato da “controvérsia”, a interpretação social do acontecimento. Essa passagem corresponde à configuração de uma segunda demanda interpretativa no espaço público-mediático. Agora, o acontecimento passa a necessitar ter seu sentido público-político atribuído. Tal demanda não pode ser suprida pela produção discursiva dos atores “midiadores”, exigindo também a 154

MOUILLAUD, 1997. p. 29-36.

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participação dos atores da sociedade e do Estado. Na “cobertura”, os midiadores abandonam a posição de intervenção inicialmente assumida e passam a gerenciar o acesso ao espaço público-mediático. As equipes de reportagem se distribuem de modo mais uniforme, comparecendo assiduamente às situações de enunciação propostas pelos outros atores. Na controvérsia pública, produz-se uma segunda tradução das vídeo-imagens. Nela, os índices constituídos na denúncia inicial são conectados a enunciados dos diferentes atores, tecendo o “hipertexto” do EFN pelo progressivo entretecimento de interpretações. Sem que seja interrompida, a tarefa de indicialização das vídeo-imagens passa então para o segundo plano, enquanto as atenções públicas são mais explicitamente dirigidas para a avaliação coletiva das implicações políticas, morais e éticas do acontecimento. Como já foi observado, essa avaliação é potencialmente ilimitada, devido à pluralidade de contextos de interpretação. Foi durante a denúncia mediática inicial e a transição para a cobertura jornalística que os midiadores assumiram, de modo explícito, sua participação ativa nos processos sociais (não como narradores distanciados). Esses são, portanto, os momentos que melhor permitem caracterizar os padrões procedimentais de intervenção pública desses atores. O aspecto das variadas formas de apropriação das imagens inicialmente gravadas é particularmente significativo para esta investigação. De modo geral, pode-se afirmar que foi nessas primeiras edições dos telejornais que se estabeleceram as condições que permitiram às imagens adquirir seu valor testemunhal e seu apelo emocional (escândalo). Mas, indo além do primeiro momento de “choque”, é possível considerar que os parâmetros da proposição inicial do acontecimento estruturaram aqueles segundo os quais o acontecimento se desdobrou como um processo comunicativo reflexivo. Nessa “hipertextualização” do acontecimento, o sentido da ocorrência permanece aberto, atraindo ou exigindo (dependendo do ator) tomadas de posição por parte dos diversos atores da esfera pública. A primeira publicização da ocorrência original (os crimes policiais e sua gravação em videoteipe) foi feita no JNa0, normalmente exibido às vinte horas. A maior parte dessa edição foi dedicada à exibição de trechos do vídeo-enunciado inicial, editadas e associadas a informações investigadas pela produção do telejornal. Primeiramente, é feita uma apresentação bastante resumida de trechos da FFN, nos quais aparecem os momentos mais violentos registrados. Os fragmentos da Fita são montados fora da ordem cronológica (tomando como referência a indicação de data e hora, inserida pelo cinegrafista). Essa forma

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de organização, provavelmente, segue o interesse de produzir na abertura do telejornal (JNa0/2) o maior impacto emocional possível. Assiste-se, logo depois, a uma nova exibição das vídeo-imagens da FFN, que agora obedece à ordem cronológica “natural”. A reprodução é acompanhada pela locução off do repórter, que se torna freqüentemente redundante em relação à informação diegética já provida pelas vídeo-imagens (JNa0/6). Essa parte do telejornal encerra-se com um “gancho” para a parte seguinte da reportagem, em que se promete denunciar outros crimes além dos já apontados (JNa0/7). A segunda parte do bloco retoma o relato dois dias depois do momento em que havia terminado a narrativa anterior. No trecho seguinte da FFN, nenhum crime contra civis aparece ou é relatado. O trecho registra apenas as imagens do soldado O.L.Gambra “brincando” com sua arma particular: JNa0/8 [#12] (Repórter/off): “Meia-noite e trinta e seis minutos do dia cinco. Rambo brinca com a arma./[12:46] Coloca o pente. ...”

Esse soldado, repetidamente referido através de sua alcunha (“Rambo”), é, nesse momento, o único a ser identificado individualmente. Em outro telejornal, exibido às vinte e três horas na mesma emissora, a identificação de “Rambo” foi equivocadamente aplicada ao soldado N. S. Silva Jr.: JGl0/4 [#13] (Reporter/off): “... Depois de tomar tapas no rosto, este homem é levado para um beco, e espancado pelo pê-eme grandalhão, conhecido como Rambo . Depois da surra, o pê-eme grandalhão... chama um amigo, que caminha tranqüilamente. Minutos depois se ouve o tiro .”

Tanto a pressa da aplicação do epíteto quanto o “engano” da identificação são sugestivos. Parece que, nessas primeiras denúncias, os telenarradores se incumbem de apresentar e caracterizar o personagem que desempenhará a função de antagonista. Além disso, o referido equívoco sugere que, na perspectiva do midiador (pelo menos naquele momento), a designação “Rambo” não exatamente se refere a um indivíduo, mas funciona como a identificação actancial genérica d’“o” policial criminoso, quem quer que seja ele.155 155

As folhetinescas alcunhas dos agressores (“Rambo”, “Mancha e seu parceiro”, “Zapata”, “Alemão”) reiteradas pelos telejornais são de procedência obscura. Não parece verossímil terem sido escolhidas pelos policiais. O advogado do soldado Gambra dizia insistentemente que o apelido “Rambo” era uma invenção da

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O JNa0, logo depois dessa pausa descritiva, mostra e conta a “prova” da corrupção dos policiais denunciados, pretensa evidência que, como se viu, não se sustentou com a exibição integral da FFN. A tentativa, no entanto, explicita a disposição do telejornal em selecionar aquelas imagens mais comprometedoras e em não divulgar nenhum elemento que pudesse ser favorável à defesa dos policiais agressores. No restante da seqüência, mostram-se e contam-se as agressões ocorridas na noite seguinte (6 para 7 de março de 1997), quando um motorista foi duramente espancado e outro rapaz, morto. A exibição dos trechos faz uma elipse da longa “sessão” de agressões, que são sumarizadas pelo relato verbal: [#14] (Repórter/off): ...”Rambo se aproxima. O suspeito tenta se explicar. Primeiro golpe de cassetete. Outro. Mais outro. E outro. O pê-eme grandalhão pega o pé do rapaz....torce. A pancadaria continua. O grandalhão agora dá com o cassetete no pé do rapaz. Em apenas três minutos, ele vai levar trinta e quatro pancadas”...

A seqüência encerra-se com a exibição das vídeo-imagens do momento do disparo do tiro que matou Mário José Josino, assassinato duas vezes anunciado na locução: “Reparem no rapaz com a agenda na mão. Ele vai morrer. (...) Mas o pior ainda está por vir. (...)”. A vítima do disparo foi várias vezes identificada através de um destaque visual aplicado sobre as imagens originais da FFN. [#15] O desfecho foi relatado pelo repórter sem a exibição de imagens da FFN, pois o resultado das ações não foi nela registrado. É interessante notar que parte final dessa emissão foi transmitida em direto, de um lugar identificável como uma periferia urbana.

mídia. A escolha dos apelidos parece se derivar das semelhanças entre as feições dos PMs agressores e as dos personagens. Também são semelhantes os tempos das narrações dos relatos ficcionais mediáticos e factuais denunciadores: ambas são narrativas intercaladas. O plano de analogia mais sugestivo, contudo, provém das similitudes entre os programas narrativos dos personagens ficcionais e dos reais, como aludido no JBa1/18. Nos dois relatos, os protagonistas têm um comportamento dúbio e suas intervenções ocorrem em contextos cujas interações não são coordenadas segundo os princípios do Direito, mas da violência física. Sua ação é impor a ordem ao arrepio da lei (exista ela ou não). O uso desses apodos, oriundos das narrativas mass-mediáticas, é recorrente nos enunciados dos moradores da Favela Naval, sugerindo terem se originado neste contexto. Se for esse o caso, o uso de nomes de super-heróis, bandidos carismáticos (“Zapata”) e terroristas de Estado (“Rambo”) mostra que a comunidade periférica percebe, através da re-elaboração das referências mediáticas, sua condição de exclusão e as dubiedades éticas da sociedade e do Estado brasileiros.

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JNa0/9 [#16] (Repórter/sinc): “Um dos tiros disparados pelo policial militar atingiu o rapaz que estava no banco de trás do carro. O mecânico Mário José Josino, que estava de férias e tinha ido visitar um amigo, foi levado pelos colegas para o hospital público de Diadema....onde morreu horas depois”.

A segunda parte dessa edição começa com um “compacto dos piores momentos”, mais longo e descritivo que o resumo inicial. Novamente, as cenas da FFN foram exibidas fora da ordem cronológica. Em seguida, o repórter, que conduz a apresentação da denúncia, descreve minuciosamente uma das agressões. O depoimento da vítima, obtido com exclusividade pelo telejornal, foi anunciado como um “gancho” para a edição do dia seguinte. A edição desse dia termina com uma longa fala do apresentador, que comenta os acontecimentos relatados (vide Seção 3, deste Capítulo). A primeira abordagem do telejornalismo da Rede Bandeirantes refere-se às denúncias, feitas pela empresa concorrente, de um modo sucinto e bastante distanciado: JNo0/2: [#17] (Apresentador/sinc): “Uma ação... monstruosa... Foi com essas palavras que o Ministro da Justiça, Nelson Jobim, comentou a violência de policiais militares paulistas, flagrados por um cinegrafista amador. Imagens divulgadas agora à noite mostraram os pê-emes matando, espancando e extorquindo moradores da Favela Naval, em Diadema, cidade da região metropolitana de São Paulo. Tudo aconteceu... há quase um mês, e há até... inquéritos... em andamento. Mas a divulgação das imagens provou que os soldados... mentiram. O Secretário de Segurança...exigiu explicações, e o Governador promete falar nesta terça-feira.”

O nome do telejornal da emissora concorrente foi omitido, enquanto o crédito pelos “flagrantes” foi dado apenas ao “cinegrafista amador”. Nenhuma vídeo-imagem das ocorrências foi exibida, presumivelmente, por não estar disponível para a reportagem dessa emissora. O relato resume-se à locução do apresentador e centra foco nos enunciadores pertinentes aos poderes públicos: o Ministro da Justiça, o Governador e o Secretário de Segurança Pública de São Paulo. O processamento judiciário e administrativo do “caso” não é colocado em questão; o único elemento tratado como não-rotineiro é a demonstração de que “os soldados mentiram” nos inquéritos (que já estariam em andamento). Parece ter havido, nesse momento inicial, certa apatia ou desconfiança dos veículos concorrentes da Rede Globo156 em relação à presunção do interesse público sobre a denúncia. 156

Esta apatia foi explicitamente criticada, por exemplo, pelo Ombudsman da Folha de S. Paulo: “Há notícias que mexem com um país e transbordam para o mundo. Ter sensibilidade para elas é fundamental para consolidar

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Tal atitude foi prontamente abandonada diante da constatação da comoção da opinião pública a respeito da ocorrência inicial: rapidamente, o acontecimento é tematizado por praticamente todos os veículos de comunicação de massa.157 No dia seguinte, o JNa1 foi dedicado ao mesmo tempo à caracterização da “cena do crime” e à coleta e reprodução dos variados enunciados públicos relacionados à publicização inicial da ocorrência, no âmbito da sociedade civil (nacional e internacional) e dos poderes públicos. Já em sua abertura, o telejornal ironiza o governador de São Paulo, dando a entender que sua equipe de reportagem foi mais eficiente que o governo paulista para encontrar um sobrevivente da agressão policial. Esse depoimento é anunciado na primeira parte do programa e serve como “gancho” para o final. O telejornal descreve o local dos crimes (a “Favela Naval”, também conhecida como Vila Jardim Santa Rita), identifica nominalmente cada policial agressor e caracteriza a condição oprimida dos moradores da comunidade agredida. Passa a uma seqüência de falas, cartas e mensagens eletrônicas enviadas por “telespectadores” e a um bloco “povo-falante”. Esse último conjunto aparecerá mais três vezes, fazendo a conexão entre as diversas instâncias, em que a repercussão da denúncia inicial é avaliada.

Nos blocos de “povo-fala”, as falas de anônimos misturam-se à de

especialistas em Direito. A primeira série de instâncias de “repercussão” é a seguinte: telejornais estrangeiros, sociedade civil organizada estrangeira, governo paulista e corporação policial. A segunda é: Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Ministério da Justiça. Passados os intervalos comerciais, o segundo bloco do JNa1 exibe finalmente os depoimentos das vítimas das agressões. Depois de outro bloco “povo-falante”, o telejornal mostra depoimentos acerca do assassinato de Mário Josino, caracteriza as condições da sua família e finaliza, sugerindo que as pessoas façam novas denúncias, para o que fornece os números dos telefones e do fac-símile do Ministério da Justiça. O JBa1, veiculado na mesma noite, utiliza basicamente dos mesmos elementos, mas os articula de maneira diferente. As principais discrepâncias são: o menor uso de recursos visuais, a ausência de ironia em relação ao governador de São Paulo (marcante no JNa1) e à a relevância de um veículo junto a seu público e à comunidade. (...)A Folha, que não faz muito teve coragem e causou polêmica — ao estampar uma seqüência de fotos na capa mostrando um policial militar maltratando um menino de rua — não poderia ter deixado de romper a rotina e correr seus próprios riscos diante de fato tão mais grave.” (SANTOS. Terror na favela e timidez na Redação. Folha de S. Paulo, 6 de abril de 1997, p.1-6. Seção: Ombudsman.). 157

O assunto aparece em programas noticiosos de todas as emissoras abertas e em vários canais de notícias da TV por assinatura; freqüentemente, aparece em diferentes programas de uma mesma emissora. (ref. Seção 2.3)

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corporação policial, a maior utilização de depoimentos da comunidade agredida e a exposição da vida privada do soldado “Rambo”. À abertura do JBa1, segue-se a edição das vídeoimagens do enunciado inicial, em preto e branco. O telejornal passa então à caracterização das condições da família do trabalhador assassinado e ao depoimento de uma vítima, seguido da avaliação do promotor de justiça de Diadema, encarregado do caso. A responsabilidade por possíveis omissões e pela impunidade dos assassinos é tematizada nas três seqüências posteriores, com imagens e declarações de pessoas do governo paulista e do comando da polícia militar; o bloco encerra-se com o anúncio dos assuntos do bloco seguinte. Depois dos comerciais, o “repórter” Paulo Henrique Amorim faz uma longa entrevista, transmitida ao vivo, com o governador Mário Covas. As últimas seqüências servem para caracterizar o “pânico” dos moradores da “Favela Naval” e terminam por expor a vida privada de “Rambo”/Gambra, com imagens de sua residência e declarações dos vizinhos em off. No JNa0, além do momento da apresentação da reportagem, a existência do cinegrafista autônomo foi assinalada uma única vez. Identificado como “amador”, a sua participação foi mencionada somente quando a cinegrafia deixou de fornecer algumas informações: JNa0/6 [#18] (Off/off): “... O cinegrafista amador consegue pegar parte da cena, onde o pê-eme grandalhão espanca o homem... ”

Evidentemente, sempre que são narradas as cenas da FFN, os repórteres estão se apropriando de um enunciado proveniente da sociedade civil anônima e não-organizada, mas esta operação é sempre escamoteada, como será visto a seguir.

3.2.1 — Referências verbais à gravação inicial

O processo inicial de apagamento das marcas da produção da FFN, pode ser percebido nas referências verbais feitas às vídeo-imagens deste vídeo-enunciado. Estas menções estão presentes em boa parte dos enunciados das duas edições do Jornal Nacional. Os enunciadores midiadores denominam as imagens videográficas segundo os termos: imagens, cenas, flagrantes, revelações, fita e vídeo.

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Os dois primeiros termos são utilizados na redação do JNa para se referir ao material que vai ser ou foi tornado público. Tendem a identificar o enunciado inicial do Evento com seus aspectos mais sensoriais e cênicos, enfatizando as dimensões empáticas e espetaculares, como também seu sentido simbólico. A alusão aos trechos do enunciado inicial como “flagrantes” pressupõe a prévia publicização das imagens. Tal termo já incorpora ao vídeo-enunciado inicial o seu caráter público, já se referindo a ele enquanto um acontecimento publicamente relevante. O uso da palavra “revelações” implica o reconhecimento de uma cisão entre espaços públicos e não-públicos, que é superada pela publicização da ocorrência (os crimes), por enunciados de vários atores sociais. “Fita”, “vídeo” e “gravação” são termos que destacam os aspectos materiais do enunciado inicial ou de seus trechos, dirigindo a atenção do destinatário (locutário) para as marcas do processo de produção. Como será visto adiante, a alusão à materialidade do enunciado inicial é rara. Sempre tratado como “cenas” e “imagens” no espaço mediático, o vídeo-enunciado inicial só é “fita” quando se relata sua circulação no contexto dos procedimentos administrativo-judiciários da corporação policial-militar. As “imagens” e “cenas” são qualificadas repetidas vezes como “exclusivas”. A emissora do JNa congratula-se pelo “furo jornalístico” dado nas concorrentes. O termo “exclusivo” indica principalmente sua apropriação privada para fins comerciais. As relações comerciais entre as empresas de comunicação se explicitam também quando a reportagem trata da repercussão internacional, relatando que “as imagens se espalharam pelo mundo através das principais agências de notícias da Europa e dos Estados Unidos”. As “imagens” e “cenas” são consideradas “fortes e estarrecedoras”. Muito freqüentemente, sua exibição é associada à criação de estados emocionais de choque, inação, afasia, susto e surpresa. O telejornal “adverte” os telespectadores, preparando-os para que fiquem chocados, estarrecidos, repugnados. Do ponto de vista do enunciador mediático, espera-se que o público, depois de bastante medusado pelo horror visual, passe reativamente a atitudes e declarações de “indignação”, à “revolta”, ao desejo de justiça. Dentre as várias referências às imagens, uma é singularmente eloqüente a respeito do seu processo de apropriação. Na abertura da edição de 31 de março de 1997, William Bonner (o apresentador do JN) lê, no teleprompter, a seguinte frase: “O Jornal Nacional adverte que as imagens são fortes, mas tem o dever de denunciar”. Como se sabe, a fonética da língua portuguêsa não permite distingüir “tem” de “têm”. Assim, da maneira pela qual foi proferido

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o texto, “as imagens”, — e não o telejornal —, parecem ser o sujeito ao qual o “dever de denunciar” se refere. É como se as imagens de vídeo dispusessem de subjetividade e autonomia para se dirigirem aos cidadãos humanos, segundo o interesse destes. De fato, no processo de produção das imagens técnicas, o corpo humano é um objeto como qualquer outro: sua imagem é produzida e inscrita em um suporte, desde que reflita luz o suficiente para sensibilizar os circuitos de captação de imagens, se situe dentro do ângulo de enquadramento e produza algum som. Mas como explicar a inversão da frase do apresentador do JNa? Pode-se, perfeitamente, optar por tratar esta (aparente) incongruência como um deslize na redação do texto do teleprompter. Essa é uma hipótese pouco verossímil, pois o texto do apresentador é lido e revisado várias vezes e por pessoas diferentes, antes de ser enunciado ao vivo. A atribuição de uma atividade autônoma ao “actante FFN” pode ser compreendida de outra maneira, se se observa o uso de termos relacionados a “véu” (revelar, revelações etc.): JNa0/5 (Apresentador/sinc): “...as cenas exclusivas foram gravadas por um cinegrafista amador e revelam extrema crueldade contra cidadãos indefesos...”

JNa0/7 (Repórter/sinc —em direto): ...”uma nova face do crime seria revelada...”

JNa0/10 (Apresentadora/sinc): “...nossos repórteres voltam ao local das torturas, e revelam o destino de quem passou pelas mãos dos bandidos de farda.”

JNa0/11 (Apresentadora/sinc): “...veja a seguir novas revelações sobre a violência da polícia...”

No primeiro enunciado, “as cenas” são o sujeito da ação, primeiro passivo (“foram gravadas”) e depois ativo (“revelam”). No segundo, não há um agente no ato “ser revelado”. No terceiro, “nossos repórteres” são o agente. No quarto, o verbo é subjetivado, ou seja, a ação de revelar torna-se objeto. É como se, ao longo do texto, o objeto produzido (a gravação) se tornasse um “produto-sujeito”, produtor de si próprio (as cenas) e gerador de novos produtos pelo intermédio dos sujeitos humanos.

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Das “cenas”, diz-se que elas “provocaram indignação” ou “causam revolta”. A rigor, não são as cenas, mas a violência ilegítima dos policiais é que desencadeia tais repúdios; ou melhor, são as vídeo-imagens da violência, registradas por um cinegrafista autônomo e associadas, através do trabalho da reportagem, com outras vídeo-imagens de depoimentos de pessoas que estiveram no lugar e no momento em que os crimes ocorreram. Portanto, o termo “cenas” constitui uma representação capaz de recolher a série de esforços humanos intencionais e fazê-los desaparecer à sombra do objeto imediato da denúncia. Tende-se a apagar todas as mediações para dar destaque ao “acontecimento propriamente dito”.

3.2.2 - Produtor camuflado, produto autônomo

Já se mencionou a pouca deferência concedida, no texto dos repórteres e apresentadores, ao cinegrafista que produziu o vídeo-enunciado inicial (a FFN). Esse personagem, o verdadeiro realizador da fita, que se submeteu a riscos reais, foi mencionado apenas tangencialmente no texto. O JNa refere-se a ele em duas ocasiões apenas, ambas no início da reportagem: na apresentação, como produtor das imagens, e na seqüência do espancamento de Sílvio Lemos. Além dessas menções, a identidade, as intenções, as técnicas, os procedimentos etc. do autor da gravação dos crimes da Favela Naval permanecem na obscuridade por algum tempo (até o dia 4 de abril, quando o JBa as divulgou como “furo de reportagem”). Além do mais, não há nada nas imagens gravadas que justifique o epíteto de “amador” (pelo contrário), e é estranho que o cinegrafista não seja abordado como testemunha privilegiada dos crimes. Marcelo Rezende, o “autor” da reportagem, perguntado sobre a identidade do “cinegrafista amador”, procura justificar a pouca relevância dada a esse aspecto:

Quem teve a iniciativa [de produzir a fita] eu não sei te dizer. Não tenho a menor idéia de quem fez, por que fez, de que maneira fez, ou com que intenção. Isso foi uma coisa que pensei muito, até chegar à conclusão de que isso tinha uma importância apenas relativa diante da barbárie cometida pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. Então levei este meu raciocínio para a direção da TV Globo, informando que o material que eu tinha em mãos, expondo o que eu pensava, as minhas preocupações. Eles chegaram à mesma conclusão de que deveriam pôr no ar, porque aquilo era um escárnio, uma barbárie. 158

158

Entrevista: Marcelo Rezende. Imprensa, n. 123, dez. 1997. p. 31-32. (Esta entrevista foi realizada no final de setembro de 1997, em Salvador, durante o IV Seminário Internacional de Telejornalismo).

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Fica para o leitor a decisão de aceitar ou não como verdadeira a declaração de desconhecimento de Rezende. Contudo, deve-se saber que, já em abril (menos de um mês depois da denúncia mediática inicial), o cinegrafista veio a público dar seu testemunho sobre os crimes, em juízo, em um programa de entrevistas da Rede Cultura (OpN24) e logo depois na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Crime Organizado, da Assembléia Legislativa de São Paulo (CPI-ALSP). Em todas essas ocasiões, disse que a TV Globo havia se apropriado indevidamente da FFN e que não havia sido pago pelo trabalho de gravação. 159 O que parece indubitável é que o repórter adota, na declaração acima, uma posição defensiva. Presumivelmente, o faz não só para reivindicar que seu trabalho é a parte mais importante da notícia, como também para evitar maiores problemas jurídicos em relação aos direitos de autor sobre as imagens. Tais questões de cunho jurídico podem ter alguma relevância para compreender as precauções da reportagem.160 Contudo, o que se busca investigar refere-se primariamente ao aspecto simbólico dos procedimentos de apropriação das imagens pela reportagem telejornalística. Nesse plano, as estratégias de apropriação extrapolam as referências verbais e os eventuais “atos falhos”161 dos enunciados. Todo o tratamento visual do JNa0 parece ter sido elaborado para criar continuidades visuais com as imagens do “vídeo-enunciado” inicial. A produção da “matéria” busca sobrepor o espaço da gravação inicial ao espaço da reportagem e atualizar as imagens iniciais para o momento da transmissão do telejornal — quase um mês depois da gravação inicial. A seguir, serão analisadas essas continuidades visuais, para, em seguida, examinar algumas relações significativas entre a dimensão verbal e a videográfica no texto telejornalístico em questão.

159

Primeiro, com seu advogado e seu assistente, no OpN24; depois os telejornais JDe29, SPT29, TJB29, JNo29 documentam seu depoimento na CPI. 160

A Rede Globo foi processada pelo cinegrafista por apropriação indébita das fitas. (Lozano. Cinegrafista acusa PMs de mais torturas. Folha de S. Paulo, 30 de abril de 1997. p. 3-2. Seção Cotidiano) 161

Os “atos falhos” abordados na pesquisa evidentemente não se referem à emersão fragmentária de conteúdos inconscientes latentes no discurso de um sujeito individual. Esta noção foi tomada de empréstimo à psicanálise para assinalar aqueles enunciados mediáticos nos quais as estratégias de aparição pública de determinado ator falham e denunciam intenções que os enunciadores tentavam esconder.

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3.2.3 — Continuidades visuais

No JNa0, após a segunda seqüência de cenas da gravação inicial dos crimes da Favela Naval, Marcelo Rezende faz a sua primeira aparição in: camisa social, calça branca, mãos no bolso, vento nos cabelos, na frente de um muro de alvenaria sem reboco e com partes quebradas. Na segunda passagem, as mesmas roupas, o fundo é agora um muro grafitado. O fundo trash remete-nos imediatamente ao cenário da gravação inicial, além dos caracteres, inseridos na primeira passagem, que “asseguram” que o repórter está em Diadema, na “cena do crime” (JNa0/7). [#19] Uma observação mais atenta mostra que houve uma preparação minuciosa para a gravação dessas duas passagens: o repórter usa o microfone de lapela (tal como os apresentadores do telejornal), que, como se sabe, limita sua mobilidade e garante uma imagem mais “clean”; a cena é iluminada com três fontes de luz, duas sobre o repórter e uma para o fundo. Nas “passagens”, em geral, o repórter segura o microfone (com logotipo) com uma das mãos e é iluminado por uma única fonte de luz. Raras vezes é usada a luz difundida, e menos comum ainda é o uso de uma segunda fonte; quase nunca é iluminado o fundo. De acordo com os manuais de iluminação para televisão, a “iluminação de três pontos” é indicada para situações controladas, geralmente gravações em estúdio, pois tal configuração pressupõe que os objetos iluminados estejam parados. As passagens de repórteres em telejornais são estáticas, mas quase nunca sua gravação exige mais do que uma única fonte de luz para a iluminação do repórter; igualmente, o microfone de lapela para a captação do áudio é muito raramente empregado; que dizer então do fundo destacado pela luz? Parece que o fundo é, nesse caso, imprescindível para a inserção do repórter no espaço-tempo dos acontecimentos. Rezende, na primeira passagem do JNa0, interpreta o sentido das imagens que foram exibidas logo em seguida; na segunda, relata acontecimentos não registrados na gravação inicial (a morte de Mário José Josino). Na primeira passagem, como já se viu, as imagens corroboram o enunciado verbal do repórter, de modo forçado, pela edição das imagens, que mostram um policial “tomando” o dinheiro de um transeunte — mas não o mostram devolvendo os papéis ao rapaz. Essa informação, dada na segunda passagem — que, aliás, é incorreta, segundo o cinegrafista da FFN (em OpN24)— poderia perfeitamente ser inserida em off, como o resto das afirmativas do repórter. Efetivamente, as duas “passagens” do repórter, além de

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afirmarem que o tiro de “Rambo” matou Mário José Josino, acrescentaram muito poucos elementos novos ao relato dos crimes. Não há nenhuma particularidade das ocorrências que exigisse a presença do repórter no local; entretanto, é provável que a notícia demandasse tais procedimentos. Houve um esforço deliberado de tornar a “cena da reportagem” o mais parecida possível com a “cena do crime”. O esforço mimético da reportagem do JNa fica evidente na terceira e quarta aparições do repórter (JNa0/14-17). [#2] O quadro é dividido em duas “janelas” que exibem imagens diretas (“ao vivo”) de duas fontes espacialmente distantes: do estúdio do Jornal Nacional (plano peito de Bonner) e do “lugar onde foram gravados os flagrantes exibidos no começo do Jornal Nacional” (plano americano de Rezende). O repórter nada diz nessa cena, apenas inspira o ar para começar sua fala; do ponto de vista do “conteúdo” da notícia, nenhuma nova informação é acrescentada a respeito da ocorrência — que é o tema da edição. O sentido das “janelas ao vivo” é principalmente fático: a transmissão direta indicializa a presença do repórter, coloca-a no tempo presente, assim como “esquenta” e “aproxima” sua narrativa. Deve-se notar que, se essa atualização já ocorre nos telejornais em geral, quando a transmissão direta do estúdio é articulada com o play-back de reportagens pré-gravadas (sem indicações ao telespectador sobre de o tipo de reprodução de imagens, em direto ou em playback), ela foi, na denúncia mediática inicial do EFN, ainda mais necessária, para a publicização de imagens de uma ocorrência passada há quase um mês. O que ancora de modo mais estável o lugar da imagem transmitida à “cena do crime” é o texto verbal. Mas este expõe novas (aparentes) incongruências: a rigor, o repórter não está no “lugar onde foram gravados os flagrantes” (JNa0/14), e sim no lugar onde foi cometido um dos crimes (o espancamento de Sílvio Lemos). Constata-se, na seqüência seguinte, que quem está no lugar onde as imagens foram gravadas é o cinegrafista da TV Globo. Quando o repórter começa a “dar o texto”, é enquadrado em plano americano, plongée; a medida que seu relato prossegue, o plano vai se abrindo até chegar a um enquadramento quase idêntico ao do “cinegrafista amador”, tomado da mesma posição de onde ele registrou os crimes. [#20] Contudo, quase: o esforço mimético da reportagem é traído pelo “padrão Globo de qualidade”. Uma observação atenta permite perceber que foram usadas, na cena, cinco fontes de luz, duas delas muito potentes (provavelmente de mais de 5kw), arranjadas de maneira cuidadosa. A ex–“cena do crime” foi inundada de claridade para a transmissão das imagens

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do repórter in loco. O posicionamento das fontes de luz demonstra o esforço de “cancelar” todas as sombras — que, por isso mesmo, se multiplicam, assim como os reflexos luminosos. Atrás de um arbusto, próximo ao repórter, quase se esconde um segundo cinegrafista, 162 responsável pela tomada do segundo plano da seqüência, na qual o repórter anuncia uma nova exibição de trechos da gravação inicial, um “compacto dos piores momentos” para quem “estava na cozinha” no momento da primeira exibição (JNa0/15). Na terceira exibição das cenas de agressão (JNa0/16), a edição das imagens não obedece à ordem cronológica dos acontecimentos e ordena os horrores em um crescendo que culmina com “o tiro... e o silêncio”: suspense.163 Esse suspense é mantido até o final da seqüência/cena seguinte (JNa0/17). Ao chegar a esse ponto, o repórter, não mais no “enquadramento mimético”, mas agora enquadrado no solo, pelo segundo cinegrafista, exibe uma marca em um muro de alvenaria, que não teria sido mostrada na FFN: o repórter identifica o furo na parede como um buraco de bala, resultado do disparo feito pelos policiais agressores contra a vítima do espancamento (Sílvio Lemos). [#21] Este “novo” indício, que daria uma justificação “informativa” para a transmissão da “passagem” em direto, tem uma ligação frágil com a “cena do crime”: o muro tem inúmeros buracos; na gravação inicial não há ruído de ricochete, e, como poderá ser visto no JNa1/6, buracos de bala é o que não falta nos muros e portas de aço da Favela Naval [#22]. O mimetismo da reportagem não é (como na cena anterior) exercido sobre a imagem (o enquadramento), mas sobre a própria indicialidade atribuída ao ato de gravação: não é mais a formas das vídeo-imagens que é decalcada, mas, nesse caso, o próprio gesto de produzi-las.

3.2.4 — Teletopologias

As referências verbais ao espaço da gravação apóiam a hipótese da retórica mimética da reportagem e mostram a superposição entre a delimitação física do lugar da ocorrência e a 162 163

Que indica que o link para a transmissão contou também com uma mesa de corte no local.

Seguindo a discussão feita por Patrick Tacoussel, em palestra proferida em julho de 1998, na UFMG (Fafich), pode-se afirmar que o verdadeiro terror não provém daquilo que se escarnece, mas sempre daquilo que é invisível e, por isso, obsessivamente imaginado: a morte. Se o acontecimento é sempre uma mudança de estado, nenhuma mudança é mais terrível e opaca que a morte, instante da passagem do mundo dos vivos para o mundo das sombras. Se os acontecimentos são instrumentos para a referenciação da vida coletiva, pública, nenhum acontecimento expõe, mais do o faz a morte pública, a dissociação entre a limitação e a circularidade da vida familiar e comunitária, e a temporalidade aberta, linear e cumulativa, que subjaz à vida social moderna.

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constituição simbólica do lugar do acontecimento. Já foi comentado aqui o uso do “onde”: sob uma aparente falta de domínio do vernáculo, inscreveu-se uma estratégia de apropriação. “O lugar onde foram gravados os flagrantes” (e não “de onde”) traduz a estratégia típica do telejornalismo de tentar camuflar as mediações, criando a impressão de imediatez e transparência dos enunciados mediáticos, ardil que produz e reproduz a noção de objetividade do senso comum. A superposição entre o espaço-tempo da ocorrência e o espaço-tempo do relato, na reportagem, está presente também na penúltima seqüência do primeiro bloco do JNa0. As imagens mostram (parcialmente) e o repórter narra o assassinato de Mário Josino por “Rambo”. Além da típica abordagem personalizante da narrativa jornalística (“Rambo”, o vilão, “Mario Josino”, a vítima), uma sentença da narração em off demonstra o duplo sentido de “cena”: JNa0/8 [#23] (Off/off): “... Espancados, eles entram no carro. O rapaz que estava com a agenda vai atrás. Quando tudo parecia ter terminado, Rambo calmamente entra em cena. Atira no carro. No fundo, outro atira também, só que para o alto . Rambo completa o serviço com mais um tiro.”

“Rambo” entra em “cena” concretamente porque estava oculto atrás de um poste e entra no plano da câmera; mas também o faz em um sentido figurado, pois executa um ato extraordinário e espetacular. No caso do Evento da Favela Naval, a expressão “cena do crime” adquire uma literalidade incomum, pois, devido à gravação dos crimes, o momentolugar onde ocorre o gesto violento e rotineiro se torna “exemplar”, adquirindo sentidos públicos e simbólicos. As referências espaciais da imagem transbordam a dimensão estritamente pictórica para servir como referências do espaço físico concreto: JNa0/17 [#24] (Repórter/sinc — em direto) : “... N...No momento em que os policiais iam espancar, e espancar pra valer, eles vinham para este canto. Atrás desta parede, para evitar testemunhas.”

JNa1/30 (Repórter/sinc): “...Este rapaz parado um pouco antes foi esquecido num canto. ...”

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“Atrás” e “canto” referem-se menos às características espaciais da esquina da Rua Naval com Francisco Brás do que à constituição desse lugar enquanto “cena”, quer dizer, como o espaço simbólico. O atribuído fechamento do lugar deve-se ao posicionamento do cinegrafista, que colocou determinadas partes do lugar fora ou no limite do enquadramento. Dias depois, esse “canto”, lugar do espancamento, foi visitado pelo cinegrafista produtor da FFN e por um repórter do JNa, mostrando que era na verdade a entrada de uma viela, e não um beco sem saída (JBa4). Quanto ao segundo “canto”, onde estaria a pretensa164 testemunha, o próprio JNa0 mostra que ela permaneceu na rua, e que se tratava do meio-fio da Rua Naval.

3.2.5 — Tempos verbais e audiovisuais

As variações de tempo verbal dos enunciados dos repórteres e apresentadores da TV Globo obedecem aos padrões da redação de textos telejornalísticos. Contudo, são elementos que também explicitam a relação que o telejornal procura estabelecer com as imagens da gravação inicial. A narração off da reportagem, editada sobre as imagens da gravação inicial, faz em geral uso do presente do indicativo, com eventuais usos do futuro simples e do futuro do pretérito. O presente simples do indicativo usado no off é empregado como um “presente histórico” ou “presente narrativo” da linguagem literária. Essa é uma forma retórica de narrar os fatos, segundo um “processo de dramatização lingüística de alta eficiência, se usado de forma adequada e sóbria”.165 Entretanto, o repetitivo uso do presente narrativo nos offs da locução do JNa ultrapassa as eventuais intenções expressivas: ao ser constantemente associado à reprodução das imagens em vídeo, o uso dos verbos no presente simples causa a impressão de que a narrativa verbal é simultânea às imagens em movimento. O tempo narrativo confundese com o da reprodução videográfica (play-back), fazendo, ao mesmo tempo, com que a imagem registrada no passado se atualize e a narrativa presente se sincronize com acontecimentos que, na verdade, já se consumaram.

164

Outra afirmativa incongruente: a se fiar pela data e hora da câmera, a pretensa testemunha só aparece em 12 horas e 30 minutos. O tiro foi dado às 12 horas e 28 minutos. Ref Seção 5.1.4. 165

CUNHA, 1979. p. 431.

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Ocorrem dois tipos de uso do futuro do indicativo ou futuro composto, cujo uso segue as regras da redação telejornalística.166 Sua aplicação produz, em vários momentos, o efeito de onisciência e heterodiegese do narrador televisivo: JNa0/8 (Off/off): “... A revista é ameaçadora. A arma coça a mão de Rambo. Daqui a pouco ele vai usá-la novamente. O gol é parado. Os três homens descem. Reparem no rapaz com a agenda na mão. Ele vai morrer. São onze horas e cinqüenta e oito minutos. ...”

O narrador coloca-se em uma posição distanciada em relação ao público, capaz de controlar o tempo (recursos de retórica verbal e edição de imagens), de prever fatos que irão acontecer, na verdade, já ocorridos. É o efeito do uso dos verbos no presente do indicativo e do “temporeal” interno a cada cena (“imagem-tempo”), que insere, junto com o narrador, o público “telespectador” na narrativa presente e permite ao repórter se deslocar no período de tempo narrado. Além desse efeito, o futuro composto aparece freqüentemente como núcleo semântico das catáforas, os “ganchos” que remetem o telespectador para imagens que o telejornal promete exibir “logo mais”. Os verbos no futuro do pretérito aparecem, principalmente no momento inicial da denúncia, para assinalar as expectativas públicas não satisfeitas em relação à atuação dos policiais militares enquanto servidores públicos: JNa0/6 (Off/off): “... Um pelotão da Polícia Militar do Vigésimo Segundo Batalhão começa o que oficialmente....seria uma operação de combate ao tráfico de drogas num beco da periferia...”

JNa1/16 (Repórter/sinc): “O que seria uma operação de combate ao tráfico de drogas virou uma seqüência de violência...”

O uso do subjuntivo ocorre uma única vez, na chamada de programação: “Imagine que você fosse abordado por um policial desse jeito”. Ou seja, sugere-se que o “telespectador” se coloque no lugar desse “cidadão indefeso”. Esta é, como será visto na Seção seguinte, uma operação crucial para o estabelecimento do espaço temático em torno do escândalo dos crimes policiais da Favela Naval. 166

CENTRAL GLOBO DE TELEJORNALISMO, 1984. p. 43.

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3.2.6 — De indícios a emblemas

A imagem do disparo (às “12:03PM MAR. 7 1997”, conforme inscrito na imagem pelo relógio da câmara) já havia sido exibida na primeira seqüência de cenas curtas, editadas para a apresentação da notícia (JNa0/2). Ao longo do JNa0 (31 de março de 1997), o sentido dessas cenas vai sendo desdobrado pela exibição de cenas progressivamente mais longas e editadas segundo sua ordem cronológica real. As imagens dos crimes são mostradas várias vezes, mas a cada vez com maiores detalhes. No JNa1 (de 1o de abril), são acrescentados os testemunhos das vítimas, apoiando a pretensão de verdade (indicialidade) da gravação inicial. A obediência da ordem cronológica das ocorrências na exibição das vídeo-imagens foi respeitada apenas no JNa0, provavelmente porque nesse momento a verossimilhança temporal era um apoio necessário para estabelecer a indicialidade da FFN. Na progressão da notícia, a edição de imagens vai organizar as cenas da gravação inicial cada vez mais segundo finalidades expressivas, visando ou intensificar o impacto sensorial do relato da ocorrência, ou pontuar os depoimentos com as imagens dos depoentes durante as agressões. Já no JNa1, as “cenas” foram montadas conforme uma intenção nitidamente iconizante. Uma cena, em específico, em que um motorista é esbofeteado (“12:18 MAR. 3 1997” da FFN), foi repetidas vezes exibida e “reciclada” de diversas maneiras diferentes. Na primeira exibição, o fragmento apóia a identificação de um dos PMs agressores, coerentemente chamado de “rei da bofetada” (JNa1/5). Na segunda vez, o trecho ilustra as agressões, durante a exibição dos testemunhos de moradores da Favela Naval (JNa1/6). Na terceira exibição, logo depois do bofetão, a imagem é congelada (JNa1/8). O rosto do policial fica exposto, enquanto o do “cidadão indefeso” fica oculto, voltado para trás devido ao safanão. Essa curta cena (safanãotapa-still) é utilizada para introduzir todas as seqüências de “povo-fala” (JNa1/8, 19 e 34). [#25] Após o golpe e o congelamento do videograma, o fundo é descolorido, destacando os dois homens alaranjados sobre o fundo preto e branco; o fundo alaranjado pela luz das lâmpadas de sódio da iluminação pública da Rua Naval com Francisco Brás é “recolorizado”167 em vermelho. Essa imagem, depois de “descolorizada e recolorizada”, é novamente alterada, para servir como cenário eletrônico dos apresentadores do JNa, identificando visualmente os enunciados associados ao EFN. [#26] 167

A imagem colorida da FFN é editada de modo que as cores originais são retiradas e novas cores são inseridas no fundo, deixando os dois “personagens” (PM agressor e sua vítima) em preto e branco.

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Essa cena tornou-se, para o JNa, o emblema do Evento da Favela Naval. O tratamento e o emprego que teve parecem condensar uma série de operações semânticas significativas a respeito da apropriação das imagens iniciais e do estabelecimento de um campo de visibilidade temático, no espaço público-mediático constituído pelo telejornalismo. Primeiro, a exposição do rosto do policial tende a conduzir à representação da violência policial como resultado de ações disfuncionais individuais e a evitar que se interprete a ocorrência como um “exemplo” dos preconceitos que impregnam a relação das classes dominantes com as comunidades de periferia. Segundo, essa vídeo-imagem identifica genericamente o sujeito que sofre a agressão (“o” cidadão), reforçando o transitivismo da relação entre vítima e telespectador, operação que fica explícita no texto da chamada JNa1ch (“Imagine que você fosse abordado...desse jeito”). O transitivismo constituiria uma forma típica de relação do público televisivo contemporâneo com os relatos mediáticos. Através dela, os telespectadores estabelecem conexões entre seu campo de experiências e os acontecimentos representados na televisão. Essa forma alcança sua máxima intensidade no “espetáculo do grande ferimento”, quando os espectadores são situados, como nos momentos iniciais da denúncia dos crimes da Favela Naval, simultaneamente no lugar da testemunha e da vítima. 168 Terceiro, o “emblema EFN” parece restringir a extensão semântica do enunciado inicial. Da singularidade da gravação/fita, disponível apenas para públicos fechados (a empresa de comunicação, o comando da PM de São Paulo e a Justiça Militar), a mediatização do telejornal propõe as imagens/cenas como objeto da interpretação do público amplo (objeto imediato,

interpretante

dinâmico),

liberando-as

das

vinculações,

potencialmente

comprometedoras, do seu processo de produção. Esse recorte aumenta a capacidade de circulação pública da videodenúncia inicial, favorecendo sua apropriação enquanto ponto de partida (“pedra do escândalo”) de um debate que configura um campo temático no espaço público-mediático, de maneira que o caráter sistemático do apagamento da autoria da gravação inicial tem implicações mais amplas que as da mera apropriação, pelos telejornais, 168

“Estando necessitado de algum outro lugar, o sujeito massivo não pode ter um corpo além daquele corpo que testemunha. Mas, para tornar-se um sujeito massivo, ele deixou aquele corpo para trás, abstraído dele, cancelado como mera positividade. Ele [o corpo] retorna no espetáculo do grande ferimento. O prazer transitivo de testemunhar/ferir disponibiliza nossa translação para a publicidade desincorporada do sujeito massivo. Ao ferir um corpo massivo (...) constituímos a nós mesmos como uma testemunha massiva incorpórea.” (WARNER. In: CALHOUN, 1992. p. 394. Grifo e tradução do autor)

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da autoria e dos méritos da denúncia ou da disputa pelo lugar de “herói moderno”. 169 No entanto, é também através desta disputa que as imagens acabam sendo expropriadas de qualquer autor e tornando-se públicas e “autônomas” o suficiente para cumprirem “seu dever de denunciar”. A reflexividade que vai sendo alcançada pelo acontecimento da Favela Naval pode ser atribuída a diversos fatores: o interesse institucional do Jornal Nacional de restabelecer sua credibilidade pública (abalada naquele momento); os interesses comerciais imediatos de aumento de audiência; o emprego das estratégias retóricas de constituição da “objetividade” jornalística, que lançaram, para a sociedade e para os poderes públicos, a tarefa de interpretação das ocorrências; o interesse público da rediscussão do lugar e do papel das forças de segurança pública brasileiras. No que se pode aferir a partir do material analisado, o processo de constituição do EFN como um campo temático público na mídia encontra-se figurado, nos telejornais, através da sucessão dos lugares e modos de exibição das “cenas”. A partir do dia 1° de abril, vão se “aderindo” às imagens marcas dos espaços em que foram sendo apropriadas: primeiro a data e hora da gravação inicial (cuja validade jamais é questionada); depois, o logotipo da TV Globo e os créditos dos repórteres; em seguida, os diversos logotipos de agências de notícias e de outras emissoras. Todos esses rastros vão se superpondo, literalmente, nos quatro cantos da tela. Nas emissoras concorrentes da Globo, as imagens são exibidas em preto e branco, tomadas em quadros mais fechados a partir de cinescópios onde a gravação inicial foi exibida (cf. Seção 5.2.1). [#27] Exibem-se das vídeo-imagens da FFN, em diversos lugares, de atribuições bem diferentes: na sala da Promotoria de Justiça de Diadema, na Subcomissão dos Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (em Brasília), na sala onde a representante da Anistia Internacional concede entrevista a um repórter do JNa (enquanto o monitor mostra as imagens do JNa0), na Assembléia Legislativa de São Paulo (durante as seções da CPI do Crime Organizado), no Tribunal de Justiça de Diadema, entre outros. [#28] Ao longo do período examinado, os telejornais exibem trechos cada vez mais curtos e em variedade decrescente. Os trechos da FFN que se tornam os preferidos são: [#29] — o tiro mortal em Mário José Josino (“12: 03 MAR. 7 1997”); 169

SONTAG, 1986. p. 85

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— a cena da bofetada (“12:18AM MAR. 3 1997”); — a tortura no “motorista do Gol preto”(“12:00/02AM MAR. 7 1997”); — as bordoadas no motorista e automóvel (“12:48AM MAR. 3 1997”); — o espancamento de Sílvio Lemos “no canto”(“12:27AM MAR. 3 1997”) e o “tiro e o silêncio” (“12:28AM MAR.3 1997”).

3.2.7 — Bocas fechadas, vistas grossas

Outro elemento relevante para a discussão é relacionado à contraposição entre a circulação pública ampla alcançada pelas “cenas” da Fita da Favela Naval, depois da sua publicização telejornalística, e o anterior acesso à “fita”, restrito a determinados coletivos. A gravação original teve uma em cópia preto e branco gravada pelo cinegrafista autônomo e entregue à Polícia Militar. As vídeo-imagens incriminadoras foram assistidas pelos oficiais do Comando da Polícia Militar do Estado de São Paulo e pela reportagem do Jornal Nacional. O Comando enviou a cópia à Justiça Militar e ao Ministério Público de Diadema, logo depois de tê-la recebido, em 24 de março. Em decorrência dessas “providências cabíveis”, os policiais militares foram presos no dia 25, uma semana antes da primeira exibição pública da gravação.170 A reportagem vai questionar justamente a não-publicidade dos crimes e dos processos contra os policiais criminosos. Tal “ocultação” foi de diversas maneiras colocada em questão e associada ao relato da impunidade de boa parte dos PMs julgados pela Justiça Militar. O “silêncio”, portanto, aparece como a tradução audiovisual e verbal da situação: JNa0/6 (Off/off): ... “Mesmo diante da súplica do rapaz, o grandalhão balança a cabeça e chama o parceiro....que já está apontando a arma para o motorista de outro carro. Ele então caminha com naturalidade....arma em punho . Trinta segundos depois o tiro.... e o silêncio. Toda a tortura demorou oito minutos. O grandalhão massageia o braço. O outro guarda a arma....e ri. É como se nada tivesse acontecido. Em nenhum momento os policiais acionam pelo rádio a central da pê170

Quando, no final da edição de 31 de março, Marcelo Rezende anuncia, para a próxima edição do Jornal Nacional, “a prisão de dez pê-emes” (JNa0/17), o sentido de “prisão” parece prometer imagens dos policiais militares no momento em que eram presos; o que é exibido, no entanto, é o lugar onde os pê-emes estão presos: a reportagem mostra a prisão, isto é, o prédio do Batalhão de Choque, onde os acusados estão detidos.

107 eme para saber se os carros são roubados. Chega outro carro. O pê-eme leva a mão à cintura, onde guarda uma arma clandestina. A oficial jamais é usada.”...

JNa0/16 (Off/off): ... “Este outro rapaz apanha e é levado para trás de um muro....onde apanha mais . Outro pê-eme armado se aproxima. Trinta segundos depois....o tiro.... e o silêncio.”

JGl0/5 (Repórter/sinc): “Nós procuramos o Governador Mário Covas, o Secretário da Segurança Pública e o próprio Comandante da Polícia Militar de São Paulo... mas nenhuma dessas autoridades quis comentar a reportagem do Jornal Nacional.”...

JGl0/7 (Apresentadora/sinc): ... “O comando da pê-eme soube dos crimes através de um cabo, que fazia parte do grupo”... “A fita do cinegrafista amador.. também já estava com a pê-eme desde a semana passada. A assessoria de imprensa do Governo de São Paulo não soube explicar... porque o comando da pê-eme omitiu esse fato ao Secretário de Segurança, e ao próprio Governador.”

JNa1/6 (Repórter/ off) ...”Na Favela Naval, vivem duas mil e quinhentas pessoas. Gente que aprendeu a calar a boca e a respeitar o toque de recolher dos carrascos.”...

JNa1/15 (Repórter/off) “Segurança reforçada e lei do silêncio. O impacto das imagens mostradas ontem no Jornal Nacional mudou a rotina do batalhão de choque da polícia de São Paulo. Aqui estão detidos os dez pê-emes que cometeram os crimes em Diadema.”...

JNa4/8 (Repórter/off): “No final da tarde eu tentei falar novamente com o porta-voz da polícia, mas ele não quis gravar entrevista.”....”O Alto Comando da pê-eme foi reunido às pressas. Depois de muita insistência, o nosso cinegrafista pôde fazer imagens da reunião. Enquanto a câmera esteve ligada, os coronéis da polícia...não pronunciaram uma palavra. “

JNa9/2-3 (Apresentadora/sinc): “Bate-boca na CPI que investiga os pê-emes torturadores de Diadema. Os acusados...usaram a tática do silêncio...e a sessão acabou em tumulto.” (PM acusado/Sinc): “Eu me reservo o direito de falar...só em juízo.”...

JBa1/3 (Âncora/sinc): “O Governador de São Paulo...viu aquelas imagens pela primeira vez ontem no Jornal Nacional da Rede Globo. Não fosse a divulgação... o beco da vergonha talvez acabasse como muitos...

108 outros... becos... de favelas brasileiras... onde a polícia tortura, toma dinheiro e mata cidadãos... como nós... e não acontece nada. Ele seria mais um...beco do silêncio.”

A partir da denúncia dos crimes pelo telejornal, a existência e não-publicidade da Fita da Favela Naval ensejou a problematização dos procedimentos institucionais internos aos corpos administrativos do Estado. “— Quem no comando da PM sabia da fita?”, “— Quem no Governo de São Paulo tinha conhecimento da sua existência e de seu conteúdo?”, “— Por que as medidas punitivas não foram tomadas antes?” são questões colocadas inúmeras vezes pelas equipes de reportagem. Os inquéritos policiais-militares e outros processos administrativos relacionados, não-públicos e internos à corporação policial, são colocados sob suspeita, como será discutido, mais detalhadamente, no capítulo seguinte. Na problematização dos procedimentos institucionais sobre as ocorrências vídeo-denunciadas, distingue-se um traço peculiar da mediatização dos espaços públicos: nesses contextos comunicativos, ampliam-se as possibilidades de conexão (ou “curto-circuito”) entre as diferentes temporalidades dos processos sociais. A diferença entre a velocidade dos procedimentos de produção de notícias em relação à da tomada de decisões administrativas permitiu, por exemplo, que os telejornais identificassem a lentidão dos processos burocráticos como uma possível manobra corporativista para manter impunes os agressores. No EFN, existem várias evidências de que o momento da publicização da ocorrência inicial e de outras denúncias foi estrategicamente escolhido, para captar a lentidão dos procedimentos corporativos e, ao mesmo tempo, favorecer um “encaixe” da divulgação das vídeo-imagens denunciadoras com os momentos das decisões da Justiça Comum (Cf. Seção 5.2.1). Um aspecto importante do momento inicial de “denúncia” refere-se ao caráter parcial dos procedimentos de produção do telejornalismo. Nesse caso, como parece óbvio, nenhuma reportagem explicita e problematiza suas rotinas de trabalho. Esse procedimento, particularmente singular no EFN, constitui a omissão mais eloqüente dos telejornais na problematização das evidências da FFN. A não-publicidade rotineira de determinado tipo de ocorrências, principalmente aquelas relacionadas ao cotidiano de comunidades de baixa renda, poderia igualmente ter remetido à problematização da lógica da produção noticiosa, que, como se sabe, tende a favorecer os pontos de vista das grandes empresas capitalistas e das burocracias do Estado. Uma problematização reflexiva dessa lógica chega a ser insinuada, quando, no JBa4, o cinegrafista autônomo, o efetivo autor da FFN, foi trazido a público para

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relatar o processo de produção da fita.171 Infelizmente, a tematização reflexiva das rotinas de produção dos telejornais não chega a se efetivar e permanece, durante todo o EFN, como uma espécie de “duplo fantasmático” dos enunciados telejornalísticos.

3.3 — Telenarratários

Em analogia aos narratários dos textos ficcionais, toma-se aqui o narratário dos telejornais (“telenarratário”) como um ente artificialmente constituído no discurso (assim como o é o narrador) que serve para estabelecer as conexões entre o narrador e os receptores reais. O telenarratário encontra-se difusamente presente em todo o texto e atua como dispositivo de organização do discurso narrativo dos telejornais em diversas dimensões: define as focalizações narrativas e suas mudanças, estabelece o modo de desenvolvimento do relato, permite a aposição de julgamentos morais etc. No caso dos telejornais, a pretensão de objetividade e neutralidade do seu discurso impõe à constituição do narratário compromissos bem maiores com a “realidade empírica” do que os encontrados nos textos literários. O produtor do texto telejornalístico deve constituir o telenarratário com informações sobre os consumidores reais, e principalmente com referência a identidades fictícias publicamente disponíveis e compartilhadas no ambiente públicomediático. Nesta Seção, serão especificadas algumas características e procedimentos de produção desse personagem “factício”, no contexto do EFN. A primeira referência explícita ao telenarratário mostra características importantes de sua constituição textual: JNa0/5 (Apresentador/sinc-estúdio): “Abuso, violência e covardia. Soldados da Pê-eme de São Paulo transformam batidas na periferia em seções de terror... humilhação, agressões... extorsão... fuzilamento. As cenas exclusivas... foram gravadas por um cinegrafista amador... e revelam extrema crueldade contra cidadãos indefesos, suspeitos ou não. O Jornal Nacional adverte que as imagens são fortes,... mas tem o dever de denunciar. ...”

171

Sua entrevista com o anchormen do JBa, transmitida em direto, foi inçada de ambigüidades e contradições. Sua análise ofereceria elementos interessantes para examinar como se dão as relações concorrenciais entre os telejornais, e como são as hierarquias dos profissionais produtores de notícias nas emissoras de televisão brasileiras.

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A referência aplicada ao cinegrafista “amador” dissocia-o do conjunto dos cidadãos e deslocao para a posição de testemunha privilegiada e distanciada dos acontecimentos, lugar de fala análogo àquele constituído pelo narrador telejornalístico para si próprio. Enquanto isso, o telenarratário é definido como um mero consumidor dos discursos mediáticos. Em síntese, o mediador evita tanto representar o cinegrafista como um cidadão quanto considerar os cidadãos como eventuais enunciadores público-mediáticos. A identificação das vítimas enquanto “cidadãos indefesos, suspeitos ou não”, explicita a manobra de suspensão retórica das suspeitas sobre as vítimas. Essa definição favorece a identificação imaginária do telespectador individual com a vítima individual, como uma “vítima vicária”. De início, a projeção não necessariamente define a representação das ocorrências em uma freqüência singulativa ou iterativa. Mas, à medida que a narrativa vai se tornando mais reflexiva, a assimilação telespectador-vítima converge para um discurso mais iterativo, com tematizações mais generalizantes, do tipo “se qualquer um podia estar lá, o problema é, portanto, de todos, quer dizer, é um problema geral”. Seguindo essa tendência, o uso do termo “cidadão”, acima, situa as vítimas segundo seu pertencimento a uma comunidade política que, formalmente, abrange cada um e todos os receptores reais do texto dos telejornais. As advertências do JNa são incongruentes com a construção textual, pois os avisos aparecem depois da primeira exibição das “imagens fortes” (JNa0/2). Tais advertências, no entanto, conduzem a pontos relevantes acerca da retórica da constituição do telenarratário no EFN. O telenarratário é referido, ao final do JNa0, de modo análogo, quando o narrador imputa-lhe reações à denúncia inicial: JNa0/18 [#30] (Apresentador/sinc-estúdio): “Qualquer cidadão atacado por um policial é um ser indefeso, diante do mais covarde dos criminosos. Covarde, porque usa a autoridade pra assaltar, torturar, assassinar, a sangue frio pessoas inocentes. As cenas repugnantes que o Jornal Nacional acaba de apresentar... causam uma revolta que só pode ser atenuada... por um castigo severo e exemplar, e é o que se espera do governo e da justiça do Estado de São Paulo.”

A identificação individual genérica (“qualquer cidadão”) emerge configurando a generalidade e a virtualidade da condição de vítima da violência policial. Além disso, sofrer essas brutalidades desumanizam o sujeito cidadão, transformando-o em um “ser indefeso”. O ator-

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midiador não mais insiste na destematização das suspeitas sobre as vítimas, talvez por isso ter-se tornado desnecessário ao final desta edição. O telejornal implicita a reação de seu público à denúncia (“as cenas... causam uma revolta...”), usando uma palavra bastante polissêmica: “revolta”. A despeito da grande variação de campos semânticos, essa palavra torna-se uma referência que, justamente por ser muito vaga, acaba sendo congruente com o tipo de construção, virtual e generalizante, do telenarratário, a qual não se encontra, naquele momento, comprometida por ações efetivas da sociedade civil. O telejornal faz uma interpolação que põe a superação dos agravos como um encargo do Estado (“...é o que se espera do governo e da justiça...”). Para ser responsabilizado pelos acontecimentos, os poderes públicos são postos em uma relação de “exterioridade” em relação ao telenarratário passivo, sobre o qual o poder constituído deveria intervir: a intervenção é “esperada”, e não produzida pela sociedade. A intervenção esperada, a execução de um “castigo exemplar”, fundamenta-se na definição das culpabilidades individuais para produzir resultados dirigidos à esfera pública. Apropriadas dessa maneira, as ocorrências registradas na FFN são, implicitamente, tratadas como indícios de um problema genérico do Estado. No programa Fantástico, exibido no domingo seguinte (6 de abril, Fan6), é apresentada uma apresentação sumária dos enunciados do EFN que foram exibidos na semana anterior. O resumo recebe um tratamento espetacularizante que, recorrentemente, situa o JNa como desencadeador de todos os acontecimentos. O narratário do programa é novamente delineado na primeira seqüência: Fan6/1 [#31] (Apresentador1/sinc): “Toda criança.. já olhou.. pelo menos por uma vez.. para um policial.. e achou bonito.. sentiu orgulho.. e vontade de vestir aquela farda quando crescesse.” (Apresentadora2 /sinc ): “Mas a ação de um grupo bandidos fardados.. envergonhou crianças e adultos pelo Brasil. Uma mancha difícil de remover.. bem na face da consciência nacional... Cid Moreira”*! (Apresentador3/sinc): “Foram dias de barbárie que levaram ao mundo, às portas do ano dois mil, a imagem de uma polícia doente, violenta.. e despreparadaa.

O programa, no fragmento acima, alude implicitamente a duas informações veiculadas nos telejornais (não incluídas nesse resumo).172 A locução é acompanhada por uma elaborada 172

A denúncia mediática do espancamento do contínuo Luziano Reis (JNa2/11), que relatava sua mudança de impressão em relação à figura do policial. A segunda refere-se à denúncia mediática e em seguida formal contra o soldado Wagner “Mancha” dos Santos, inicialmente feita pelos moradores da FN para o JBa.

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trilha incidental, cheia de estrondos, dissonâncias e escalas cromáticas, que acrescentam sensorialidade à fala dos apresentadores, que já é bastante rica de variações tonais (chegando algumas vezes à afetação). Elementos como o vermelho das roupas, a maquiagem vermelha da apresentadora etc, demonstram que o objetivo do texto era atingir o público em um plano afetivo e estabelecer com ele uma relação de empatia. O componente verbal do texto confirma-o: elabora-se uma narrativa grandiloqüente (“mancha na face da consciência nacional”) que recorre a referências lendárias (“foram dias de barbárie... ...às portas do ano dois mil...”) e universalizantes (“...levaram ao mundo...”). O apelo à memória afetiva do público converge com o modo pelo qual o telenarratário vinha sendo constituído no JNa. Já no começo da apresentação, o espectador é convidado a rememorar a época de sua “inocência infantil” — e não o passado histórico recente. A remissão às projeções infantis relacionadas à figura de autoridade do policial busca intensificar a dramaticidade da referência à denúncia inicial (da “vergonha”), conectando-a à vida pessoal dos telespectadores. A pretensa generalidade do apelo afetivo da figura do policial é duvidosa: nem toda criança estabelece projeções positivas com a figura do gendarme. Mas talvez a maior inconsistência da referência à experiência infantil resida na inserção dos cidadãos na narrativa do problema da brutalidade policial, na perspectiva de uma “criança inocente”. A “inocência infantil” (moral, cognitiva e jurídica), associada à nãoculpabilidade jurídica, nada tem a ver com a responsabilidade política173 dos cidadãos sobre os problemas coletivos. Assim, em certa medida, o telenarratário é constituído, nesse fragmento, como um cidadão infantilizado. Embora partilhe diversos traços com o telenarratário constituído pelo JNa, o “cidadãotelespectador” dos enunciados do JBa exibe diferenças significativas. A análise dos telenarratários permite uma visão genérica da relação entre o ator-midiador e seu público esperado (virtual). O JBa busca constituir uma relação mais direta com o público, não somente configurando uma similaridade entre os lugares do telenarratário e da vítima de violência policial, mas também situando a si próprio nesse mesmo plano, como um narrador que também é cidadão brasileiro. Assim, não somente o telespectador, mas também o repórter-âncora aparecem como vítimas vicárias dos crimes policiais.

173

Uma interessante exploração do tema da diferença entre culpabilidade jurídica e responsabilidade política é desenvolvida por Hannah Arendt em “La responsabilité colective”. (ARENDT. In: ABENSOUR, 1989. p. 175-186.).

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JBa1/2 (Âncora/sinc-estúdio): “Boa Noite. Nós do Jornal da Band, como todos os brasileiros, estamos hoje... envergonhados. Essa vai ser então uma edição especial. Vamos dar destaque às cenas de violência da Pê-eme de São Paulo contra cidadãos como nós... em Diadema, na Favela Naval.. em um beco escuro.

Elas revoltaram o Brasil e chegaram ao mundo inteiro... e já têm um nome por que serão conhecidas. Aquele é... o beco da vergonha. O Governador de São Paulo... viu aquelas imagens pela primeira vez ontem no Jornal Nacional da Rede Globo. Não fosse a divulgação... o beco da vergonha talvez acabasse como muitos... outros... becos... de favelas brasileiras... onde a polícia tortura, toma dinheiro e mata cidadãos... como nós... e não acontece nada. Ele seria mais um.. beco do silêncio. Selvageria, humilhação, covardia... é difícil qualificar a atitude dos dez policiais militares em Diadema. Protegidos pela farda que deveria inspirar confiança, eles extorquiram, torturaram e mataram inocentes. São cenas chocantes.. que você vai ver agora... imagens em preto e branco... que envergonham o Brasil.” O texto tematiza, explicitamente, o caráter excepcional da videodenúncia: o JBa tratou com maior distanciamento a denúncia, distinguindo a excepcionalidade do meio de expressão do prosaísmo (em off) das ocorrências em si. O distanciamento com relação ao estabelecimento do “choque” inicial ajuda-nos a compreender por que o JBa pôde atribuir corretamente a autoria das denúncias formais e das denúncias telejornalísticas (Cf. Seções 4.1 e 5.1.1a). Significativamente, na primeira menção às ocorrências e à sua publicização, o telejornal se disse “envergonhado” e denominou “beco da vergonha” o local das agressões. Observa-se que a tendência à emocionalidade e à empatia das interpretações iniciais da denúncia mediática inicial aparece no JBa mediada por uma relação menos assimétrica entre telejornal e telenarratário, na qual as reações de ambos são representadas enquanto sentimentos compartilhados. A denominação preferencial “vergonha” (bem distinta da “revolta” do texto do JNa), se não implica o reconhecimento de responsabilidade política sobre as ocorrências, pelo menos caracteriza a desconfortável situação da exposição pública a um julgamento desfavorável de ambos, narrador e narratário do telejornal. Esse sentimento, virtualmente atribuído ao conjunto dos cidadãos brasileiros, constituiu a referência central da interpretação das ocorrências, a sua videodenúncia e as atitudes do ator-polícia durante o EFN. O JBa não toma a priori o silêncio e a esquiva da exposição pública dos policiais como atitudes necessariamente estratégicas. Mantém aberta a possibilidade de que o

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constrangimento público diante das videodenúncias possa ter sido sinceramente partilhado também pelos policiais. Quer dizer, o telejornal admite incluir também os PMs na categoria de cidadãos. Isso fica explícito na diferença entre a imputação de uma “lei do silêncio” aos policiais, pelo JNa (cf. Seção 4.2), e a verificação do seu constrangimento na locução e nas vídeo-imagens das seqüências JBa4/9 e 11: [#32] (Repórter/off): “A reação de Paulo é parecida com a de muita gente... que teve abalada sua confiança na Pê-eme.. por causa da violência em Diadema. Imagens que comprometeram... uma corporação que conta com setenta mil pessoas em São Paulo.” (…) (Repórter/off): “Os policiais que atuam nas ruas adimitem que está difícil trabalhar. ...”

Nesse fragmento, atribui-se aos policiais militares uma reação de constrangimento que jamais é enunciada no JNa. O JBa, ao contrário de seu congênere, procura constituir a narrativa do EFN também segundo a perspectiva do ator-polícia, incorporando-o parcialmente ao telenarratário. Introduzindo a apresentação das notícias sobre o andamento dos processos judiciais dos policiais incriminados, o telenarratário do JBa é novamente explicitado: JBa7/2 (Âncora/sinc-estúdio): “Boa noite, tudo bem? Essa noite nós vamos começar com uma notícia que dá uma idéia do poder da imagem, da liberdade de imprensa... e da força da indignação popular. Nunca a justiça andou tão rápido. Em apenas dez dias, o promotor de Diadema encaminhou à Justiça a denúncia contra os dez pê-emes... que participaram da violência na favela. A Juíza Maria da Conceição aceitou imediatamente a denúncia... e marcou a primeira audiência dos acusados. Será na próxima sexta-feira.”

Em que pese o tom laudatório do fragmento acima, observe-se que o telejornal atribui a inaudita agilidade da justiça criminal a uma pluralidade de fatores, nenhum dos quais é atribuído a um indivíduo ou mesmo a um ator político isolado. Ao invés de atribuir a si próprio a origem dos desdobramentos da denúncia inicial, o JBa representou-os como resultados de condições políticas específicas. Afora a dimensão estratégica de tal representação, mais reflexiva, do EFN (minimizar o “furo” pelo concorrente), o JBa é relativamente generoso na atribuição de um papel ativo à intervenção do “cidadãotelespectador”. A transmissão direta da entrevista do cinegrafista Vanni e, parcialmente, o viés adotado pelo entrevistador são indicativos dessa tendência. Na entrevista, desvincula-se a

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produção do vídeo-enunciado inicial do campo do ator-midiador e abre-se a possibilidade de que a FFN tenha-se originado da própria sociedade civil (cf. Seções 3.1.3 e 5.1.3).174 O JBa dedica, para os enunciadores da sociedade civil, um espaço mais ampliado do que o “concedido” pelo JNa, especialmente no caso dos moradores da FN e dos manifestantes de Diadema (cf. Seção 4.1.4).175 A referência à “força da indignação popular” não é um elemento isolado no texto do JBa, mas um “sintoma” de um padrão mais horizontalizado de relação entre telenarrador e telenarratário.

174

Ref. Seções 3.1.3 e 5.1.3a

175

Ref. Seção 4.1.4

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CAPÍTULO 4 O ATOR-POLÍCIA ...esses espelhos estavam dispostos de forma a multiplicarem aos olhos do público as raras peças mecânicas do tronco para fazer parecer que ele estava cheio delas. Disto inferimos diretamente que a máquina não é uma pura máquina; porque, se tal fosse o caso, o inventor, embora longe de desejar que o seu mecanismo parecesse muito complicado, e de empregar artimanhas para lhe dar essa aparência, teria sido particularmente cuidadoso em convencer os espectadores da simplicidade dos meios através dos quais se obtinham tão miraculosos resultados. (...) Se o Autômato imitasse exatamente os movimentos de um ser vivo, o espectador seria levado a atribuir suas operações à causa verdadeira, isto é, à ação humana oculta, enquanto, pelo contrário, as manobras desajeitadas e angulosas próprias de um boneco lhe inspirariam a idéia de que estava diante de uma pura máquina. (...) é, evidentemente, de tais excentricidades e incongruências que devemos extrair (se é que nos é possível) as deduções que nos conduzirão à verdade. (Edgar Allan Pöe, “O Jogador de Xadrez de Maezel”)

Este capítulo procura evidenciar padrões de organização dos discursos narrativos dos enunciados do “ator-polícia”. Esse ator é integrado pelos sujeitos diretamente relacionados à corporação policial paulista que se pronunciaram no contexto do EFN. Estão incluídas nessas análises as enunciações dos policiais militares diretamente incriminados na FFN,176 e de seus advogados, dos policiais de diversos níveis hierárquicos, de pessoas do “corpo político” do estado de São Paulo vinculadas às atividades de segurança pública e representantes de associações de classe dos policiais militares. Para apoiar o leitor a acompanhar as presentes análises, dispondo uma perspectiva de conjunto das emissões públicas do ator-polícia, será feito um breve relato sobre o desenvolvimento dessas emissões no decorrer das duas semanas do EFN examinadas nesta pesquisa. Logo após a denúncia mediática inicial, a Polícia Militar do estado de São Paulo (PMSP) e o governo do estado fizeram diversos pronunciamentos oficiais e anunciaram atos administrativos. Tais emissões visavam principalmente relatar o curso do processamento institucional das ocorrências, geralmente se contrapondo ao tom escandalizado da denúncia mediática inicial. Os atos administrativos consistiram na decretação da prisão administrativa 176

Os soldados Otávio L. Gambra (o “Rambo”), Nelson Soares da Silva Jr., Demontier Carolino Figueiredo, Paulo Rogério Barreto, Rogério Neri Bonfim e Adriano Lima Oliveira; os cabos João Batista de Queirós e Ricardo Luís Buzeto; o sargento Reginaldo José dos Santos.

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dos policiais incriminados e na exoneração de oficiais do comando da PMSP. Várias dessas exonerações foram motivadas pela não informação, ao comandante geral da PMSP, ao Secretário de Segurança Pública e ao governador de São Paulo, da existência e da iminente divulgação da FFN no JNa. À altura do terceiro dia do EFN (2 de abril), a CPI do Crime Organizado da Assembléia Legislativa de São Paulo (CPI-ALSP) incorporou o “caso Diadema” como tema seu, convocando as vítimas e o comandante do 24°Batalhão de Polícia Militar de Diadema (24°BPM) a prestar esclarecimentos; a seção da ALSP foi registrada e transmitida com destaque pelos telejornais. Nos dias seguintes, os deputados, junto com a imprensa e o Ministério Público de Diadema, revelam as ligações do comando do 24°BPM com os criminosos e as diversas estratégias dos oficiais em comando desse batalhão para camuflá-las, assim como a suas responsabilidades com as ocorrências criminosas. Moradores da Favela Naval protestam e denunciam outros policiais criminosos. É posta em circulação uma narrativa sobre a produção da FFN que tenta comprometer sua autenticidade e incriminar as vítimas das agressões. Diversos oficiais do Alto Comando da PMSP são imediatamente exonerados, enquanto o Comandante Geral se empenha (nas duas semanas seguintes) em apurar as responsabilidades pela omissão de oficiais dos altos escalões do governo paulista em informá-lo sobre a FFN. Neste capítulo, serão delineados alguns padrões discursivo-narrativos peculiares ao atorpolícia. A partir dessas análises, os enunciados correspondentes a essas diferentes matrizes narrativas são constelados em seis conjuntos. Antes, porém, será feito um breve excurso sobre o modo segundo o qual o ator-polícia é representado e como seus enunciados são reproduzidos no bojo dos discursos dos telejornais. Tal exame proverá informações importantes sobre a relação estabelecida pelos midiadores com a polícia e, indiretamente, sobre a relação desta corporação com a sociedade civil, no contexto do EFN.

4.1 — O ator-polícia enquanto actante na narrativa do EFN

Enquanto actante do texto telejornalístico do EFN, o ator-polícia encontra-se quase sempre na posição de tema de discursos narrativos alheios e, muito raramente, na posição de enunciador. Os enunciados dos emissores empíricos pertinentes a esse ator quase sempre são apresentados

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de maneira bastante fragmentária nos telejornais. Os curtos trechos publicizados geralmente têm pequena autonomia semântica e freqüentemente são apresentados em “amálgama” ou em “polifonia”177 no interior do discurso dos midiadores ou da sociedade civil. Os argumentos, fragmentariamente divulgados, quase sempre são objeto de contestações mais ou menos explícitas do ator midiador, manifestadas por vários meios, que vão das expressões faciais e gestos até a montagem das edições dos telejornais. Pode-se dizer que, no discurso do atormidiador, o ator-polícia é quase sempre “detido” na condição de objeto da narrativa mediática. A demarcação dos limites entre os enunciados das fontes ligadas à polícia e o discurso do telejornal foi um traço particularmente indicativo do tipo de refração operada pelo discurso do ator-midiador sobre o do ator-polícia. Fotografias, nomes e fichas criminais de policiais (JNa1/5, JNa2/19, JNa3/4-5, 9-10-11; JBa3/7 e 9, JBa7/2, JBa8/2), dados sobre as decisões da justiça militar (JNa1/17), um boletim de ocorrência (JNa3/6), inquéritos policiais-militares (JNa0/17, JNa1/15, JNa3/11), enunciados e documentos capazes de apoiar a problematização do funcionamento da corporação foram, em geral, assimilados ao texto dos telejornais como simples informações, sem a identificação da PMSP como fonte. O JNa, particularmente, mostrou-se propenso a dar um destaque muito maior a sua própria intervenção como denunciador do que à divulgação dos procedimentos institucionais então em andamento, que foram relatados de modo descontínuo e obscuro (por exemplo, em JNa3/12 e JNa7/6). A denúncia formal foi feita pelas vítimas das agressões imediatamente após as ocorrências e, depois, pelo cinegrafista autônomo, que encaminhou uma cópia da gravação à PMSP, no dia 24 de março:

“...No dia do crime, os amigos da vítima... reconheceram seis pê-emes que participavam da ‘blitz’. (...) Segundo a Secretaria da Segurança Pública, o cabo Buzeto teria denunciado a violência dos colegas ao chefe do Comando de Policiamento do ABCD. A secretaria não informou se a denúncia do cabo ocorreu antes ou depois de a gravação do crime ser descoberta.” 178

Essas duas denúncias são omitidas do noticiário, enquanto a prisão dos PMs acusados é aparece como resultado apenas do relatório de um dos participantes da “operação”. 177

MOUILLAUD, 1997. p. 122-144.

178

Vídeo de tortura e morte leva PMs à prisão. Folha de S.Paulo, 1o abr. 1997, p.3-1. Editoria: Cotidiano.

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As autorias de vários atos administrativos e judiciários são repetidamente omitidas: JNa0/17 (Repórter/sinc): “...a prisão de dez policiais militares, você vai ver amanhã, aqui no Jornal Nacional... ”

Funcionando como “gancho” para a edição do dia seguinte, esse trecho é ambíguo quanto ao seu objeto e obscuro em relação à sua fonte. Como já vimos, o JNa não especifica o sentido de “prisão”, sugerindo que seriam exibidas vídeo-imagens do ato de prender os policiais incriminados. O que o telejornal de fato mostra é o lugar onde estão presos os policiais. São obscuras as indicações da fonte da informação e da instância que determinou a prisão.179 JGl0/3 (Apresentadora/sinc): “...Esses policiais que foram flagrados por um cinegrafista amador agredindo e fuzilando pessoas inocentes em Diadema, na Grande São Paulo... já estão presos.”

Este telejornal, exibido às 23 horas, relata com maior clareza a situação dos policiais incriminados, mas permanece deixando de citar a fonte e omitindo a instituição responsável pela prisão. O telejornal JNo, exibido no mesmo horário, segue a tendência, deixando indefinido o estatuto jurídico-administrativo da detenção dos policiais incriminados: JNo0/2 (Apresentador/sinc): “(...) Tudo aconteceu... há quase um mês, e há até... inquéritos... em andamento. Mas a divulgação das imagens provou que os soldados... mentiram. ...”

A informação sobre a natureza dos inquéritos é vaga. Além disso, a vulnerabilidade dos procedimentos normais de investigação às mentiras dos acusados não é problematizada. O texto do JNo relata a anterioridade das ocorrências (“há quase um mês”) e a “normalidade” do seu processamento institucional (“há até inquéritos em andamento”), em certa medida relativizando a relevância atribuída à denúncia mediática inicial. No JGl0 dessa mesma noite, anuncia-se que os inquéritos e a prisão dos policiais incriminados são atos da própria corporação policial apenas no final da reportagem: JGl0/5 (Repórter/sinc180): “Nós procuramos o governador Mário Covas, o Secretário da Segurança Pública e o próprio comandante da Polícia Militar de São Paulo... mas nenhuma dessas autoridades quis comentar a 179

A prisão administrativa dos PMs incriminados originou-se de um ato da Corregedoria da PMSP; quase todos os acusados já estavam presos há seis dias.

120 reportagem do Jornal Nacional. Só o porta-voz da pê-eme.. disse que dez dos envolvidos.. já estão presos.”

O não pronunciamento das “autoridades” é relatado pouco mimeticamente, em “amálgama” com o enunciado do telejornal. Recebe destaque o silêncio do “próprio” comandante geral da PMSP (cel. Claudionor Lisboa). Tudo indica, no entanto, que, no momento seguinte à denúncia mediática inicial, as enunciações daqueles sujeitos que ocupavam cargos institucionais foram determinadas menos por desejos pessoais do que pela coerção de outros atores políticos, principalmente da sociedade civil e dos midiadores. Através de outros noticiários, além do JNa (FSP9, Aco2),181 foi possível saber que reportagem da Globo havia procurado tanto o comandante da PMSP quanto o governador de São Paulo (Mário Covas), com o intuito de registrar suas reações durante ou imediatamente após a denúncia. Ambos os enunciadores declinaram da “oportunidade”, optando, como será visto, por se pronunciarem em uma situação de gravação que, configurada através de seus atributos institucionais, lhes pareceu mais favorável.

180

Esse trecho do telejornal foi gravado no saguão QG da PMSP, mas omite-se que a PM a permitiu gravação em suas a dependências (o lugar não é identificado). 181

“Lisboa disse que ficou sabendo da gravação apenas uma hora antes de sua exibição no Jornal Nacional, quando um repórter da Rede Globo lhe pediu uma entrevista a respeito de uma fita de vídeo que mostrava violências cometidas pela polícia. (...) Lisboa disse que negou a entrevista por desconhecer o conteúdo da fita.” (Ref. Lisboa nega à CPI conhecimento de vídeo. Folha de S.Paulo, 9 abr. 1997, p.3-5. Editoria: Cotidiano.) “Ontem, recebi um telefonema, de que ia ser publicada uma entrevista no Jornal Nacional... sobre coisas ligadas à polícia... e que o jornalista gostaria de vir aqui, pra que, no instante que eu assistisse, eu respondesse. E eu lhe disse que não response.. que não responderia com esta irresponsabilidade. Eu ia ver a entrevista, e hoje, depois de apurado, eu daria a resposta. Tou tentando dar a resposta, ela pode até não agradar.” (Mário Covas, Governador de São Paulo, transcrição de pronunciamento reproduzido no telejornal Aco2).

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4.2 — Narrando o escandaloso segundo os parâmetros do rotineiro

Os enunciados do ator-polícia favoráveis à não tematização do problema definido na denúncia inicial são tipicamente citados de modo bastante mimético e demarcados pelos telejornais como oriundos de emissões exteriores a eles. São essas reproduções, contudo, que permitem análises um pouco mais cuidadosas do discurso do ator-polícia. As primeiras emissões “defensivas” do ator-polícia provieram de enunciadores oficiais. Na seqüência da edição do JGl0, é reproduzido um trecho da gravação do pronunciamento do porta-voz da PMSP (ten.cel. Regis Salgado): JGl0/6 (Assessor de imprensa da PMSP/sinc): “Eh... eles ‘tão com a prisão administrativa... decretada, e ela vale por quatro dias úteis... e exatamente a partir de amanhã está sendo solicitada a prisão temporária.”

Pode-se observar, a partir dos dados extra-lingüísticos dessa emissão, a ativação de diversos dispositivos de controle na emissão do pronunciamento oficial da PMSP. Esta ocorreu em um espaço da própria corporação especialmente preparado por um locutor treinado e dedicado à atividade de comunicação pública. Enquanto porta-voz, por definição, o enunciador empírico não tinha qualquer compromisso pessoal ou institucional com os fatos relatados ou mesmo com a autoria do enunciado. Sua fala pausada e em tom baixo não demonstram quaisquer atitudes de contenção emocional. A fragilidade da compleição física e a idade madura do porta-voz, sua aparência em tudo pacata não permitem identificá-lo como uma pessoa agressiva ou como tendo uma personalidade autoritária.182 Esse primeiro enunciado permite discernir características importantes do ator-polícia no contexto comunicativo do EFN. No plano da proposição, os acontecimentos por ela relatados são distintos daqueles antecipados pelo repórter no enunciado imediatamente anterior: o fato relatado pelo porta-voz não é a ação do encarceramento (mesmo porque, naquele momento, não estavam presos os dez PMs incriminados, mas apenas nove deles) 183, mas a modificação 182

É concebível que a hipotonia da expressão do porta-voz tenha contrastado com o tom escandalizado dos outros enunciadores a ponto de induzir no público interpretações contrárias às que o emissor da PMSP pretendia que ocorressem. 183

O governador Mário Covas, o Secretário J. Afonso Silva e o Comandante Geral Claudionor Lisboa deixaram de ser informados também de que apenas nove dos dez acusados estava efetivamente preso: o cabo Buzeto teve sua prisão relaxada pelo comando do seu batalhão por “estar colaborando com as investigações”. Por causa da não informação da liberação do cabo, o comandante do 24°BPM teve sua prisão decretada no dia 2 de abril. (Ref. ALVES. Covas e secretário são enganados de novo. Folha de S.Paulo, 3 abr. 1997, p. 3-3. Editoria:

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do estatuto jurídico dos acusados, pela decretação de sua prisão. Os acontecimentos, passados e futuros, são apresentados sem quebras de continuidade (“...e exatamente...”). A predominância do registro abstrato na narrativa do porta-voz é congruente com a qualidade jurídico-formal do fato narrado; o relato versa sobre os processamentos administrativos de apenas um caso individual. Como desempenha a dupla função de narradora e transformadora do estatuto jurídico dos acusados, por terem suas emissões (decretos) poder de determinar essas transformações, a corporação policial-militar constitui-se como um narrador aparentemente distanciado mas que implicitamente relata suas próprias ações. Embora a narrativa desse enunciado pareça simultânea, e o tempo do relato, isócrono (“...estão com a prisão... decretada...”, “...está sendo solicitada a prisão...”), há nela duas anacronias implícitas. Relatam-se processos iniciados antes da enunciação e ainda não encerrados (“a prisão administrativa, que valhe por quatro dias úteis”, do dia 26 até “hoje”, 31 de março) e acontecimentos não começados nem ainda concluídos (“amanhã está sendo solicitada a prisão temporária”, ou seja, de 1° a 30 de abril). O grau de certeza formal de tais predições de acontecimentos caracterizam o estatuto executivo do enunciador e o caráter performativo das enunciações institucionais: os atos administrativos se efetivam simplesmente pelo fato de serem oficialmente enunciados. Embora os policiais incriminados pela FFN ocupem o lugar de sujeitos da proposição (na qual se define seu novo estatuto jurídico), são os atos da PMSP que efetivamente constituem o principal assunto do relato. Os indivíduos incriminados são tão-somente objetos dos atos administrativos da corporação.

Cotidiano).

123

Na edição do JNa do dia 1° de abril, a primeira emissão que pode ser nitidamente identificada como intencionalmente proveniente da polícia só aparece em um momento bastante adiantado (seqüência 15). Precedem-no: uma inserção de um fragmento do pronunciamento do governador Covas (que mostra seu desconhecimento acerca das ocorrências); a informação da opressão policial sobre a comunidade do Jardim Santa Rita (vulgo Favela Naval); a minuciosa identificação de nome e patente dos policiais incriminados184; várias manifestações de indignação colhidas (“povo-fala”) nas ruas, recebidas por fax, correio eletrônico e cartas; declarações de especialistas (juristas); a “repercussão” nos telejornais de abrangência internacional; o posicionamento de uma ONG internacional de defesa dos direitos humanos; a apresentação sintética do pronunciamento do Governo de São Paulo. Nesse resumo introdutório, começa a ser exposta a omissão da corporação: JNa1/14 (Apresentador/sinc): “O governador... de São Paulo Mário Covas... disse hoje... que só soube do abuso dos pê-emes paulistas... após a divulgação... pelo Jornal Nacional.”

Antes que fosse atribuído qualquer discurso a um policial individual ou à corporação, são mostradas imagens do prédio da Corregedoria da PM (que também abriga um Batalhão de Choque na capital paulista), em frente ao qual policiais fardados marcham e isolam(-se n)o batalhão, usando cones de sinalização e fitas listradas. No contexto do EFN, esta é a primeira vez em que são exibidas vídeo-imagens de PMs, gravadas com o seu conhecimento. Ao perceberem o cinegrafista, alguns policiais olhavam furtivamente para a câmera e desviavam os olhos em seguida. Outros dirigiam o olhar para o vazio, presumivelmente fingindo não se saberem colocados no foco de interesse da reportagem. As imagens são legendadas pelo texto em off do repórter: JNa1/15 (Repórter/off): “Segurança reforçada e lei do silêncio. O impacto das imagens mostradas ontem no Jornal Nacional mudou a rotina do batalhão de choque da polícia de São Paulo. Aqui estão detidos os dez pê-emes que cometeram os crimes em Diadema.”

184

Embora a fonte dessas informações sobre os policiais incriminados não seja identificada no JNa, é provável que tenham sido provenientes da própria PMSP. Nesse caso, a colaboração da polícia com a reportagem é omitida, pela “assimilação intertextual” e “redução hipodiegética” das informações, gesto com evidentes implicações para o comprometimento da corporação com os crimes ocorridos na Favela Naval.

124

A primeira sentença funciona como título para toda a seqüência. Os dois sintagmas nominais articulam-se em uma complementaridade: um procedimento e uma regra. Conotam o fechamento material e comunicacional da corporação policial-militar. As imagens, com o sentido prescrito pelo texto verbal, conectam-se como metonímias de “reforço” a essa representação. Relatada a visita do governador (mostra-se a imagem do carro oficial entrando pelo portão), indica-se a primeira emissão da corporação policial: JNa1/15 (Repórter/off): “A cúpula da Pê-Eme informou que o inquérito foi aberto na mesma noite em que o mecânico Mário José Josino foi assassinado pelos pê-emes. Na manhã seguinte, dia sete de março, seis policiais envolvidos já estavam detidos... e suas armas apreendidas. Duas semanas depois, o comando da PM na região do ABC... recebeu uma cópia da fita. Mais quatro pê-emes então... tiveram a prisão administrativa decretada... mas o caso ficou restrito à Pê-Eme.”

O enunciado do telejornal é eivado de ambigüidades e lacunas. Não se define a quem o Alto Comando da PMSP (a “cúpula da PM”) teria endereçado a informação sobre a abertura do inquérito, se ao governador ou à reportagem do JN. Da mesma maneira, não se especifica a qual inquérito (civil ou policial militar) se refere essa informação. Tampouco divulga-se a informação de como as denúncias e a FFN teriam chegado às mãos do Ministério Público de Diadema. O elemento mais significativo é o modo adversativo (“mas”) da articulação da última sentença, a qual sugere que “o caso” não devesse ser apenas da alçada dos processamentos administrativo-judiciários da corporação. O JBa percorreu um trajeto mais curto e um pouco diferente para chegar até ao tema do silêncio da PMSP: discutiu em tom editorial o que aconteceria se não tivesse sido gravada a FFN, mostrou imagens da FFN em “segunda mão” e apresentou declarações de várias das vítimas (pessoas da família de Mário José Josino, Jefferson Caputi). Esse telejornal foi bem mais esclarecedor acerca do processamento institucional da denúncia dos crimes: JBa1/7 (…) (Repórter/off): “A polícia civil abriu inquérito para apurar o crime no dia dezessete do mês passado. Outro inquérito está sendo feito pela polícia militar. ...”

125

O trecho é ilustrado por uma cena dos policiais civis na delegacia, ao redor dos autos, e pelas imagens de várias páginas dos inquéritos policiais e diagramas de laudos da medicina legal. As tomadas parecem demonstrar ter havido uma disposição da polícia civil em colaborar com a reportagem do JBa. Esta, por sua vez, indica claramente a existência dos dois inquéritos e também a data de abertura do inquérito civil. O JBa, além disso, faz comentários (verbais e visuais) mais prudentes em relação às possíveis atitudes da corporação: JBa1/8 (Âncora/sinc): “A Polícia Militar sabia, mas o governador do Estado não. Hoje de manhã o governador Mário Covas foi ao quartel onde os policiais estão presos desde o dia vinte e seis do mês passado. À tarde, ele deu uma entrevista onde contou que embora a polícia soubesse de tudo... não contou pra ele.”

Indica-se claramente na locução (em off, “coberta” pelas cenas mais violentas da FFN) o momento em que a fita se tornou um documento para o processamento legal e administrativo da denúncia: JBa1/9 (Repórter/off): “A Polícia Militar recebeu no dia vinte e cinco de março.. a fita que mostrava pê-emes agredindo pessoas e matando o mecânico Mário Josino, em Diadema.” (...)

Nessa seqüência, o JBa caracteriza a situação do governador, através de sua imagem, durante o comunicado oficial da tarde de 1°de abril: (Repórter/off): “O governador não foi avisado de nada... nem do incidente, nem da fita. Só ficou sabendo do caso ontem à noite... quando as imagens apareceram na televisão.”

O próprio governador Mário Covas confirmou sua desinformação sobre “o caso”, nesse mesmo dia durante uma entrevista ao vivo transmitida nessa mesma edição. Falando e gesticulando muito, o governador a concedeu ao anchormen Paulo Henrique Amorim, que, não sem dificuldades, tentou conduzir a conversação: JBa1/15 (Âncora): “...o senhor não considera uma falha grave e importante... o fato de a polícia não ter avisado ao senhor o que aconteceu, nem ter mostrado ao senhor essa fita eh... chocante?” (Governador): “Eu acho muito grave o que aconteceu. Ter contado pra mim ou não é periférico, é secundário.. O que é indesculpável é o que aconteceu. Na realidade, há hierarquia no Governo... e portanto cada um... tem por obrigação avisar o seu superior hierárquico. Entre... a minha pessoa, que sou governador, e aquele que co...manda lá, há uma série de intermediários. A notícia que me é dada na

126 Secretaria de Segurança me chega através do Secretário... que por sua vez tem que receber do comandante da Polícia Militar, que por sua vez recebe dos comandos intermediários... Até o comandante da Polícia Militar a notícia não chegou... mas isso, eu não quero apresentar isso como desculpa. Eu vi há pouco a reportagem, e em várias oportunidades... eu apareço como dizendo que não sabia. Não, isso é um... apenas um... fato, eu realmente não sabia. Mas isso não elide o acontecimento. O que é dramático nessa história é o que aconteceu. Não são as circunstâncias.” (Âncora): “Mas, governador, o fato do senhor não ter sido avisado por um subordinado... de um acontecimento dessa magnitude... também não é um fato importante? Evidentemente que não é tão importante quanto... a monstruosidade que nós vimos naquelas cenas , mas não há aí um deslize administrativo... gravíssimo?” (Governador): “É... Só não vamos desviar a coisa pra esse terreno, porque esse não é o terreno fundamental . Mas na realidade... isto seria, se hoje eu não tivesse saído pela manhã... ido ao quartel, visto os dez presos, acompanhado os dois IPM... eh... ii... inquéritos, conversado com os dois... com os dois... chefes dos inquéritos... e verificado que desde o primeiro instante... as medidas a serem tomadas foram tomadas... a do dia seis, como conseqüência do... da convocação do hospital onde havia uma pessoa morta... (...)”

Assim, embora não seja fácil, seguindo apenas as pistas dos telejornais nos primeiros dias do EFN, determinar de onde partiram as denúncias formais e compreender com nitidez os trâmites dos inquéritos, fica evidente, pelas respostas do governador paulista, que as ocorrências registradas na FFN receberam o processamento normal das instituições do sistema judiciário criminal. Ou, segundo as palavras do próprio governador: JNa1(16) e JBa1(9): (Governador/sinc): “...mas no instante que eu sei.. se todas as providências que eu mandaria tomar... estão tomadas... como é que eu posso reclamar disso?”

Efetivamente, de que se fica a “reclamar”? Por que se haveria de questionar a “normalidade” das “providências cabíveis”? Colocando a questão em termos da dinâmica de produção dos discursos público-mediáticos: o que encaminhou a problematização pública não de um “episódio” particular registrado, mas de toda uma “série” de ocorrências, com referência à qual esse “episódio” figura como exemplo? A mera possibilidade da exposição público-mediática decorrente da videogravação da FFN já tornava irredutíveis as dimensões políticas das ocorrências e do processamento institucional das denúncias. A FFN constituiu-as como problemas que transbordavam largamente os limites dos procedimentos judiciário-administrativos rotineiros. Os telejornais demonstram, pela variedade dos recursos expressivos que agenciam, algumas peculiaridades do uso da videografia na publicização mediática. Por exemplo, no JNa1/15 (um pouco antes do “mas”),

127

para “ilustrar” a locução do nome da principal vítima das ocorrências registradas na FFN, a edição de imagens insere uma antiga fotografia de Mário Josino. Vê-se a imagem de um homem negro, de aproximadamente trinta anos, magro, com o filho pequeno no colo, aparentemente dentro de uma casa pobre. Mário Josino dava um largo sorriso para a câmera que o fotografou. É uma foto de família, totalmente prosaica, “normal” e rotineira. Exposta público-mediaticamente

em

circunstâncias

nada

rotineiras,

a

imagem

tornou-se

profundamente comovente. O primeiro resultado do choque da entrada da FFN na publicidade mediática foram os diversos atos administrativos do governo paulista, exonerando oficiais da PMSP. Os telejornais relatam a seqüência de afastamentos: JNa1/18 (Apresentador/sinc): “O Governo de São Paulo afastou no começo da noite... dois coronéis do comando da Polícia Militar. São eles: Luís Antônio Rodrigues, Chefe da Polícia na região do ABC, e Paulo Miranda de Castro, Corregedor da PM.”

Segundo o JBa, foi também destituído, nesse dia, o comandante do 24°BPM: JBa1/9 (Repórter/off): “Esconder o fato do governador.. já provocou três afastamentos. O do comandante da pê-eme... da região do ABC... coronel Luís Antônio Rodrigues... o do comandante do Batalhão onde os dez pê-emes serviam, coronel Matheus... e o do coronel Paulo Miranda de Castro, da Corregedoria da Polícia Militar.”

Enquanto o JNa noticia secamente os afastamentos,185 deixando as correlações a cargo do público, o JBa articula-os, explicitamente, como resultado da denúncia mediática inicial (“já provocou três afastamentos”). Situa, além disso, os oficiais como agentes e o governador como paciente do ocultamento e, por conseguinte, não culpável em relação às eventuais falhas dos processamentos judiciário-administrativos. Apesar de quase evidente, o motivo das várias exonerações e transferências de oficiais do alto comando da corporação jamais foi publicamente admitido por nenhum dos enunciadores ligados à PMSP ou ao governo estadual, que também jamais colocaram em questão a “normalidade” 185

das

“providências

cabíveis”

tomadas.

Esquivar-se

de

ambas

as

Note-se, entretanto, que o JGl0/7 já havia se referido à não informação do governador e do secretário de segurança como uma omissão do comando da PMSP.

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problematizações demandou esforço retórico, como parecem demonstrar as respostas do governador de São Paulo: JBa1/15 (…) (Âncora): “Me permita, governador. Então por que que o senhor demitiu três oficiais hoje?” (Governador): “Não, eu não demiti. O deleg... o... o chefe da polícia demitiu. Eu apenas, como o ato é meu, por indicação dele e depois do secretário, eh... eu afastei... porque ele entendeu que devia afastar. Eu poderia afastar o Secretário, se eu entendesse que o Secretário fal[h]ou comigo. Mas na realidade, na hierarquia, coube a ele fazer esta tarefa quando julgou que deveria fazer. Eu.. teria feito isso na hipótese.. de ter chegado lá e achasse que nenhuma das medidas... que deveriam ter sido tomadas foram tomadas...”

Os afastamentos, desfechos óbvios da demonstração de falta de confiabilidade de vários oficiais do Alto-Comando da PMSP, que deixaram de advertir o comandante geral, o Secretário de Segurança (José Afonso Silva) e o governador sobre o escândalo iminente, tiveram a autoria estranhamente atribuída ao comandante, pelo governador. O chefe do governo estadual evita implicar-se no escândalo, eximindo-se até mesmo da autoria dessas medidas punitivas. Embora na prática o governador tenha também tomado medidas que alteravam os procedimentos “normais”, nos pronunciamentos públicos permaneceu abordando as ocorrências da FFN apenas como um “caso isolado que se repete”. Explicitamente, as ocorrências são tratadas como se sua publicização mediática fosse de todo irrelevante para o processamento institucional, o qual jamais é submetido à crítica. Atribuem-se as exonerações a decisões internas à corporação policial militar que estariam dissociadas da divulgação da FFN. No JNa1 não aparecem mais emissões que possam ser atribuídas, direta ou indiretamente, à PMSP ou aos policiais incriminados. Pode-se dizer que, para os produtores do JNa, a única emissão significativa do ator-polícia foi o seu silêncio. Mas o JBa abriu algum espaço para que os sujeitos potencialmente comprometidos pela denúncia inicial (a PMSP e o Governo de São Paulo) emitissem respostas. Assim, vê-se, na mesa da entrevista coletiva, o comandante geral da PMSP (de farda) pronunciar-se, logo depois do pronunciamento oficial do governador de São Paulo.

Em seguida, presumivelmente nos corredores do Palácio

Bandeirante (sede do Governo), o comandante é cercado pelas diversas equipes de reportagem presentes no local. A proferição desse policial foi editada da seguinte maneira: primeiro, ele aparece falando ao microfone, dublado pelo off de um repórter:

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JBa1/10 (Repórter/off): “O comandante Geral da pê-eme garantiu que quando surgiram as primeiras denúncias de agressão, no dia sete de março, foi aberto um inquérito. Dois policiais foram reconhecidos como agressores pelas testemunhas.”

Em um plano perpendicular da mesa da entrevista coletiva, vêem-se Covas e J. Afonso Silva de perfil, cercados pelos repórteres. Aparece novamente o comandante geral da PMSP sentado, falando ao microfone, “ilustrando” a locução do repórter: (Repórter/off): “...Mas até o dia vinte e cinco, quando a polícia recebeu a fita, os policiais continuaram trabalhando normalmente... inclusive, no policiamento das ruas.”

Logo após o “inclusive”, é inserido um plano do rosto do governador de São Paulo olhando para o lado direito, com o cenho franzido. Em seguida, ouve-se a voz de um repórter (síncrona, mas fora do quadro) dirigida ao comandante geral, que está cercado por microfones: (Repórter/sinc): “Sem a fita, eles continuariam no policiamento, os dez.” (Comandante geral-PMSP/sinc): “Provavelmente... Eu não posso adiantar se eles ficariam no policiamento... dependendo... hé... da identificação da autoria.”

Pelo plano inicial dessa seqüência, sabe-se que o comandante geral participou da entrevista coletiva na qualidade de membro do governo paulista (indicado pelo Secretário de Segurança, ocupava seu cargo por motivos políticos). Nessas circunstâncias, pode-se afirmar que seu pronunciamento foi concedido ao público, assim como o foram as declarações do governador. Enquanto representante eleito, o chefe do executivo estadual detinha a prerrogativa de determinar, com grande autonomia, as condições das situações de emissão. O dispositivo de enunciação, assimetricamente constituído, serviu para mediar os pronunciamentos também dos outros componentes de seu gabinete de governo. Entretanto, os telejornais preferiram não reproduzir audiovisual-mimeticamente os enunciados emitidos por Lisboa, quando ele “pega carona” no setting conformado pelo governador de São Paulo. O JBa opta pela forma da “amálgama”,186 para reproduzir essas falas do comandante: desaparecem os demarcadores sintáticos entre as diferentes enunciações, alguns semas do comandante são substituídos pelos do telejornal (a fala do cel. Lisboa cai para background, 186

MOUILLAUD. In: MOUILLAUD & PORTO (Orgs.), 1997. p. 138-9.

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dublada pela enunciação do ator midiador) e o limite entre o que é declarado pelo comandante e pela reportagem fica indefinido (por exemplo, não se pode asseverar quem narrou o reconhecimento dos acusados). Nessa “amálgama”, os atos e declarações ficam indistintos através do uso de verbos mistos (ex.: “o comandante garantiu”). Os parâmetros axiológicos do texto são conotados através de signos lingüísticos (“mas”, “inclusive”) e videográficos: o rosto interrogativo do governador é inserido de maneira a sugerir sua reação de estranhamento diante da permanência dos acusados no policiamento ostensivo. Portanto, as vantagens que o comandante da PMSP pudesse eventualmente obter por pronunciar-se na “coletiva de imprensa”187 são diluídas pelos dispositivos de reprodução agenciados pelo midiador, que tendem a obliterar o pertencimento desse oficial da PM ao governo. Na perspectiva do telejornal, o comandante tende a ser situado como mero representante da corporação policial, e não como membro do governo paulista. Nessas condições, seu enunciado é propenso a ser reduzido a um mero “sintoma de um sentido que foi atualizado pelo discurso, mas cujo discurso não é um operador necessário”.188 Na segunda parte da seqüência (JBa1/10), vê-se o comandante geral da PMSP em um espaço intersticial, provavelmente em um corredor do Palácio Bandeirante. Nesse lugar, fora do dispositivo de enunciação da coletiva de imprensa do governador, o oficial encontrava-se em uma situação de mínimo distanciamento em relação aos repórteres. Acossado por perguntas, microfones, câmeras e luzes, o coronel Claudionor Lisboa (cenho franzido, sorriso tenso) responde as questões. Não fixa o olhar no repórter que lhe dirige a pergunta, volta-se para os circundantes, desviando várias vezes os olhos para o vazio e encerra a resposta com um riso nervoso. O comandante ocupa ainda uma posição de autoridade em relação às equipes de reportagem, mas nesse momento bem mais simétrica do que aquela da coletiva de imprensa. Não por acaso, foi esse o trecho da gravação reproduzido no JBa. O pronunciamento do comandante geral é claramente demarcado, pois trecho reproduzido mostra que a pergunta e a resposta são de diferentes emissores. A repórter pede ao coronel PM que avalie a verossimilhança de uma narrativa hipotética acerca do processamento institucional da denúncia dos crimes da Favela Naval (o que aconteceria se não existisse a FFN?). De início, o comandante geral da PMSP acolhe a 187

Por exemplo, sua “superioridade” enquanto membro de um governo democraticamente eleito, a maior distância física e o tempo mais dilatado para elaboração e proferição das respostas. 188

MOUILLAUD. In: MOUILLAUD & PORTO (Orgs.), 1997. p.139.

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sugestão, confirmando a plausibilidade da narrativa proposta (sim, talvez os acusados continuassem no policiamento das ruas). Evidentemente, respostas satisfatórias à demanda de avaliações de conjunto das ocorrências de brutalidade policial suporiam que o indagado adotasse um ponto de vista crítico em relação ao processamento “normal” das denúncias desses crimes, algo bastante improvável para um alto oficial da PM e, além disso, imprudente no discurso público de um comandante. Desavisado ou defensivo, o coronel limitou-se a interpretar literalmente a narrativa hipotética, supondo-a formulada no contexto de um discurso singulativo, como se devesse elucidar apenas uma ocorrência isolada e não um conjunto de casos semelhantes. Contudo, o comandante volta atrás em seguida, negando sua própria capacidade de avaliar a verossimilitude da narrativa proposta. Ao final, o coronel sustenta essa pretendida incapacidade abstratamente (“dependendo”), referindo-a a uma condição formal (“a [não] identificação da autoria”), que é exterior à sua condição enquanto enunciador (a identificação dependeria apenas dos policiais responsáveis pelos inquéritos). Ora, o problema, como sugere o texto do JBa1/2, é que a probabilidade de que existam videogravações capazes de confirmar as autorias de crimes policiais formalmente denunciados é muito menor do que a de que esse tipo de evidências inexista. Essa probabilidade é também ínfima diante da possibilidade de que esses crimes não tenham nem mesmo sido denunciados à Justiça.189 Por conseguinte, parece que o comandante geral da PMSP foi enredado pela pergunta da repórter e permaneceu tratando formalmente o “caso”, tomando-o como uma singularidade. É possível supor que na resposta estivesse subjacente a pretensão de que a responsabilidade da corporação sobre as ocorrências pudesse ser minorada pelo relato do processamento das denúncias segundo os procedimentos rotineiros e “normais”. Parece, porém, que, nesse momento, eram justamente tais procedimentos o principal objeto da desconfiança pública, mais que a apuração das ocorrências registradas na FFN. Fica claro também que, nessa ocasião, o comandante geral da PMSP deu uma resposta meramente discursiva à pergunta, sem aparentemente considerar a necessidade de discutir a implementação de mudanças nos procedimentos administrativo-judiciários da corporação.190 189

É muito raro que vítimas de brutalidades policiais as denunciem formalmente, por temerem represálias dos agressores. (Cf. DAMATTA, 1982: 32-5; CARDIA. O medo da polícia — e as graves violações dos direitos humanos. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. p. 252 e 263; PAIXÃO & BEATO, Crimes, vítimas e policiais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. p. 238-246.) 190

Um exemplo substantivo dessas mudanças veio a ser implementado posteriormente pela PMSP. Depois do EFN, a corporação passou a determinar o afastamento imediato dos policiais militares acusados de crimes graves, antes mesmo que a Justiça Militar julgue os delitos. (Cf. SECCO. A Polícia Bandida. Veja, 4 ago. 1999, p. 98).

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Parece ter havido uma disposição do telejornal (manifesta, por exemplo, em JNa4/10-11) em comprometer pessoalmente o comandante geral da PMSP com o caráter problemático do processamento da denúncia dos crimes registrados na FFN pela corporação policial. Tendo-se em conta que o ator-midiador publiciza o discurso narrativo da polícia desde o início, contrapondo-o ao seu, as referências ao discurso dos policiais tornam-se predominantemente contrastivas. A “notícia” em que o JNa questiona a lisura dos “procedimentos cabíveis” da polícia militar paulista começa em uma locução introdutória da apresentadora: JNa4/7 (Apresentadora/sinc): “O comandante e o porta-voz da Polícia Militar... dão respostas conflitantes... sobre um dos principais pontos da investigação de Diadema... O comandante geral da pê-eme sabia da existência da fita, antes da exibição do Jornal Nacional? Desde o início da semana, ele diz que não... mas o porta-voz da Polícia.. diz que simm.”

Em seguida, a locução off do repórter relaciona o conhecimento acerca da FFN à não informação dos superiores hierárquicos e à destituição de oficiais da PMSP: JNa4/8 (Repórter/off): “Desde segunda-feira quando o Jornal Nacional mostrou as imagens dos crimes policiais em Diadema... vinte e dois pê-emes tiveram a prisão decretada.” (Repórter/off): “Outros três coronéis... perderam o posto... porque não alertaram... os superiores.”

A FFN aparece como o instrumento da intervenção do ator-midiador enquanto denunciante dos crimes e causa das prisões e destituições de PMs. As destituições de altos oficiais da PMSP são identificadas como conseqüências indiretas da publicização das “imagens”, e diretas da omissão desses oficiais em “alertar” os superiores. Estabelece-se como regra geral das destituições um percurso narrativo segundo o qual todos os oficiais que sabiam da “fita” e não “alertaram” os superiores deveriam ser afastados. Assim, a fita, as imagens registradas e o sentido (“o conteúdo”) dessas imagens constituiriam os objetos em torno dos quais se definem culpabilidades e punibilidades para as ações dos narradores pertencentes à polícia. Aparentemente, saber ou não da existência da fita, conhecer ou não seu “conteúdo”, conhecêlo ou não na íntegra, então, parecem ser os critérios para atribuir a responsabilidade pela não informação do secretário de segurança e do governador do estado de São Paulo. Conforme esses princípios de avaliação, o telejornal cita (play-back das entrevistas) os enunciados dos dois enunciadores oficiais da PMSP:

133 (Repórter/off): “O comandante geral da Polícia Militar de SamPaulo, Claudionor Lisboa.. repetiu em várias entrevistas que não soube da existência da fita.” (Comandante geral/sinc): “Não, nós não sabíamos da existência da fita, é diferen[te], nós sabíamos.. que.. quanto ao Gol, poderia ter uma fita. Nós não sabíamos do conteúdo dela.”

O telejornal usa a freqüência iterativa para expor os pronunciamentos do comandante geral da PMSP, primeiro contando-os, depois mostrando um trecho pretendidamente metonímico do conjunto das suas enunciações. No entanto, entre o enunciado mostrado (play-back) e o enunciado contado, há diferenças: as ambigüidades do pronunciamento do cel. Lisboa são bastante reduzidas quando este é contado pelo repórter, que individualiza o cel. Lisboa enquanto agente e representa a ação como iniciada e terminada. Quando um trecho gravado da entrevista é mostrado, o comandante geral se refere a duas ações contraditórias (saber/não saber da existência da fita) de um sujeito coletivo pouco definido: “nós” (quem?). O comandante primeiro faz a distinção entre duas ações, uma pretendidamente falsa (sabíamos da existência da fita) e outra pretendidamente verdadeira (sabíamos da possível existência da fita). Na sentença seguinte, contudo, rompe-se a consistência da primeira distinção pela proposição de uma segunda, entre os objetos da ação (existência da fita versus conteúdo da fita). Ora, para não saber do conteúdo já é necessário saber da existência da fita. Assim, é o próprio Claudionor Lisboa que desmente o comandante geral da PMSP. Logo depois, interpõe-se a reportagem: (Repórter/off): “Mas o porta-voz da pê-eme, em entrevista para o canal de notícias GloboNews.. desmente o comandante.” (Porta-voz da PMSP/sinc): “O comaando.. regional.. o comando de policiamento metropolitano.. seis.. que cobre a região do ABCD.. recebeu uma fita.. e tanto deu importância que já abriu.. os inquéritos policiais.. militares, o número zero-zero-seis e o número zero-dez, e informou o comando geral da polícia militar. Só que a fita.. ficou atrelada.. aos inquéritos policiais-militares.” (Repórter/sinc -fora do quadro): “Mas será que o comando não devia ter mostrado conforme a gravidade.. eh.. não devia ter mostrado essa fita ao comandante Claudionor Lisboa?.. que é o comandante geral da polícia militar?” (Porta-voz/sinc): “Eh.. as informações foram passadas ao comandante, já com as providências que estavam sendo tomadas.”

A matéria (JNa4/7-8) apresenta dois níveis narrativos nitidamente demarcados: o do discurso da reportagem e o dos discursos dos policiais. O objetivo do telejornal era claramente problematizar as discrepâncias entre aquilo que o porta-voz dizia que o comandante sabia, e

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aquilo de que este dizia ter conhecimento. Para isso, reproduz, fazendo contraposições, os enunciados dos dois narradores (os quais têm atribuições públicas semelhantes mas ocupam posições desiguais na organização). Observe-se que as pretensas incoerências entre os enunciados são identificadas através da figura da inversão dos lugares: o subordinado “desmente” o superior. Passando ao largo da indisfarçável disposição do JNa a forçar retoricamente a contraposição entre os enunciados do comandante geral e do porta-voz da PMSP, esta pesquisa prefere abordar esses enunciados segundo uma perspectiva de conjunto e avaliá-los a partir das suas complementaridades, para assim constelar algumas recorrências dos discursos narrativos do ator-polícia. Destacam-se, nos enunciados provenientes desse ator, duas constantes, manifestas tanto no contexto do processamento público-institucional das denúncias quanto no dos pronunciamentos público-mediáticos dos dois locutores: (1) a forma de inclusão da FFN nos discursos; (2) a representação das ocorrências dos crimes. Na declaração do comandante, a FFN é sucessiva e paradoxalmente representada enquanto evidência desconhecida, evidência possível e uma evidência concreta de “conteúdo” desconhecido (a fita indica algo, mas não se sabe o quê). Depois, no primeiro enunciado do porta-voz, a FFN é assumida enquanto evidência concreta relevante o suficiente para iniciar dois inquéritos policiais-militares: a fita (sua gravação, seu envio à polícia) constitui uma denúncia (anônima) a ser processada institucionalmente pela corporação. Portanto, desde que chegou à PMSP, a FFN foi interpretada segundo dimensões judiciárias e administrativas. Ao “ser recebida” pela corporação, tornou-se uma evidência material que sustentava a denúncia formal das vítimas, desencadeando a produção (pela Corregedoria da PMSP) de um documento, o IPM, um texto escrito de natureza jurídico-administrativa, que incorporava outros documentos e evidências. Ao mesmo tempo, o Ministério Público de Diadema era também notificado. Esse segundo texto assimilou (“atrelou”) o primeiro (a FFN) enquanto evidência, ou seja, como um índice potencial de ocorrências específicas. A validade da FFN enquanto “testemunho objetivo” dependia, nesse contexto, da confirmação de um testemunho pessoal (preferencialmente de um membro da própria corporação). Obtida essa “confissão” (vide declarações do cabo Buzeto, abaixo), foram tomadas as primeiras decisões

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punitivas.191 O segundo texto constituído pelo processamento institucional gerou o terceiro, a informação do andamento do caso ao comandante geral. O campo de significação de atrelar,192 termo que se destaca na declaração do porta-voz da PM paulista, sugere o tipo de semantização burocrática sofrida pela FFN: ao longo do processamento institucional dos inquéritos policiais, o enunciado videográfico inicial é assimilado de modo formalista e burocrático, tomado apenas como evidência de ocorrências singulares, investigadas internamente. Na perspectiva do processamento do sistema de justiça criminal e da corporação policial, como será visto na Seção seguinte, o único delito a ser processado foi aquele formalmente denunciado e oficialmente documentado. Esse processamento era conduzido em um contexto “semipúblico”, cujo acesso era restrito aos operadores da Justiça e da corporação encarregados da apuração das denúncias. Os parâmetros de interpretação empregados nesse âmbito levaram os operadores judiciários a tomar os vários enunciados que denunciaram os crimes — emitidos pelas vítimas, por um cinegrafista anônimo e por um policial que participara da “operação”— como indicações para a determinação das culpabilidades dos policiais diretamente incriminados. O que é relevante assinalar nesse trecho é que ele demonstra que os parâmetros “semipúblicos” de interpretação das evidências (a FFN, os testemunhos), considerados legítimos pelos emissores pertencentes à corporação, pareceram insuficientes e potencialmente tendenciosos na perspectiva de outros atores, no momento em que essas evidências foram mostradas e relatadas no espaço público-mediático, associadas a outros episódios análogos. O reconhecimento, pela PMSP, da existência de uma diferença intransponível entre a interpretação oferecida pela corporação policial e aquela elaborada pelos vários veículos de imprensa parece ser plasmada na seqüência seguinte do JNa4. O plano subjetivo desloca-se da fachada do Quartel General da PMSP para o saguão do prédio, avança oscilante através dos corredores (oficiais andando de um lado para o outro), como se “estivéssemos” entrando, pé ante pé, no “interior da corporação”: 191

A prisão administrativa dos policiais diretamente incriminados, o afastamento do comandante do 24°BPM, inquéritos para apuração de possíveis omissões dos oficiais encarregados dos IPMs, entre outros. 192

“ATRELAR: v. tr. prender ou levar preso pela trela, como se faz aos cães na caça ou a feras adestradas na caça ou na guerra|Prender (os cavalos) à viatura (...). (Fig.) atrair, levar com promessas, seduções etc.|Dominar, sopear| v. pr. (fig.) acostar-se (a alguma pessoa), segui-la, não a largar. (...) ATRELADO: adj. Preso à trela (...) (Fig): dominado, sopeado, sujeito.” (ref. CALDAS AULETE, 1958. p. 552.)

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JNa4/9 (Repórter/off): “No final da tarde eu tentei falar novamente com o porta-voz da polícia, mas ele não quis gravar entrevista. O clima no Quartel General é cada vez mais tenso.

De repente, “entramos” por uma porta e “deparamo-nos” com um salão cheio de oficiais. O comandante geral e outros comandantes encontram-se sentados em uma mesa sobre um palanquinho. O salão, escuro, é subitamente iluminado por uma forte fonte de luz (dura, sem difusor), vinda de detrás do cinegrafista e apontada para os coronéis atrás da mesa, e também por flashes fotográficos. Segue o off: (Repórter/off): “O Alto Comando da pê-eme foi reunido às pressas. Depois de muita insistência, o nosso cinegrafista pôde fazer imagens da reunião. Enquanto a câmera esteve ligada, os coronéis da polícia.. não pronunciaram uma palavra...”

Os oficiais tossem, pigarreiam e mexem-se nas cadeiras, emudecidos. Fingem ignorar a presença da equipe de reportagem: desviam os olhos para o teto, fingem ler documentos, etc., evitando olhar para a câmera; alguns, contudo, não resistem a dar olhadelas furtivas. Estão visivelmente constrangidos. Embora essa seqüência seja paroxística em relação à situação vexatória da corporação policial-militar durante o EFN, ela pode ser contextualizada em um âmbito mais geral, conforme o modo pelo qual a corporação policial lida com o espaço público. É preciso, para isso, recuar um pouco no tempo, voltando ao primeiro dia do EFN, até o momento da denúncia mediática inicial. No JGl0, depois da reprodução do trecho do pronunciamento do porta-voz da PMSP, a apresentadora anuncia o depoimento do “sobrevivente” Sílvio Calixto Lemos (a ser exibido no dia seguinte) e diz: JGl0/7 (Apresentadora/sinc): “... O comando da Pê-eme soube dos crimes através de um cabo, que fazia parte do grupo, mas que condenou as agressões. A fita do cinegrafista amador... também já estava com a pêeme desde a semana passada. A assessoria de imprensa do Governo de São Paulo não soube explicar... por que o comando da pê-eme omitiu esse fato ao Secretário de Segurança... e ao próprio governador.”

Segundo a reportagem, o cabo Buzeto (como indivíduo pertencente à corporação) teria feito a denúncia dos crimes dos colegas de batalhão para “o Comando da pê-eme”. Assim, pode-se dizer que o silêncio mantido pelo corpo administrativo (a PMSP) em relação ao corpo político

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do estado de São Paulo (o secretário de segurança, o governador e talvez o comandante geral da PMSP) tornou-se fato de extrema eloqüência a respeito do corporativismo e da impermeabilidade da corporação policial-militar aos dispositivos externos de controle da instituição. A esse respeito, poder-se-ia avançar a hipótese de que, do ponto de vista da PMSP (pelo menos para os oficiais que tiveram acesso à fita), a FFN não passou de um indício adicional (senão acessório) para o IPM, apenas destinado a ser “atrelado” ao processamento interna corporis dos crimes formalmente denunciados. Igualmente, as denúncias, mesmo apoiadas pelo enunciado videográfico, não teriam parecido demandar, inicialmente, um tratamento diferente daquele rotineiramente dispensado a “casos” desse tipo. Ou seja, a denúncia, apesar de ter sido feita simultaneamente pelas vítimas (segundo as formalidades legais), pelo cinegrafista (através da FFN) e pelo cabo Buzeto (depoimento para o IPM), foi tratada pela PM de São Paulo como um problema interno, cuja resolução, meramente administrativa, decorreria dos procedimentos “normais e rotineiros” da corporação. 193 A potencial dimensão política (dada a potencial publicização mediática das imagens da FFN) “extraordinária” do problema parece ter sido totalmente ignorada, o que explica a não informação do corpo político do governo de São Paulo de seu processamento. É difícil aceitar que oficiais da PM de vários níveis hierárquicos não pudessem ter suposto que a fita recebida, com imagens em preto e branco194, se tratasse de uma cópia de uma original colorida, pois as videocâmaras domésticas não gravam imagens em preto e branco. De fato, mais tarde (15 de abril) seria revelado que o alto comando da PMSP não só sabia da fita original colorida, como também tinha conhecimento que o cinegrafista estava negociando sua venda para o JNa.195 Marcelo Rezende relata que a equipe de jornalismo da Rede Globo 193

A FSP mostra a estranha “normalidade” desses procedimentos, relatando a evolução de um inquérito semelhante ao que investigava o assassinato de Mário Josino (que apurava o espancamento de um padeiro e de seus amigos e parentes por pê-emes de Diadema). Ao final deste IPM, com base apenas nos depoimentos dos acusados, contrariando os laudos dos exames de corpo de delito, os depoimentos das vítimas e as conclusões da primeira investigação sobre o caso, o presidente do Inquérito e o então comandante do 24°BPM consideraram que a ação foi legal e que os policiais agiram dentro das “normas da PM”. (Cf. GODOY. Presidente do IPM considerou “normal” ação parecida. Folha de S.Paulo, 3 abr. 1997, p. 3-3. Editoria: Cotidiano.) 194

A fita entregue para a polícia, que chegou ao Comando da PMSP e foi por ele repassado ao Ministério Público de Diadema, era uma cópia em preto e branco da gravação original colorida (ref. depoimento de F.R.Vanni em JBa4/19). Foi o Promotor de Justiça de Diadema que exibiu as imagens p&b para as equipes de reportagem (ref. EdT1). 195

Depondo na CPI-ALSP em 15 de abril, o comandante interino do Comando de Policiamento Metropolitano (CPA, cel. Yanaguita) e o sub-comandante geral da PMSP (cel. Costa) relataram o trânsito da informação sobre

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apressou a produção da reportagem,196 na expectativa de que a PM se antecipasse e divulgasse ela própria as imagens, para assim receber o mérito pela investigação. Nessas circunstâncias, a hipótese de uma negligência ingênua da PMSP parece muito frágil. A possibilidade de ter havido uma negligência intencional diante da potencial publicização das imagens da FFN é bem fundamentada: relata-se a existência de atritos dentro da corporação policial e entre a PMSP e o governo paulista, no momento imediatamente anterior à denúncia mediática inicial. A não informação, segundo essa versão, teria sido uma manobra estratégica de um grupo envolvido nas disputas intestinas da PMSP (pelo cargo de Comandante Geral da PMSP) e que estava em conflito com o corpo político do estado (estaria tentando forçar a substituição do Secretário de Segurança Pública). Esses conflitos internos à corporação e com o governo paulista, não casualmente, parecem estar relacionados à resistência, por parte da corporação, às tentativas, feitas pelo secretário de segurança paulista, de controlar pública e politicamente o funcionamento da PMSP e de diminuir as ocorrências de crimes contra a vida cometidos por policiais militares. Significativamente, grande parte dos oficiais estavam insatisfeitos com a instauração do PROAR, programa que afasta temporariamente para assistência psicológica PMs envolvidos em ocorrências desse tipo. Portanto, parece uma cruel ironia o fato de que, em 31 de março de 1997 (o 33° aniversário do Golpe Militar de 1964), a apresentação televisiva dos policiais militares de São Paulo “em ação” batesse recordes de audiência, alcançando notoriedade internacional (e, dessa vez, sem desobedecer às ordens do secretário de segurança pública, que havia proibido policiais de participar de programas de televisão enquanto estivessem em serviço).197 a FFN no alto-comando. O primeiro avisou en passant ao segundo sobre a existência da fita em 27 de março, enquanto conversavam sobre a distribuição de ingressos de “cortesia” para o Grande Prêmio Brasil de Automobilismo. O cel. Yanaguita disse ter avisado ao cel. Costa que um cinegrafista amador estava negociando a venda da fita a uma emissora de TV. ‘‘Comuniquei que as providências foram tomadas e que não tínhamos como impedir que a fita fosse vendida à TV’’. O subcomandante geral confirmou estas declarações. Nenhum dos oficiais assistiu às imagens. (Ref. ALVES & SCHIVARTCHE. PM de SP negligenciou fita de Diadema Folha de S.Paulo, 16 abr. 1997, p. 3-1. Editoria: Cotidiano.) 196

“...Foi uma reportagem em que estiveram envolvidos treze jornalistas profissionais, trabalhando arduamente durante quase uma semana para investigar tudo. Ela só foi ao ar numa segunda-feira porque apenas no domingo à tarde foi encontrada a última vítima. Se tivesse sido encontrada antes, nós a teríamos mostrado antes. Eu estava doido para me livrar daquilo. Eu sabia que havia uma fita na mão da PM. E esta, a qualquer momento, se percebesse que um jornalista também tinha a fita, poderia divulgá-la como uma grande denúncia-investigação, uma coisa interna, para livrar a própria barra.” (ref. Entrevista com Marcelo Rezende. Imprensa, n.123, dez. 9, p. 32c) “Oficiais da Polícia Militar de São Paulo estão envolvidos em uma feroz disputa pelo poder dentro da corporação. Na análise do governo, esse é um dos motivos que estariam 197

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Qualquer que fosse o motivo da incomunicação dos oficiais da PMSP com o corpo político da administração estadual, a corporação (enquanto instituição pública) indubitavelmente esquivou-se de mobilizar dispositivos discursivos públicos para processar o problema. No caso (provável) do “vazamento” intencional, a imprevisibilidade e a irreversibilidade características dos processos políticos públicos afirmaram-se à revelia dos “promotores” do vazamento. Não só a PMSP, como as PMs e as polícias brasileiras em geral foram submetidas a uma severa avaliação pela sociedade brasileira, durante o EFN e nos meses subseqüentes. A crítica pública incidiu não tanto sobre as ocorrências na Favela Naval tomadas em si mesmas, mas principalmente sobre o caráter visivelmente insatisfatório do seu processamento exclusivamente interna corporis e sobre o corporativismo e militarismo predominantes nas polícias. Fundamentando-se na denúncia dos crimes dos policiais de Diadema e aproveitando a comoção pública por ela gerada, diversos atores políticos passaram a fazer conexões explícitas entre as ocorrências da encruzilhada das ruas Naval com José Francisco Brás com os muitos outros casos de brutalidade policial mal ou não resolvidos na história recente do país.

4.3 — “Procedimentos cabíveis”: O dever de conhecer e a simulação do desconhecimento

Passa-se, nesta seção, da análise dos enunciados atribuíveis à polícia militar paulista enquanto instituição pública para os pronunciamentos oriundos dos policiais individualmente envolvidos nas denúncias. Foi possível observar a condensação de dois conjuntos de levando a PM a divulgar informações erradas ou omiti-las da Secretaria da Segurança Pública e do Palácio dos Bandeirantes. (...)Um grupo quer a queda do atual comandantegeral da PM, Claudionor Lisboa. Outro grupo, enfraquecido, tenta mantê-lo. (...) Lisboa sofre ataques do oficialato da PM desde sua indicação, em jan. de 95. (...) Ele foi escolhido quase que exclusivamente pelo... critério... político. (...) Boa parte dos oficiais desses dois grupos têm, no entanto, um desejo em comum: a demissão de Afonso da Silva, chamado de ‘fraco’ e ‘incompetente’ em reuniões no Clube de Oficiais da PM. (...) Nesses encontros, o secretário e alguns oficiais são atacados, por exemplo, por causa do Proar. (...) ...ordens de Afonso da Silva vêm sendo sistematicamente desobedecidas pela corporação. Exemplo: no ano passado, portaria sua proibiu que qualquer oficial participassem de programas de TV durante operações policiais. (...) Essa ordem da secretaria não é obedecida até hoje.” (ref. GODOY & FELTRIN. Grupos rivais disputam poder no comando da PM. Folha de S.Paulo, 3 abr. 1997, p. 3-5. Editoria: Cotidiano.)

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narrativas e de dispositivos de enunciação agenciados pelos emissores, diferenciados conforme os vários graus de envolvimento dos policiais nas ocorrências videografadas: um conjunto é formado por aqueles que participaram espontânea e diretamente das ações brutais registradas; o outro é integrado pelos policiais indiretamente implicados por negligência ou omissão em evitar as agressões. Nesta Seção, serão examinadas as emissões desse último conjunto, que compreende as tentativas de justificativa do comando do 24°BPM (ten.-cel. Pedro Pereira Matheus, comandante, major Pedro Acácio Gagliardo, subcomandante), do oficial que comandava a “operação” (o aspirante a tenente Wilson de Góes Jr.) e do “praça” que assumiu a autoria do relatório denunciador seis dias antes da denúncia mediática inicial (o cabo Ricardo Luís Buzeto). Após a exibição da reportagem dos testemunhos das vítimas na CPI do Crime Organizado (da ALSP), o JNa reproduz a reportagem sobre o depoimento do ten.-cel. Pedro Pereira Matheus (Comandante do 24°BPM). O depoimento é introduzido pelo repórter, em um plano gravado nos corredores do prédio da Assembléia: JNa2/4 (Repórter/sinc): “Depois das testemunhas, foi a vez do Coronel Pedro Pereira Matheus, que comandava o Batalhão da Polícia Militar em Diadema. O Coronel admitiu que sabia do assassinato do mecânico... desde o dia sete de março, quando o crime aconteceu. Ele disse que abriu inquérito para investigar, mas confessou que só mandou prender os pê-emes envolvidos... quando a fita apareceu.”

Utilizando a estratégia da “amálgama” para citar as declarações de um locutor ligado à polícia (por exemplo, no uso de verbos mistos: “admitiu”, “confessou”), o telejornal também repete o “erro” na indicação da patente do policial militar: o comandante do 24°BPM é um tenentecoronel (e não um coronel). O JNa permanece vago quanto à identificação da origem da denúncia formal dos crimes (do cabo Buzeto ou das vítimas?). O telejornal informa que foi o comando do 24° BPM que iniciou o Inquérito Policial Militar e sugere que o comando do Batalhão teria sido negligente ao deixar de encarcerar imediatamente os acusados. 198 Segundo o fragmento, apenas a FFN teria fornecido motivos suficientes para isso. Essa informação, 198

Omissão que levou à denúncia criminal do Ministério Público de Diadema de dois oficiais da PMSP: o capitão Roberto Costa, então supervisor regional da PM, que teria deixado de prender em flagrante os pê-emes denunciados e reconhecidos pelas vítimas, e o tenente Adelson Oliveira Sá, oficial corregedor de plantão, que, além de se omitir em prender imediatamente os colegas, fez constar nos depoimentos das vítimas que elas não queriam processar os agressores. Por causa dessas manobras, o IPM que apurava o assassinato de Mário Josino só foi retomado 19 dias depois, devido ao recebimento da cópia da FFN, que foi encaminhada pelo cinegrafista Vanni. (ref. GODOY. Oficiais de Diadema são denunciados. Folha de S.Paulo, 8 abr. 1997, p. 3-6. Editoria: Cotidiano.)

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que reforçaria o estatuto do vídeo-enunciado inicial como evidência juridicamente válida, não é rigorosa, pois o IPM exigiu ainda o depoimento de um policial participante da “operação” (analisado abaixo). O então já ex-comandante do 24°BPM de Diadema apareceu na CPI-ALSP usando fardamento completo, o que indica que preferiu depor na qualidade de membro da corporação policial militar. Sentava-se na beirada da cadeira, sem apoiar as costas; esticava o pescoço e inclinava-se fortemente para a frente para falar ao microfone; falava alto, às vezes quase gritando, em um registro agudo; sua testa estava enrugada e brilhava, suarenta, com as lâmpadas das equipes de reportagem; os olhos estavam apertados e o rosto, contraído. Em suma, salvo melhor avaliação, o oficial esteve não apenas muito constrangido, mas bastante transtornado. Não sem motivo: a situação de comunicação em que se encontrava escapava quase totalmente a seu controle. O inquirido teve pouquíssima margem de interferência sobre as condições da interlocução, determinadas primeiro pelo corpo parlamentar e, em um segundo nível, pelas equipes de reportagem. As relações entre os interlocutores eram muito assimétricas. Exposto público-mediaticamente, o tenente-coronel foi longamente sabatinado pelos deputados, ouviu duras críticas a sua pessoa e não tinha como determinar a cessação dessa situação constrangedora. No limite, o oficial da PM poderia ter usado seu “direito de ficar calado” e apenas pronunciar-se em juízo — como fizeram os “praças” incriminados. Mas, sendo o silêncio uma prerrogativa exclusiva dos acusados, usá-lo como defesa praticamente seria admitir a própria responsabilidade indireta nas ocorrências. No JNa, é exibido um pequeno trecho do depoimento do comandante do 24°BPM (gravado dentro da sala da CPI da ALSP, na tarde de 2 de abril), fragmentário e interrompido pela locução do repórter: (JNa2/5) (Ex-Comandante/sinc): “Nós podemos prender alguém... por suposição?” (Repórter/ off): “O depoimento irritou os membros da CPI.” (Deputado na CPI/sinc): “... mas que foi omisso, foi omisso!”

A contar apenas com os dados seletivamente fornecidos pelo JNa, permaneceria obscuro o sentido das altercações relatadas no trecho acima. Como o telejornal tende a escamotear as informações sobre quem fez e quando foram feitas as denúncias, não seria possível saber a

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quais evidências e testemunhos o ex-comandante poderia (ou deveria) ter tido acesso. Pelo mesmo motivo, é uma incógnita se aquilo que ele considerou como “suposição” (a interpretação da FFN como evidência material dos crimes) poderia ser aceito como fato para outros olhos. Nessas condições, a atribuída irritação e as acusações de omissão não parecem passar de reações emocionais ou autopromoções dos membros da CPI, e o afastamento do excomandante (noticiado em seguida) parece pouco justificado: (Repórter/off): “Durante o depoimento, o coronel ficou sabendo por telefone.. que havia sido exonerado do cargo... de comandante do Batalhão de Diadema.” (Ex-comandante/sinc): “Eu tenho o dever da con... [balança a cabeça] a consciência do dever cumprido.”

Na seqüência seguinte, relata-se a prisão administrativa do ten-cel. Matheus, que foi decretada pelo comandante do Policiamento Metropolitano, pela acusação de omissão. Afinal, o que o comando do 24°BPM saberia e não teria comunicado aos superiores? O que teria podido fazer e não fez esse oficial que durante todo o tempo alegava ter seguido rigorosamente os procedimentos rotineiros da corporação? Tomada isoladamente, a enunciação truncada do oficial exibe um “ato falho” sugestivo, por incidir justamente em uma frase-clichê típica do discurso militarista. É possível afirmar que o oficial então vacilava entre calar seu “dever de con[sciência]” e apregoar sua “consciência de dever cumprido”. A contradição do enunciado parece sintetizar a contradição de todo o conjunto dos discursos do ator político constituído pela corporação policial militar. Mas esse fragmento não passa de uma enunciação isolada e interpretada de modo circunstancial. Se se leva em consideração textos de outros veículos — mídia impressa (FSP) e telejornais da TV (JBa, CNT, CAl) —, podem-se explicitar melhor, nos discursos do ex-comandante do 24° BPM de Diadema, algumas constantes de organização narrativa capazes de apoiar a tarefa de delinear os padrões de aparição público-mediática do ator-polícia. Através do JBa2/3, tem-se acesso às alegações do ex-comandante (já ex- antes do depoimento na CPI) emitidas em seu ambiente de trabalho, antes de seu comparecimento à ALSP: JBa2(3) (Repórter/off): “O coronel conta que um parente viu no Diário Oficial e ligou dando a notícia. Estava afastado do comando desse Batalhão em Diadema, onde trabalhavam os pê-emes violentos. Às três e

143 meia da tarde, ele recebe o comunicado oficial. O chefe do Estado Maior da pê-eme, o coronel Carlos Alberto telefona... e diz que ele tem que se apresentar amanhã... no Quartel General da pê-eme.” (Ten-cel. Matheus/sinc -bg):”Nós dois tamos afastados.” (Major P.A.Gagliardo/sinc -bg): “Já ‘tamos?” (Repórter/off): “O subcomandante do Batalhão, Major Gagliardo, deverá acompanhar o coronel Matheus amanhã. O coronel lamenta... que os crimes dos pê-emes na Favela Naval... atrapalharam quase um ano de trabalho.” (Ten.-cel. Matheus/sinc): “Estragou tudo... um trabalho de um ano... tentando abaixar a criminalidade, criando novos policiamentos, novos setores... novos planos... o Prefeito nos dando... meios p?? em trânsito??, isso foi por água abaixo.”

As imagens mostram o tenente-coronel entrando no Batalhão e conversando amigavelmente com o repórter: a reportagem não parecia forçar as declarações do ex-comandante e não se impunha naquele lugar. A edição do telejornal mostrou planos do tenente-coronel Matheus recebendo vários telefonemas em sua sala. O conteúdo das conversações é relatado no off do repórter: o oficial recebeu a notícia do afastamento e a ordem para apresentar-se no dia seguinte ao Comando da PM. O tenente-coronel Matheus aparece falando com o subcomandante do batalhão, major Gagliardo, e para o repórter. Apesar de relativamente confortáveis (paletós das fardas desabotoados), transparecia a apreensão de ambos os oficiais: Matheus fazia esforço em parecer “natural”, Gagliardo olhava desconfiado para a câmera. Forçando um sorriso, o tenente-coronel relata os acontecimentos, desde os crimes até a sua destituição, tomando-os enquanto acidentes externos (“estragou tudo”) que provocaram a ruptura de um processo iniciado em um período bem anterior (“um trabalho de um ano... foi por água abaixo.”). Na seqüência seguinte (JBa2/4), a reportagem questionava as decisões do comando do 24°BPM, relatando os comprometedores antecedentes criminais dos policiais incriminados na FFN. A resposta do ex-comandante é relatada pelo repórter, dublando a sua imagem: JBa2/5 (Off repórter): “O coronel Matheus diz que esses casos são comuns na pê-eme, e não determinam o afastamento dos policiais... mas pede desculpas à população de Diadema, que nos últimos tempos... chegou até a comprar viaturas... para os pê-emes fazerem seu serviço.”

Em vários pontos, esse enunciado, atribuído ao ex-comandante do 24°BPM, assemelha-se à declaração do governador paulista. Procura diluir os eventuais estranhamentos (policiais com tantos maus antecedentes seriam “casos comuns”), relatando-os apenas segundo as categorias

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do seu processamento administrativo normal, que jamais põe em questão. Nega sua responsabilidade pessoal nas ocorrências e “pede desculpas” devido a sua responsabilidade institucional no “caso”. Permanece motivo de espanto, como afirma o texto do repórter, a tolerância da PM em manter no policiamento ostensivo indivíduos cuja “folha corrida” os tornariam suspeitos em qualquer outra organização. A despeito disso, tal histórico criminal não parece de forma alguma ter obstado a participação de alguns desses policiais em serviços de segurança privada, para uma empresa de propriedade do mesmo tenente-coronel Pedro Pereira Matheus, como veio a público no dia seguinte: JBa3/10 (Âncora/sinc): “O comando da polícia militar confirma: ... o tenente-coronel Pedro Matheus, que até ontem era o comandante do vigésimo quarto Batalhão, é dono de uma empresa de segurança... em Diadema... E quem trabalhava nesta empresa? Os dez policiais militares que praticaram atos de violência... na Favela Naval.”

Nesse caso, seria plausível considerar que o comandante do batalhão teria tido interesse particular em deixar de punir seus comandados e funcionários, e principalmente de evitar que sua atividade “extra”, ilegal, viesse a público. A responsabilidade pela virtual impunidade dos policiais incriminados seria individualizada e imputada ao comandante do 24°BPM de Diadema. No entanto, é difícil acreditar que ele tenha sido o único oficial da polícia militar a se envolver nesse ramo, ou que apenas os onze policiais incriminados fizessem esse “bico”. É possível que o envolvimento com atividades de segurança privada de policiais militares de diversos escalões constitua um fator importante para a manutenção do silêncio e da obscuridade interna corporis, já que implica na existência de mais um compromisso não público entre os policiais, além do seu tradicional esprit de corps.199 Através do texto da Folha de S. Paulo, que reproduz em maior extensão os diálogos da inquirição de Matheus na CPI do Crime Organizado da ALSP, foi revelado, em primeiro lugar, que os inquéritos foram iniciados pela denúncia das vítimas (Antônio Carlos Dias e Jefferson Caputi) feita na manhã seguinte às ocorrências; em segundo lugar (e contrariando o implicado no texto do JNa1), não foi a FFN a evidência suficiente para a detenção dos 199

No dia 8 de abril, na CPI-ALSP, a deputada (e ex-delegada de polícia) Rosemary Corrêa, vice-presidente da CPI, questionou ao secretário de segurança pública paulista sobre a institucionalização do emprego extra (o “bico”), e afirmou que hoje o trabalho de PM se tornou “um bico para os funcionários das empresas de segurança”. O secretário concordou com a deputada, mas se limitou a falar que o fato requer um estudo mais aprofundado.(ref. SCHIVARTCHE. Secretário admite falhas em oficiais da PM. Folha de S.Paulo, 9 abr. 1997, p. 3-5. Editoria: Cotidiano.)

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policiais acusados, mas apenas o testemunho de um dos policiais, o cabo Ricardo Buzeto. Quer dizer, fica claro e manifesto que, no âmbito do processamento “normal” da denúncia pela corporação policial, nem o testemunho quase que imediato e a identificação dos agressores pelas vítimas, nem seus exames de corpo de delito, nem o comunicado oficial de um hospital (onde se registrou o falecimento de Mário Josino) e nem mesmo a videogravação que mostrava detalhadamente as circunstâncias das ocorrências, nenhum desses elementos (nem o seu conjunto) foi considerado capaz de estabelecer mais do que uma suposição da ocorrência de crimes. O único elemento de comprovação da autoria dos crimes, forte o suficiente para determinar a prisão administrativa dos acusados, foi o depoimento (confissão) de um policial militar — que estava comprometido com os crimes, no mínimo, por ter se omitido em evitar a ação brutal dos colegas de farda.200 Como será visto adiante, o fato mesmo de a autoria da denúncia partir do cabo pode ser considerado como uma manobra para camuflar a determinação oficial do bloqueio dos dias 4-7 de março. Depondo na CPI, o comandante do 24o BPM dizia ter agido “escudado na lei”, para se defender, assim, da acusação de omissão. Alegava ter seguido os procedimentos jurídicos normais (do IPM) e as decisões administrativas (da Corregedoria da PMSP). A justificativa da “inexistência de provas”, atribuída pelo oficial à não confirmação da denúncia videográfica por testemunhos de moradores da Favela Naval e pelos resultados negativos nos exames de balística, é sustentada pelo ex-comandante com muita dificuldade diante dos deputados. Diante dos repórteres, ela se mostra completamente inconsistente: CNT2/12 (Repórter/off): “O comandante do batalhão de Diadema disse que não afastou os policiais, mas abriu o inquérito, e encaminhou o caso à corregedoria; ele admite que só decidiu decretar a prisão adiministrativa... no dia 26, depois de receber a fita” (Ex-comandante/sinc): “...Não tinha provas de envolvimento deles, porque as armas do.., as armas que foram apreendidas no dia, num... num... não deu balística, as testemunhas não viram atirar... não tinha testemunha.” 200

O ex-comandante do 24º Batalhão da PM de Diadema afirmou, em 2 de abril, na CPI-ALSP, que não poderia prender administrativamente os PMs acusados apenas com as imagens da FFN. Tendo assistido à fita em companhia do promotor de Diadema, em 25 de março, escolheu o cabo Buzeto, “que aparecia na fita, mas aparentava não estar tão envolvido no caso”, para colocar no papel o que havia ocorrido na blitz. O excomandante disse que se a menos que o cabo fizesse esse relatório, não se poderia prender administrativamente os PMs suspeitos (“Juridicamente não poderia ter tomado essa atitude. Estava me escudando na lei. Podemos prender alguém por suposição?”). Afirmou que tê-lo feito antes “porque o IPM e a Corregedoria da PM não tinha provas contra eles, principalmente do caso de homicídio”, transferindo a responsabilidade da decretação de prisões administrativas de afastamentos antes do dia 26 ao presidente do IPM que apurava a morte de Mário Josino. (ref. LOZANO. Imagens eram “suposição”. Folha de S.Paulo, 3 abr. 1997, p. 3-4. Editoria: Cotidiano.)

146 (Repórter/off): “Ao assistir a gravação do bloqueio, o comandante se mostrou desinformado, ao ter dificuldades de identificar os policiais envolvidos.” (Ex-comandante/sinc): “Me parece que o soldado Barreto 201” (Ex-comandante/sinc): “Eu vi umas cinqüenta vezes.” (Repórter/sinc): “E por que o senhor teve dificuldade de identificar aqui na Assembléia?” (Ex-comandante/sinc): “Não é... problema de... de... de... de... de vídeo, de passagem de tela.” (Repórter/sinc): “E o senhor não sabia até hoje quem foi que fez a extorsão?” (Ex-comandante/sinc): “ Extorsão é apurada em inquérito!” [Matheus se descontrola, fazendo um gesto brusco]

Tanto na situação da inquirição na CPI, quanto em seguida, durante o “cerco” dos repórteres (as relações de interlocução da segunda situação bem menos assimétricas que as da primeira), o ex-comandante do 24° Batalhão de Diadema aborda tanto as ocorrências quanto seu processamento institucional em um registro de discurso abstrato. Narra-os quase unicamente segundo definições jurídicas formalizadas, de modo que a responsabilidade pelos atos administrativos seria despersonalizada e remetida aos procedimentos e agências internos da PMSP. Avaliações de cunho político são desautorizadas, pois nessa perspectiva apenas os inquéritos teriam autoridade para avaliar os crimes. Quaisquer generalizações são evitadas acerca do comportamento dos acusados ou sobre o local dos crimes: CAl2(5) (Ex-comandante do 24°BPM/sinc): “Conhecimento das fitas, tomei conhecimento no dia vinte e cinco como falei no.. na própria CPI.” (Reporter1/sinc -fora de quadro): “(Outros?) deputados acusaram o senhor de ter sido omisso em relação a esse caso. O senhor concorda com isso ou não?” (Ex-comandante): “[??] acusa o ônus da prova, o ônus da prova.” (Repórter): “Por que que o senhor não prendeu...” (Ex-comandante, respondendo ao repórter2): “Eu não caí, eu estou em pé. Eu fui transferido. Fui transferido porque... transferido... normal, não sei...” (Repórter1): “O senhor não sabe por que que foi transferido?” (Ex-comandante): “Não sei!” (Repórter1): “Por que que o senhor não mandou prender como os outros nove, o cabo Buzato?” (Ex-comandante): “O cabo está com prisão temporária decretada.” (Repórter1): “Mas ele tá... desaparecido, não tá?” 201

Intervenção do Dep. Afanázio Jazadji, presidente da CPI do Crime Organizado da ALSP.

147 (Ex-comandante): “[???] Eu só considero ele desaparecido após as dezenove horas.” (Repórter2): “Você sabe onde ele está?” (Ex-comandante): “Após as dezenove horas eu considero ele desaparecido. Se você for me procurar às dezenove horas eu falo: ‘tá desaparecido’.” (Repórter2): “Agora o senhor não tá mais na área, o senhor foi transferido. O senhor vai poder eh... coordenar a prisão desse cabo?” (Ex-comandante): [olha para os lados] “...Todo e qualquer... prisão decretada, cabe a você prender, a mim, a todos nós...” (Repórter2): “Mas nós não somos policiais.” (Ex-comandante): “Não, você é um cidadão pode sim” [acena com a cabeça] “Se estiver com a prisão decretada e você achou, você tá preso p’quê tá com a prisão decretada [???], qualquer cidadão.” (Repórter1): “Coronel, por fa... Coronel, por favor, a sua opinião. Se essa fita não viesse à tona, como é que seria o andamento de toda essa investigação?” (Ex-comandante): “Seria difícil, né?” (Repórter1): “Por quê?” (Ex-comandante): “Porque falta proóvas, falta as pessoas que geralmente ninguém viu atiraar... sabe? Nós tivemos na favela perguntando, ninguém ouviu o tiiro, sabe? Fica uma situação delicaada.” (Repórter2): “Coronel, tem havido outros casos semelhantes, ou não?” (Ex-comandante — levanta os ombros, franze a testa, repuxa os lábios): “Não vou afirmar pra você.” [sorri, franze os olhos] (Repórter3): “Por que houve tanta demora para o Comando da Pê-eme saber de tudo?” (Ex-comandante): “Porque o cinegrafista demorou a [??] ele já tinha [??], num seíi!” [levanta os ombros]

O oficial, mobilizando os recursos do vocabulário administrativo-judiciário nas suas declarações, consegue que a parte mais significativa das circunstâncias concretas seja simplesmente escoimada, circunstâncias que, provavelmente, são de amplo conhecimento dos oficiais da polícia militar (por exemplo, o uso sistemático de armas particulares no policiamento ostensivo).202 É impossível não se considerar que era óbvio para o comando do Batalhão de Diadema que nenhum morador testemunharia os crimes policiais, temendo 202

O uso sistemático de armas não pertencentes à corporação, clandestinas, no trabalho de policiamento ostensivo, é mencionado por vários atores: pelos próprios policiais acusados, por parlamentares da ALSP, pelo Ministério Público e entidades de defesa dos Direitos Humanos. (Cf. EDITORIAL. Selva Policial. Folha de S.Paulo, 2 abr. 1997, p. 1-2. Editoria: Opinião; CPI tem Comandante do Massacre dos 111. Folha de S.Paulo, 4 abr. 1997, p. 3-4. Editoria: Cotidiano; TAGLIAFERRI. Controle é passível de falhas. Folha de S.Paulo, 6 abr. 1997, p. 3-4. Editoria: Cotidiano; FSP12: Frases. Folha de S.Paulo, 12 abr. 1997, p. 3-1. Editoria: Cotidiano; FELTRIN. Policiais foram ameaçados. Folha de S.Paulo, 12 abr. 1997, p. 3-4. Editoria: Cotidiano; GODOY. Para ministério, PM sabia de arma. Folha de S.Paulo, 12 abr. 1997, p. 3-5. Editoria: Cotidiano; Deputado vê cultura viciada. 12 abr. 1997, p. 3-5. Editoria: Cotidiano.)

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represálias, ou que o exame de balística com as armas oficiais jamais geraria evidências do crime, uma vez que os tiros mortais foram disparados de uma pistola “particular”, diferente daquela entregue por Gambra para o exame. Observe-se, portanto, que há muitas características em comum entre o discurso narrativo do comandante do 24°BPM e o dos pronunciamentos do comandante geral da PMSP. Em ambos, os acontecimentos são relatados de modo extremamente formalista, quase que exclusivamente segundo

figuras

jurídicas

abstratas

e

fórmulas

administrativas.

Seu

discurso

é

permanentemente mediado pela linguagem judiciária e administrativa. Os enunciadores agenciam diversos preceitos jurídicos do sistema judiciário brasileiro, de modo claramente defensivo: a não culpabilidade a priori dos acusados (quem acusa tem o ônus da prova); a busca de evidências da “verdade real” (demonstrável cabalmente apenas pela confissão dos acusados) para a decretação de prisões ou afastamentos; a presunção de verdade a priori das declarações de policiais; o ônus da prova para o acusador. Os atos são relatados como se fossem motivados e justificados unicamente pelos critérios dos procedimentos rotineiros da corporação, o que despersonaliza a responsabilidade sobre eles, já que deixariam de depender de decisões de autores individuais. Além disso, todos os elementos não mediatizáveis pelas abstrações jurídicas são simplesmente desconsiderados — dentre os quais as vídeo-imagens, cuja indicialidade é atribuída de maneira quase apriorística no contexto da produção telejornalística. Já se observou que as narrativas do ator-polícia se caracterizavam pela predominância do discurso singulativo e do registro abstrato, e que a percepção dos casos de brutalidade policial como um conjunto parece lhes escapar completamente. A partir das declarações do ex-comandante do 24o Batalhão de Diadema, pode-se acrescentar outro aspecto, ligado à heteronomia que, defensivamente, os agentes individuais se atribuem: as proposições não-oficiais são demarcadas, dentro dos enunciados dos policiais, com extremo cuidado, de modo que um discurso proveniente de um enunciador exterior à corporação não possa ser imediatamente assimilado como fato (mesmo que apoiado por evidências materiais). Esse procedimento dificulta ao máximo a intervenção de narrativas externas ao discurso institucional: as enunciações dos membros da sociedade civil (denúncias de vítimas ou videodenúncias) são sempre consideradas como suposições, de veracidade

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duvidosa; mas aquelas oriundas de policiais são assumidas aprioristicamente como sendo verdadeiras pelos enunciadores da corporação. O processamento “normal” corporativo não pôde evitar que as mentiras dos policiais incriminados fossem aceitas e validadas pelas investigações iniciais das ocorrências da FFN. Esse fato fica explícito quando se associam as declarações do ex-comandante do 24°BPM aos enunciados e aos procedimentos de enunciação daqueles dois policiais inicialmente excluídos das medidas administrativas e judiciárias, mas cuja presença na “cena do crime” foi registrada na FFN: o cabo Buzeto e o aspirante a tenente Góes Jr. Buzeto aparece no JNa2 com o rosto escondido, entrevistado “com exclusividade” por um repórter. Cinco dias depois o cabo se entregaria, também sob a cobertura exclusiva do mesmo telejornal (JNa7/6). A análise da entrevista do cabo Buzeto para o JNa evidencia um traço comum a praticamente todos os enunciadores pertinentes ao ator-polícia: JNa2/24 (Repórter/sinc): “Qual foi a participação sua... nesta operação?” (Buzeto/sinc): “Operação... eu só fiquei observando lá. Não bati em ninguém, não atirei em ninguém.” (Repórter): “Quem que comandava... aquele grupo?” (Buzeto): “No momento que houve... os disparos... eu estava... comandando.” (Repórter): “Mas se você... não participou de nada, não tocou na arma, não agrediu ninguém, porque que não impediu que os policiais agissem daquela maneira?” (Buzeto): “Porque eu fiquei... tendo em vista que eu... nunca... trabalhei com aquele... com aquele grupo... [Sendo que normalmente?] nunca trabalhei com aquele grupo... não sabia o método de trabalho deles... e fiquei receoso... fiquei com receio de tomar alguma atitude no momento”.

Primeiro, o cabo procura eximir-se da responsabilidade pessoal nos crimes e, em seguida, assume uma responsabilidade formal sobre a “operação”, enquanto seu comandante interino. Note-se que ele evita comprometer os níveis hierárquicos superiores da corporação, mas não faz esforço algum para propor uma narrativa alternativa àquela que incriminava seus colegas de farda ativamente envolvidos nas brutalidades. Como será discutido na próxima Seção, o gesto de acusar, julgar sumariamente e punir os inferiores hierárquicos aparece em diversos pontos do discurso do ator-polícia. Buzeto insere-se na sua própria narrativa mediante uma confusão entre sua identidade pessoal e sua função institucional, de maneira a usar sua efetiva não culpabilidade pessoal sobre as

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agressões para se inocentar individualmente e obliterar a sua responsabilidade operacional sobre os atos de seus comandados. Enquanto participante das ocorrências registradas na FFN, o cabo coloca-se em uma posição de inatividade que o isentaria de culpa sobre as agressões (“...eu só fiquei observando. Não bati em ninguém, não atirei...”). Pode-se dizer que Buzeto, relatando acontecimentos que presenciou mas dos quais não teria espontaneamente tomado parte, busca situar-se na posição de mera testemunha das ocorrências (narrador homodiegético). A opção em aparecer no telejornal de modo idêntico ao de várias das testemunhas (rosto oculto, imagens gravadas em lugar não-identificado) sugere uma tentativa retórica para sustentar a pretensa opção pessoal em ter “apenas” observado as ocorrências. Se esse lugar de testemunha não participante auxilia o policial a ostentar uma pretensa responsabilidade como denunciador, como forma de minimizar sua responsabilidade (operacional) sobre as ações dos comandados, ela o compromete pelas omissões em evitar as agressões, socorrer as vítimas e prender em flagrante os agressores. Nos enunciados do cabo, a identidade funcional é assumida seletivamente, somente quando ele passa a ocupar o lugar de denunciador, formal e midiático. Tanto no contexto do IPM quanto no do JNa, o cabo e os oficiais investigadores (ou os repórteres) permitiam que o enunciador se colocasse em um lugar de narrador distanciado, testemunhal, das ocorrências. O pretenso cumprimento da obrigação formal de testemunhar contra os colegas e apoiar a evidência da FFN no IPM não é problematizado inicialmente pelo JNa. Como já se observou, o telejornal prefere explicações de cunho moral e pessoal (JGl0/7). Independentemente disso, o telejornal não deixa de pôr em dúvida a idoneidade desse inquérito e denuncia a ausência do oficial em comando durante a “batida”, o aspirante a tenente Góes Jr. O telejornal, retomando o tema da inversão da hierarquia, classifica a participação do oficial no comando na “operação” como a de mero “coadjuvante” (JNa2/19). Um repórter, na passagem seguinte (JNa2/20), identifica-o de modo mais completo e esclarece o significado da sua presença na “cena do crime”: sua participação confirmaria a aquiescência do Comando do Batalhão na realização da “batida”. O caráter oficial desta seria confirmado por um “coronel do comando da pê-eme” não identificado (segundo a locução do apresentador -JNa2/21).

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O texto do JBa3 corrobora as informações do JNa2, reforçando a identificação de Góes Jr. como chefe da operação e também interpretando a presença deste como a demonstração do comprometimento dos “escalões superiores” do batalhão (JBa3/2). Esse telejornal atribuiu, contudo, a informação a dois oficiais do 24°BPM, individualmente identificados (capitão Ícaro e tenente Wlamir). Esses oficiais “admitiram” a presença do aspirante para os membros da CPI, que foram ao (ainda sitiado por uma multidão) 24° BPM para levantar informações (JBa3/3). O telejornal assim o relata: JBa3/4 (Repórter/off): “Na sala de reuniões, os deputados estaduais da CPI do crime organizado recebem informações. O capitão Ícaro, responsável por um dos inquéritos militares... e o tenente Wlamir, que investiga o caso, revelam:... o bloqueio na Favela Naval era uma represália aos traficantes... que não estavam pagando... a propina que os pê-emes queriam. O objetivo então... seria atrapalhar os negócios... dos que vendiam drogas.”

A atribuída ação dos oficiais envolvidos na apuração das denúncias é a “revelação” do objetivo da blitz: extorsão de traficantes. Como será visto, essa narrativa foi rapidamente apropriada como fundamento para uma contranarrativa destematizadora, no discurso corporativista da PMSP. Na seqüência seguinte (JBa3/5), sobre as imagens da FFN onde aparece, o off diz ter sido “revelada” a participação do aspirante a tenente Góes Jr.; é relatada também a justificativa de sua ausência durante a maior parte do tempo: “A explicação do aspirante aos que investigam o caso:... ele teria saído em perseguição a um carro... que furou a barreira dos policiais.” Indo além dos limites dos dados fornecidos pelo JNa, tanto o deputado Elói Pietá, relator da CPI-ALSP (do crime organizado), quanto a reportagem do JBa conectaram a autoria irregular do relatório do cabo Buzeto e a ausência do oficial de comando dos inquéritos para levantarem dúvidas a respeito de possíveis manobras do comando do 24°BPM para acobertar caráter oficial da blitz: JBa3/7 (Repórter/off): “Ninguém hoje aqui no Batalhão de Diadema sabia explicar por que o relatório da ocorrência... não foi pedido ao aspirante Góes, que chefiava a operação... e sim ao cabo Buzeto, que teve sua prisão decretada, mas continua foragido.”

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Permanecia ainda obscuro o motivo de ter sido Buzeto quem escreveu o relatório da blitz, e não um policial de maior patente. Também não se explicava, de modo satisfatório, o motivo pelo qual o comandante do batalhão teria relaxado a prisão do cabo e por que o aspirante a tenente não havia sido incluído desde o início nos inquéritos (iniciados em 7 de março e retomados em 25 de março), apesar de aparecer na FFN. Segundo o cinegrafista que gravou a FFN, o aspirante teria presenciado parte dos crimes de seus subordinados (JBa5/2-3). Significativamente, somente depois que se questionou esse “lapso” (dos IPMs em não incluir o oficial em comando) é que se decretou a prisão de Góes Jr. (JNa4/2). Declarações dos moradores, colhidas por deputados da CPI do Crime Organizado, indicaram que as investidas daquele grupo de policiais militares na Favela Naval eram freqüentes, mas apenas eventualmente oficiais. Tendo sido confirmada a participação de um oficial PM, era atestada a concordância de escalões mais altos do batalhão com “batidas” tais como aquela registrada na FFN. Depois de entrevistado “informalmente” pelo promotor José Carlos Blat e pelo deputado Elói Pietá, o aspirante a tenente pareceu ter-se incriminado definitivamente, e não somente a si: também “revelou problemas graves na estrutura da pê-eme” (JNa4/3). Pietá relata para a reportagem as declarações do aspirante, que confirma o caráter oficial da “blitz” (JNa4/4). Em apenas uma oportunidade Góes Jr. aparece nos telejornais (JNa4/5 e JBa4/6), tentando se defender: JBa4/6 (Repórter/off): “O aspirante Góes diz que foi vítima das circunstâncias e que não tinha nenhuma experiência em operações semelhantes.” (off do apresentador sobre rosto de Góes) (Aspirante a tenente/sinc): “[Com certeza,] tinha apenas quatro anos de polícia... polícia militar e esses quatro anos foram dentro de... de... Como eu disse, são quatro anos de treinamento e dentro de... de... de... de... quartel. Eu não tenho experiência assim... muito de rua, não tenho experiência.”

Como esse enunciador, que é apertado entre as câmeras e microfones, o enunciado do aspirante a tenente é comprimido e fragmentado, nas edições dos telejornais, entre as enunciações do promotor de justiça de Diadema, do deputado da CPI e dos repórteres, que contradizem suas alegações. Apesar disso, não se pode deixar de observar o esforço do oficial em tentar se eximir da responsabilidade, atribuindo seus erros à falta de experiência e, talvez, à ineficiência de seu treinamento. Note-se também que ele não faz qualquer menção de

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defender os outros policiais incriminados. Tal como o cabo Buzeto, o aspirante a tenente Góes Jr. tenta se inocentar por sua inexperiência e por não ter participado ativamente dos atos criminosos, como se ambos não estivessem obrigados a ter os conhecimentos necessários ao seu trabalho ou não devessem agir para impedir os crimes dos outros policiais.203 A assunção da responsabilidade formal pelo cabo, provável manobra para omitir a participação do aspirante a tenente e para assim acobertar a responsabilidade de seus superiores, como já se observou, não justifica as suas omissões durante as ocorrências. A alegação também não explica o motivo pelo qual nenhum dos dois policiais denunciou espontaneamente os crimes que haviam presenciado, e por que foi só depois que a FFN “apareceu” que o cabo passou a “colaborar” com as investigações. A abordagem administrativo-judiciária exclusivamente corporativa, por sua forte tendência ao relato singularizante, encontra-se também diretamente conectada às operações retóricas de substituição da responsabilidade operacional pela responsabilidade testemunhal (geradora de um efeito de não culpabilidade pessoal) e de alegação de insuficiência de informação (pretensa justificativa para a omissão de agir e de buscar conhecer). Evidenciadas nos discursos do comandante “patrão”,204 do cabo “delator” e do aspirante “inexperiente”, essas manobras

configuram

uma

utilização

particularista

e

perversa

do

princípio

de

despersonalização das ações e dos agentes públicos. Há, entre os policiais, uma máxima que caracteriza a maleabilidade da linguagem judiciário-burocrática: “o papel aceita tudo”. 205 Tal usurpação, no entanto, não fica incólume diante da permeabilização dos procedimentos da corporação à monitoração pública da sociedade civil e dos poderes públicos. Isentos de críticas na sua fonte original, os enunciados iniciais do IPM eram cada vez menos passíveis de serem percebidos como fraudulentos, na medida em que eram reproduzidos entre um nível hierárquico e outro no interior da corporação. Ao mesmo tempo, por estarem cada vez menos informados das ocorrências, os enunciadores consideravam ter cada vez menos pessoalmente responsabilidades pessoais sobre as ocorrências e as eventuais fraudes dos inquéritos. Com isso, fundou-se a série de auto-imputações de responsabilidades funcionais 203

JNa4/2-4, JBa5/2, 5-6.

204

O ten.-cel. Matheus, como foi descoberto pela CPI-ALSP, era proprietário de uma empresa de segurança onde trabalhavam vários dos policiais militares incriminados na FFN. 205

Atribuído a um “velho policial do interior” pelo professor e procurador federal Rodolfo Tigre Maia. Cadernos do Terceiro Mundo, n.214, p.35c, nov. de 1999.

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parciais que sustentam inocências pessoais e institucionais a que se assiste ao longo do EFN. Seletivamente reconhecida, a responsabilidade institucional parece ter servido apenas para diluir os comprometimentos individuais com os crimes e não para obrigar cada um desses enunciadores a buscar autonomamente informações seguras sobre as ações dos subordinados, ao invés de repetir enunciados de fontes alheias.

4.4 — Os anéis pelos dedos na cadeia de comando

No discurso do ator-polícia não aparece, em nenhum pronunciamento (exceto nos dos advogados dos acusados), qualquer tentativa de inocentar os policiais incriminados na FFN. Como se pôde observar acima, nem mesmo os PMs mais diretamente envolvidos na blitz (o cabo Buzeto, o aspirante Góes Jr. ou o ex-comandante Pedro Matheus) esboçam relatos capazes de minimizar as acusações feitas aos colegas de batalhão. Assim, apresenta-se um fragmento do pronunciamento do comandante geral da PMSP, já na segunda semana do EFN, avaliando — dedo em riste — as ocorrências durante os trabalhos da CPI da PM de Diadema: JNa8/6 (Repórter/off): “Uma polícia militar ideal.. é um dos assuntos em discussão na CPI de Diadema.. que começou a funcionar hoje, na Assembléia Legislativa de São Paulo.. com o depoimento do Secretário de Segurança... e do comandante da Pê-eme.” (Comandante/sinc): “...e repuguinância de tôdos... em relação àqueles animais... que mostrados na tela pequena de nossos lares... ofenderam a honra.. e as tradições da Milícia Bandeirante.”

A tendência a tomar um conjunto de evidências como índices de apenas um caso (crime) singular, que remete a responsabilidade apenas a sujeitos individuais, encontra-se freqüentemente associada à estratégia de não culpabilização pessoal via assunção de responsabilidades meramente formais e testemunhais (dissociadas das responsabilidades operacionais). O recorrente gesto de execrar e condenar publicamente os indivíduos situados em níveis hierárquicos inferiores ao do enunciador parece resultar dessa associação. Esse procedimento atravessa os enunciados pertinentes ao ator-polícia (até mesmo nas contranarrativas corporativas, vide análise abaixo -JDe4/3-4), que demonstra sua preocupação e a do governo em tentar dar respostas à demanda de “punição exemplar” dos acusados.

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As “punições exemplares”, exigidas por diversos enunciadores da mídia e da sociedade civil, encontraram eco também nas promessas do governo estadual, como se vê na entrevista em direto do governador no JBa e na reprodução de seu pronunciamento oficial, no JNa: JBa1/15 (…) (Governador/sinc): “Não dá pra gente julgar toda uma corporação por isso... mas é inaceitável o que aconteceu... E no que depender do governo do estado.. ele vai às últimas conseqüências no sentido de não permitir que a impunidade prevaleça... como aliás, não permite nenhum setor do governo.”

JNa1/16 (Governador/sinc): “... [quero declarar que] deploro... profundamente... e me desculpo com o povo de São Paulo pelo acontecido. Em segundo lugar, que as providências que cabe ao governo... essas vão ser tomadas... e tomadas por inteiro... e da maneira que a impunidade... não estimule quem quer que seja... a repetir isso.”

Observa-se uma aparente incoerência entre os enunciados do governador Mário Covas: no mesmo pronunciamento, ele defende que “todas as providências que eu mandaria tomar... estão tomadas”, mas também promete que “providências que cabe ao governo... vão ser tomadas”. Essa incoerência, mais aparente, reverbera a disparidade, mais subjacente, existente entre uma representação das ocorrências teledenunciadas em um discurso singulativo (“Não dá pra gente julgar toda uma corporação por isso...”) e uma interpretação implícita, elaborada em freqüência iterativa (“as providências... vão ser tomadas... da maneira que a impunidade não estimule quem quer que seja a repetir isso.”), que define o objetivo das punições prometidas. Como a tarefa desta pesquisa não é realizar a análise pormenorizada do discurso do “ator governo paulistano”, basta que o leitor observe algumas diferenças entre o discurso do corpo político da administração e o da corporação policial, examinado acima. Primeiro, note-se que o governador empregou uma linguagem comum, não especializada, presumivelmente visando atingir um maior número de interlocutores. Segundo, Covas cercou-se de precauções para se pronunciar, organizando a situação de gravação e adotando uma atitude francamente defensiva durante a entrevista ao vivo. Ele demonstra, em ambas situações, ter familiaridade com o funcionamento dos espaços público-mediáticos e com a típica imprevisibilidade dos processos da esfera pública política. Terceiro, a duplicidade de seu discurso, longe de trair a inabilidade do emissor para a enunciação pública, satisfaz simultaneamente os compromissos díspares do enunciador: por um lado, sua posição como governante o obrigava a defender a

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legitimidade pública da PMSP, em particular, e do governo paulista, em geral; por outro, sua posição de representante democraticamente eleito comprometia-o a incorporar em seu próprio discurso pelo menos uma parte dos discursos críticos, em circulação na sociedade, e de implementar ações convergentes com tais pontos de vista. Além da defesa das “punições exemplares” e do anúncio de medidas administrativas, o governo e a corporação policial militar procuraram produzir e difundir relatos capazes de restringir a aceitabilidade das narrativas críticas concorrentes que pudessem comprometer a PMSP enquanto instituição (JBa4/8). Nos telejornais pesquisados, a primeira manifestação dessas contranarrativas aparece no quinto dia do EFN (registrada em JBa4/9), inscrita em uma faixa afixada na rua em frente a uma associação profissional de policiais. Com os dizeres “CIDADÃO, CONTINUE ACREDITANDO NA POLÍCIA MILITAR”, este enunciado foi imediatamente colocado pela reportagem sob o ponto de vista de um transeunte. O “cidadão” (“Paulo, motorista”) avaliou-a negativamente: “é eles que precisa agir de uma forma mais decente, não é?”. Examinando o enunciado de autoria de uma associação de classe dos policiais, nota-se que esta subentendia toda a corporação como enunciador. Instituía cada um dos eventuais transeuntes, leitores reais da faixa, como seu narratário individual (“cidadão”). Em seguida, constituía, em uma continuidade, a relação anterior e presente (“continue acreditando”) do narratário, “cidadão”, com o narrador, a PM. Finalmente, solicita e/ou ordena (verbo no modo imperativo) a manutenção futura (“continue”) dessa relação (acreditar). A faixa relata uma continuidade passada e presente que se deseja tornar futura, representando o não rompimento de uma ligação entre o narrador e o narratário. Contudo, essa ligação permanece, em certa medida, indefinida, devido à abertura semântica de “acreditar”: diante das imagens da FFN, os discursos dos policiais perdem sua credibilidade, mas na polícia militar — enquanto ameaça — permanece-se acreditando. Nesse mesmo 4 de abril, realizou-se uma missa de desagravo aos policiais militares paulistas. Impedidos legalmente de realizar manifestações públicas, os policiais e seus familiares reuniram-se no espaço de uma organização profissional autônoma, a Associação dos Subtenentes e Sargentos da PMSP. Apenas parte dos presentes compareceu com o fardamento. Além da cerimônia religiosa, foram proferidos discursos por lideranças

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profissionais. Por esses elementos, percebe-se que a missa (e/ou ato de desagravo) se constitui como uma enunciação coletiva, mais dos policiais enquanto categoria profissional do que da corporação como instituição do Estado ou de policiais individuais. No JNa4, a semipública manifestação da categoria aparece de modo bastante fragmentário, em uma seqüência de menos de vinte segundos, antecedida pelo desmentido das alegações do aspirante a tenente Góes Jr (pelo promotor J.C. Blat) e sucedida pela manifestação pública dos moradores de Diadema (o telejornal omite que o ato público foi promovido pela Prefeitura Municipal desta cidade). A montagem do telejornal evidencia uma inclinação clara para desautorizar a manifestação dos policiais. Através do seu texto, o telejornal contrapõe a manifestação dos policiais à dos moradores de Diadema, opondo a não publicidade e pequeno contingente (“trezentas pessoas”206, “policiais militares e os familiares deles”) da primeira à publicidade e caráter “massivo” da segunda. Além disso, a notícia da missa de desagravo e da manifestação em Diadema antecede imediatamente a “denúncia” da pretensa contradição entre as declarações do comandante geral e as do porta-voz da PMSP (cf. Seção 4.2) Nas imagens da cerimônia, vários policiais aparecem desviando seus olhos das câmeras, demonstrando certo desconforto com a presença das equipes de reportagem. O enunciado atribuído à Associação dos Subtenentes e Sargentos — em amálgama à enunciação do telejornal (JNa4/6) — é o seguinte: (Repórter/off): “Um voto de confiança para a pê-eme. Foi o que pediram trezentas pessoas reunidas na Associação de Subtenentes e Sargentos... que considera o episódio em Diadema... um acontecimento isolado.”

Já foi observado que a representação singulativa das ocorrências da Favela Naval se apresenta como uma constante do discurso da polícia. Nesse enunciado em particular, temos a explicitação inequívoca dessa tendência (“um acontecimento isolado”) — que é imediatamente rejeitada pelos termos escolhidos pela reportagem (“o episódio em Diadema”) para reproduzir o discurso alheio. Embora o destinatário do pedido não tivesse sido explicitado, pode-se presumir que fosse a população em geral ou a opinião pública. Nesse caso, soa incoerente que tão poucos policiais se reunissem em um espaço fechado para dirigir um pedido para uma exterioridade tão ampla. 206

O número de pessoas presentes na missa, segundo a FSP (FSP5: “PM faz missa de desagravo”) seria de 800 pessoas; segundo o JDe4, teriam participado 700 — nos dois casos, mais do que o dobro do atribuído pelo JNa.

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Na verdade, nenhum dos telejornais informou sobre os impedimentos legais que sofriam os policiais, proibidos de promover manifestações públicas. Comparado ao modo imperativo do pedido da faixa, dirigido ao “cidadão”, o propósito da missa é ligeiramente diferente: a demanda de dar um voto de confiança implica um compromisso bem mais definido e mais forte207 do que aquele subentendido em continuar acreditando na PM. Comparado ao pedido da faixa, na “missa de desagravo” o enunciador já assimilava o rompimento da relação com o enunciatário e buscava, na enunciação, levá-lo, por iniciativa própria (“dar um voto de confiança”), a refazer o compromisso rompido. A solicitação é por si mesma incongruente, na medida em que não foi o enunciatário, mas o enunciador (a PMSP) quem teria rompido os laços: como já indicado pela interpretação da faixa pelo transeunte “Paulo, motorista”, é inútil pedir confiança sem se tornar confiável; o ato perlocutório (pedir) exige, de antemão, para sua efetivação, uma relação ilocutória que, no caso, havia sido severamente comprometida. A edição do JBa, como já se observou, abriu maior espaço para as emissões do ator-polícia. Esse telejornal relatou a manifestação dos policiais em uma longa matéria, que retomava seus motivos, mostrava e identificava em detalhes os diferentes participantes e resumia os pronunciamentos feitos (totalmente omitidos no JNa4). Primeiro, foram mostrados policiais em uma rua paulistana, conversando entre si e esquivando-se de serem enquadrados pela câmera: JBa4(11) (repórter/off): “Os policiais que atuam nas ruas adimitem que está difícil trabalhar”.

Em seguida, o repórter, com a missa ao fundo, narra-a como uma reação ao constrangimento, um ato de desagravo “para reverter a imagem que hoje a população tem de muitos Pê-emes”. A reportagem mostra e conta a presença de policiais publicamente respeitáveis (bombeiros e PMs feridos em tiroteios). Logo depois, o telejornal relata o discurso de um representante de classe (presidente da Associação dos Policiais Militares -APOMI), que muito enfaticamente defende a corporação e recorre a uma narrativa que reinterpreta as ocorrências, lançando

207

“Voto de confiança (expressão parlamentar), decisão das câmaras legislativas em virtude da qual fica autorizado o governo para proceder livremente sobre qualquer negócio.” (CALDAS AULETE, 1958. p. 5346.)

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suspeitas sobre as testemunhas e colocando em dúvida a idoneidade da produção da FFN: a contranarrativa da “FFN armação do tráfico”, cuja análise é apresentada na Seção seguinte. Mesmo que eventualmente minoritários ou tardios, emergem, no espaço público-mediático, discursos em que enunciadores relacionados à polícia militar afirmam a importância das denúncias mediáticas e defendem mudanças institucionais de caráter mais geral. Um exemplo desses enunciados seria o pronunciamento do tenente Celso Tanaui, presidente da Associação dos Subtenentes e Sargentos da PM, emitido durante o referido ato de desagravo. O oficial rejeitava a hipótese de que a FFN teria necessariamente resultado de uma armadilha: JDe4/5 (Ten. Tanaui/sinc): “Só se foi uma armação... muito perfeita... mas eu não acredito em armação. Foi uma realidade... nós temos que... dizer à sociedade... aquilo que aconteceu, que todo mundo viu!... Nós não podemos distorcer uma fita que está ali, que todo mundo viu. Acho que... eh... esta inteinção, desses traficantes... se é que houve... a participação desses traficantes... trouxe essa contribuição pra nóis... pra nossa reflexão... para uma avaliação da própria sociedade.”

Esse enunciado foi uma completa exceção em termos do modo pelo qual os enunciados do ator-polícia se incorporam ao contexto narrativo do EFN: foi o único no qual a corporação apareceu como beneficiária das denúncias e das críticas provenientes dos outros atores. Repare-se que, apesar do tenente ter deslocado a problematização do caso em si (atribuição de culpas individuais) para um plano mais amplo (em que o “nóis”, vagamente definido — a PMSP? os policiais?—, se engaja em uma “reflexão” associada à “avaliação da própria sociedade”), seu discurso narrativo necessita se desviar da reproblematização da interpretação inicial (a contranarrativa), para permanecer representando os efeitos das denúncias mediáticas de uma perspectiva generalizante.

4.5 — Contranarrativa: “armação dos traficantes”

No contexto estritamente telejornalístico, a primeira aparição de uma reinterpretação da FFN que a nega como “testemunho objetivo” aparece na reprodução dos discursos que se seguiram, no quinto dia do EFN, à cerimônia religiosa de desagravo em favor dos policiais militares. O primeiro enunciador a aparecer nos telejornais propondo essa contranarrativa foi o major Pagamisse, presidente da APOMI:

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JBa4/11 (Repórter/off): “No palanque, discursos inflamados em defesa da pê-eme... Mas ninguém superou o Presidente da Associação dos Policiais Militares, major Pagamisse . Apesar de condenar a ação dos pê-emes em Diadema, ele disse que os policiais caíram numa armadilha... E foi mais longe: afirmou.. que as vítimas sabiam que estavam sendo gravadas. No final, o major foi aplaudido.”

O corpulento major, presidente de uma associação profissional de PMs (APOMI), pronunciase aos berros e agitando os braços, trajando roupas civis. Através da reportagem de um telejornal local da tv a cabo paulistana, tem-se acesso à entrevista na qual Pagamisse propõe sua versão de modo mais completo. A edição de imagens desse telejornal insere um trecho da FFN ilustrando o “rapaz do Passat”, e outro — o bofetão do soldado PM—, ilustrando “o crime cometido”. JDe4/3-4 (repórter/off®sinc)”O.., senhor tá dizeindo que essa fita foi uma... armação?” (Maj. Pagamisse/sinc): “Não. O que eu disse, afirmei e continuo afirmando é que aquele rapaz do Passat... sabia que estava sendo filmado! Mas isso não diminui... a responsabilidade, a pena, o crime cometido-por-aqueles-policiais. A minha preucupação e o s’inte: quem havia o interesse em gravar aquilo, e qual era o interesse.” (Repórter): “Qual seria esse interesse?” (Maj. Pagamisse): “Na minha... na minha opinião, a rede de tóxico. Ali naquela região tem uma rede de tóxico que tinha interesse.”

Na mesma ocasião, na porta do salão da Associação dos Subtenentes e Sargentos, cercado pelas equipes de reportagem, o Presidente da APOMI responde às perguntas: JBa4/11 (Maj.Pagamisse/sinc): “Ele provocou o pê-eme, ele disse ‘—Eu vi o número da sua viatura’, q’d’zer, como se fosse um desafio: ‘—Cês não vão fazer mais nada comigo?’ ” (repórter): “Mas ele podia anotar o número da viatura !?” (Pagamisse): “[Mas claro] ninguém tá negando o direito dele!... Mas ele podia ter anotado o número da viatura e levado... pro... para o... os orgão civis tomar as providências...”

As declarações do major Pagamisse são provavelmente aquelas que melhor explicitam os aspectos mais virulentos do discurso corporativista do ator-polícia. Analisando o contexto da enunciação e a condição do enunciador, percebe-se por que esse discurso vem se manifestar

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nessa oportunidade. O major, em trajes civis, discursava para seus pares em um lugar e em um momento em que os policiais e familiares se reuniam para si e enquanto categoria profissional. Os PMs não estavam (ou não se entendiam estar) ali submetidos aos constrangimentos da condição de funcionários públicos subordinados aos poderes democráticos. Até onde se pôde observar nos telejornais aos se teve acesso, nenhum policial fardado (isto é, identificado ao estado de São Paulo) proferiu discursos públicos, com exceção do porta-voz da PMSP, do Comandante Geral e de alguns oficiais do Alto Comando. O caráter corporativo e classista daquele encontro é confirmado pelo fato de nem o comandante geral da PMSP, nem o Secretário de Segurança Pública — ambos pertencentes ao corpo político do estado — terem comparecido nem mandado representantes, apesar de terem sido formalmente convidados pela organização do evento (JDe4/5). Observe-se o conjunto dos enunciados narrativos do major Pagamisse. Mais uma vez, o relato é proposto em uma freqüência singulativa, sendo tematizadas apenas aquelas ocorrências diretamente evidenciadas pela FFN. Nada é dito sobre o processo de investigação, feito por oficiais do próprio batalhão dos policiais incriminados, sobre o histórico criminal dos acusados ou sobre o assentimento dos níveis hierárquicos mais altos da polícia. Nada de narrativas de conjunto sobre os IPMs e outros procedimentos judiciários da polícia militar. A narrativa reconhece apenas “a responsabilidade, a pena, o crime cometido-por-aquelespoliciais”, mas ainda a ocorrência é referida tão-somente aos atos individuais de sujeitos excepcionais — que deveriam sofrer uma “punição exemplar”. Nenhuma pausa digressiva interrompe a narrativa para generalizações. O enunciado do presidente da APOMI pode ser visto como uma grande pausas descritiva, na qual busca retornar à cena inicial com o intuito de introduzir dúvidas sobre as interpretações anteriores. É importante notar que essa reinterpretação do índice que desencadeou todo o EFN ocorre no momento em que o ator-midiador começava a propor problematizações amplas sobre o funcionamento das polícias militares, em âmbito nacional. A contraproblematização da interpretação mediática inova pouco em termos de discurso narrativo, apenas mudando de contexto. Emitido, então, para o espaço público-mediático, repete muitos traços dos discursos narrativos oficiais aos quais tipicamente recorrem os “matadores” da PM e seus paladinos mediáticos: incriminar suas vítimas e as testemunhas de

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seus crimes.208 À eternamente demonizada “rede do tráfico” (de existência nunca comprovada) é atribuída a organização de uma meticulosa encenação: pretensos traficantes da favela teriam contratado um cinegrafista profissional, enquanto todas as vítimas saberiam da videogravação, empenhando-se em “desafiar” os policiais com insultos. O “ponto alto do filme”, a morte de Mário J. Josino, teria sido um “imprevisto” da “produção”. Ao manifestar a narrativa hipotética da produção da FFN como um artifício (“uma armação”) em que as vítimas e testemunhas estariam agindo de caso pensado, para incriminar os (pretensamente) desavisados policiais, o major Pagamisse foi, no mínimo, cândido, ao dizer que tal narrativa não visava diminuir a responsabilidade dos acusados. Pode-se considerar o major Pagamisse audacioso ou temerário, ao propor publicamente essa contranarrativa, e é evidente que seu pronunciamento foi bastante útil para os setores mais “linha-dura” da corporação, ajudando a difundir, nos espaços mediáticos, um relato alternativo menos desvantajoso. Entretanto, as evidências disponíveis não autorizam tomar o major como o criador dessa contranarrativa. A versão da “FFN armação” apóia-se em dois elementos já incorporados ao relato do atormidiador. Primeiro: no lugar onde ocorreram os crimes policiais, atuariam traficantes de drogas (JGl0/10, JNa1/6, JBa1/3); segundo: os policiais acusados teriam feito a blitz como retaliação a esses traficantes pelo não pagamento de propinas (JBa3/4). A contranarrativa corporativista, portanto, “recicla” vários elementos e pressupostos da narrativa denunciadora inicial, proposta pelo ator-midiador (cf. Seção 5.1.3a). Tal versão (que depois serviu como parte da defesa de Otávio Lourenço Gambra — vide a Seção seguinte) já havia sido avançada (ou reproduzida) por deputados membros da CPI do Crime Organizado da ALSP, no dia 3 de abril.209 A partir de uma visita ao local dos crimes, os parlamentares afirmaram ter evidências de que a FFN teria sido produzida por traficantes de drogas. Mas tais evidências são apresentadas como informações do relato dos policiais do serviço reservado do 24ºBPM, cuja origem é, por sua vez, remetida a moradores não-identificados.

208 209

BARCELLOS, 1993.

CABRAL. Traficantes produziram vídeo, diz CPI. Folha de S. Paulo, 4 de abril de 1997. p. 3-4. Editoria: Cotidiano.

163 “Segundo o deputado Roberval Conte Lopes, os traficantes contrataram um profissional para fazer as filmagens porque estariam sendo extorquidos pelos PMs liderados pelo soldado... Rambo. Dois traficantes organizaram o ‘‘contra-ataque’’, segundo a CPI. Eles seriam conhecidos por ‘Negão’ e ‘Ratão’. Lopes afirmou que, até novembro de 96, esses traficantes pagariam propina aos policiais para venderem droga sem sofrer repressão. Desde então, os policiais teriam exigido um aumento na propina. Os traficantes não teriam concordado e teriam deixado de pagar. ‘Como represália, os policiais começaram a fazer blitz, agredir e extorquir consumidores de drogas’... ‘O objetivo era forçar os traficantes a voltar a pagar regularmente a propina.’ (...) Mas, ao invés de voltarem ao esquema de suborno, Ratão e Negão teriam decidido se vingar. (...) Eles teriam contratado um cinegrafista, que teria filmado as ações dos policiais (...) Os traficantes teriam enviado a fita ao comando do policiamento no ABC. Em seguida, a fita foi enviada à TV Globo, que a mostrou no ‘Jornal Nacional’. ‘Ao invés de a polícia prender os traficantes, os traficantes prenderam os bandidos da polícia’, afirmou Conte Lopes.”210

Sem dúvida, mencionar algumas referências pessoais dos propositores da contranarrativa da “fita-armação” contribui para que se possa compreender melhor as “qualidades” do argumento. Com exceção de Elói Pietá, que questionou a atribuída iniciativa do tráfico, todos os outros deputados são conhecidos defensores da legalização da pena de morte, e dois deles são notórios praticantes de sua aplicação “oficiosa”: o capitão reformado e ex-radialista deputado Roberval Conte Lopes foi classificado por Caco Barcelos como o primeiro ou segundo maior matador da polícia militar (entre 36 e 42 vítimas), coberto de láureas concedidas pela corporação policial-militar em função do seu “heroísmo”; o deputado Ubiratan Guimarães, ex-coronel e comandante do 1°BPM — da temida Rota —, esteve envolvido em investigações irregulares em 1982, junto com Conte Lopes, tendo chegado dez anos depois ao cargo de Comandante do Policiamento da Capital.211 Em 1992, o então cel. Guimarães tornou-se célebre por ter comandado a “operação” na Casa de Detenção do Carandiru, que culminou com a morte de 111 (ou mais) detentos. Finalmente, o deputado Jazadji, presidente da CPI do crime organizado, tornou-se uma personalidade publicamente conhecida por sua atividade como radialista, conduzindo um programa de “rádio-polícia”, em que defendia a pena de morte e taxava como “bandidos” todas as vítimas da polícia, quase sempre irradiando alegria por suas mortes.212 210

CABRAL. Traficantes produziram vídeo, diz CPI. Folha de S. Paulo, 4 de abril de 1997, p. 3-4. Editoria: Cotidiano. 211

BARCELLOS, 1993. p. 203-218.

212

BARCELLOS, 1993. p. 150.

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Parece desnecessário explicar o caráter interessado da proposição da contranarrativa da “FFN armação do tráfico”; a discussão sobre a sua intrigante aceitação por parte de diversos enunciadores da mídia e da sociedade civil será deixada para o capítulo seguinte deste texto. No momento, no entanto, cabe ponderar o seguinte: mesmo que a proposição da contranarrativa seja inócua para inocentar os policiais incriminados na FFN, ela parece ter sido capaz de manter o foco da problematização público-mediática adstrita à singularidade do “caso”. Quer dizer, ao deslocar a controvérsia para o tema de uma armadilha contra os PMs incriminados, por mais inverossímil que fosse, o relato da “FFN armação” sutilmente evitava que o debate transbordasse para uma crítica generalizada aos procedimentos “normais” da PMSP.

4.6 — Véus, paisanas, cordões de isolamento, chicanas jurídicas e o silêncio.

Nesta Seção, será examinado o conjunto dos pronunciamentos dos policiais imediatamente incriminados na FFN e de seus advogados. Antes de analisar os enunciados dos policiais diretamente incriminados, algumas observações sobre seus procedimentos durante as situações de exposição pública e público-mediática devem ser feitas. Já se assinalou que é uma constante das primeiras aparições dos policiais mais diretamente incriminados pela FFN a disposição em ocultar o rosto, evitando a exposição às câmeras das equipes de reportagem dos telejornais. Essa imagem, metonímica em relação desconforto dos enunciadores pertinentes ao ator-polícia obrigados a “atuar” no espaço público-mediático, aparece em sua forma mais típica, nos telejornais, quando se relata a chegada dos PMs acusados ao 2°DP de Diadema. A atuação dos policiais militares que faziam a segurança do DP, no tumultuado momento da sua chegada, foi, em dois telejornais (JBa2 e 19U2), considerada como um esforço deliberado para dificultar ou impedir a realização de imagens dos PMs incriminados. Sobre as trêmulas imagens feitas ao sabor da aglomeração, ouve-se a locução em off da repórter, que reclama: JBa2/9 (Repórter/off): “Na chegada à delegacia em Diadema, o filme se repetiu. Os soldados encarregados da seguran/ça fizeram o possível para dificultar a imagem dos envolvidos.”

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Nas confusas cenas, viam-se seis ou sete dos acusados correndo para dentro da delegacia, tampando o rosto com as mãos ou com as camisas. O comentário de um popular (não identificado), registrado logo após a chegada dos acusados, caracteriza a excepcionalidade da situação: 19U/4 (Popular/sinc): “Eu acho que a polícia tem que mostra a cara desses sem-vergonha, [por-]que quando é bandido, que eles pegam na rua, aí eles põem na tevê!... e força os cára a mostrar a cara. Agora, como é polícia, não mostra!” "Eu acho que a polícia tem que mostra a cara desses sem-vergonha, [por-]que quando é bandido, que eles pegam na rua, aí eles pôem na tevê!... e força os cára a mostrar a cara. Agora, como é polícia, não mostra!"

Um aspecto importante dessa aparição dos PMs incriminados aparece nos seus trajes: usam roupas civis. A opção de apresentarem-se publicamente como cidadãos comuns (ao invés de ostentar, através da farda, seu pertencimento à corporação policial-militar) sugere duas interpretações complementares: denota a tentativa dos acusados de se igualar, pelas aparências e, pretendidamente, em direitos, aos cidadãos comuns, desviando-se de suas responsabilidades adicionais de servidores públicos. Os trajes “à paisana” podem também favorecer relatos nos quais a culpabilidade pode ser individualizada e a autoria dos crimes, personalizada. A maioria dos PMs diretamente incriminados pela FFN apresentou-se em trajes civis em todas as aparições públicas, com apenas duas exceções: o cabo Buzeto e o aspirante a tenente Góes Jr. O primeiro, ao se apresentar no quartel (JNa7/6), usava uniforme, mas quando se apresentou na CPI-ALSP optou por trajes civis. O segundo apareceu de uniforme em todas as ocasiões. Repare-se que os policiais envolvidos indiretamente nas ocorrências também sempre se apresentavam fardados. Se o uso do uniforme pode ser genericamente tomado como indicativo de uma demanda de pertencimento à corporação, nesse caso específico, configura-se como uma tentativa dos acusados em ostentar sua heteronomia em relação às ações e/ou omissões criminosas, pois, como visto anteriormente (Seção 4.3), a pretensão de não culpabilidade pessoal constitui o cerne do esforço de camuflagem das responsabilidades. Se foi observado que, no conjunto dos textos pertinentes ao EFN, o ator-polícia aparece predominantemente apenas como personagem narrada no discurso de outros atores políticos, nota-se que isso ocorre de maneira ainda mais pronunciada quando se trata daqueles policiais

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primeira e mais imediatamente incriminados pela FFN. Isso porque, muito freqüentemente, são objetificados também no discurso de enunciadores ligados à PMSP. Contudo, alguns procedimentos de enunciação público-mediática dos acusados guardam semelhanças com os de emissores da polícia: mantêm o silêncio público, reproblematizam a denúncia mediática inicial, através de contranarrativas. A defesa individual dos acusados, no entanto, também os levou a proferir narrativas em que aparecem avaliações sumarizantes e discursos iterativos, inexistentes nas narrativas dos demais emissores do ator-polícia: alguns dos acusados, para se defenderem da culpabilidade individual, tentaram justificar seus atos fazendo críticas generalizantes às suas más condições de trabalho e às inadequadas normas administrativas da PMSP. A não resposta silenciosa refere-se (mais uma vez) à aversão dos acusados em participar das interações discursivas em contextos públicos. Essa disposição se manifesta nas evasivas adotadas durante as situações de gravação (“confrontos” com as equipes de reportagem), no silêncio em juízo (sustentado por alegados abalos psicológicos) e durante a “acareação com a FFN”, promovida pela CPI-ALSP. Nesses dois últimos contextos, pelo menos, os silêncios ou resultaram da orientação dos advogados, ou foram mantidos pela intermediação de pronunciamentos destes. A primeira aparição de um defensor legal dos PMs incriminados ocorreu no terceiro dia do EFN, durante o depoimento dos acusados no 2°DP de Diadema: JBa2(10): (Repórter/off): “O advogado dos pê-emes Otávio Gambra, o Rambo.. e Paulo Rogério Barreto.. disse, na saída, que seus clientes alegam não ter cometido crime algum.” (Gamelier Corrêia/sinc): “...Eles estão temerosos em razão da presença da população.. eles estavam com medo, chegaram chorando, né, preocupado com eles...” (Repórter/sinc): “Eles estão arrependidos pelo que fizeram?” (Corrêia/sinc): “Eles não disseram que estão arrependidos porque alegam não terem praticado nenhum crime.”

O primeiro contato dos acusados com membros da CPI-ALSP deu-se durante a visita de membros dessa Comissão ao presídio onde os PMs cumpriam prisão temporária. Os deputados, depois de conversarem “informalmente” com os acusados, relataram, com ironia, para os repórteres que esperavam no pátio do presídio, as declarações dos policiais presos:

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JBa5/5 (Apresentador/sinc): “Os pê-emes envolvidos nas agressões do beco da vergonha apresentam uma nova versão para o episódio. O soldado Rambo... nega o assassinato do mecânico Mário Josino. Eles foram ouvidos... pelos deputados da CPI que investiga o caso.”

JBa5(6) (Apresentador/off): “Os deputados que integram a CPI da pê-eme de Diadema estiveram hoje, no presídio Romão Gomes, onde estão presos os onze policiais militares envolvidos em tortura, extorsão... e morte na Favela Naval de Diadema. Eles ouviram uma nova versão sobre o episódio do beco da vergonha. Os pê-emes disseram que o ponto de tráfico na favela era controlado pela polícia civil.” (Dep. Jazadji/sinc): “Um deles chegou inclusive a dizer que ouviu dizer que poderia ser de policiais civis do Depatre. Quando estivemos lá, ouvimos também que poderia ser de investigadores de Santo André. Enfim, isso tudo é chute, chute, chute...” (Dep. Pietá/sinc): “O conhecimento de que policiais civis... seriam donos dessa boca de f... de tráfico... é anterior aos fatos.”

JBa5(7) (Apresentador/off): “Mas a maior revelação ficou por conta do soldado Rambo. Segundo os deputados da CPI, ele negou ser o autor dos disparos que mataram o mecânico Mário Josino.” (Dep. Jazadji/sinc): “Ele sustenta que não matou. ‘— E por quê?’ Porque ele disse... que a arma dele, nove milímetros... estava carregada... com cartuchos de festim!”

O JNa5 traz basicamente as mesmas informações, só que emitidas através da passagem de um repórter. Desta forma, a enunciação dos deputados, que reproduziam as declarações dos acusados, foi assimilada como informação pelo telejornal, procedimento coerente com o padrão narrativo desse midiador. JNa5(6) (Repórter/off): “Hoje, três deputados da CPI do Crime Organizado... da Assembléia Legislativa de São Paulo... conversaram informalmente com eles.” (Repórter/sinc): “O soldado Otávio Lourenço Gambra, um dos principais envolvidos no massacre de Diadema... contou aos deputados... que atirou no Gol... onde estava o mecânico Mário Josino. Mas o pê-eme disse que não matou Josino.. porque naquela noite... estava usando uma pistola automática... com balas de festim. Os deputados acharam ridícula... a versão do soldado.” (Repórter/off): “Os pê-emes disseram que passaram a investigar a favela... depois de terem descoberto... que pontos de venda de droga... eram controlados por policiais civis. Os pê-emes afirmaram aos deputados... que foram esses policiais... que mandaram filmar a ação deles.”

Trata-se da primeira vez em que esses policiais vêm publicamente narrar os acontecimentos denunciados pela divulgação da FFN. Nessas circunstâncias, seus enunciados foram duplamente mediados, primeiro pelas declarações dos deputados da CPI, depois pelo discurso

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dos telejornais. A despeito das variações de mimese das reproduções e da incorporação de duas camadas de avaliações críticas nas declarações informais dos acusados, podem ser examinados nelas traços relevantes para esta pesquisa. A freqüência singulativa do relato é recorrente. Os traços mais distintivos da narrativa proposta pelos acusados parece ser o retorno ao momento das ocorrências, na reproblematização das condições de produção da FFN (convergente com a contranarrativa da “FFN armação do tráfico”) e na tentativa do principal acusado de negar a conexão causal entre seus disparos e a morte de Mário Josino. Essa alegação, apesar de ter sido prontamente rejeitada pelos narradores parlamentares e mediáticos, demonstra a única reorganização do material narrativo passível de sustentar a recusa do acusado em assumir a autoria do crime. Note-se que esse “recurso” incidiu no limite da capacidade veredictora das vídeo-imagens, levando ao absurdo a problematização da heterogeneidade entre o “testemunho objetivo” provido por essas imagens e o testemunho pessoal (subjetivo). Negar a veracidade das vídeo-imagens do disparo ou os testemunhos e documentos sobre a morte da vítima seria juridicamente inaceitável: todos são signos cuja capacidade veredictora, no caso, é irrefutável. A indicialidade das primeiras, depois de corroborada pelo juízo perceptivo quase-direto (do cabo Buzeto), é tão convincente que até mesmo o acusado é obrigado a considerá-las tão válidas quanto os testemunhos diretos (das outras vítimas) ou os documentos oficiais (o relatório do hospital de Diadema). Em tais circunstâncias, ao acusado resta apenas rejeitar a existência da conexão causal entre o disparo (videografado) e o assassínio (testemunhado). Essa alegação é juridicamente aceitável (apesar de politicamente “ridícula”) pela diferença de “natureza” entre esses dois índices, cujos processos de significação são descontínuos: nem a morte de Mário Josino foi efetivamente videografada, nem a autoria do disparo pode ser determinada (apenas) pelas vítimas. A pretensa determinação da “rede de tóxico” na produção da FFN identifica como “produtores executivos” policiais civis. Essa narrativa reduz ainda mais a “transparência” inicial do relato mediático denunciador, contestando o caráter desinteressado da gravação (por um cinegrafista amador anônimo) e negando sua possível legitimação pelo interesse da comunidade de moradores, que há meses sofriam agressões de policiais (vide Seção 5.1.3a). A polícia civil, instituição do sistema de justiça criminal com longo histórico de conflitos jurisdicionais com a PM, tornou-se um bode expiatório útil e adequado: acusada de agir com

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violência por moradores da Favela Naval (JNa1/6), estava também submetida ao descrédito. A suspeita levantada por “Rambo” permanece vaga e não comprovada, mas mostra a permanência da rivalidade entre as duas polícias do sistema de justiça criminal brasileiro.213 Uma “matéria” exibida em uma reportagem da terça-feira seguinte (JNa8/5) relata um outro caso de irregularidades na PMSP, atribuídas pelo JNa à “falta de comando”: policiais teriam chamado prostitutas para uma festa no 26° Batalhão da PM, em Franco da Rocha (Mairiporã, SP). Novas imagens são aduzidas como evidências (fotografias tiradas pelas próprias “garotas”), apoiando as declarações das prostitutas no Inquérito Policial-Militar. Não se teve acesso a pronunciamentos associados a este “caso”, oriundos de qualquer setor da PMSP; é somente reproduzida uma sentença do “advogado dos PMs”, que também defende alguns dos policiais incriminados na FFN: JNa8/6 (Evandro Capano/sinc): “O que (eu queria deixar?) bém claro.. é que não é o..o padrão.. da polícia militar.”

Deve-se considerar que a edição do telejornal, na reprodução da declaração de Capano, deixa ambíguo o sujeito da oração, em uma “reprodução polifônica”. Nesse caso, o discurso do advogado foi fragmentariamente reproduzido para melhor ser negado. Apesar de rearticulado pela edição do JNa, segundo uma freqüência iterativa, o conteúdo proposicional da declaração do advogado definia uma narração singulativa dos casos, individualizados e explicitamente dissociados de possíveis causas ou regras comuns ao conjunto da PMSP. Encontra-se um elemento já mencionado nas análises anteriores sobre a indumentária dos acusados: parece ter sido mais interessante para a corporação e para os acusados que fossem identificados como indivíduos e que seus delitos fossem singularizados como “exceções” ao “padrão normal e rotineiro”. No decorrer do EFN, a antipatia entre as duas polícias ficou bem explícita: “A página da Polícia Civil paulista na Internet traz foto da tortura em Diadema e texto dizendo que ela não tem nada a ver com isso. Depois, dá o endereço eletrônico da PM (...) para ‘eventuais manifestações de desapreço’.” (Guerra das polícias. Folha de S. Paulo, 12 de abril de 1997. p. 1-4. Editoria: Brasil. Seção “Painel”). Elementos do processamento das denúncias durante o EFN também demonstram seus conflitos jurisdicionais: a polícia civil buscou ter exclusividade sobre as investigações criminais, inclusive sobre PMs (ref. Lei sobre tortura não acelera punição. Folha de S. Paulo, 5 de abril de 1997. p. 3-5. Editoria: Cotidiano), mas o Superior Tribunal Federal emitiu parecer favorável à manutenção da investigação de crimes dolosos cometidos por PMs na competência da corporação (ref. LOZANO. STF decide sobre julgamento na Justiça Comum. Folha de S. Paulo, 9 de abril de 1997. p. 3-4. Editoria: Cotidiano; DE FREITAS. PM pode investigar crime doloso, diz STF. Folha de S. Paulo, 10 de abril de 1997. p. 3-3. Editoria: Cotidiano). 213

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A defasagem entre diferentes critérios de incorporação discursiva das vídeo-imagens aparece nitidamente quando se examinam as reportagens que relatam os depoimentos dos policiais acusados na CPI-ALSP. Tanto no JBa quanto no JNa, a notícia é inicialmente introduzida pela fala em estúdio: JNa9/2 (Apresentadora/sinc): “Bate-boca na CPI que investiga os pê-emes torturadores de Diadema. Os acusados... usaram a tática do silêncio... e a sessão acabou em tumulto.”

JBa9/2 (Âncora/sinc): “ ‘Nada a declarar’... essa foi a frase mais repetida pelos policiais militares na CPI que investiga o crime organizado em São Paulo. Os dez pê-emes são acusados de cometer vários crimes na Favela Naval em Diadema.”

Houve confusão também na denominação da CPI pelos telejornais, justificável pois sua identidade foi de fato um pouco complicada: desde 3 de abril, havia duas CPIs em funcionamento, investigando as ocorrências registradas na FFN, que tinham vários componentes em comum. A diferença de registro discursivo entre os telejornais é bem clara: mais pessoal no JNa, mais abstrato no JBa. O texto do JNa favorecia uma representação caótica dos acontecimentos: começa mencionando o “bate-boca” e conclui asseverando o “tumulto”. Já o JBa priorizava a referenciação espaço-temporal dos sujeitos: “policiais militares [que] são acusados de cometer vários crimes na Favela Naval em Diadema”. O JBa relata o silêncio dos acusados e conclui com as declarações contraditórias do presidente da CPI e da advogada Vilma Moretti, ambas proferidas para a reportagem, logo após o término da sessão. O JNa prefere mostrar primeiro o confronto verbal entre deputados e advogados e depois destacar o silêncio ou indiferença dos acusados diante das imagens. Mas, apesar dessas diferenças, ambos telejornais definem o mesmo percurso narrativo: “pê-emes torturadores...” (ou “os acusados” ou “dez pê-emes acusados de cometer vários crimes...”) “usaram a tática do silêncio” (ou “repetiram a frase ‘nada a declarar’”), “na CPI que investiga” etc. Apesar de a Comissão Parlamentar de Inquérito ser um dispositivo de investigação dirigido para a obtenção de informação para a atividade parlamentar, não sendo voltada especificamente para investigações judiciárias, os acusados, com base na orientação jurídica de seus advogados, se recusaram a participar das interações comunicativas propostas.

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JNa9/3a (PM acusado/sinc): “Eu me reservo o direito de falar.. só em juízo.”

JNa9/4 (Repórter/off): “A reação do soldado Otávio Lourenço Gambra, o Rambo... foi de absoluta indifereinça quando o vídeo mostrou o momento em que ele atira contra o Gol . Acusado pelo assassinato do mecânico Mário Josino, Rambo disse apenas...” (Sd. PM Gambra/sinc): “Nada a declarar, senhor.” (Repórter/off): “ Mesmo quando se ouviam gritos.. o soldado Nelson Soares da Silva Júnior.. indiciado por tortura.. permaneceu impassível.”

JBa9/3a (Repórter/off): “Um a um eles foram chamados pelo presidente da CPI do crime organizado.. deputado Afanásio Jazadi. Algemas retiradas, perguntas feitas, e nada de respostas.” (Cb. PM Buzeto/sinc): “Nada a declarar.” (Sd. PM Demontier/sinc): “Nada a declarar!” (Sd. PM Louzada/sinc): “(Me reservo?) meu direito de permanecer.. calado.” (Repórter/off): “Otávio Lourenço Gambra, o Rambo, sequer olhou para a televisão. Permaneceu impassível.. até na hora em que ele aparece dando dois tiros... em direção ao Gol... onde se encontrava o operário Mário Josino, que morreu alguns minutos depois. . Os outros pê-emes também tiveram o mesmo comportamento.” (Repórter/sinc): “Os deputados não puderam fazer nada porque os pê-emes tem o direito de só fazer declarações na Justiça.”

JNa9/6 (Repórter/off): “O aspirante, Wilson Góes Junior, que comandava os pê-emes na última madrugada de horror... veio fardado. Ele está em prisão adiministrativa... se reconheceu na fita... mas também optou pelo silêncio.”

Nessa sessão da CPI, promoveu-se algo como uma “vídeo-acareação televisiva”. É bastante significativa, nesses fragmentos, a simbiose das ações da CPI. A partir da confrontação dos acusados com a evidência principal (a FFN) e da justaposição entre as imagens da FFN e as das (não) declarações dos acusados, a edição de imagens constitui o relato dos depoimentos segundo um discurso repetitivo. A sessão, amplamente divulgada, permitia assim intensificar a conotação de absurdo das alegações de inocência dos acusados. Durante a sessão, os advogados entram em conflito verbal aberto com os parlamentares investigadores:

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JNa9/3b (Repórter/off ): “Irritaádo com os advogados... que orientavam os pê-emes... o presidente da CPI deu a órdem.” (Dep. Jazadji/sinc -gritando): “Eu peço à assistência militar que coloque esse cidadão para foóra-dorecinto.” (Capano/sinc -idem): “É um direito de profissão minha, senhores, então eu queria deixar bem claro... que o nobre deputado está cerceando um direito de profissão.” (Repórter/off ): “O advogado acabou acompanhando a sessão... de longe.” (Repórter/off): “No depoimento seguinte, mais confusão com a defesa.” (Sinc deputado -extracampo): “Tem um monte de advogado aqui... querendo fazer propaganda, ué!” [Três falando ao mesmo tempo] (Vilma Moretti/sinc): “Não! Propaganda!..???” (Deputado/sinc): “Então a gente tem que saber que estória [??] é todo mundo quer aparecer aqui, todo mundo traz um cartão.. um telefone, um [???]” (Dep. Jazadji/sinc): “A senhora não pode se manifestar... A senhora não pode se manifestar!... A senhora não pode... Policiamento! Retire essa mulher daquí!” (Público/sinc): “Iíuh!” (Moretti/sinc): “À força! À força!”

JBa9/3b (Repórter/off): “O presidente da CPI ficou irritado com as atitudes dos advogados dos pê-emes. A advogada de cinco, dos dez pê-emes, Vilma Moretti... ria... toda vez que seu cliente dizia.. ‘nada a declarar’.” (Repórter/off): “O que que a senhora tava achando tão engraçado?” (Moretti/sinc): “A maneira com que essa CPI... CPI tá sendo conduzida... realmente me parece muito mais... um circo... eleitoral, do que a intenção de se apurar... algo efetivamente.” (Dep. Jazadji/sinc): “Eu acho que nesse circo, só cabe uma palhaça: ela, se ela falou isso.”

Por instruírem os acusados a não se pronunciarem (ato obrigatório apenas em juízo), os defensores retiraram da Comissão Parlamentar a possibilidade de se obterem quaisquer novas informações, negaram o poder da Assembléia Legislativa paulista em obrigar os acusados a falar, tornando inócua a sessão, e submeteram os deputados a uma situação de vexame diante das equipes de reportagem. Disputando o espaço de visibilidade público-mediática com os parlamentares, os advogados acusaram os deputados de se apropriarem de modo particularista (eleitoreiro) do espaço público parlamentar, rejeitando o atribuído interesse público da CPI. Por seu lado, a CPI, além de devolver a acusação de apropriação particular do espaço público-

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mediático (agora, para fins comerciais), usava de seus poderes para limitar a interferência dos advogados, obrigando-os a assistirem calados às sessões.214 O JNa, depois de reproduzir os momentos de maior tensão entre as partes, explica essa situação: JNa9/5 (Repórter/off): “O direito de ficar calado é garantido pela Constituição Federal... mas o comparecimento numa CPI... é obrigatório. Nem os oficiais da pê-eme, ligados ao comando na região do ABC... puderam fugir desse compromisso. Eles até tentaram apresentar uma desculpa... que não foi aceita pelos deputados.”

Essa “tática do silêncio” permaneceu durante os depoimentos em juízo, proferidos pelos policiais incriminados no dia 11 de abril. Parte dos acusados alegava estar sem condições psicológicas para responder às perguntas da juíza Maria da Conceição Vendeiro. No JNa11, a notícia é aberta pela apresentadora em estúdio, repetindo uma narrativa já conhecida: JNa11/2 (Apresentadora/sinc): “Os pê-emes de Diadema prestaram depoimento no fórum da cidade e foram vaiados na rua. Eles voltaram a negar as agressões que o Jornal Nacional mostrou em primeira mão na semana passada.”

A reportagem segue, sempre conotando a inconsistência da defesa dos acusados, agora relacionando-a às diferentes estratégias de defesa adotadas pelos advogados: JNa11/4 (Repórter/sinc): “Os advogados não conseguiram afinar a estratégia da defesa. O representante de cinco de dez presos, disse que os clientes dele iam ficar calados... porque não tiveram acesso à fita com as imagens das agressões. Os outros advogados anunciaram que todas as perguntas da juíza seriam respondidas... mas adiantaram que os acusados... não assumiriam... a autoria dos crimes.”

O JBa confirma o resultado, mas não o motivo dos não pronunciamentos. O telejornal diz que os policiais deixaram de se pronunciar por ser este um direito seu, não pelo acesso limitado da FFN. O JBa não fez qualquer avaliação acerca das diferenças entre as estratégias de defesa (por que deveriam ser “afinadas”?), nem relatou as considerações preliminares dos defensores. Contudo, relata a “alegação” de falta de condições psicológicas: 214

As Comissões Parlamentares de Inquérito, enquanto dispositivos de investigação criminal, não se organizam segundo o direito de livre defesa, que é garantido apenas para os tribunais. Evidentemente, na história brasileira recente, as atividades das CPIs têm recebido a função de realizar julgamentos políticos, em casos considerados de grande interesse pública.

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JBa11/3 (Âncora/sinc): “E ainda no capítulo de Direitos Humanos e de policiais, a polícia militar acusad... um policial militar acusado de assassinato na Favela Naval diz que atirou para o chão. Otávio Gambra, conhecido como Rambo... e mais nove pê-emes prestaram depoimento hoje no Tribunal de Justiça.”

JBa11/4 (Repórter/off): “Os advogados de cinco dos dez pê-emes interrogados... adotaram a mesma estratégia. Como nesta fase do processo eles não são obrigados a falar, alegaram falta de condição psicológica... e não responderam as perguntas da juíza Maria da Conceição Vendeiro.” (Silva Júnior): “Não estou em condições psicologicamente pra responder.” JNa11/5a (Repórter/off): “O argumento dos pê-emes < — Não, senhora.>, que se recusaram a depor foi ensaiado. < —Não, senhora.>” (Sd. PM Silva Jr./sinc): “Não estou em condições psicologicamente pra responder... gostaria de uma nova oportunidade...”

Note-se que ambas as reportagens reproduziram a declaração em mau português do soldado Silva Jr., sublinhando o caráter artificial do provavelmente ensaiada alegação de “falta de condições psicológicas”. Apesar de ter declinado dessa primeira oportunidade, e sabendo que os réus poderiam se pronunciar posteriormente, é presumível que a principal preocupação da defesa tenha sido evitar que o julgamento se realizasse naquele momento, quando a comoção pública gerada pela denúncia inicial era ainda muito intensa. As duas exceções individuais à “estratégia do silêncio” ocorrem com os dois policiais militares mais e menos incriminados na FFN: respectivamente, o soldado “Rambo”, Otávio Lourenço Gambra, e o soldado Adriano de Oliveira. Oliveira foi indiciado por poucos crimes: por ser recruta, não tinha qualquer autoridade sobre os outros policiais e, portanto, tinha pouquíssimas condições de evitar os crimes. No entanto, pelo menos nos limites (estreitos) da informação veiculada nos telejornais, esse acusado não acrescenta quaisquer informações ao relato das ocorrências: ele se limitou a tentar se eximir da responsabilidade nos crimes.215 215

Segundo as informações da Folha de S. Paulo, viemos saber que Oliveira deixa de incriminar os outros soldados, apesar de testemunhar suas “ações enérgicas” (empurrões e bofetões) e dizer ter ouvido tiros. (cf. Soldado chora e diz ter visto tapas de PMs. Folha de S. Paulo, 12 de abril de 1997, p. 3-4. Editoria: Cotidiano.). De modo semelhante ao outro novato, o aspirante a tenente Góes Jr., também justifica-se por sua inexperiência.

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JNa11/5b (Repórter/off): “Quem concordou em falar, também seguiu a orientação da defesa... respostas curtas e objetivas. Só o soldado Adriano Oliveira não segurou a emoção.” (Sd. PM Oliveira/sinc): “Foi minha primeira noite ali... ” (Sd. PM Oliveira/off): “... eu ali estava desesperado...” (Sd. PM Oliveira/sinc): “... ali... tava com m... medo ali.”

Já Otávio Gambra, alcunhado “Rambo”, enunciou em juízo uma nova versão para as ocorrências registradas na FFN. Sem nenhuma inovação, quanto à forma narrativa, suas esquivas continuaram a se apoiar na heterogeneidade entre o modo de constituição da indicialidade da FFN e o dos testemunhos das vítimas. Do ponto de vista da avaliação pública, a substituição do “tiro de festim” para o “tiro para o chão” diminuiu ainda mais a verossimilhança do seu relato, mas serviu para dificultar as investigações criminais, exigindo a realização de novas perícias técnicas que adiaram as decisões judiciais. Era mais um indicativo de que a única alternativa do acusado era tentar retardar sua provável condenação. No telejornal, as declarações dos acusados continuam a ser cotejadas aos trechos da FFN, obsessivamente reproduzidos. Tal repetição parece prestar-se muito precariamente à focalização interna variável (na qual uma mesma cena é repetida, tomada por diversos pontos de vista de personagens situados). Parece antes que ela serve como um “flash-back” que efetuava um contraponto entre a evidência videográfica e as alegações do acusado, visando desautorizar estas últimas. JNa11/5c (Repórter/off): “O soldado Otávio Lourenço Gambra, o Rambo, acusado de homicídio, disse à juíza que não agrediu ninguém. Rambo, que chegou a falar em tiros de festim quando foi preso, hoje deu outra explicação para os disparos... contra o carro onde estava o mecânico assassinado Mário Josino. (Sd. PM Gambra/ sinc®off): “...Tenho certeza que meu disparo... não af... certou... não alvejou ninguém... somente o chão. ”

Também o JBa reiteradamente utiliza esse tipo de edição de imagens. Contudo, distingue-se por reproduzir as declarações de Gambra em uma maior extensão. Os enunciados do policial são “amalgamados” aos do repórter, que não economiza inflexões tonais para marcar a desconfiança em relação à narrativa do acusado:

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JBa11/6 (Repórter/off): “[Rambo admitiu ?] que pode ter havido algum excesso... e justificou: todos trabalhavam ali sob fortes pressões. Salários baixos, regulamento interno da Pê-eme severo demais... e armas que não prestam. Afirmou também que o barulho que se ouve na fita do dia três de março... não era um tiro contra Sílvio Lemos... mas sim... a mistura de coca-cola com gelo-seco, que provocou um estampido . Ele diz ainda que de fato disparou dois tiros... no início da madrugada do dia sete de março. Mas apesar das imagens mostrarem o contrário, Gambra afirma que atirou para o chão..” (Sd. PM Gambra/sinc®off): “Eu afetuei o disparo para o chão. .”

A despeito das repetições de relatos, vê-se, pela primeira vez nos telejornais pesquisados, um locutor do ator-polícia problematizar de modo geral o funcionamento da Polícia Militar. Não se trata, como anteriormente, de uma tematização pública do processamento de denúncias contra policiais, mas o relato das difíceis condições materiais e psicológicas às quais se encontram submetidos os encarregados do policiamento ostensivo. O soldado procura estabelecer um eixo causal entre suas más condições de trabalho e seu comportamento “enérgico”, de modo que as “pressões” servissem de justificativa para “algum excesso” que tivesse cometido. Note-se que a narrativa proposta não se limitava à legitimação individual, pois “servia” não só aos outros policiais incriminados na FFN como a todos os “praças” da Polícia Militar. Em uma avaliação do conjunto dos enunciados do ator-polícia, apesar da configuração de alguns padrões narrativos de maior recorrência que nada têm de democráticos, não nos parece consistente inferir disso uma homogeneidade discursiva em seus vários locutores. Não se pode perder de vista que a constituição do “ator-polícia” (como também dos demais “atores” abordados nesta pesquisa) consiste principalmente em um recurso heurístico para facilitar a abordagem de conjuntos de enunciados de perspectivas semelhantes, que têm diversas origens empíricas e que são publicizados através de instâncias (contextos comunicativos) distintas: comparem-se, por exemplo, as condições das proferições dos PMs acusados, as do porta-voz da PMSP ou as do presidente da APOMI. Assim, além de serem encontradas as configurações narrativas comuns, percebe-se também emergir nos pronunciamentos público-mediáticos dos locutores associados à PMSP uma dissonância, que pode ser associada à disputa interna entre um grupo interessado em reverter as crescentes ocorrências de brutalidade policial e outro mais afeito à manutenção da autonomia máxima da corporação, indicada anteriormente.

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Embora seja arriscado afirmá-lo, não parece que o EFN tenha beneficiado, de modo substantivo, mais o segundo grupo que o primeiro.

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CAPÍTULO 5 ATOR SOCIEDADE CIVIL Como alguém que chega ao balcão com uma carta importante após o horário de atendimento: o balcão está fechado. Como alguém que quer prevenir a cidade contra uma inundação, mas fala outra língua: ele não é compreendido. Como um mendigo que bate pela quinta vez em uma porta onde já recebeu algo quatro vezes: pela quinta vez tem fome. Como alguém cujo sangue flui de uma ferida que espera pelo médico: seu sangue continua saindo. Assim chegamos e relatamos que se cometem crimes contra nós. Quando pela primeira vez foi relatado que nossos amigos estavam sendo mortos, houve um grito de terror. Centenas foram os mortos então. Mas quando milhares foram mortos e a matança era sem fim, o silêncio tomou conta de tudo. Quando o crime acontece como a chuva que cai, ninguém grita: Alto! Quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis. Quando os sofrimentos se tornam insuportáveis, não se ouvem mais os gritos. Também os gritos caem como a chuva de verão. (Bertold Brecht, “Quando o crime acontece como a chuva cai”)

Neste capítulo, estarão sendo examinadas as emissões provenientes dos cidadãos que, não pertencentes a espaços institucionais oficiais e às empresas de comunicação, apareceram nos telejornais que compõem o texto do EFN. Esses enunciadores foram agrupados em dois conjuntos: o primeiro é composto pelas pessoas que de modo espontâneo ou não formalmente organizado vieram a público denunciar ou se posicionar acerca de denúncias já feitas e de seus desdobramentos institucionais e mediáticos; o segundo é formado pelos grupos organizados e autônomos da sociedade civil que igualmente entraram na cena temática do EFN.

5.1 — Vítimas-denunciantes

A dupla denominação “vítima-denunciante” visa ilustrar a pluralidade de situações experimentadas por esse conjunto de enunciadores: no momento da denúncia inicial, são pacientes da brutalidade policial; no momento posterior às denúncias derivadas, passam a ser

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os agentes, enquanto denunciantes formais e mediáticos. Daí em diante, esses enunciadores tornam-se possíveis beneficiários dos conseqüentes atos administrativos, decisões judiciárias e deliberações legislativas. O conjunto de enunciadores das vítimas-denunciantes agrupa aqueles sujeitos que foram agredidos por membros do corpo administrativo do Estado, tiveram amigos ou entes queridos atingidos pela violência policial, ou ainda se sentiam ameaçados pelas forças de segurança e, reconhecendo-se como cidadãos pertencentes a uma ordem constitucional democrática, dirigiram-se aos espaços institucionais oficiais e ao espaço público para denunciar esses abusos e reivindicar mudanças institucionais que os coibissem. No contexto do EFN, as denúncias referem-se tanto a enunciados dirigidos ao sistema de justiça criminal quanto aos destinados a emergir no espaço público-mediático. O ato que aqui se denomina denúncia formal corresponde ao registro de uma notícia criminis junto a uma autoridade policial. A partir desse registro oficial, a polícia judiciária decide se cabe a realização de investigações, caso em que a partir das ocorrências relatadas, um inquérito policial é aberto. Partindo dos resultados da investigação criminal (produto do inquérito policial e, no caso, também do inquérito policial-militar — IPM), o Ministério Público elabora outro documento, a denúncia, que é “oferecida”, junto com os relatórios dos inquéritos policiais, à autoridade judiciária. Se esta aceitar a denúncia, processa-se o julgamento dos acusados, que se conclui com a prescrição das punições e seu cumprimento. Além das polícias civil e federal, também as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) exercem funções investigativas. Essas Comissões coletam testemunhos e evidências que podem originar investigações e processos judiciais. Entretanto, por sua natureza de instituição parlamentar, as CPIs são orientadas e aparelhadas acima de tudo para a obtenção de informações necessárias às deliberações dos legisladores, as quais eventualmente determinam alterações normativas. As denúncias mediáticas, por outro lado, são destinadas a emergir sobretudo no espaço público-mediático. Encaminhadas aos corpos redacionais das empresas de comunicação, passam primeiro pela “apuração” dos repórteres, que é uma investigação rápida, superficial e informal da equipe de produção do jornal ou telejornal. Afora o seu conteúdo, aqueles enunciados melhor formatados para a exibição pública prestam-se com vantagens à incorporação nos textos telejornalísticos, por exemplo, os que fazem recurso a uma cinegrafia profissional, denúncias com rosto oculto ou manifestações de rua. As imagens dessas

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denúncias são selecionadas e registradas de modo fragmentário e os textos verbais enviados têm trechos lidos, de acordo com os padrões discursivo-narrativos do veículo e segundo um foco editorial predefinido. É comum que os enunciadores pertinentes ao ator-midiador acompanhem intensivamente os processamentos institucionais de atribuído interesse do “público telespectador”. Nessas situações de exposição pública, as vítimas-denunciantes tornam-se simultaneamente denunciantes oficiais e público-mediáticas. A dupla circulação de um enunciado, no sistema de justiça criminal e no espaço público-mediático, produz alterações significativas em ambos os contextos, determinando, freqüentemente, um tratamento privilegiado ao seu tema. Dada a natureza do corpus empírico analisado nesta pesquisa, é apenas a partir dos enunciados mediáticos (principalmente telejornalísticos) que se pôde ter acesso às deliberações relativas ao EFN. De modo semelhante, é sempre pouco claro se os enunciados das vítimas-denunciantes foram emitidos espontaneamente ou resultaram de estímulos e/ou constrangimentos provenientes de outros atores políticos. Alguns enunciados são assimilados como informações à narrativa telejornalística, quando o ator-midiador deixa de fazer a distinção entre os discursos alheios e sua própria produção discursiva. O uso de recursos lingüísticos e videográficos mostra a disposição desse ator para assimilar enunciados e lugares de enunciação da sociedade civil. A maior parte das proferições das vítimas-denunciantes são mediatizados nos telejornais através do instituto profissional do “sigilo das fontes”. O direito do jornalista em não identificar seus entrevistados e informantes foi constantemente mobilizado para satisfazer uma dupla demanda — pela publicização ampla das ocorrências delituosas e pela manutenção do anonimato das testemunhas. Evidentemente, o fato de que o anonimato tenha sido, quase sempre, uma condição sine qua non para a emissão das denúncias mediáticas indica a permanência da ameaça de retaliações da parte dos denunciados. Nas análises que se seguem, será feito um percurso através das diferentes condições e dispositivos de enunciação das vítimas-denunciantes. Conjuntos distintos de vítimas-denunciantes partilham determinadas condições de enunciação peculiares, às quais correspondem determinados dispositivos de enunciação. Esses dispositivos, aqui denominados “véus-indicadores”, têm a dupla função de camuflar as identidades individuais dos enunciadores e, ao mesmo tempo, fornecer as

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condições para a emissão de um discurso narrativo que indica evidências das agressões e individualiza as identidades dos agressores. A apresentação destas análises está organizada como uma progressão através dos dispositivos e condições de enunciação das vítimas-denunciantes. Inicia-se com a análise dos enunciados emitidos pelas vítimas-denunciantes mais submetidas a condições de isolamento e fragmentação, chegando até os enunciados de emissores empíricos nitidamente coletivos. Na Seção 5.1.1 analisam-se os enunciados referentes às denúncias feitas por indivíduos agredidos antes da denúncia mediática inicial, participantes das ocorrências registradas na FFN e de outros episódios incorporados ao EFN. Em 5.1.2, são abordadas as “denúncias derivadas”, isto é, aqueles enunciados tomados como decorrentes da denúncia mediática inicial, sejam os da vítima agredida “na cena da FFN”, sejam os das famílias de vítimas de crimes policiais ou ainda os de outros cidadãos, identificados não individualmente. A Seção 5.1.3 trata das videodenúncias “cândidas”, feitas pelas comunidades de periferia agredidas, publicamente emersas no contexto do EFN. Na última seção da primeira parte, 5.1.4, examinam-se as emissões denunciadoras e/ou problematizadoras provenientes dos “contextos comunitários” (de comunidades de moradores de periferias urbanas) que, aproveitando o campo de visibilidade do EFN, foram proferidas em entrevistas individuais e coletivamente através de aglomerações em logradouros públicos.216

5.1.1 — Denúncias primárias I: Indivíduos agredidos

A — Vítimas-denunciantes iniciais: Jefferson Caputi e Antônio Carlos Dias

Jefferson Sanches Caputi e Antônio Carlos Dias são os dois homens que, junto com Mário José Josino, são parados, insultados, espancados e quase assassinados na esquina das ruas Francisco Brás e Naval, em Diadema, na madrugada de 6 para 7 de março de 1997. Depois de Josino (morto pelo tiro do soldado PM O.L. Gambra, o “Rambo”), Caputi foi o mais duramente agredido: levou bofetões e cacetadas de “Rambo”, teve o tornozelo torcido e descalçado pelo soldado N.S. Silva Jr. para receber várias dezenas de cacetadas na sola dos 216

Esta organização visou favorecer a percepção das diferenças entre as condições de aparição público-mediática dos indivíduos “atomizados” e as dos sujeitos pertencentes às comunidades marginalizadas. Apesar de a questão das especificidades dessas comunidades enquanto contextos comunicativos ser um tema inequivocamente sedutor, devido ao foco temático e às limitações concretas desta pesquisa, será deixado fora do nosso campo de investigação.

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pés — expediente usado pelos torturadores da repressão política, quando sabiam que não deviam deixar marcas no corpo dos torturados. Dias, o que recebeu menos pancadas, foi quem teria notado o ferimento em Mário Josino; este morreu em seus braços, a caminho do hospital de São Bernardo do Campo (próximo ao local das agressões). Dias era amigo íntimo de Josino e mostra grande pesar pela perda do companheiro, através da sua voz sempre embargada e freqüentes interrupções pelo pranto, durante suas declarações públicas. O tom pessoal patenteado pelas pungentes declarações de Dias contrasta com a tendência para o discurso abstrato das proferições de Caputi, que, no entanto, mal disfarçava seu rancor contra seus agressores individuais. Embora Dias tenha também fornecido informações objetivas, a edição dos telejornais reforça o contraste entre o tom de seus enunciados e o dos de Caputi, aproveitando-os para intensificar ora a empatia, ora a “objetividade” do relato. O discurso de ambos é predominantemente isocrônico, reconstruindo a cena dos acontecimentos com o relato minucioso dos atos e a reprodução dos diálogos. Essa particularidade permitiu que os telejornais recorrentemente (JNa1/41, JBa1/6, JNa2/3, JBa2/7) dublassem as vídeo-imagens da FFN com as declarações dessas vítimas-denunciantes, emitidas bem depois das ocorrências. Tal superposição conferiu grande verossimilhança a ambos as enunciações (as falas e a videogravação). Ao longo do desenvolvimento do EFN, as mudanças nas condições de aparição pública desses dois enunciadores empíricos foram coerentes com as transformações das condições de enunciação das vítimas-testemunhas em geral. Contudo, é importante destacar algumas particularidades da alteração dos dispositivos de enunciação através dos quais as denúncias de Caputi e Dias adquiriram visibilidade público-mediática, no início, com o ocultamento das suas identidades individuais, e, ao “final”, de maneira claramente personificada. Enquanto as “vítimas comunitárias” (vide Seção 3) encontram-se no extracampo (eventualmente no contracampo, junto ao cinegrafista) das vídeo-imagens denunciadoras, Dias e Caputi foram enquadrados na FFN tal como seus agressores e podem ser perfeitamente identificados a partir dessas imagens. Essa peculiaridade faz parecer um excesso de zelo inútil a posterior ocultação das identidades individuais, por exemplo, nas primeiras aparições mediáticas de Caputi.217 Contudo, a insistência no uso do dispositivo “véu-indicador” torna217

Nas seqüências JNa1/37 e 40-2, são ocultados o rosto e o nome de Jefferson Caputi. Em JBa1/6, apenas seu rosto é omitido. O mesmo, como será visto na Seção 5.1.2a, ocorre com a vítima Sílvio Lemos. A capacidade figurativa da cinegrafia da FFN é demonstrada pela edição de imagens em JNa1/5: foi perfeitamente viável para

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se compreensível na medida em que se examinam suas injunções no plano simbólico do discurso narrativo. Como será visto mais detalhadamente adiante, trata-se da configuração de um modo típico de representação televisual das vítimas-denunciantes, através do processo de constituição do lugar, ao mesmo tempo individualizado e abstrato, da vítima denunciadora. Pela repetição do dispositivo de enunciação, estabelece-se uma relação de similitude com a forma de enunciação das demais vítimas-denunciantes. A configuração desse padrão de enunciação serve, além disso, como uma demonstração adicional da permanência das ameaças de retaliação, apesar do processamento institucional (cf. JNa1/37). De modo distinto das vítimas-denunciantes “comunitárias”, Caputi e Dias registraram a noticia criminis do assassinato de seu amigo e fizeram o reconhecimento dos policiais agressores logo após a ocorrência.218 Não obstante, essa disposição para a formalização quase imediata não necessariamente demonstra que essas vítimas tivessem confiança no funcionamento do sistema de justiça criminal, como se pode verificar nas declarações de Caputi, reproduzidas na Folha de S. Paulo: “Agência Folha: — Você fez a denúncia na mesma noite do crime? Caputi — É lógico. O rapaz que morreu estava dentro do meu carro. ...” 219

A “lógica” das preocupações de Caputi parece ser principalmente evitar ser responsabilizado pela morte de Josino, o que seria imediatamente sugerido pelo fato de ser ele o motorista do veículo onde foi morto o trabalhador. Portanto, não necessariamente Jefferson Caputi considerou a denúncia formal como uma opção válida em geral. Essa opção também não foi feita de modo direto e “pacífico”:

a edição re-enquadrar as vídeo-imagens para identificar individualmente cada um dos policiais agressores, mostrando seus rostos como se estivessem em um “álbum de fotos”; esta montagem parece ter sido a solução para exibir o rosto dos agressores, em um momento em que a reportagem ainda não havia tido acesso aos arquivos fotográficos do 24°BPM de Diadema: logo depois da “devassa” que o Ministério Público e a CPI do Crime Organizado fizeram no Batalhão, a identificação dos pê-emes agressores passou a ser feita com as fotografias desses arquivos. 218

Já foi observado, no capítulo anterior, que a verdadeira autoria da denúncia formal foi estranhamente omitida pelo JNa, que preferiu atribuir a denúncia ao cabo Buzeto. (Cf. JNa0/9 e JGl0/7 versus JBa1/3-4, Vídeo de tortura e morte leva pms à prisão. Folha de S. Paulo, 1o de abril de 1997, p. 3-1. Editoria: Cotidiano. e VARELLA. Vítima tem medo, mas acredita na PM. Folha de S. Paulo, 2 de abril de 1997, p. 3-3. Editoria: Cotidiano). Os textos da Folha de S. Paulo relatam que Caputi e Dias reconheceram seis dos dez pê-emes agressores no mesmo dia dos crimes, assumindo autoria da denúncia embora sem poder identificar o autor do disparo mortal. 219

VARELLA. Vítima tem medo, mas acredita na PM. Folha de S. Paulo, 2 de abril de 1997, p. 3-3. Editoria: Cotidiano.

184 “ ... Fui eu que o levei para o hospital, que o coloquei na maca. Mas o boletim de ocorrência demorou para ser feito. Agência Folha — Por quê? Caputi — Tinha medo de chamar a PM e virem os mesmos policiais que me agrediram. Aí eles podiam, sabendo que eu era uma testemunha, me apagar. Daí liguei para um amigo da PM de São Bernardo. Foi ele que me aconselhou a ligar 190. Vieram dois ou três carros da PM de São Bernardo, depois é que chegou o de Diadema. Quando íamos para a delegacia, vimos o delegado entrar no Pronto Socorro. Fomos para lá imediatamente. (...)” 220

A mediação das relações íntimas como dispositivo para o desembaraço de problemas particulares, bem conhecido dos estudiosos da cultura política brasileira e particularmente atuante na perplexidade das vítimas de abusos policiais,221 emerge distintamente na atitude receosa de Caputi: é somente a partir da orientação de um “amigo da PM de São Bernardo” que Caputi tem segurança para prosseguir com a formalização da denúncia. A esfera das relações pessoais fornece apoio para a institucionalização, diante da ameaça da apropriação privada inicial das funções públicas pelos PMs violentos, a partir da qual chamar a polícia se transforma em um ato temerário. Exprime-se, em várias das declarações de Jefferson Caputi, uma tendência para a representação singulativa das ocorrências que o envolveram, o que, no entanto, não o impediu de interpretá-las através de noções abstratas como “justiça” e “cidadania”. JBa1/6 (Repórter extracampo/sinc): “Jefferson Caputi não quer mostrar o rosto. Ele dirigia o Gol onde morreu Mário... e sobreviveu ao ataque dos policiais. Levou mais de trinta pancadas... em apenas três minutos. Ele conta que os pê-emes bateram nele... sem nenhum motivo.” (Caputi/sinc®off): “ ‘Cê tá me batendo por quê? Sou um cidadão, te apresentei os documentos. Aí ele pegou virou pra mim, falou que eu era muito folgado... aí ele começou... aquela pancadaria toda, bate daqui, bate dali.” (Repórter/off): “Que que ‘cê espera que aconteça?” (Caputi/off®sinc): “Eu.. o mínimo que a gente pode pedir.. acho que é o mínimo, pelo jeito... é justiça, né? é a coisa mais.. que deveria acontecer mesmo.. é que fosse feita justiça nesse caso.”

220

VARELLA. Vítima tem medo, mas acredita na PM. Folha de S. Paulo, 2 de abril de 1997, p. 3-3. Editoria: Cotidiano. 221

DAMATTA, 1982. CARDIA, O medo da polícia — e as graves violações dos direitos humanos. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. PAIXÃO & BEATO, Crimes, vítimas e policiais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997.

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Esse trecho apresenta-se como uma narrativa futura e hipotética, uma paralipse: poder-se-ia pedir mais, mas se pede “o mínimo... que fosse feita justiça nesse caso”. A restrição das expectativas e sua referência singulativa (apenas ao “caso”) não parece ser decorrente de limitações do horizonte perceptivo ou cognitivo da vítima-denunciante, mas auto-impostas pelo próprio emissor. A tendência de conjugar uma experiência singular com critérios abstratos aparece em uma entrevista publicada na FSP2: “Agência Folha — Qual a punição para os policiais? Caputi — Como cidadão civil, que trabalha e tem família, acho que a Justiça tem de ser igual para todos. O militarismo é muito antiquado. Não é porque fez uma escolinha da PM que o militar pode ter certas regalias. (...) Agência Folha — Você defende a desmilitarização da polícia? Caputi — Para mim tanto faz. Desde que esteja a serviço da gente, e não contra a gente, a polícia pode ser civil, militar e até privada. (...).” 222

Caputi começa por se situar a partir de qualidades que mostram sua inserção social e política: trabalhador-pai-de-família e cidadão civil. Em seguida, desdobra seus comentários apoiandose nos fundamentos do Estado de direito (“Justiça tem de ser igual para todos”) para então criticar a existência de uma Justiça corporativa e também uma configuração institucional (“militarismo é muito antiquado”) implicitamente referida à história brasileira recente, remissão muito rara nos enunciados do EFN. Note-se que a conexão entre o caso específico e as realidades institucionais e históricas do enunciado de Caputi não o leva a permanecer em um discurso abstrato e generalizante. Em seguida, ele retorna ao plano do “que esteja a serviço da gente e não contra a gente”, mostrando que não lhe interessa propriamente abordar a complexidade do problema da segurança pública no Brasil, mas sim reclamar que seja garantido, na prática, o princípio democrático da “lei sobre a ordem”, que sustenta o uso legítimo da coerção física. A elaboração de um discurso tendencialmente singulativo, com recursos a referências bastante abstratas, indica que as ambigüidades manifestas pelo enunciador não são cognitivas, e nem mesmo perceptivas: “Agência Folha — Você tem agora medo da polícia? 222

VARELLA. Vítima tem medo, mas acredita na PM. Folha de S. Paulo, 2 de abril de 1997, p. 3-3. Editoria: Cotidiano.

186 Caputi — No sábado passado, estava em um posto de gasolina, quando chegou um carro policial e os policiais saíram do carro armados. Não era nada comigo, mas meu coração quase saiu pela boca. Agência Folha — Dá para confiar na polícia? Caputi — Sim. Ouvi na Corregedoria uma frase que é bem o que penso: ‘‘Não confunda um ou outro policial com toda a PM.”223

Acrescenta-se uma terceira evidência de que essa restrição seja auto-imposta, sugerindo quais seriam as razões do enunciador para evitar emitir críticas muito gerais à polícia militar paulista. Caputi, no seu depoimento para a CPI do Crime Organizado, declara que “antes de ir embora, eu dei marcha ré e cheguei a dizer aos PMs que havia anotado o número do carro de polícia, coisa que eu nunca deveria ter dito.”224 O arrependimento relatado por Caputi parece expressar o dilema com o qual um sujeito inserido no tecido social e pertencente a uma comunidade política (trabalhador-pai-de-família e cidadão-civil) se confronta, em uma ordem social em que os direitos civis são formalmente garantidos mas eliminados na prática, tornando uma temeridade denunciar os agentes do Estado para o próprio Estado — o que sempre será feito através de outro representante do Estado. Para a vítima-denunciante, na prática, a decisão menos custosa seria abrir mão da cidadania, submeter-se aos abusos e despolitizar o problema. Caputi lamenta não tê-lo percebido no momento da agressão, mas parece fazê-lo a posteriori. O repórter Fernando Rodrigues manifesta, na edição da Folha do dia seguinte, sua perplexidade com a resposta da vítima-denunciante Jefferson Caputi, que diz acatar como “seu” pensamento o discurso “ouvido” na Corregedoria da PMSP (que singulariza as ocorrências e isenta de críticas o conjunto da corporação policial-militar). Avança duas hipóteses explicativas: ou bem se supõe “que Jefferson esteja em estado de choque, com medo. Acuado, não vê benefícios em criticar a PM em um país no qual o Estado de Direito só existe para poucos”; ou se considera a “pior” possibilidade, de que tenha dito “que confia na polícia porque confia mesmo. Porque não viu na ação da qual foi vítima nenhum sinal de que essa possa ser uma prática quase generalizada pelo país.” 225 Tais possíveis interpretações não 223

VARELLA. Vítima tem medo, mas acredita na PM. Folha de S. Paulo, 2 de abril de 1997, p. 3-3. Editoria: Cotidiano. 224

LOZANO. PM nenhum acreditaria na história. Folha de S. Paulo, 3 de abril de 1997, p. 3-4. Editoria: Cotidiano. 225

RODRIGUES. A índole do brasileiro. Folha de S. Paulo, 3 de abril de 1997, p. 1-2, editoria: Opinião.

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parecem ser excludentes; percebê-las em sua complementaridade permitiria uma melhor aproximação sobre a cultura política dos brasileiros. O medo de represálias e a sensação de insegurança generalizada derivada dos abusos sofridos pode alimentar a autocensura das vítimas, a ponto de constrangê-las severamente. A insegurança pode tornar as pessoas descrentes e mesmo cínicas quanto à capacidade das instituições de tornarem efetivos os direitos formalmente garantidos. Diante dos riscos implicados, as pessoas passam a duvidar também da validade de reivindicar esses direitos ou de fazer críticas públicas às instituições. B — Outras vítimas da PMSP, coligidas pelas reportagens

Os enunciados examinados nesta subseção são associados a casos antigos, “ressuscitados” pela reportagem do JNa. Os relatos dessas ocorrências parecem ter sido publicizados principalmente pela iniciativa dos midiadores, embora seja provável que essa divulgação contasse também com a aquiescência das vítimas-denunciantes, que já haviam introduzido seus enunciados como denúncias no processamento da justiça criminal. Os “conteúdos” do relato das vítimas-denunciantes são absorvidos pelo discurso dos midiadores: apareceram como informações e não como declarações de terceiros. O telejornal não se preocupou em absoluto em demarcar as transições entre as enunciações dos repórteres e as dos denunciantes. O telejornal demonstra uma tendência à abordagem individualizada dos enunciadores e ao tratamento singulativo das ocorrências nos enunciados reproduzidos. É impossível averiguar a existência de possíveis sumarizações e/ou narrações de freqüência iterativa nos enunciados das vítimas testemunhas, pois tem-se acesso apenas aos fragmentos selecionados pela edição do JNa. É somente no nível das enunciações do midiador que emergem os tratamentos generalizantes. Note o leitor que, nesse aspecto, os telejornais ocupam o lugar de interpretadores das ocorrências, ao invés de coordenar as interações comunicativas que permitiriam a elaboração, a partir da diversidade de discursos sociais, de interpretações legítimas sobre o problema da brutalidade policial. JNa2/11 (Repórter/off): “Luziano, contínuo, esbarrou em um desses policiais violentos. Confundido com um ladrão, foi torturado.. e humilhado. Inocente, foi liberado sem acusação, mas cheio de hematomas.” (Vítima 1 —Luziano Reis/sinc): “Antes eu... eu tinha orgulho de olhar pra um policial, hoje eu não tenho orgulho de olhar para um policial”

188 (Repórter/sinc— fora de quadro): “O que que você sente quando vê um policial?” (Vítima 1/sinc): “Sinto raiva.” (Repórter/off): “ Cristian, auxiliar de cartório, não está mais aqui pra contar a história. A mãe dele, luta há cinco anos.. para provar que o filho foi assassinado por policiais da ROTA... em um desses freqüentes confrontos mal-explicados” (Vítima 2— Maria Verônica Alves/sinc): “Todo dia de manhã quando eu levanto... a impressão que dá é que eu tou levantando no dia catorze de agosto... que foi o dia que eu fiquei sabendo que ele morreu. Né, em um dá pra passar.”

A inclusão de imagens fotográficas e de documentos pessoais das vítimas nessas denúncias mediáticas é bastante freqüente. O uso testemunhal da fotografia aparece como resultado da elaboração dos enunciados das próprias vítimas-denunciantes, que registraram as evidências das ocorrências de violência policial e as disponibilizaram para os midiadores. Nessa seqüência, a incorporação dessas imagens ao texto reforça a verossimilitude do relato. Outro uso da fotografia emerge com a exibição de fotos das vítimas em situações prosaicas ou cerimoniais, caracterizando-as como cidadãos comuns e como trabalhadores, quiçá como sujeitos morais. O uso público das imagens acrescentam- lhes sentidos políticos não pretendidos durante sua produção, originalmente dirigida à rememoração de acontecimentos do âmbito da vida privada. A valorização da experiência emocional das vítimas, assim como a preferência pelo ambiente doméstico para as gravações e a familiaridade das situações registradas nas fotos definem o regime singulativo da enunciação das vítimas-denunciantes, abordagem que reforça a dimensão pessoal das narrativas e favorece a identificação empática entre vítimas e telespectadores, os quais estariam, presumivelmente, também situados em um contexto doméstico-familiar.226 JNa2/17 (Repórter/ sinc): “O risco de um inquérito ser conduzido pela própria corporação policial... está demonstrado... no corpo... de uma testemunha que está aqui na minha frente.” (Repórter/off): “ Este homem tem cinco perfurações à bala. Ele conta... que policiais da ROTA... da pêeme paulista... tentaram matá-lo... porque ele é testemunha de chacinas... em São Mateus... em fins de noventa e cinco e início de noventa e seis...” (Repórter/sinc): “...testemunha de assaltos a bancos e extorsões... praticados por pê-emes. No inquérito, deram fotografias antigas... para que ele reconhecesse pê-emes. E pê-emes que ele reconheceu estão na rua, trabalhando normalmente.”

226

SODRÉ, In: NOVAES (Org)., 1991. p. 222 e ss.

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Novamente, omite-se o rosto da vítima-denunciante: camuflado pela sombra, ou colocado no extracampo dos planos-detalhe das cicatrizes em seu corpo. A problematização do processamento das denúncias no âmbito da corporação policial, constituída nesse fragmento, ocorre no nível do discurso do repórter, assumindo uma forma clara na primeira frase; ao final, a menção às fotografias antigas conota a falta de colaboração dos responsáveis pelo inquérito (IPM?) e demonstra a insuficiência dos recursos para a apuração das denúncias. A aparição desse enunciador “sem rosto” tem especificidades interessantes: ele constitui uma evidência da violência policial, pois porta em seu próprio corpo as cicatrizes das agressões sofridas; nessa condição, seu meio de enunciação principal é a exibição dessas marcas para a câmera da reportagem, já que seus pronunciamentos verbais não aparecem diretamente, mas apenas incorporados como informações no enunciado do repórter. Diferentemente das anteriores vítimas-testemunhas, esse enunciador é apresentado como “denunciante-vítima”, já que, segundo o relato, sua condição de testemunha de crimes policiais precede e motiva sua atual situação de vítima dessa violência. A exibição das cicatrizes em um espaço fechado caracteriza as adversidades vividas pelas testemunhas, como o medo de aparecer em lugares abertos (vide as declarações de Sílvio Lemos, na Seção seguinte), e antecipa a descrição da situação geral das vítimas-denunciantes do EFN. As agruras experienciadas por esse enunciador remetem também a um problema mais geral: a inexistência, na época, 227 de um sistema de proteção às testemunhas de crimes policiais no Brasil. O texto da reportagem não tematiza esse tópico, preferindo ater-se ao relato repetitivo dos casos de impunidade dos julgamentos corporativos das polícias militares. JNa3/2 (Apresentadora/sinc): “Os flagrantes de violência da Pê-eme de Diadema mostrados pelo Jornal Nacional provocam novas denúncias. Um homem surrado pelos policiais militares... diz que depois da tortura foi fichado como agressor.” (...)

JNa3/6 (Repórter/off): “Este motorista também conhece Rambo. Há três anos, quando morava em Diadema... ele deu de cara com a violência do policial.

227

Muito recentemente (fins de 1999), no momento da elaboração do texto final desta pesquisa, no caudal das investigações da CPI do Narcotráfico, é que o Congresso Nacional brasileiro implementou um sistema de proteção às testemunhas. Este sistema, contudo, permanece alvo de severas críticas, pelas testemunhas e por diversos setores da sociedade civil.

190 (Vítima-denunciante/pseudo-sinc): “Ele veio me agredindo... dando tapa no meu rosto, não pediu documento, não me deu eh.. revista. A vontade dele era só bater.” (Repórter/off): “Depois da agressão, o motorista deu queixa na delegacia. Mas a ocorrência saiu como desacato e resistência. O motorista virou o agressor... e o soldado, a vítima.” (Vítima-testemunha/sinc): “Eu fiquei revoltado, porque... eles colocaram o que eles quiseram no Bê-Ó. Foi isso que me deixou mais revoltado, p’que eles mentiro... descaradamente.”

Observe-se que o telejornal atribuiu a si próprio o mérito das “novas” denúncias, inéditas talvez apenas para a publicidade mediática, pois, como relatado, já haviam sido prontamente submetidas aos processamentos institucionais. A confusão entre a denúncia formal e a denúncia mediática, no discurso telejornalístico, permitiu que o telejornal se vangloriasse por tornar público (-mediático) um relato que já era público (-burocrático). Note-se que a reportagem buscou seletivamente uma outra vítima do soldado PM O.L. Gambra. Foi pela sua conexão com a denúncia inicial que a posição de antagonista é definida para “Rambo”, autorizando que o relato da inversão dos lugares de agressor e agredido se sustente. Novamente, sombras e planos-detalhe permitem a enunciação anônima da vítima-testemunha. Acrescentam-se, como evidências adicionais, as imagens do boletim de ocorrência (“Bê-Ó”) da polícia civil, cujo relato é contraditado pelas declarações da vítima-testemunha. É interessante notar que o tipo de reprodução de fragmentos do boletim de ocorrência utilizado serve para corroborar as declarações da vítima-denunciante, apesar de o conteúdo desse documento contradizer as declarações da vítima. A inversão dos papéis no “Bê-Ó” caracteriza o conhecido procedimento de “maquiagem” dos documentos oficiais: o registro oficial da narrativa das ocorrências incorpora apenas os testemunhos dos representantes do sistema de justiça criminal (a parte realmente agressora) cujo estatuto de agente do Estado confere a suas declarações uma veracidade a priori, que não é atribuída às declarações dos cidadãos comuns. A vítima real é situada como agente de uma agressão fictícia (reação à prisão), enquanto os agressores reais aparecem no documento como sendo os pacientes de pretensas agressões e os agentes de uma reação justificada contra o cidadão. A mentira “descarada”, que a vítima-denunciante relata ter-lhe provocado uma particular “revolta”, é uma locução especialmente apropriada para descrever a situação. Caracteriza, sinteticamente, a desconfiança do enunciador em relação ao processamento institucional

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“normal e rotineiro”, associando a expectativa de impunidade dos responsáveis pela deturpação dos fatos ao caráter difuso e dificilmente individualizável de tais fraudes. 228 No entanto, a publicização mediática de uma evidência das perversões dos procedimentos de registro das denúncias pelos operadores do sistema de justiça criminal, por não ser atribuída a qualquer autor individual, acaba comprometendo a legitimidade das ações desse sistema como um todo, além da Polícia Militar. No relato desse motorista espancado, destaca-se também uma interpretação sobre as intenções do policial (“a vontade dele era só bater”). Esse depoimento, no qual a satisfação de “desejos perversos” — e não finalidades pecuniárias— constituía o principal móvel das agressões, diverge da interpretação do telejornal.

5.1.2 — Enunciados derivados I:Vítimas Denunciantes não-testemunhais

A — Sílvio Lemos, vítima-denunciante mediático à própria revelia

É impossível examinar as primeiras aparições de Sílvio Lemos sem considerar as agudas diferenças entre as situações de gravação de seus depoimentos e aquelas encontradas por outras vítimas-denunciantes. O que mais chama a atenção, no primeiro depoimento públicomediático de Sílvio Lemos, é muito mais a sua “moldura” que o seu “desenho”: as condições da sua relação com a equipe de reportagem, implicadas na situação de gravação (a enunciação), são um objeto bem mais ávido de exame que os seus conteúdos proposicionais propriamente ditos (os enunciados). O conteúdo dos enunciados de Lemos acrescenta poucos elementos ao relato inicialmente proposto pelo JNa. Em certa medida, suas declarações criam mesmo dificuldades adicionais para a elaboração do discurso narrativo do telejornal. A edição de imagens, como já se viu, recorre à reprodução de fragmentos da FFN com a voz da vítima-denunciante superposta, como estratégia para intensificar a verossimilhança de ambas as enunciações. Ocorre que, no caso de Lemos, essa operação defronta-se com as incoerências típicas de uma rememoração emocionalmente afetada: o único tiro disparado contra Lemos multiplicou-se em seu relato,

228

Agir “descaradamente” sugere uma ação efetivada sem medo de punição e também sem a identificação individual do agente.

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obrigando a edição de imagens do telejornal229 a atenuar artificialmente essa contradição, repetindo várias vezes o som do tiro (JNa1/33). Já se comentou sobre o aparente contra-senso da ocultação do rosto de diversas vítimasdenunciantes durante o EFN. Aquelas, “enquadradas” na FFN, permaneciam com o “véu” mesmo depois que suas feições já haviam sido publicamente expostas, com nitidez, nas imagens da FFN (por exemplo, em JNa0, JNa1 ou JBa1). Igualmente, os membros das comunidades agredidas permaneceram avessos a expor suas faces, mesmo depois de divulgadas as denúncias contra outros policiais “não-enquadrados”. Se se observa as primeiras denúncias mediáticas de ambos os grupos de vítimas, fica evidente que tal atitude não apenas é intencional, como provavelmente é assumida por iniciativa dos próprios entrevistados (cf. JBa2/12). Todos os gestos feitos para ocultar a própria identidade (mostrar apenas a nuca, aparecer em contraluz, presentificar-se pela sombra projetada em alguma superfície) demonstram o receio, na situação de gravação, com relação à forma pela qual seus enunciados seriam reproduzidos pelos telejornais e, ao mesmo tempo, a necessidade destes em apoiar as declarações através das imagens derivadas do corpo dos depoentes. Desconfiando da sinceridade das equipes de reportagem, as vítimas-denunciantes condicionavam a concessão de entrevistas à garantia imediata de anonimato, isto é, sua realização durante a situação de gravação. Mas nem por isso a cinegrafia dos telejornais saía dos padrões de angulação e iluminação do telejornalismo comercial. Ora, o que salta aos olhos no primeiro depoimento mediático (JNa1/33) de Sílvio Lemos é a total despadronização dos enquadramentos e a baixa resolução da imagem. Os quadros são muito abertos, a ponto de distorcer objetos próximos (efeito da pequena distância focal das lentes grande-angulares), deixando aparecer a equipe de reportagem e colocando os elementos de maior interesse fora das áreas de destaque visual. A granulação da imagem deve-se à iluminação insuficiente do local da gravação. A vítima-denunciante não demonstra, estranhamente, qualquer preocupação em ocultar seu rosto durante a gravação: as feições de Lemos foram disfarçadas a posteriori, na edição de imagens. Fica óbvio que, nesse caso, o “véu” foi uma opção do ator-midiador, que preferiu “preservar sua fonte”. Lemos não parece sequer ter se preocupado em usar trajes mais “elegantes”: aparece de camiseta cavada e

229

A edição de imagens continua a superpor a locução das vítimas-testemunhas com fragmentos da FFN.

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shorts, sentado à beira de uma cama, em uma informalidade não encontrada em nenhuma outra enunciação proveniente das vítimas-denunciantes. Haja visto que em ocasiões posteriores Lemos se apresenta em trajes formais e bastante amedrontado, fica demonstrado que a equipe de reportagem recorreu, à revelia do “entrerevistado”, ao ardil da câmera cândida para obter o depoimento acima. A reportagem não estabeleceu — talvez porque não pudesse estabelecer— um acordo para a gravação da “conversa” com Lemos, assim como o cinegrafista FRV não perguntou aos PMs do 24°BPM se podia videografá-los batendo nas pessoas: se é evidente que os estatutos dos envolvidos e a natureza das ocorrências registradas em uma e em outra situação de gravação são substancialmente diferentes, tornam-se equivalentes no aspecto da dependência do uso da câmera cândida. Se os sujeitos que aparecem soubessem do caráter público-mediatizável de seus atos e palavras, é provável que em ambos os casos nenhuma imagem pudesse ter sido registrada. A motivação desse ardil, justificável na primeira situação, torna-se bastante obscura no caso da “entrevista” com Lemos. O próprio telejornal oferece os elementos para esclarecer seus motivos. O JNa abre sua edição do segundo dia do EFN anunciando triunfalmente a exclusividade do depoimento de Sílvio Lemos: JNa1/2 (Apresentadora/ sincro): “Exclusivo. O Jornal Nacional encontra o rapaz que escapou por um triz... dos pê-emes carrascos de São Paulo. O repórter Marcelo Rezende ouviu o depoimento desesperado do sobrevivente.”

Sem disfarçar o orgulho pela “entrevista”, o telejornal valoriza o testemunho através do destaque às condições adversas à proferição, de alguém que “escapou por um triz” e se encontra “desesperado”. O esforço para a obtenção do depoimento é não somente camuflado como também sutilmente invertido no enunciado da apresentadora: diz que o repórter “ouve” a vítima-denunciante, sugerindo que ele se encontrava em uma posição passiva em relação à pretensa iniciativa da vítima (seria completamente diferente se ela introduzisse a “matéria” dizendo que o repórter “procurou” a vítima). Na reprodução da “entrevista”, a autopromoção do JNa articula-se como ironia ao Governador de São Paulo:

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JNa1/3 (FFN/sinc): “ (Repórter/off): “O tiro não acertou. O rapaz que todo o Brasil viu ser humilhado e espancado pelos policiais... levou uma semana para se recuperar dos ferimentos e voltar a andar.” (Lemos/sinc230): “Não conseguia nem deitar porque a cabeça estourava” (Repórter/off): “Traumatizado vive escondido... e guarda uma estória que só ele pode contar !” (Governador Covas/sinc231): “Essa pessoa não foi localizada até agora” (Repórter/off): “ Mas nós o encontramos. E ouvimos tudo que ele tem para dizer. A história completa desse sobrevivente, ainda nessa edição... do Jornal Nacional. .”

Note-se que o curto trecho da entrevista coletiva do governador paulista não havia sido exibido anteriormente, e que tampouco se encontra inserido em partes posteriores do telejornal. Torna-se, portanto, impossível determinar a relação desse fragmento com o conjunto da proferição desse enunciador. Dada a disposição do JNa em intermediar e mediatizar os procedimentos institucionais (vide Seção 4.1), é possível que a pergunta feita ao governador tivesse sido premeditada pelo telejornal, visando exibir a resposta em uma montagem “irônica”. Essa montagem, além de desqualificar o emissor oficial (que “confessa” suas limitações), legitima a auto-atribuída capacidade da equipe de reportagem em encontrar a vítima-denunciante. O telejornal reverte, na publicização mediática, as limitações que lhe foram impostas pelo emissor oficial, durante a “coletiva de imprensa”, buscando retomar o controle sobre as condições de interlocução. O depoimento de Lemos, depois de utilizado como um chamariz para a manutenção da teleaudiência, foi reproduzido ao final do Jna1: JNa1/29-30 (Apresentadora/sinc): “Exclusivo: o repórter Marcelo Rezende encontra o rapaz que sobreviveu à tortura e escapou da morte. Ele jamais teve passagem pela polícia, e diz que não vai esquecer o pesadelo” (Repórter/off): “Meia-noite e oito minutos. Reparem neste rapaz que tenta passar desapercebido logo no início da operação. O nome dele é Sílvio... e ele vai voltar. Doze minutos depois, a arma de Rambo pára um carro. E lá está o rapaz. Os pê-emes se irritam com Sílvio... Querem saber por que ele voltou. Silvio explica que o carro e a namorada dele tinham ficado em outra parte da favela. Não tem argumento. A namorada, esta loura que aparece no canto da imagem, e outras possíveis testemunhas foram dispensadas. Sílvio fica sozinho, e é levado para trás de uma parede. Começa o espancamento.... Rambo leva um cassetete. Os gritos de dor aumentam < 230

Refúgio de Lemos em lugar não-identificado.

231

Sala de imprensa do Palácio Bandeirante

195 bordoadas, gemidos, choro; —Ai meu Deus! Aiaiai!>. Mesmo diante da súplica de Sílvio, o pê-eme balança a cabeça e chama o parceiro. Ele caminha com naturalidade, arma em punho. Trinta segundos depois, um tiro... e o silêncio. Este rapaz parado um pouco antes foi esquecido num canto. Exatamente na hora em que Sílvio apanhava. O rapaz viu tudo.”

A condição de “testemunha” do “rapaz esquecido num canto” é bastante duvidosa: há uma defasagem de três minutos entre o momento do espancamento de Lemos e o da primeira aparição da “testemunha” na FFN. O trecho acima contextualiza o enunciado, situando Silvio Lemos nos acontecimentos tele-enunciados na noite anterior, e também estabelece a posição do telenarrador e do telenarratário, este em uma condição de espectador privilegiado,232 aquele na de vítima-testemunha vicária. Note-se que o texto da reportagem é bastante redundante, verbalizando informações já acessíveis através das vídeo-imagens exibidas. O fluxo verbal parece servir como dispositivo de manutenção da continuidade do relato, conectando os fragmentos da FFN utilizados na edição. Além disso, o nível narrativo criado na locução permite que o repórter constitua a hipotética perspectiva dos agressores em continuidade com a perspectiva dos “espectadores privilegiados”, midiadores e “telespectadores”. Nesse caso, a não demarcação entre o que é certo e o que é presumido atua como um reforço retórico da pretensão de objetividade do relato, que pretende descortinar as intenções e atitudes dos policiais, que, efetivamente, são insondáveis ao narrador.233 As condições adversas a que Lemos foi submetido durante o processamento institucional do EFN são destacadas várias vezes (JNa3/12, SPT25, CAl25, TJB25, JMa25). Esses relatos demonstram a negligência tanto do sistema de justiça criminal quanto dos telejornais em deixar de evitar a exposição pública das vítimas da violência policial. Lemos foi, por duas vezes, colocado, à sua revelia, na posição de vítima-denunciante: primeiro, quando sofreu as agressões dos policiais militares, sendo também “capturado” nas cenas da FFN; em seguida, foi forçado, devido ao uso da câmera cândida pela reportagem do JNa, a tornar-se uma vítima232

O “olhar privilegiado” do telejornal caracteriza a representação de seus produtores de texto enquanto narradores oniscientes (dotados de conhecimento de todos os detalhes anteriores, presentes e futuros) e heterodiegéticos (situados fora do espaço-tempo dos fatos relatados, e nesse caso, fora da sociedade e do tempo histórico). 233

Em outros termos, o discurso do telejornal constrói parte do relato segundo a focalização interna, isto é, conforme a projeção da perspectiva própria de cada agressor. Esta focalização interna é sempre hipotética, pois não é acessível ao narrador, ainda mais quando ele origina uma narrativa com pretensões de objetividade (focalização externa). Para esconder o caráter simulado da imputação dos móveis das ações dos agressores, o telejornal é obrigado a camuflar a distinção entre o que é perceptível e o que é suposto.

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denunciante individual. Pode-se afirmar que Sílvio Lemos foi paciente da brutalidade física dos policiais, da “captura” videográfica da FFN e, em seguida, da violência simbólica da reportagem do JNa, que o comprometeu enquanto denunciante dos crimes. Nessa condição, Lemos viu-se obrigado a confirmar suas denúncias em contextos institucionais (tribunais, parlamento estadual) e a revelar publicamente seu rosto, como uma defesa contra as ameaças que teria recebido (SPT25, CAl25, TJB25, JMa25), passando a depender da proteção do Estado. A fragilidade dos dispositivos de proteção às testemunhas ficou evidente, durante o EFN, através do destaque dado ao contraste entre o volumoso aparato logístico mobilizado pela polícia militar para a segurança dos acusados e a extrema precariedade das medidas adotadas para proteger as testemunhas, durante as audiências no Fórum de Diadema. Enquanto a escolta dos PMs acusados contava com várias dezenas de policiais, os poucos — apenas dois — policiais civis destacados para acompanhar as testemunhas atuavam de modo desorganizado e negligente, a ponto de, na chegada e na saída, Lemos ter sido obrigado a ser transportado no porta-malas de um carro, por medida de segurança.234 É interessante reparar que os pertencimentos étnicos dos envolvidos não foram tematizados durante o EFN. Isso demonstra que o tema dos conflitos interétnicos no Brasil sequer chega a ser constituído como problema politicamente relevante. Os telejornais passam ao largo das evidências trazidas pelos traços étnico-fenotípicos dos policiais agressores e das vítimas da violência policial. A possibilidade de tematização desses conflitos aparece quando se avalia a “distribuição racial” de agressores e agredidos: das quatro vítimas de tentativa de assassinato (Sílvio Lemos, Jefferson Caputi, Antônio Carlos Dias e Mário José Josino), três são afrobrasileiros; a maioria dos policiais agressores exibe traços caucasianos; distintamente, os PMs mais agressivos (os soldados-pm O. L .Gambra e Nelson S. da Silva Jr.) são “brancos”. Se se observarem os fragmentos da segunda videodenúncia (a fita da Cidade de Deus, exibida no JNa7 — vide a subseção 5.1.3b), será possível notar que esse quadro se repete. Tais evidências sugerem que os telejornais brasileiros não dispõem de quadros cognitivos que os permitam problematizar o preconceito racial que está associado aos parâmetros discricionários da polícia brasileira.235 234 235

Cf. declarações do deputado estadual Carlos Sampaio em JMe22.

KANT DE LIMA, 1997. p. 181; KANT DE LIMA, 1995. p. 84, 86, citado por TAVARES DOS SANTOS, 1997. p. 163; PAIXÃO & BEATO, 1997. p.233; TAUTZ. O delegado dos excluídos. Entrevista com Hélio Luz. Caros

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A não problematização dos conflitos interétnicos fica mais evidente quando se comparam os textos dos telejornais brasileiros com os dos congêneres estadunidenses, quando estes denunciaram o espancamento do motorista Rodney King e “cobriram” os tumultuosos desdobramentos do julgamento dos policiais agressores (Los Angeles, 1992): “When four members of the Los Angeles Police Department were acquitted of beating a black motorist, Rodney King, the city went in flames. ...”. 236 O caráter incipiente da tematização das questões étnicas nos discursos públicos do EFN parece ter sido geral e não limitada unicamente pela orientação editorial dos produtores de telejornais. A falta de percepção dessa dimensão das ocorrências parece ter se estendido até mesmo aos enunciadores das organizações autônomas da sociedade civil, ou, pelo menos, não foi encontrada nenhuma menção ao assunto nos telejornais examinados. B — Famílias Destruídas, pedidos de justiça, desejo de vingança

Os enunciados dos familiares de Mário José Josino emergem no espaço de visibilidade do EFN principalmente nos três dias posteriores à denúncia telejornalística inicial. Fica claro, pela relativa falta de preparação dos entrevistados para as situações de gravação, que as enunciações da “família da principal vítima” foram resultado das iniciativas das equipes de reportagem, embora contando com a aquiescência da família. De modo geral, as condições observadas nas enunciações da família de Josino são repetidas nas das outras vítimas individuais, que foram exibidas logo depois da denúncia mediática inicial. Nenhum desses enunciadores toma qualquer atitude para garantir seu anonimato, nem são utilizados, pela edição dos telejornais, quaisquer dispositivos para camuflar suas identidades. Evidencia-se a inexistência de constrangimentos sobre estas vítimas, por parte dos possíveis acusados, provavelmente porque estas não ocupam a posição de testemunhas de quaisquer de crimes policiais. Amigos, Ano 1, n.19, out. 1998. p. 34b; BARCELLOS, 1993. p. 75; ZAFFARONI, citado em Especial para a Folha. 'Cara de prontuário' é alvo constante. Folha de S. Paulo, 6 de abril de 1997. p. 3-2. Editoria: Cotidiano; NAGIB, A Imagem do Negro. Imagens n°4, abril de 1995. p. 114a-116a. (Participação de MUNIZ SODRÉ no seminário promovido pela Folha de São Paulo e pela Imagens em 21 de dezembro de 1994); BRETAS, 1997. p. 81. 236

O “caso Rodney King” é em muitos aspectos semelhante ao EFN: trata-se igualmente de um evento públicomediático desencadeado por uma videodenúncia anônima de um crime cometido por agentes do estado contra um cidadão; de modo semelhante, o processamento institucional do caso também suscita grande descontentamento popular. O maior destaque às etnias dos envolvidos neste caso emerge em um contexto discursivo público onde há muito (desde o movimento dos direitos civis dos anos 60) o problema das relações inter-etnicas encontra-se tematizado, tornando-se necessário para a compreensão dos violentos distúrbios subseqüentes ao primeiro julgamento dos policiais agressores (brancos). Ref. LOON. Of/in the Televisualisation of the 1992 Los Angeles Riots. Telos, n. 106, inverno de 1996, Nova Iorque, p.89.

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A inclusão das declarações das famílias das vítimas no texto do EFN não parece corresponder a demandas propriamente “factuais” da narrativa dos telejornais, pois através delas nenhum novo indício é adicionado ao relato dos crimes. O deslocamento do foco narrativo para o plano das transformações concretamente vividas pelas famílias vitimadas pela brutalidade policial parece, antes, derivar-se da necessidade de evidenciar as implicações morais das ocorrências, aproximando a experiência vivida das vítimas àquela dos “telespectadores”. A descrição das condições da família de Mário Josino, após seu assassinato, ocupa todo final do JNa (dois minutos e meio). JNa1/37 (Apresentador —estúdio/sinc): “Na família do mecânico, a dor e a insegurança... diante da truculência da Pê-eme.”

JBa1/4 (Âncora/sinc): “Quando Mário Josino chegou ao hospital, já era madrugada do dia sete de março. Depois de então, a vida da família dele desmoronou. Mesmo temendo a polícia, os parentes e amigos deram queixa, prestaram depoimento... fizeram tudo que têm de fazer... quem espera justiça. E é isso que eles pedem hoje... justiça.”

No dia seguinte, é relatado um caso semelhante, com imagens igualmente pungentes de uma “família destruída” pela violência policial, que mora em Brasília. A mudança de referência geográfica consolida o caráter iterativo do relato. JNa2/16 (Repórter/off): “Muitos vieram pessoalmente, como Ana Cláudia Souza. O marido dela foi morto à queima-roupa..., por um cabo da Pê-eme de Brasília... quando passeava com a filhinha de dois anos. O inquérito, feito na Pê-eme... alega legítima defesa do policial... contra testemunhas... que falam em assassinato a sangue-frio.”

É significativo que o JNa2 tenha relatado uma série de casos de “famílias destruídas” (seq. 11 e 16), depois da especialmente impactante exibição (JNa1/37 a 44) das condições adversas da família de Mário J. Josino. Por se tratarem de casos cujos relatos já se encontravam disponíveis para as equipes de reportagem, é concebível que esses episódios não houvessem ainda encontrado um contexto discursivo público (a problematização da violência policial) capaz de levar os midiadores a considerá-los suficientemente relevantes e passíveis de serem incluídos nos telejornais.

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Na configuração do EFN enquanto contexto discursivo-narrativo, o relato de outras “famílias destruídas”, além da de Mário Josino, tem uma importância particular para a manutenção da freqüência iterativa do relato das ocorrências de violência policial. Como a focalização das experiências vividas das vítimas é fortemente descritiva e imprime uma tendência singulativa ao discurso, a generalidade, desejada para a narrativa dos crimes como um conjunto, necessita ser restituída pela repetição de relatos semelhantes. Em quase todas as enunciações das vítimas não-testemunhais, as vídeo-imagens são registradas no interior de espaços domésticos ou em espaços de passagem contíguos. Há uma referência muito freqüente aos estados emocionais das vítimas e de seus parentes, tanto no plano dos enunciados verbais quanto no das atitudes corporais. A edição dos telejornais tem clara preferência pelas expressões de pranto, desespero e desconsolo. São registradas e reproduzidas, com particular destaque, as faces das crianças órfãs. A edição, repetidas vezes, incorpora fotografias familiares, para intensificar o apelo pessoal dos relatos. As vídeoimagens e fotografias dos ambientes domésticos, além disso, evidenciam a comum condição econômica desfavorecida das vítimas da violência policial selecionadas pelas equipes de reportagem. Em geral, os denunciadores não-testemunhais aparecem ocupando simultaneamente três diferentes lugares na narrativa dos telejornais: são pacientes de ações ocorridas (sofreram a perda do ente querido), agentes de processos em andamento (são demandadores em ações judiciais e/ou buscam vingança) e beneficiários dos atos futuros (satisfação com as punições dos acusados e com as indenizações pagas pelo Estado). Se essa superposição é perceptível como o padrão geral de incorporação das proferições das vítimas-testemunhas individuais no EFN, foi nas aparições da “família vítima principal” que esses traços foram melhor evidenciados. Josino, representado alternadamente por fotografias de família, por sua lápide no cemitério, e nos trechos da FFN (JNa1/40), tem suas aparições articuladas no relato de seu não relacionamento com a polícia, que estabelece também a inexistência de possíveis antecedentes criminais. JNa1/38 (Repórter/off): “Um homem alegre, trabalhador, mas com muito mêdo da polícia.”

200

JNa1/39 (Efigênia Josino/sincro): “O meu irmão, ele tipo-assim, ele tinha horror à polícia... Ele não chegava perto de polícia.”

Ambos os telejornais reproduzem as imagens da modesta moradia da família de Mário: JNa1/43 (Repórter/off): “A casa onde Mário Josino morava, com a mulher e um filho de nove anos está fechada. Era Josino, que trabalhava como mecânico, quem mantinha a família” JBa1/5a (Repórter/off): “Mário José Josino assassinado por policiais no dia sete do mês passado, morava nos fundos dessa casa, que fica a cinco quilômetros de Diadema. No quarto e cozinha de vinte metros quadrados, ele vivia com a mulher, Josélia, e o filho Kleiton, de nove anos. Os vizinhos dizem que ele era boa gente, e muito trabalhador.” (Vizinha de Josino/sinc): “Mário era uma ge... era uma pessoa maravilhosa... maravilhosa mesmo, amigo, muito amigo...” (Repórter/off): “A mãe de Mário, Efigênia, conta que dos dez filhos, ele era o que mais a ajudava.”

É notável a diferença de abordagem entre os telejornais. O JNa toma o mínimo distanciamento (não demarca as mudanças de voz e nível narrativo) e reproduz as imagens de maior impacto emocional:237 o pranto compulsivo e convulsivo da viúva, a face desconsolada do órfão, a imagem do tiro mortal repetida ad nauseam. Já o JBa mantém seu discurso diferenciado do discurso dos familiares o suficiente para que se constate as diferenças entre as reações da irmã e as da mãe de Josino: JNa1/44 (Repórter/off): “Amedrontada, desolada e sem dinheiro... a mulher se mudou para a casa dos pais.” (Josélia Ribeiro Josino/sincro): “Ihhh Um homem bom... sempre cuidou... sempre preocupava comigo e com o filho dele... era tudo... ele era tudo pra mim e pro meu filho... Ihhh!...” (Josélia/off) “... e fizeram uma coisa dessa com ele, gente, não pode! .”

JBa1/5b (…) (Repórter/off): “Ela [a mãe de M.J.Josino] está chocada, e se preocupa com o futuro do neto... mas diz que segue uma seita budista... e até faz orações para os assassinos do filho.” (Efigênia Josino/sinc): “Eu peço pra eles, que eles entende... o erro que eles fizeram. Que se arrepende que... que peça perdão também do erro que eles fizeram, né?” 237

A situação pode ter sido preparada pela reportagem e ter estado fora de controle dos atores: Josélia Josino, talvez estimulada à explosão emocional, não olha para câmera, enquanto seu filho, no colo, olha direto para a câmera, rosto contraído, expressão de desconsolo e perplexidade.

201 (Repórter/off): “A irmã de Mário está revoltada. Ela quer justiça. Pra ela, todos os dez pê-emes são culpados.” (sinc Evangelista Josino/sinc): “Quem matou meu irmão foi todos eles que matou. Os dez matou meu irmão.. então os dez tem que.. levá o.. tem que ser punidos. Não é só um, dois, não.”

Ambos os enunciados, da mãe e da irmã da vítima, representam as ocorrências singulativamente, culpando o grupo de policiais presentes no momento do assassínio. As vítimas fazem referência às agressões remetendo ao contexto local das ocorrências e as compreendem segundo parâmetros ético-morais. Individualizam os “culpados” e não buscam, aparentemente, definir possíveis dimensões institucionais e político-ideológicas das ocorrências. Foi somente no quarto dia do EFN que o JBa exibiu uma entrevista com a viúva de Mário Josino, Josélia R. Josino. A entrevista foi gravada na casa da mãe de Mário. A vítima expressa-se de modo articulado, falando pausadamente, voz baixa e suave. Essa enunciação, contudo, não deixa de ter um grande impacto emocional, devido aos freqüentes olhares da viúva e do filho órfão dirigidos para a objetiva da câmera. O distanciamento do espectador em relação àqueles enunciadores é, nesse momento, mínimo. A singularidade dessa enunciação deriva-se do caráter incomum dessa atitude, que quase nunca é assumida por pessoas com pouca experiência em entrevistas televisivas: tem-se a nítida impressão de que Josélia Josino dirigia seu olhar para pessoas determinadas, para aqueles que temia e, depois, para as pessoas que lhe pudessem oferecer ajuda. JBa3/12 (Apresentador/off): “A viúva do mecânico Mário Josino, assassinado pelos policiais de Diadema... revela que até hoje não teve coragem de assistir à fita em que aparece a execução do marido. Josélia está sem dinheiro. O salário de Mário... era a única fonte de renda da família. Além disso ela conta que o filho de oito anos... não quer ir pra escola e está com medo dos policiais . (Josélia/sinc): “Ele quando viu a polícia, o carro da polícia, ele cc... p... g... grudou em mim, apertou meu irmão, abraçou meu irmão, ficou com o olho arregalado. Então ele fala: ‘Mãe... e... e eles não vão fazer nada com a gente?’. Falo: ‘Não, filho, eles não vão fazer nada, eu espero que não faça nada né?...” (Josélia/off): “...que o menino tá muito assustado.” (Josélia/sinc): “ ‘Que foi, que levaram... levaram meu pai e agora? Quem vai... quem vai... cuidar de mim?’, às vezes pergunta ‘Mãe?’, pra mim sozinho, [sendo que é ??] eu e meu filho, ‘Quem vai cuidar da gente agora, mãe, quem vai poder ajudar?’. Aí eu fico... sem... resposta... [sabe?]”

202

O absurdo vivido pela família destruída é representado em ambos os telejornais, mas é reproduzido no JBa de maneira mais sóbria. A aparição de Josélia R. Josino nesse telejornal é, primeiro, introduzida pelo âncora: JBa3/11 (Âncora/sinc): “Hoje a comissão de Direitos Humanos foi até a casa da mãe do mecânico Mário Josino. As organizações de Direitos Humanos vão dar assistência jurídica e financeira à família.

A situação de desamparo da família de Josino, representativa das inúmeras famílias vítimas da brutalidade policial no Brasil, parece minorada pela intervenção da instituição parlamentar e de organizações da sociedade civil. A participação desses sujeitos, de modo simbólico, reintegra o assassinato de Josino ao tecido das práticas sociais e à ordem democrática. Dessa maneira, ao invés de o crime permanecer em uma dimensão de caso particular e como um absurdo sem resposta, é publicamente associado às atividades do poder legislativo e das organizações autônomas da sociedade, que buscam demonstrar e garantir a prevalência da solidariedade e do Estado de Direito. Deve-se, contudo, reconhecer os limites da representação dessa reintegração no fragmento acima: os atores coletivos empenhados são identificados precariamente (cf. Seção 5.2.2); a representatividade da situação da família de Josino não é explicitada nesse momento. Embora não tenha sido possível comprovar a efetividade da assistência prometida à família, é concebível que esta a tenha recebido. No Fórum de Diadema, durante a audiência dos réus (os policiais agressores denunciados pela FFN), aparece um enunciador não anteriormente exposto, o advogado João Tancredo. Esse advogado atuou ao lado do Promotor de Justiça de Diadema (José Carlos Guillem Blat) na acusação dos policiais agressores. Tancredo, que aparece em outras oportunidades como o representante legal da família de Mário Josino, foi responsável por mover ações indenizatórias contra o Estado de São Paulo, em favor da família de Mário Josino. JBa11/7 (João Tancredo/sinc): “Lamentavelmente é uma conduta rotineira da polícia militar. Só que dessa vez tinha um cinegrafista.. que os flagrou fazendo isso.” (Repórter/sinc-extracampo): “Tem alguma condição de absolvição?” (J. Tancredo/sinc): “Não há nenhuma condição de absolvição [no caso].”

203

A hipótese da participação de organizações autônomas da sociedade civil (vide abaixo) parece ser sugerida pela freqüência discursiva (claramente iterativa) adotada por Tancredo para a narração das ocorrências registradas (e o próprio registro) da FFN. Como tem sido observado, o discurso iterativo emerge em todos os discursos de representantes desse tipo de organização (por exemplo, a Anistia Internacional, a Human Rights Watch ou os “jovens de Diadema”). Além isso, através de informações da Folha de S. Paulo, 238 descobre-se que o currículo de João Tancredo inclui precedentes colaborações com Organizações Não Governamentais (ONGs): trabalha para a ONG “Bateau Mouche Nunca Mais” (composta por parentes das vítimas de um famoso naufrágio), movendo ações para a obtenção de indenizações, por parte de empresas particulares e do Estado.

5.1.3 — Videodenúncias primárias I: O Anonimato e a “Câmera Cândida” como estratégias de enunciação das Comunidades Agredidas (Moradores de periferias urbanas)

A — As condições da produção da FFN e de sua publicização

Um elemento característico das enunciações das vítimas-denunciantes, bem evidente nas suas primeiras aparições, é a atitude arredia assumida nas situações de gravação, nas quais a exposição público-mediática de faces e nomes próprios é evitada ao máximo. Essa tendência emerge também, freqüentemente, pela mediação da enunciação desse grupo de emissores pelo discurso de repórteres, apresentadores e âncoras dos telejornais, nas ocasiões em que as vítimas-denunciantes sequer aceitavam gravar entrevistas. Essas reações podem ser explicadas à luz de diversos fatores. Seu motivo mais evidente é o temor de represálias. Para muitas das vítimas-denunciantes pertencentes à comunidade agredida, é provável que nem mesmo o velamento do rosto parecia oferecer uma defesa suficientemente segura. Do ponto de vista da edição dos telejornais, há que se reconhecer que, dado o despreparo específico de pessoas comuns e das populações marginalizadas para a proferição de discursos articuláveis na construção do texto telejornalístico, é provável que, para o midiador, se tornasse freqüentemente preferível evitar

238

VERGARA. Família pede indenização. Folha de S. Paulo, 12 de abril de 1997, p. 3-5, editoria: Cotidiano; FSP23: Parentes de morto por policial em Diadema querem R$ 15 mi. Folha de S. Paulo, 23 de abril de 1997, p. 3-4, editoria: Cotidiano.

204

reproduções miméticas dos enunciados dos moradores.239 Desse modo, a reprodução videográfica foi reservada aos (raros) fragmentos sintéticos, ou para as expressões gestualmente ricas ou emocionalmente pungentes dos populares. Outro fator importante para a imbricação (e tendencial indiferenciação) entre os discursos da comunidade agredida e os dos telejornais estaria relacionado às expectativas mútuas de confiabilidade pública de ambos os atores. É possível que os midiadores e também as vítimas-denunciantes tenham considerado o repórter, o apresentador ou o âncora como emissores publicamente mais confiáveis do que seriam os moradores, embora fossem estes últimos as fontes da maioria das informações. As primeiras reportagens que mostram o lugar dos crimes policiais (e a típica fealdade e degradação das favelas brasileiras) emergem nos telejornais logo depois dos testemunhos das vítimas das brutalidades videografadas. Os primeiros enunciados oriundos da comunidade agredida (a Favela Naval) aparecem no dia 1o de abril de 1997, formatadas como uma seqüência de declarações de moradores. Nessas declarações, as vítimas-denunciantes comunitárias circunscrevem o alcance temporal e a regularidade das “operações”: já havia seis meses que os policiais militares, “noite sim, noite não”, faziam incursões violentas no local.240 As referências à produção da FFN só emergiram nos enunciados dos moradores do dia seguinte (2 de abril). A emissão e a difusão das declarações dos moradores resultaram principalmente da iniciativa das várias equipes de telejornalismo. Logo após a denúncia mediática inicial, os repórteres e cinegrafistas acorreram ao local dos crimes policiais video-denunciados, para relatar as presumíveis mudanças das condições de vida dos moradores decorrentes da publicização das imagens da FFN. Esses enunciados, pelo que se pode depreender das situações de gravação, foram emitidos mediante o estabelecimento de acordos informais entre os dois coenunciadores (repórteres e moradores): os denunciadores concordavam em conceder entrevistas apenas se pudessem permanecer no anonimato. A tarefa de elaboração narrativa 239

O tipo de expressão das populações marginalizadas torna suas falas dificulta seu tratamento segundo os procedimentos “normais” de construção do texto dos telejornais. Isto acontece devido às características da oralidade ágrafa dos enunciados, cujo sentido depende grandemente de fatores contextuais e extralingüísticos, e da relativa limitação lexical, que exige enunciados mais extensos e pouco sintéticos. Estas restrições são agudizadas pela tentativa recorrente desses enunciadores de utilizarem um registro discursivo abstrato, cujo não domínio efetivo compromete a clareza das declarações, e pela falta de treinamento específico de locução (pronúncia pouco clara para a captação eletrônica). 240

JNa1/4 e 6; JBa1/13 e 17

205

dos telejornais estendeu-se à descrição do cotidiano dos moradores da FN, ao relato das suas ações diante das agressões sofridas, além da caracterização das recentes mudanças em seu cotidiano. A “matéria” do JBa começa com o convencional plano geral da favela, com vários moradores andando pelas vielas e esgueirando-se para sair do campo escópico da câmera da reportagem (que mostrava apenas as suas sombras); outros, simplesmente, viravam seus rostos. A desconfiança em relação à presença de jornalistas e radialistas e, principalmente, a apreensão diante da imposição de uma visibilidade público-mediática fica patente e, por assim dizer, visível. Contudo, esse comportamento foi interpretado, na locução off da reportagem, apenas como resultado do medo de represálias por parte dos policiais de Diadema. JBa2/12a [#99] (Repórter/off): “O medo ainda impera na Favela Naval. Ninguém quer dar o nome. Entrevista, só de costas. Mesmo com a exibição das imagens de violência policial, viaturas continuam atravessando a Favela, intimidando os moradores.”

A reportagem segue, salientando a continuidade do “medo” dos moradores e justapondo as imagens da FFN com imagens de viaturas policiais “rondando” a favela naquele dia. A inserção de vídeo-imagens de viaturas policiais passando é articulada para representar a “ameaça permanente, mesmo à luz do dia”. A locução off do repórter e o depoimento de um morador (sempre com o rosto velado) interpretam as causas da permanência da ameaça, como o resultado da impunidade de outros PMs do “bando” do “Rambo”. Outro off reproduz o primeiro enunciado “da comunidade” sobre a origem da FFN: JBa2/12b (Repórter/off): “Esse senhor conta que foram os próprios moradores cansados de apanhar e de fazer denúncias que nunca foram investigadas... que gravaram o vídeo. Ele denuncia também... outro policial violento, que não esta preso. < —Um desses policiais mau é um tar de Zapata. >” (Repórter/sinc): “O senhor tem medo ainda... desse pessoal ?” (morador/sinc): “[Não tem jeito,?] quem é que não tem, moço?”

O tema da participação dos moradores na gravação é tratado sem maiores destaques, no caudal das denúncias contra policiais violentos, e, ainda assim, apenas através da voz do repórter. O enunciado é reproduzido na locução off, superposta à voz (em background) do

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morador (ainda) não identificado. Aparece, nesse trecho, o sutil jogo de apropriações e indefinições de níveis de discurso narrativo do “pseudo-sinc”, articulação que se repetiu, várias vezes, nas reproduções das denúncias “comunitárias”: a locução off do repórter, sobreposta à imagem do morador, cria um efeito de dublagem que permite aos discursos se interpretarem mutuamente. Os enunciados do repórter ganham valor testemunhal (tornam-se mais miméticos), enquanto os dos moradores tornam-se mais “elegantes” e mais adequados para a circulação público-mediática. Permanece ainda pouco consistente a atribuição da autoria da FFN à comunidade agredida, pois, nesse momento, a preocupação da reportagem parece ser destacar as novas denúncias contra PMs, emersas da azáfama das equipes de reportagem na favela. No JNa, como de hábito, não há nenhuma menção ao contexto da produção da FFN. Foi em um telejornal do SBT que surgiram referências um pouco mais consistentes sobre a participação de moradores da FN na produção da FFN: TJB2/4 (Repórter/sinc): “O motivo deste medo também seria a fita com as imagens... da violência policial. Algumas pessoas aqui da favela... garantem que a idéia da gravação... foi dos próprios moradores... que já não agüentavam... mais tanta selvageria. O que eles queriam também... era uma prova... que sustentasse... o que há algum tempo... vinham denunciando à polícia... sem nenhum efeito.” (Repórter/off): “Na Naval... não se sabe quem... e de onde operou a câmera. O silêncio... é uma garantia. Ninguém confirma... e nem nega... que traficantes locais... tenham ajudado na elaboração da fita.”

A edição desse telejornal, embora relate, como os demais, a permanência do medo entre os moradores, preocupa-se bem menos em demonstrá-lo visualmente: não mais sombras no chão ou rostos virados são empregados para ilustrar o off, mas várias rodas de moradores (não identificados) conversando, descontraídos e sem esconder o rosto. Em seguida, porém, é exibida uma entrevista com uma moradora (que esconde sua identidade), gravada fora do espaço aberto das “ruas” da favela, em um beco situado entre dois sobrados de alvenaria. (Repórter/off): moradores.”

“Esta mulher, que prefere não se identificar... confirma... a mobilização dos

(Moradora/sinc): “[Precisava ?] de uma prova, e a prova os cára lá já têm... que não é os bandido que tá fa.. matando as pessoa aqui, é os policial... que tá matando.”

207

A declaração, embora “incrustada” no enunciado do repórter, corrobora outras narrativas que colocam os moradores na posição de autores da video-denúncia, ou, pelo menos, como seus colaboradores diretos. Mais que isso, a referência à FFN como uma “prova” parece demonstrar que, do ponto de vista da comunidade agredida, a mediação da videografia representou um recurso privilegiado para a produção de evidências (JBa2/12, TJB2/4, OpN4/7). O uso cândido e anônimo da videografia mostrou suas vantagens, por exemplo, na situação de impasse criada em uma entrevista com um dos moradores,241 no programa OpN, de 4 de abril. A repórter, depois de fazer, em vão, várias perguntas sobre a produção da FFN, acaba por desistir de inquirir o morador diante da insistência desse em calar o que sabe sobre a produção da fita (OpN4/7). O discurso e o silêncio do morador, nessa situação, pode ser tomado como representativo da atitude da comunidade da Favela Naval como um todo. Ele situa o conjunto dos moradores como sendo os originadores da denúncia mediática inicial do EFN, esquivando-se, assim, dos perigos implicados em assumir individualmente a iniciativa da gravação. Apesar de não ser possível afirmar que os moradores tivessem, de fato, recorrido às vias institucionais “normais” para a solução do problema, 242 pode-se afirmar que a videogravação foi, provavelmente, a única forma de ação de que os moradores da favela dispunham para dar veracidade ao seu relato, com riscos suportáveis. Sem dúvida, a videodenúncia cândida constituía uma alternativa bem mais aceitável do que a (temerária e provavelmente inócua) opção por encaminhar denúncias formais às autoridades judiciárias — ou mesmo à tevê comercial. No dia 4 de abril, emergiu (finalmente) como interlocutor o cinegrafista responsável pela gravação da FFN. Esse enunciador, como já se discutiu, encontra-se investido tanto das funções de midiador, quanto das de cidadão denunciador anônimo. Saindo do anonimato do extracampo e da mudez da “campana”,243 Francisco Romeu Vanni (FRV) permanece ocultando sua identidade: aparece somente de costas na reportagem feita na FN e como 241

Trata-se do um morador de cabelos grisalhos encaracolados que apareceu várias vezes antes, com o rosto oculto, e que é agora identificado como o aposentado Paulo de Oliveira. 242

O OpN4/7 relata que não registraram denúncias formais por medo de retaliações, o que oferece uma versão tão verossímil quanto a das denúncias impunes, do TJB2/4. 243

É interessante notar que o termo “campana”, utilizado por FRV para denominar a observação camuflada de possíveis fatos noticiáveis, é o mesmo utilizado pelos policiais nas atividades de investigação furtiva de possíveis ações criminosas.

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sombra projetada na entrevista ao vivo durante o JBa4. É provável que ele tenha imposto ao telejornal as condições desse depoimento. Já na introdução da reportagem, o telejornal justapõe o “heroísmo” de FRV, (cf. Seção 3.1.2) e a desconfiança quanto a suas motivações (a versão da “FFN armação” havia começado a circular publicamente no dia anterior — vide Seção 4.5): JBa4/3 (Repórter/sinc): “Existe um boato de que os traficantes teriam pago alguém para fazer este vídeo. Foi você?” (FRV/sinc): “Não. < — Alguém te pagou?> Não. < — Algum traficante te procurou?> Não. < — Nada, nada?> Nada. Pode abrir minha conta corrente tá aberta.” (FRV/off): “A primeira filmage, foi feita < — Feita d’aonde?> em um.. (FRV/sinc): “Daquele barraquinho ali ó. < — Qual?> O barraquinho... < — Aquele ali baixinho?> ...isso! < — Aquele barraquinho ali?> É... < — Na direção do garoto.> aquele, ali !”.

A equipe de reportagem do JBa volta à “cena da cena do crime”, demonstrando a veracidade da identificação do entrevistado como autor da FFN.244 A reprodução da entrevista gravada inicia com a conversa entre FRV e o repórter andando pelas ruas da favela e termina, em cima da laje de um sobrado (próximo ao lugar de onde foi gravada a FFN), com os comentários do cinegrafista, que esclarecem o processo de produção da fita. Depois de oferecer uma “prova” da inexistência da seu envolvimento com criminosos, o cinegrafista — ainda anônimo — confirma ao repórter do JBa a colaboração de alguns moradores nas gravações. Em uma seqüência exibida logo depois, ele declara: JBa4/15 (FRV+Repórter/sinc): “...no barzinho... que tinha ali em ci... embaixo, mais lá pra frente. < — se dé ô vai[??]>. Aí chegava... conversei com... com uma das proprietária da casa... pra mim fazê, poder fazer a matéria, né?

Diante de uma das casas onde havia posicionado sua câmera para as gravações, FRV relata a colaboração da dona de uma das casas usadas para as gravações: (Repórter/sinc): “Sei. E você ficava [num ?]... naquela janelinha ali? (FRV+repórter/off): “Naquela janelinha. 244

É interessante notar que, para isso, a reportagem precisa recorrer a outro cinegrafista, cuja participação na gravação da entrevista é “apagada”. Este segundo cinegrafista chega a aparecer, muito rapidamente, nas imagens de um terceiro operador, do qual não temos nenhuma informação. As camuflagens recursivas e o mise en abîme de cinegrafistas ilustram, de modo privilegiado, os paradoxos da atribuição da indicialidade às vídeo-imagens nos contextos públicos. (JBa4/17)

209 (Repórter/off): “Como é que você conseguiu entrar aí?” (FRV/pseudo-sinc, off): “Eu falei também com a... proprietária.” (Repórter/pseudo-sinc, off): “Que... parece que a... nós vamos... nós ouvimos também que a pessoa... se mudou daqui. Cê... cê acha que eles... tão com medo?” (FRV/pseudo-sinc, off): “...de represália.” (Repórter/pseudo-sinc, off): “ ‘Cê acha que eles têm medo... que eles podem estar com medo? (FRV/pseudo-sinc, off): “É, ‘tão!” (Repórter/off®sinc): “Que a informação que a gente obteve. Nessa casa, atualmente, não tem mais ninguém, eles foram embora. Depois daquele dia, logo depois que a fita... foi para o ar, as pessoas... saíram daí. Cê acha que saíram de medo de ficar aqui? (FRV/sinc-extracampo esquerdo): “Saíram de medo.”

A previsível reação da proprietária converge com a atitude esquiva do conjunto dos moradores da Vila Jardim Santa Rita (Favela Naval). Pela narrativa de FRV, teria havido apenas uma colaboração da parte dos moradores para a realização da FFN, mas não uma iniciativa propriamente dita. Na seqüência exibida logo depois, registrada de cima de uma laje, diante do “palco” dos crimes, FRV detalha a participação da comunidade na realização da FFN: JBa4/17 (Repórter/pseudo-sinc): “Agora, em relação aos moradores, os moradores não sabiam o que você estava fazendo?” (FRV/pseudo-sinc): “Teve pessoas que sabe, tem, tem pessoas que me viu.. (Repórter/sinc): “Escuta, como é que você entrou naquela casa?” (FRV/sinc): “Conversei com a dona da casa.” (Repórter/sinc): “Um dia antes, ou de tarde...” (FRV/sinc): “Bem antes, bem antes. Eu ficava no barzinho, andando, passeando, pesquisando.”

Já foi relatado que o cinegrafista afirmou que havia sondado o lugar para comprovar a veracidade das afirmações dos moradores antes de preparar a “filmagem”. Apesar das controvérsias sobre a origem da iniciativa e a motivação da gravação, parece ser inconteste que pelo menos alguns moradores tiveram conhecimento das intenções do cinegrafista, não se opuseram à gravação da FFN e a apoiaram, cedendo os lugares para a montagem do equipamento e mantendo silêncio sobre sua realização. No mesmo JBa4, o cinegrafista (vê-se

210

apenas sua sombra projetada em uma tela) reitera, durante a entrevista, transmitida em direto e conduzida pelo âncora do telejornal, que a idéia da gravação surgiu a partir de contatos pessoais ocorridos em uma ocasião de lazer: JBa4/18 (Âncora): “ Eu vou conversar agora, ao vivo, com Antônio, ele está nos nossos estúdios e por motivos de segurança, ele não vai ser identificado. Antônio, como é que você ficou sabendo que os pê-emes costumavam agir... com violência na favela... de Diadema?” (FRV): “Bom, eu con... eu fiquei... eu tomei parte dessa... dessa operação, desses pê-eme, foi em uma festa que eu estive... no aniversário de um amigo meu, lá no... no clube... ah, é o... Ilha... de Capri, no Cu... Clube Ilha de Capri, ‘tendeu? E ele tinha um amigo dele, que trabalhava também na CBTN... na Mercedes... e começou a contar isso pra mim.” (Âncora): “E p... e por que que você foi lá filmar... qual o motivo que te levou lá?” (FRV): “Que eu não acredi... eu não tava acreditando. ... Pelo que f... contavam, pelo que ele sa... que.. que o rapaz falou, num... num acreditava. Eu vou, falei assim, ‘vou arriscar, vejo se pego alguma coisa’... ou pra ajudar ou... pra... atrapalhar, sei lá.”

Vinte dias depois, na primeira entrevista concedida sem “véu”, 245 o cinegrafista free-lance Francisco Romeu Vanni repete o relato da concepção da FFN, detalhando-o um pouco mais: OpN24/4a (Repórter): “Bom, acho que tá todo mundo curioso pra saber como é que você teve a idéia, como é que você ficou sabendo que aquela violência ocorria ali. Como é que você conseguiu gravar esse flagrante, quédzê, da idéia até o momento?” (FRV): “(Tsc!) A idéia surgiu quando... eu fui... em uma festa no Ilha de Capri Ilha de Capri é um salão, salão de baile, que... o pessoal se reúne lá, pra uma festinha... reuniões... tão, enfim, um salão de baile aí, é um... como q’pode dizer? é boate, é tudo ali. Eh, fica se... entre São Bernardo, e... Riacho Grande. Aí, no decorrer... da festa ou da... da... da... noite, eu conheci... um rapaz que trabalhava... que trabalha... na Mercedes... e começou comentar o fato, o que tava oco... o que tava ocorrendo na... naquelas imediações.” (Repórter): “O que que ele disse?” (FRV): “Disse que te... que tinha uns policiais que... batiam, que judiavam, humilhavam... tendeu, inclusive esta.. ele tava com as... uns hematoma tanto nas costas como no braço. Aí eu fui me aprofundando, fui conversando com ele. Aí o meu mm... um colega meu, ele falossim: ‘Essa história é boa pra você. Se cê tiver peito, cê vai lá e filma’. Faleissim: ‘Bom, eu vou.’ ”.

Vê-se que, segundo esse narrador, os moradores da FN manifestaram de modo totalmente informal suas queixas, não tendo de início cogitado o recurso à videodenúncias; a

245

Transmitida em direto do estúdio da TV Cultura paulista durante o programa OpN (24 de abril de 1997).

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possibilidade do seu uso aparece como tendo surgido em um contato casual com o cinegrafista. Embora a situação da tomada de decisão sobre a produção da FFN permaneça obscura, na narrativa do cinegrafista os moradores são caracterizados, além de como participantes desse momento, como colaboradores individuais, por terem cedido suas residências para as gravações e por silenciarem sobre a presença do cinegrafista, no momento das ocorrências: OpN24/7 (Repórter): “Ô Francisco, como é que foi esse trabalho lá de montagem.. de escolha do local, de montagem, você acabou pegando um local privilegiado. Você contou com a colaboração dos moradores, em algum momento você abriu o jogo? Que trabalho você fazer lá?” (FRV): “No... no... noo domingo... no sábado e no domingo, eu comecei a cativar as pessoas, tendeu?... Comecei... mostrar, tentar mostrar alguma coisa pra as pessoas, pra que elas tivessem confiança, tendeu?, em mim. Na segunda-feira que eu... nós fomo... um pouco mais cedo, aí eu expliquei na realidade o que que eu ia fazer. Me identifiquei... e falei assim que eu tou fazendo uma matéria.” (Repórter): “O que que você disse, a princípio, pras pessoas?” (FRV): “A princípio? Não, falei que eu ia fa... que eu tava... que eu era... que eu tava fazendo uma matéria, tá, que eu.. que eu... queria ingressar na área de jornalismo, e que pra mim ia ser uma experiência, tá, nova, que eu ia fazer. Então que eu precisaria de uma colaboração dos moradores, e que pudessem me favorecer em alguma... em alguma coisa, em algum aspecto.”

A versão da origem da FFN veiculada pelo JNa4/11-16 confirma as afirmações de FRV quanto à sua decisão de observar a atividade dos PMs na FN e depois de registrá-la em vídeo. Outros trechos da entrevista em direto de FRV ao anchormen Paulo Henrique Amorim (JBa) seguem no mesmo sentido de situar a participação dos moradores da FN como ocasional, não organizada e espontânea: JBa4/20 (Âncora): “Me diz uma coisa, você sofreu alguma ameaça de policial? Depois que... depois que a fita foi exibida?” (sombra FRV): “Não porque ninguém sabe quem eu sou.” (Âncora): “Ninguém suspeita de você? Eeee... mas você disse ao Afonso Mônaco, na reportagem, que moradoôores ali da favela eh... identificaram você.” (sinc sombra FRV): “Identificaram eu... mas não sabem que que eu fa... qu’eu... o... da onde eu sou, que que eu faço, que que eu deixo de fazer... qual o meu nome.” (...) (Âncora): “Então eh... você acha que esses moradores que viram você lá, naqueles diversos locais, filmando a cena de violência, eles não serão capazes de identificar, eventualmente, você pr’um traficante ou pra polícia? Não? Por que?”

212 (sinc sombra FRV): “Porque eles, eles.. eles mesmos eh.. eles mesmos [disseram?] ‘graças a Deus’ que essa fita foi parar em mãos certa.” (sinc PHA): “Você tem contato com os moradores lá da Favela Naval?” (sinc sombra FRV): “Não, também não tenho contato mais. [O último contato??]”

É importante notar que, embora FRV tenha caracterizado a participação da comunidade de moradores como uma “sugestão” inicial, informal, e os apoios como individuais e locais, também não se encontram afirmações explícitas e consistentes de que tenha havido uma organização coletiva nesse sentido, diferentemente do que havia sido afirmado nas (sempre mal-demarcadas) declarações de moradores. Os fragmentos do discurso videografado dessas pessoas, reproduzidos nos telejornais, não dão suficiente sustentação à hipótese de uma reação deliberada e organizada da comunidade contra os abusos dos “pê-emes bandidos de Diadema”. Embora seja compreensível que alguns moradores queiram evitar assumir participações individuais na produção da FFN, não deixa de ser aceitável supor que, a posteriori, no momento em que viram suas demandas alcançarem uma ampla visibilidade, os moradores da favela tenham considerado válido reivindicar para si a autoria do enunciado desencadeador do EFN, talvez como forma de tentar permanecer no foco das atenções públicas. Como está-se a examinar o discurso narrativo do ator sociedade civil, não se pode deixar de abordar o relato de suspeição que acompanha, como um duplo, as atitudes diante das declarações dos moradores e de FRV: teria a FFN sido “encomendada” pelos traficantes? Esse duplo manifestou-se no discurso de articulistas e comentaristas de vários veículos de comunicação, na insistência dos repórteres em determinadas questões e nas manifestações de telespectadores (uma das quais reproduzida acima). Vide a insistência da pergunta dos repórteres do JBa: JBa4/17 (Repórter): “E... você não ganhou nada de... dinheiro nenhum... Não houve nenhum pedido de traficante? Não houve... ...nada. Cê fez por conta própria... ...pensando em derrepente ganhar uma grana...” (FRV): “Em ganhar uma grana, mas e... mostrar para alguém e... mostrar meu trabalho, seria.” Não satisfeito, logo depois o âncora do telejornal repete a pergunta, durante a entrevista em direto:

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JBa4/18 (Âncora): “(...) Ah... Antônio, eh... eu vou ter que repetir essa pergunta. Ela... ela... aparece, é uma informação que aparece com freqüência, tá na cabeça de todo mundo, na primeira página dos jornais. Você foi contratado pelos traficantes, que queriam se vingar da polícia porque eram extorquidos pela pê-eme lá de Diadema?” (sombra FRV): “Não. De maneira alguma. Se eu fosse contratado pelo... pelos traficante, vou te falar uma coisa, eu não taria nem aqui. Eu taria lá fora, passeando, gastando dinheiro a rodo... tendeu? Outra: não seria eu quem entregaria a fita.” (Âncora): “Você.. você não tem nenhum contato com os traficantes que operam na Favela Naval?” (sombra FRV): “Não! E nem sei se lá tem traficante.” (Âncora): “Você conhece os policiais que operam... trabalham na Favela Naval?” (sombra FRV): “Também não. Não conheci. Conheci depois do... que comecei a fazer o serviço.”

As respostas do cinegrafista foram, no dia seguinte, consideradas pela Folha de S. Paulo “confusas e pouco convincentes”.246 A mesma tendência a lançar suspeitas sobre a idoneidade do produtor da FFN transparece, por exemplo, nos artigos de Bárbara Gancia, publicados no mesmo periódico: “A pergunta do dia é: Quem filmou o vídeo dos policiais militares surrando, extorquindo e matando em Diadema? Existem três possibilidades: um cidadão comum, que está com medo de represálias, um policial desafeto da turma dos Rambos de farda ou um traficante que estava tendo seu negócio prejudicado. Na minha modestíssima opinião, a terceira opção é a mais plausível. Vejamos: uma filmadora de vídeo custa, ao menos, 25% do preço de um barraco. Eu sei, o plano Real conferiu poder aquisitivo à população de baixa renda. Mesmo assim, será que um cidadão comum teria sangue-frio e habilidade de filmar cenas noturnas com tanta precisão? Quem prestar atenção nas imagens verá que em nenhum momento o cinegrafista treme a câmera. Se fosse um policial desafeto, a esta altura já teria saído a público para ser glorificado como herói. Afinal, os PMs bandidos estão presos e já foram sumariamente condenados pela opinião pública nacional e internacional. Resta a opção do traficante. Aqui eu abro um parêntese. Moro no Itaim e, a poucos quarteirões do meu prédio, na rua Funchal, Vila Olímpia, existe uma boca-defumo. Os tiros de rojão que ouço vira-e-mexe, reza o folclore, são disparados pelos traficantes a fim de avisar a clientela da chegada de mais um carregamento de droga. Qualquer um que passe pela Funchal, de dia ou de noite, verá drogas sendo vendidas feito melões na feira. Ora, se eu, que não sou nenhuma Sherlock Holmes, sei disso, a polícia também não sabe? Claro que sabe. O que ocorre é que, em vez de acabar com o comércio ilícito, os policiais que dão as caras por lá o fazem para tomar a grana dos compradores ou apreender a droga dos traficantes. E só. 246

TVs exibem versões diferentes sobre fita de vídeo. Folha de S. Paulo, 5 de abril de 1997, p. 3-1, editoria: Cotidiano

214 Pelo visto, o caso da Favela Naval de Diadema tem tudo a ver com a boca da Funchal. (...)”247 “Já ganhou apelido nas redações das TVs o empresário do cinegrafista das cenas de Diadema: PC Farias. Conseguiu tirar dinheiro dos traficantes, da TV Globo e da Band.”248 “Sou do tempo em que os únicos anônimos de renome eram os alcoólatras do AA. Na minha época, dedo-duro levava sabão da professora na frente da classe inteira. Hoje, tudo mudou. Denúncias anônimas viraram dever, ato de cidadania. E o sucesso no anonimato, que antes era privilégio dos dependentes do álcool, passou a ser prerrogativa dos ‘‘voyeurs’’ da periferia, os cinegrafistas amadores que registram injustiças armados de câmeras de vídeo.(...)” 249

O modo automático com que se associam, a respeito da produção da FFN, a pobreza do bairro de periferia e o crime, assim como a projeção da espectral rede de tráfico de drogas, fica patente no comentário afetado e blasé de Arnaldo Jabor, emitido já no primeiro dia de denúncia: JGl0 “Diante dessa violência... falar... Que horror!... não adianta. A violência aqui... não é um acidente. Ninguém perdeu a cabeça. Violência aqui... é desejo... é um... bhahrahtoh. Dizem que-osexterminadores-até-se-excitam-sexualmente... quando matam. Mas essa violência... é também terrível... porque a gente vê... que acabou... aquele papo de luta do bem contra o mauul. Aqui, polícia e bandido... se confundem. Esse crime... não é feito nem por malucos, nem por marginais. Ele é feito por nossos... p...rotetores. Mas tem mais. Essa violência também é terrível... porque essas cenas... são maquete de brutalidades maiores. A frieza desses pê-emes... é igual à frieza dos traficantes... que é igual à frieza... dos grandes cartéis internacionais... de drogas. Isso... é apenas um ponto na favela... uma bôca... do grande mercado da miséria. Portanto dizer... Que horror!... pode ajudar a nos enganar! Não nos horrorizemos, como diante de um... pehcahdoh. Digamos ‘— Que horror!’ porque estamos diante... de um mercado.”

Tanto o JNa1 quanto o OpN4 fazem referência à inversão dos lugares entre bandidos e polícia na comunidade da FN, situação há muito conhecida pela pesquisa social. 250 Curiosamente, os dois telejornais citam o mesmo exemplo de serviço social “bandido”, partindo das declarações de moradores (sempre com a identidade camuflada). O JNa1, seguindo várias dessas denúncias, relatava torturas e abusos de policiais militares e aparentes policiais civis. 247

GANCIA. Cadê o sujeito que filmou os PMs em Diadema? Folha de S. Paulo, 4 de abril de 1997, p. 3-2, editoria: Cotidiano. 248

GANCIA. Clone. Folha de S. Paulo, 30 de abril de 1997, p. 3-2, editoria: Cotidiano.

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GANCIA. Passageiro, profissão cinegrafista amador. Folha de S. Paulo, 11 de abril de 1997, p. 3-2, editoria: Cotidiano 250

ZALUAR, 1983. p. 268-274; SHIRLEY, Atitudes com relação à polícia em uma favela no sul do Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. p. 219 e 226.

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Entremeado por imagens de rostos escondidos atrás de sombrinhas pretas e cortinados, detalhes de perfurações de bala em portas de aço, o enunciado (locução off) do repórter adiantou, com o apoio dos fragmentos de discurso da moradora de rosto escondido, um resumo do dilema dos moradores: JNa1/6 (Repórter/off): “Afastadas da lei pela violência, as famílias da Favela foram empurradas para os braços dos traficantes.” (Moradora/sinc): “...uma mulher grávida vai ter neném, eles que levam... uma pessoa tá doente, eles que arruma dinheiro... uma pessoa que tá... passando mal eles que socorre. Polícia aqui pra gente, num vale nada!”

A edição do programa da Rede Cultura fez outro percurso. Ressaltava, com imagens e locução, a condição de exclusão dos moradores da FN, a não aplicação sistemática dos seus direitos fundamentais e a inoperância dos serviços sociais do Estado. Suas carências eram, segundo o telejornal, contornadas, no âmbito da própria comunidade, pela atuação do grupo detentor de poder e demandador da legitimidade e apoio locais, os “eles”: OpN4/4 (repórter/off) : “Escondida atrás de uma parede, uma mulher fala que quando a filha, um bebê de colo, passou mal de madrugada, ela não chamou a polícia. A ajuda veio... do pessoal do tráfico.” (Moradora/sinc): “...eles arrumaram o carro, foram me levaram lá, me esperaram... até a hora que a menina... foi internada, né. Eu não tenho o que falar nada deles!”

O modo de solucionar conflitos e aplicar penas, já relatado pelo morador Paulo de Oliveira, expressa bem a já referida descrença no sistema de justiça criminal e a aplicação da chamada “concepção popular de justiça”. Mas, além disso, denota a pouca relevância, na visão da comunidade de moradores da FN, da diferenciação entre “bandidos” e “trabalhadores” para os fins da manutenção da “ordem comunitária” e da aplicação de sanções aos indivíduos insubmissos às regras locais de convivência. Não aparece nos enunciados disponibilizados nos telejornais pesquisados uma confirmação efetiva da pretendida “dominação” da favela pelos traficantes, fazendo com que o texto da apresentação do telejornal seja algo discrepante em relação ao da reportagem e às declarações dos moradores:

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OpN4/2-3 (Apresentador/sinc) : “O abuso de poder... e os desmandos dos policiais de Diadema... se tornaram rotina para os moradores da Favela Naval... palco da truculência dos pê-emes... gravada em vídeo. A inversão de valores... imposta pela violência... faz com que a população rejeite a polícia e se sinta segura com os traficantes que dominaram a região.” (…) (Repórter/off): “A Favela Naval fica às margens do Córrego dos Couros, que separa Diadema de São Bernardo dos Campos... e como tantas outras, tem problemas de falta de saneamento básico. Esgoto clandestino, ruas sem asfalto, cerca de duas mil e quinhentas famílias moram em casas modestas de alvenaria, ou em barracos espalhados por vielas estreitas. São crianças, donas de casa, trabalhadores, aposentados, desempregados... e é claro, o chamado pessoal da malandragem... que pelo menos... tem uma política... da boa vizinhança.” (Repórter/sinc): “Quando a gente começa a conversar com os moradores daqui, a gente percebe que a maioria tem uma relação de respeito com o pessoal do tráfico. É como se os traficantes garantissem à comunidade... segurança e ajuda nos momentos de emergência. Uma inversão de valores estabelecida principalmente.. pela violência da polícia. Aqui, todos temem... e desconfiam... dos pê-emes.” (Repórter/off): “Andar pela favela, sendo ou não morador é seguro... pelo menos, é o que garante o ‘seu’ Paulo de Oliveira... há quase trinta anos na Naval. Ele diz que nunca ouviu uma só história.. de assalto por aqui.” (Morador Paulo de Oliveira/sinc): “Aqui não se rouba ninguém, não se pára ninguém pra se roubar... viu?!... a não ser que seja um...ma coisa igual a essa que houve, né?! Ação de polícia, não de bandido.” (Repórter /sinc, fora de quadro): “Que que pode acontecer com uma pessoa por exemplo que fuja a essas regras? Ou que roube aqui dentro, ou que mexa com alguma mulher aqui dentro?” (Morador Paulo de Oliveira/sinc): “Se ele for considerado um estrupador, hum! ele tem que se ajoelhar, onde ele tiver, e torcer, pedir que a polícia pegue ele. < — Porque senão...?> Porque, se a população pegar, ele vai.”

A tendência do ator midiador a vitimizar e apassivar a comunidade de moradores e, ao mesmo tempo, a denegar a participação da “rede de tráfico” converge com sua disposição a destematizar a questão da inocência/culpabilidade de vítimas e vítimas-denunciantes. Essa “prudência”, contudo, não se afiguraria como necessária se o narrador midiador não considerasse que as suspeitas postas em circulação pela contranarrativa (do ator-polícia) pudessem ser verossímeis para o público. Cabe, por conseguinte, indagar por que pareceu, para os telejornais, que o público virtual dos telejornais consideraria mais consistente pensar que FRV agiu a soldo da “rede do narcotráfico”. Não poderia ele ter produzido a FFN por um sentimento de cidadania ou por senso de justiça, por orgulho profissional e por vontade de ser reconhecido profissionalmente (conseguir um emprego),251 ou mesmo apenas para ganhar dinheiro vendendo a FFN diretamente para uma emissora de televisão? 251

É possível que uma das condições colocadas por F. R. Vanni para a concessão de entrevista ao JBa tenha sido sua contratação como cinegrafista. Segundo a Folha de S. Paulo, a emissora o teria contratado por trinta dias. (RANGEL. Aumenta a audiência do Jornal da Band. Folha de S. Paulo, 8 de abril de 1997, p. 4-4, editoria: Ilustrada.)

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Parece ter havido uma predisposição da opinião pública para identificar automaticamente a reação da comunidade agredida às brutalidades policiais como um contragolpe intencional orquestrado por uma organizada “rede criminosa”. Na impossibilidade de sondar a veracidade de tais hipóteses, deve-se reconhecer sua realidade enquanto relato publicamente difundido. Ou seja, que, sem dúvida, a versão “FFN armada pela rede do narcotráfico” possa ter sido bastante verossimilhante para o público brasileiro. B — A produção e publicização da segunda videodenúncias

Uma semana depois da divulgação das imagens da FFN, foram exibidas, também no JNa, vídeo-imagens de uma outra ocorrência de brutalidades policiais, agora na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Essa nova videodenúncias não será tomada como objeto de uma análise comparativa com a videodenúncia inicial, nem será o caso de realizar um exame minucioso de seus traços específicos. Para os fins desta pesquisa, a segunda videodenúncia será abordada como sendo pertencente ao contexto comunicativo constituído pelo EFN. O objetivo de sua inclusão nesta pesquisa, portanto, é o de compreender como esse segundo vídeo-enunciado foi articulado em conformidade com as perspectivas dos atores sociedade civil e midiador, no espaço público-mediático. A segunda videodenúncia (a Fita da Cidade de Deus — FCD) dispõe de muitos traços semelhantes aos da primeira. Repetem-se, com cores e quadros parecidos, a ausência de equipamentos públicos de uso coletivo dos lugares, a falta de acesso de seus habitantes aos serviços sociais, o tratamento discriminatório, brutal e impune dos agentes do Estado contra os mesmos, os procedimentos de auto-ajuda internos e de “manutenção da ordem comunitária” à revelia do estado de Direito. Registrando espancamentos e humilhações de crueldade equivalente aos mostrados nas imagens da FFN, a FCD transportou o espancamento de moradores do lugar, ocorrido junto à parede do edifício Palmares (em 23 de março de 1997), para as telas brasileiras (em 7 de abril). Novamente, o uso testemunhal da videografia permitiu o transporte da experiência dos excluídos para o centro das atenções públicas. Já conhecido dos estudos de antropologia urbana252 esse conjunto habitacional, situado na periferia do Rio de Janeiro, emerge públicomediaticamente em um campo temático que já havia sido configurado pela publicização da 252

“O condomínio do Diabo” (ZALUAR, 1983) é uma investigação antropológica sobre a vida da comunidade de moradores da Cidade de Deus, e enfoca as relações dessa comunidade com a polícia e com os “bandidos”, a primeira muito deteriorada, a segunda cheia de ambigüidades.

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FFN e pelo processo de problematização decorrente dessa divulgação anterior. A FCD aparece como um vídeo-enunciação que, em certa medida, duplica e confirma a videoenunciação inicial do EFN, conferindo feições mais gerais às descrições dos espaços sociais das comunidades de moradores da periferias urbanas brasileiras, que até o momento tinham nas imagens da Favela Naval uma representação público-mediática individual. JNa7/14-15: (Apresentador): “Exclusivo... a brutalidade dos bandidos de farda... agora em novo cenáario... Riío de Janeeiro.. final de março. Um pelotão da pê-eme espanca moradores de um bairro poóbre. Cidadãos agredídos... e liberados... porque a polícia não encontrou motivo para prendê-los.” (Repórter/off): “Cidade de Deus, zona oeste do Rio. Quarenta mil moradores diante de uma realidade... cruéll. Gente simples, vítima do abuso de quem é pago para protegê-la.”

Após vários planos e sentenças de ambientação, o repórter conta os detalhes da nova ocorrência de brutalidades policiais (videografadas), em uma tradicional “passagem”: JNa7/16 (Repórter/sinc): “Vinte três de março, quatro da madrugada. Nesse horário, ainda havia algumas pessoas bebendo nesses bares... enquanto outras já estavam saindo para o trabalho. Quem passasse por esse local.. era encostado nessa parede... e submetido a uma sessão de esPANcamento e humilhação. Segundo os moradores, isso é freqüente aqui na Cidád’d’Deus. Só que dessa vez... o cinegrafista amador... registrou as imagens da brutalidade dos policiais militares.”

Encontra-se, na construção desta “passagem”, praticamente uma duplicata da denúncia mediática inicial ambientada em outro contexto geográfico. Repetem-se as circunstâncias das ocorrências, os atos e atitudes dos gendarmes, os procedimentos dos midiadores e os da comunidade agredida. Dessa vez, entretanto, tudo indica que o cinegrafista fosse de fato um amador. Esse “amadorismo”, além de relatado nos enunciados da reportagem e da apresentação do telejornal, pode ser aferido na imprecisão da operação do equipamento, patente nas imagens transmitidas no JNa7: não há cuidado na captação do som, não aparecem enquadramentos detalhados, para a identificação dos agressores ou dos veículos; nos momentos de maior brutalidade as imagens oscilam muito, indicando um operador assustado; este freqüentemente desenquadra os objetos de interesse e move erraticamente a camcorder. O principal elemento novo para o contexto discursivo do EFN parece ter sido a repetição do relato da produção da videodenúncia. Essa repetição esboça, com a primeira videodenúncia

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um padrão que seria obedecido posteriormente: no dia seguinte à exibição dessa segunda fita (em 8 de abril), foi exibida uma terceira videodenúncia de crimes policiais, em uma emissora sulista.253 A reiteração das videodenúncias configura uma tendência à virtualização do “cinegrafista amador”: JNa7/23 (Apresentador254): “As cenas do Rio de Janeiro comprovam.. o que todo mundo já sabia. Que a violência policial em Diadema não foi um fato isoláado... nem um problema localizado. É claro que esses criminosos fardados devem ser punidos com rapidez, com energia. Mas se depender da disposição dos cinegrafistas amadores.. ainda vão aparecer muitos outros exemplos da... truculência policial. No Rio, em Diadema, e por todo o Brasil. (...)”

Se a relevância da publicização dessa fita se deriva principalmente da sua articulação enquanto reiteração de um testemunho, tal efeito encontra-se intensificado pela relativa demora da sua exibição.255 A inexistência de pressões sobre a equipe de produção do JNa, quanto a uma possível divulgação da FCD por outros atores, chama a atenção para um segundo ponto: o produtor dessa fita não se preocupou em encaminhar uma cópia a nenhuma instituição judiciária, mas apenas ao telejornal, vendendo-a para a reportagem do JNa. A despeito das muitas similaridades, há diferenças significativas (além do “amadorismo” da FCD) entre as situações em que se encontravam o cinegrafista da primeira e o da segunda videodenúncia, como deixa claro o telejornal: JNa7/17-18 (Repórter/off): “O cinegrafista diz que decidiu fazer as imagens porque estava revoltado. O irmão dele já tinha sido agredido pelos policiais.” (Cinegrafista /pseudo-sinc): “A gen... sente é indignação, néah... é horrível ver... eles agindo daquela maneira... não é isso que... que ninguém echpera da polícia...”

253

Telejornais da RBS (Rede Brasil Sul, afiliada da Rede Globo) exibiram em 8 de abril vídeo-imagens de policiais gaúchos agredindo um acusado na periferia de Porto Alegre. (DE SOUZA & GERCHMANN. Vídeo flagra agressão no RS. Folha de S. Paulo, 9 de abril de 1997, p. 3-4, editoria: Cotidiano. 254

Como é recorrente no JNa, as falas de comentários ou editoriais são feitas pelo apresentador, em um plano que progressivamente amplia seu rosto na imagem, como se o videolocutor se aproximasse e se tornasse “íntimo” do narratário do telejornal. 255

Embora seja relatado que o cinegrafista amador tenha titubeado em vender as vídeo-imagens para a Rede Globo, a demora do JNa em publicizá-las leva a concluir que sua exibição foi um procedimento planejado. É presumível que a equipe do JNa tenha esperado o momento mais propício para a exibição da segunda videodenúncia. (Ref. Cinegrafista diz ter vendido fita por R$ 2.000. Folha de S. Paulo, 10 de abril de 1997, p. 34, editoria: Cotidiano)

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Logo adiante, no mesmo JNa7, a desconfiança dos moradores da periferia em relação ao sistema de justiça criminal fica completamente explícita. Um rapaz (rosto indefinido), que foi humilhado e que teve o tímpano rompido pelas pancadas de PMs — a reportagem também mostra uma radiografia de crânio —, declara: JNa7/21 (Repórter/off): “Com medo, os moradores agredidos... não fizeram queixa na delegacia.” (Vítima 2/sinc): “Tenho mêdo... p’que depois elech pega e rebate também de novo...” (Vítima 2/off): “Que a polícia são... [são rúin à pampa ?] eles aquíea.”

A opção do cinegrafista da FCD foi encaminhar sua videodenúncia exclusivamente ao espaço público-mediático. Ao contrário do que aconteceu depois da publicização das imagens da FFN, não houve, após a exibição da FCD, nenhuma controvérsia pública sobre o pertencimento ou não do cinegrafista à comunidade de moradores, nem foram levantadas suspeitas sobre compromissos com a “rede de tóxico”. Repetem-se as imagens de vítimasdenunciantes de rosto velado, mas — pelo menos no JNa —, não se insiste na irrelevância da discussão sobre a inocência (ou a culpabilidade) das vítimas e do cinegrafista. Como a exibição da FCD introduz uma recorrência da evidência “objetiva” (videográfica), parece ter validado a percepção da violência policial como um conjunto homogêneo, justificando o uso do discurso em freqüência iterativa para o relato das ocorrências. Pode-se, com bastante segurança, também supor que os atores políticos avessos a essa perspectiva tenham desistido de elaborar novas contranarrativas, pois estas se fundamentavam no uso de um discurso singulativo que agora era tornado inviável.

5.1.4 — Enunciados derivados II: As Comunidades de Moradores de periferias urbanas, Submetidas à violência policial

As comunidades de periferia agredidas aproveitam a visibilidade e a legitimidade públicas adquiridas através das equipes de reportagem. As videodenúncias, além de realizarem o “transporte de situações-problema”, os casos de abusos policiais, para o centro das atenções públicas, criaram conexões entre o espaço virtual da esfera mediática e o espaços das comunidades de moradores de regiões periféricas. Em decorrência do “escândalo”, esses

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lugares foram transformados em lugares privilegiados para a emissão pública de discursos. A focalização das atenções públicas sobre a paupérrima periferia urbana e sobre as comunidades excluídas256 permitiu a abertura de uma “câmera de Pandora”: além das denúncias e queixas contra a polícia em geral, e principalmente contra os policiais militares, mais explícitas, ganham visibilidade mediática as condições de exclusão social visualmente manifestas nos planos gerais da Favela Naval e da Cidade de Deus e na indumentária simples, assim como no confuso — para os padrões textuais telejornalísticos — linguajar de seus habitantes. Como sóe acontecer, as equipes de reportagem voltam-se para esses espaços apenas extraordinariamente, em função de acontecimentos trágicos (caso dos crimes policiais) ou muito incomuns (caso das videodenúncias). A despeito do que os melindres dos interlocutores marginalizados possam fazer transparecer, manifestando as assimetrias da abordagem das equipes de reportagem e do seu “normal e rotineiro” desinteresse pela falta cotidiana de direitos civis, de serviços públicos e de equipamentos urbanos de uso coletivo, os telejornais parecem publicizar essas realidades apenas a título de ambientação e eventualmente para a oferta das possíveis “causas sociais da violência”, na estrita conformidade aos fins do relato dos “acontecimentos relevantes”. No JNa, o apresentador, com nuances de expressão facial, inicia a composição do espaço social da Favela Naval: JNa1/4 (Apresentador): “No dia seguinte à denúncia da violência da Pê-eme paulista, o repórter Ernesto Paglia foi até a Favela Naval, em Diadema, onde os crimes aconteceram. Encontrou um povo assustado... encontrou um povo que se sente traído... por aqueles que deveriam proteger os cidadãos.”

Após a seqüência de identificação dos PMs incriminados na FFN (JNa1/5), o texto retoma, ilustrado com planos gerais da FN e detalhes de buracos de bala em paredes e portas de aço, a composição do espaço narrativo da “Favela”. As imagens do telejornal mostram que, apesar de tudo, a polícia é provavelmente a única instituição do Estado que tangencia a vida cotidiana dessa comunidade. O medo da brutalidade policial continua patente na seqüência de rostos velados das denúncias.

256

Como parece ser demonstrado por diversas pesquisas e também pelo discurso das próprias comunidades de periferia, seus membros consideram a “sociedade” como um ambiente exterior e hostil. Ref. ZALUAR, 1983; SHIRLEY, Atitudes com relação à polícia em uma favela no sul do Brasil. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. Cf. também MÜLLER, 1998. (Cf. Cap. VII: “Exclusão”).

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JNa1/6 (Repórter/off): “Na Favela Naval, vivem duas mil e quinhentas pessoas. Gente que aprendeu a calar a boca e a respeitar o toque de recolher dos carrascos.” (Morador 1/sinc): “Nove pra dez horas, todo mundo tava fechando e... todo mundo se recolheu dentro de casa e.. só esperando só os tiros deles no meio da rua.” (Moradora 1/sinc): “A noite aqui a gente não dormia... a gente precisava... pra quem levanta quatro hora da manhã pra trabaiá... eles ficavam aí até duas e meia... até três horas.” (Repórter/off): “Mas na Favela Naval, não era apenas o pelotão da Pê-eme que batia.” (Repórter/off): “Esta mulher, agredida junto com o irmão... se diz vítima de policiais armados... à paisana... que andavam em viaturas da polícia civil”. (Moradora 2/sinc): “...aí depois apareceu com umas marca na barriga” (Repórter/sinc): “Marca de que?” (Moradora 2/sinc): “ ...umas queimadura assim na barriga.” (Repórter/ sinc): “— E ele falou que.. foram feitas de que forma?” (Moradora 2): “— Canivete. Parece que quentaram o canivete e foram riscando a barriga dele.”

O JBa detalha o contexto geográfico e social das ocorrências depois de tê-las relatado (JBa1/2-3), de exibir declarações das vítimas (JBa1/4-6 — vide abaixo), do Promotor de Diadema e de discutir o problema das responsabilidades do Estado (JBa1/8-15, vide acima). O tópico é introduzido no estúdio pelo âncora: JBa1/13 (Âncora/sinc): “Veja a seguir, moradores de Diadema revelam desde dezembro pê-emes aterrorizavam a Favela.”

Depois dos anúncios, da entrevista em direto com o Governador de São Paulo e da apresentação do “comandante das cenas de violência” (o soldado “Rambo”), reproduz-se a reportagem sobre o lugar e a gravação de alguns depoimentos dos moradores da FN: JBa1/17 (Repórter/off): “Em uma rotina de terror que começou há quatro meses, os policiais chegavam em bando... e estabeleciam o toque de recolher. (Morador/sinc): “Chegavam assim por volta da... onze hora... e o pessoal não... num podia ficar na rua mais... Quem tinha dinheiro, eles pegavam o dinheiro do pessoal pra... pra... pagar pedage. (Repórter/off): “Isso acontecia dia sim, dia não. Os pê-emes agrediam homens, e abusavam das mulheres.”

223 (Moradora/sinc): “As moça, as mulher, eles achavam que era assim, p... bandidinha, sei lá que é... mandava.. vinha pra quí, pr’essa ponta de dentro aqui, mandava pra ralar neles.” [Faz gesto imitando o “ralar”]. (Repórter/off): “Essa senhora chora e conta que está com medo. Até o marido dela, um trabalhador, chegou a ser agredido.” (Moradora2/sinc): “...ah, pelo que a gente viu, que eles tavam fazendo aí na rua... eles podem fazer outras coisas pior.”[Voz trêmula e aguda.]

A informação inicial (“há quatro meses”) sustenta a anterioridade das ocorrências relatadas pelos moradores e define seu alcance temporal. A permanência da ameaça registra-se não só nos enunciados verbais mas também na atitude evasiva dos moradores, sua reiterada precaução em não se identificar nas entrevistas. No fragmento acima observa-se que os moradores encontram uma liberdade um pouco maior para se pronunciar: nas duas últimas enunciações, as duas mulheres falam sem se preocupar em ocultar seus rostos. Embora seja eticamente questionável o descuido da edição do telejornal em expor a identidade de suas fontes, é possível que o “escândalo” tenha instilado nos locutores, pertinentes à comunidade agredida, uma maior segurança para a emissão de denúncias contra a polícia. O âncora do JBa introduz a situação dos moradores da FN logo após a videodenúncia e apresenta, em tom irônico, as primeiras denúncias feitas por membros da comunidade diretamente para as equipes de reportagem. JBa2/11 (Apresentador/sinc): “Alemão, Zapata, Mancha e seu parceiro. Nomes que parecem saídos de romances policiais ou de histórias em quadrinhos. Assim são conhecidos na Favela Naval alguns policiais que continuam fazendo ronda por lá... e eles metem medo. Segundo os moradores, fazem parte do grupo que torturou, extorquiu e matou no beco da vergonha.Veja a reportagem de Sérgio Gabriel.”

No dia seguinte, a ousadia dos moradores parece ter retrocedido, como manifesto pelo repórter: JBa2/12 (Repórter/off): “O medo ainda impera na Favela Naval. Ninguém quer dar o nome. Entrevista, só de costas. Mesmo com a exibição das imagens de violência policial, viaturas continuam atravessando a Favela, intimidando os moradores. Quem sofreu com a ação criminosa do grupo do soldado Rambo.. durante três meses... não consegue dormir tranqüilo... mesmo com dez pê-emes presos. O motivo é simples. Esse rapaz conta... que nem todos policiais violentos apareceram na fita... e que alguns... continuam livres... e trabalhando nas ruas.”

224

A reação dos moradores, contudo, não parece ser de submissão às ameaças ou de resignação às represálias, mas de resistência, através do uso da rara oportunidade de visibilidade públicomediática. Com os rostos ocultos, mas agora sem o apoio de um instrumental videográfico autônomo, os moradores passaram a contar somente com os recursos da legitimidade proporcionada pela ampla publicidade conferida pelo telejornal e com a verossimilhança já adquirida e atribuída à videodenúncia inicial, que busca ser estendida aos relatos de outras ocorrências, anteriores e posteriores às ocorrências registradas na FFN. Com as feições embaralhadas pela edição de imagens, um morador vítima de agressões toma o lugar de denunciante, dessa vez sem contar com o apoio de um “videotestemunho”: (Morador 1/sinc): “...Mancha na rua... o Mancha e parceiro dele... o gordão, também, de bigode passou aqui onti dentro das viatura também, [tinha ?] a câmera filmando eles também... tava de com a metralhadora do lado do parceiro dele... E tem mais uns.. uns oito na rua ainda por aí.< — E esses todos participavam de todas as barbaridades aqui..> Participava. Tem só dez presos né, quando eles vinham, ívinha de dezoito a vinte.” (Repórter/off): “Esse senhor conta que foram os próprios moradores cansados de apanhar e de fazer denúncias que nunca foram investigadas... que gravaram o vídeo. Ele denuncia também... outro policial violento, que não esta preso.” (Morador 2/off): “Um desses policiais mau é um tár de Zapata.” (Repórter/sinc): “O senhor tem medo ainda... desse pessoal ?” (Morador 2/sinc): “[Não tem jeito?], quem é que não tem, moço?”

No depoimento seguinte, de uma moradora, a prometida desforra dos policiais agressores passou a ser compreendida pelos moradores como estando dirigida à toda comunidade, e não a indivíduos denunciadores em particular. Demonstrando, talvez, as expectativas típicas da comunidade com relação à atuação dos policiais militares, essa emissão caracteriza também a importância da rede de solidariedade entre os moradores, como o principal instrumento de manutenção da “ordem comunitária” à margem do Estado e, se necessário, como uma estratégia de resistência às intervenções oficiosas e ilegítimas de seus agentes: (Repórter/sinc —fora de quadro): “Medo do que a senhora tem?” (Moradora/pseudo-sinc): “Deles vim fora de hora e botar fogo na favela. A gente vai ter que fazer um mutirão e dormir de dia e vigiar a favela à noite. Mete pedra, o que puder o que tiver na frente, a gente vai ter que... fazer alguma coisa.”

Se, a princípio, as denúncias mediáticas aparecem na perspectiva dos membros da comunidade agredida como estratégias possíveis para a solução da situação do contínuo abuso

225

de poder por PMs, esse recurso tornou-se necessário para a defesa contra as ameaças de desforra, depois que a FFN foi divulgada. A denúncia mediática inicial comprometeu os moradores com o registro de denúncias formais, que os levaram a fazer novas denúncias mediáticas contra policiais violentos, e assim por diante. Além disso, como já mencionado, a rara presença das equipes de reportagem constituía uma oportunidade privilegiada para os moradores levarem ao espaço público-mediático suas demandas. As imagens dos telejornais do quarto dia do EFN mostram moradores relativamente bem menos preocupados em esconder seus rostos. Secundados pelas equipes de telejornalismo, eles começaram a recorrer aos procedimentos judiciários formais, registrando denúncias e fazendo o reconhecimento dos agressores através dos arquivos de fotos do Batalhão de Diadema. Os rostos dos acusados nas fotos e a presença dos moradores denunciantes no 24°BPM são amplamente registrados pelos telejornais. A publicidade de seus atos e de sua identidade então constituía a única salvaguarda contra represálias para os moradores denunciantes. JNa3/10 (Repórter/off): “Os pê-emes que atuavam aqui, e outros, que a câmera não flagrou, vão sendo denunciados. Pelo menos mais doze, do Batalhão de Diadema, estão sob investigação. No início, foram identificados por apelidos.” (Repórter/sinc): “ E quem bateu em você...?” (Morador/sinc): “Foi Mancha, Mancha e o parceiro dele”. (Repórter/sinc): “‘Cê sabe o nome do parceiro dele?” (sinc morador/sinc): “Não.” (Repórter/off): “Depois, a partir dos álbuns fotográficos da polícia, surgiram nomes completos. O do soldado conhecido como Mancha, é Wagner Pereira Oliveira. Israel de Oliveira, que trabalhava com ele, também foi reconhecido. Só uma mulher... apontou a foto de dez pê-emes. Acusou a todos de abuso sexual. Seis... já estão depondo na Corregedoria da pê-eme. Entre eles, Israel e Wagner, o Mancha.”

JBa3/8-9 (Âncora/sinc): “Dois moradores reconhecem mais dois policiais acusados de violência na Favela Naval. Os soldados não aparecem na fita gravada pelo cinegrafista amador. A denúncia sobre os dois pê-emes foi feita ontem, aqui no Jornal da Band.” (Âncora/off): “Os policiais Wagner Pereira Oliveira, o ‘Mancha’... e Israel dos Santos, foram reconhecidos por estes dois moradores. Eles contaram no Vigésimo Quarto Batalhão que foram agredidos várias vezes pelos policiais.” (Vítima/sinc): “Eles enfiaram a arma dentro da minha boca e começaram a me bater c’a arma.”

226 (Repórter/sinc fora de quadro): “E você sabe quem foi que fez isso.” (Vítima/sinc): “Sei sim, foi o Mancha. Pra eles era roubado... se o cara tivesse um relógio, era roubado... pra eles, entendeu. Eles pegavam, colocavam no bolso deles. Dinheiro, se o cara tivesse, era pra tro... pegar drogas... então eles pegavam, pegavam o dinheiro pra eles. O cara podia ‘tar com um real no bolso que eles pegavam pra eles.” (Âncora/off): “Além do soldado Wagner, o Mancha, mais quatro pê-emes foram denunciados por abuso sexual. Os nomes constam da lista da Corregedoria da Polícia Militar.”

A partir dos dois fragmentos, note-se, em primeiro lugar, a referência explícita, presente no texto de ambos os telejornais, ao “extracampo” da FFN, ou seja, à existência de outras ocorrências de brutalidade policial, e de outros policiais criminosos envolvidos. A associação entre o assédio das equipes de reportagem à FN e ao Batalhão de Diadema, as visitas de membros do Ministério Público e de parlamentares da CPI da ALSP, que teria permitido uma reversão temporária das expectativas dos moradores vitimados em relação a Justiça — passando da descrença nos resultados dos processamentos institucionais para a disposição para as denúncias formais — pareceu, contraditoriamente, apoiar uma problematização mui localmente contextualizada da violência policial. A retematização das ocorrências, embora conduzisse potencialmente à ampliação do número de indivíduos comprometidos, tendeu a restringir o problema apenas ao contexto geográfico-social específico daquela comunidade agredida. No sexto dia do EFN, o JNa registra a visita dos parlamentares da subcomissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados ao local dos crimes registrados na FFN. Nas imagens da visita, aparecem poucos moradores adultos, que mesmo assim evitavam permanecer enquadrados pelas câmeras. Contudo pode-se observar que estão presentes muitas pessoas de fora da favela: vários deputados, com seus assessores (paletós e camisas sociais desabotoadas: parlamentares de partidos de oposição),257 muitos repórteres (microfones, bloquinhos e trajes semiformais), fotógrafos e cinegrafistas (jalecos, lentes, câmeras etc.). JNa5/2 (Repórter/off): “Mesmo com medo... os moradores receberam hoje... a visita dos deputados da subcomissão de Direitos Humanos... da Câmara Federal. Os deputados ouviram depoimentos... de pessoas apavoradas.” (Dep. Greenhalgh/sinc): “Nós ouvimos depoimentos aqui hoje, com a condição de não serem fotografadas as pessoas, os seus nomes não serem revelados, mas são ?... declarações estarrecedoras, 257

Os deputados Hélio Bicudo, Jair Meneguelli e L.E. Greenhalgh e o senador Eduardo Suplicy, todos do Partido dos Trabalhadores, eleitos pelo Estado de São Paulo.

227 não é? Depois dos fatos, já vieram ameaçar a população pra ficar quieta porque senão vão receber... represálias.” (Repórter/off): “Diante da insegurança dos moradores, os deputados pediram audiência com o governador Mário Covas. Querem garantia da vida pras pessoas da favela. Eles... se impressionaram com as marcas de tiros nas paredes das casas, e conheceram o lugar... onde o mecânico Mário Josino foi baleado pelos policiais militares.” (Dep. Hélio Bicudo/sinc): “Esses fatos todos, né... nos levam a... a... a acreditar, né... que realmente a pê-eme em São Paulo é um poder paralelo, né... acima, né... até do poder do governador do estado.”

A atitude esquiva dos moradores — demonstrada na ausência dos denunciantes comunitários que, em edições anteriores, foram solícitos em conceder entrevistas — é explicitada pelos parlamentares (“depoimentos de pessoas apavoradas”) e implícita no insistente pedido de manutenção do anonimato. É presumível que o retrocesso na disposição da comunidade agredida em se expor tenha decorrido do deslocamento do foco de interesse público-mediático (indicado pelas equipes de reportagem nas imagens) do espaço das ocorrências para os centros institucionais tomadores de decisões, nos quais as videodenúncias passaram a ser processadas. Apesar de acrescentar pouco em termos de conteúdo das denúncias ou de novos indícios materiais dos crimes à denúncia mediática inicial, a narrativa da “ameaça continuada” confere maior legitimidade às demandas (proteção contra retaliações) e maior verossimilhança aos relatos (a ocorrência de crimes policiais) dos moradores, devido à mediação institucional dos parlamentares. Tal como mencionado acima sobre a visita de parlamentares e de representantes de ONGs defensoras dos Direitos Humanos à viúva de Mário Josino, a presença dos congressistas à Favela Naval constitui um ato simbólico de afirmação da vigência do estado de Direito e de reincorporação dos acontecimentos trágicos à vida social. As interpretações feitas pelos deputados tomam os relatos dos moradores como sintomas que autorizam avançar generalizações sobre a insubmissão da “pê-eme em São Paulo” aos controles dos poderes públicos legítimos. B — As Demonstrações coletivas públicas: do linchamento ao Hip-Hop, passando por um “ato público pela paz e contra a impunidade” Foi visto que as denúncias das comunidades agredidas dependeram do agenciamento de uma série de dispositivos que garantiam o anonimato e a autenticidade das emissões (“véuindicador”): o acordo com um cinegrafista não morador, o contracampo oculto das videodenúncias, as tomadas em contraluz, as sombras projetadas em anteparos e microfones

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apontados para paredes, os planos-detalhe não figurativos, as nucas, as feições embaralhadas por recursos de edição de imagens, a fala reproduzida por repórteres ou por parlamentares, o acompanhamento pelas equipes de reportagem. Todos esses recursos de produção de imagens constituíram instrumentos através dos quais as vítimas-denunciantes e os midiadores puderam conjugar a indicialidade dos enunciados, através da presença concreta dos enunciadores nas imagens, com a indefinição de identidades pessoais, que pretensamente reduzia os riscos de represálias individuais. O dispositivo “véu-indicador” configurou-se na convergência entre as iniciativas mais ou menos simétricas, das comunidades agredidas e de seus membros individuais, por um lado, e das equipes de reportagens, por outro. Mas o exame das manifestações públicas coletivas registradas e reproduzidas nos textos dos telejornais analisados parece demonstrar a atuação de um “dispositivo de aparição público-mediática” qualitativamente diferenciado:

o

denunciante coletivo. JNa2/2 (…) (Apresentador/sinc): “O depoimento de nove.. dos dez acusados... foi acompanhado por uma multidão. Moradores de Diadema foram para a porta da delegacia... xingar os pê-emes na hora do interrogatório.” (...)

JNa2/6 (Repórter/off): “Enquanto isso, uma multidão cercava a delegacia em Diadema... à espera dos acusados”. (Multidão/pseudo-sincro): “Lincha! Lincha! Lincha!”

JNa2/25-26 (Apresentador/sincro): “Novas imagens da revoltaa. Moradores de Diadema... atacaram... agora há pouco... o ônibus dos pê-emes bandidos... que estavam depondo.” (“Moradores de Diadema”/sinc): “ Filho da puúta!”

O texto utiliza denominações coletivas para identificar os manifestantes: “multidão”, “moradores de Diadema”, “revolta”. A identificação da aglomeração com um pertencimento local traduz uma tendência ao discurso singulativo na narração dessa ação coletiva. São utilizados muitos planos gerais (inclusive uma tomada aérea de helicóptero), que produzem, nas vídeo-imagens, uma representação que funde os sujeitos individuais em um ícone, como um conjunto homogêneo. Nenhum enunciado individual é reproduzido; o coro de muitas

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vozes misturadas, clamando ou anunciando um linchamento iminente, chega a ser editado 258 para dublar a cena da entrada dos policiais no 2°DP de Diadema (JNa2/6). As duas tomadas feitas no nível dos manifestantes (JNa2/6 e 26) são muito instáveis, as câmeras oscilando ao “sabor da aglomeração”. A edição do telejornal organiza a representação da manifestação coletiva como uma progressão: primeiro, na locução do apresentador, a multidão acompanha o depoimento; em seguida, a multidão de moradores põe-se a xingar — termo brando — os acusados; logo depois, a locução off do repórter relata que a multidão havia cercado o lugar, esperando os acusados para — entra o coro, dublando a cena— linchá-los. Já em uma seqüência no final do telejornal, a título de “últimas notícias”, o apresentador chama a aglomeração de “revoltaa”, 259 e à ação dos moradores, de “ataque” aos policiais acusados. A vídeo-imagem reproduzida mostra uma cena dantesca: nas imagens oscilantes de uma noite chuvosa, vê-se uma rua avermelhada pela iluminação pública (lâmpadas de sódio), pelos faróis e pelos relâmpagos dos flashes fotográficos e ouve-se um ruído em que sirenes e gritos insultuosos se misturam; há muita gente correndo em perseguição ao ônibus (vê-se, aliás, mais fotógrafos que “moradores”) e um pedregulho é lançado contra os policiais. A “multidão”, protagonista desses fragmentos, é representada como um sujeito coletivo homogêneo (uma “turba enfurecida”) cujas descontroladas ações e enunciações são exclusivamente dirigidas contra os antagonistas — jamais para o público. Pode-se dizer que, no JNa, a ação dos moradores/multidão é representada como disposição para a efetuação de uma ação punitiva imediata contra os policiais incriminados, bem mais que como uma manifestação coletiva que visasse transportar situações-problema para a visibilidade públicomediática e/ou que buscasse intervir no processamento dos centros tomadores de decisões. Comparativamente, como se poderá avaliar, o JBa traça em um quadro bem distinto as demonstrações coletivas públicas que se seguiram às primeiras denúncias dos telejornais:

258 259

Através da edição de som, o “lincha-lincha-lincha” é deslocado de outra tomada e repetido duas vezes.

É interessante notar a polissemia do termo “revolta”: se por um lado o motivo do bandido é sua “revolta” contra à opressão social, aqui aparece uma “revolta” enquanto ação desordenada; mais adiante, no contexto da resposta do survey sobre “qual palavra melhor caracteriza sua reação”, a mais freqüente foi também “revolta”, aí entendida como reação emocional.(ZALUAR, 1983. p. 268)

230

JBa2/8-9-10 (Âncora/sinc): “Os pê-emes presos também prestaram depoimento na delegacia de Diadema. A população, indiguinada, protestou com gritos e vaias... quando eles passaram de ônibus.” (Repórter/off): “ Os nove policiais militares que deixaram o vigésimo quarto batalhão... foram recebidos com raiva e indiguinação” (Populares/sinc): “ Assassinos!” (Popular1/sinc): “ Eles fizeram a maior judiação em Diadema, e isso não podia acontecer! Por isso que tinha que linchar esses caras, não era ser preso só não...” (Popular2/sinc): “< — Tinha que linchar...> Faz tempo, isso tá acontecendo faz tempo, não é d’agora não!” (Repórter/off): “Na chegada à delegacia em Diadema, o filme se repetiu.” (Aglomeração/sinc): (Repórter/off): “Os soldados encarregados da segurança fizeram o possível para dificultar a imagem dos envolvidos. Muita gente se aglomerou em frente ao prédio, e improvisou um protesto. Entre as pessoas que exibiam cartazes, estava a mãe de Cristiano Koberik, que aparece na fita levando um tapa do policial.” (Lídia Kobenik/sinc): “Eu que sou mãe dele, nunca dei um tapa nele, desde pequeninho, nunca ele mereceu tomar um tapa... agora esse bandido vai bater... por que que ele não bateu em um filho dele ?”

A escolha dos termos para nomear o coletivo demonstra a preferência do JBa por qualificar mais positivamente as demonstrações coletivas. Nenhum dos termos escolhidos pela reportagem restringe o conjunto dos manifestantes a pertencimentos geográficos ou sociais particulares, de modo que, potencialmente, esse coletivo aparece como sendo representativo dos cidadãos em geral. A expressão “população indiguinada” define-o, implicitamente, segundo dimensões políticas significativas.260 “Muita gente” caracteriza esse público como um contingente humano ampliado sem que nisso fique subentendida uma homogeneização das iniciativas individuais. A tendência à paridade entre a apresentação dos planos individuais e coletivos, na caracterização do “protesto”, confirma-se pelo cuidado da reportagem em reproduzir falas individuais coletadas em meio ao rumor da aglomeração. O texto do JBa relata a manifestação deslocando o foco de atenção desde o plano coletivo até os planos individuais e singulares das enunciações. Esse percurso é claramente expresso na decupagem visual empregada na “matéria”: inicia com planos gerais — tomados do solo, oscilantes —,

260

Segundo a caracterização de MÜLLER (1998, p.75-8), a população representaria o povo enquanto “destinatário de prestações civilizatórias do Estado”, ou seja, enquanto destinatário das ações dos poderes públicos que garantem de fato a vigência de seus direitos civis.

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passa pelos planos de conjunto e “conclui” com planos bem figurativos, em que os enunciadores são identificados individualmente. A referência às ações e aos pronunciamentos coletivos enquanto “protestos” implica a constituição de um duplo destinatário. Esses enunciados estariam dirigidos não apenas aos policiais acusados, mas também ao público, seja ele o próprio contingente presente, seja ele a opinião pública em geral que se torna acessível através das equipes de reportagem. Ao abordar os componentes individuais da aglomeração, a reportagem do JBa faz emergirem público-mediaticamente motivações e objetivos para a participação no “protesto” diferenciados, embora convergentes. Os primeiros enunciadores desse fragmento (presumíveis moradores ou conhecidos de moradores da FN), quando interpelados pelo microfone da reportagem, interrompem seus insultos e acusações para explicar as razões de sua presença na aglomeração. Uma entrevistada estabelece, em seu enunciado, o alcance/amplitude alargados e a regularidade das violências (“faz tempo, não é d’agora não!”), articulando-as, em seguida, como legitimação de um hipotético linchamento dos antagonistas. Quer dizer, embora os manifestantes explicitassem coletivamente seu desejo de vingança, isso não implica que estivessem realmente dispostos a satisfazê-lo. É presumível que o “coro dos linchadores” emergisse menos como uma ameaça real do que enquanto expressão do descontentamento diante da impunidade daqueles policiais. Seja como for, esse “coro” constitui inequivocamente (mais) uma demonstração, no contexto do EFN, da descrença da “população” no sistema de justiça criminal brasileiro.261 A segunda manifestante abordada, Lídia Kobenik, exprime motivos bem particulares para seu descontentamento. Sua presença, até onde se pode ouvi-la e ler seu injurioso cartaz, 262 parece visar principalmente a manifestação de sua indignação pessoal e a denuncia pública da agressão de seu filho. Exceto pela imersão naquela demonstração coletiva, as declarações da senhora Kobenik poderiam perfeitamente figurar no grupo de enunciados derivados, provenientes dos cidadãos que somente a partir da abertura do espaço de visibilidade se puseram a denunciar mediaticamente os agressores policiais. Essa possível dupla pertinência, 261

Ref. estudo sobre linchamentos enquanto prática da “justiça popular” das populações marginalizadas em BENEVIDES, In: PINHEIRO, 1982. 262

O cartaz da mãe, manuscrito em letras cursivas, diz: ‘Bom Fim, marginal fardado. As pancadas que você deu no meu filho você vai pagar em dobro, seu crápula bandido’

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surgida através de uma perspectivação da demonstração pública menos homogeneizante, expõe o caráter ao mesmo tempo individual e coletivo da ação. A focalização narrativa adotada no JBa sugere que cada um dos manifestantes que se postaram à porta do 24°BPM e diante do 2°DP de Diadema lá estivesse por motivos semelhantes, mas distintos. Podem ter sido agredidos individual ou coletivamente, direta ou indiretamente; alguns ter-se-iam envolvido nas ocorrências registradas na FFN, outros sofrido agressões que jamais foram denunciadas. Seus objetivos, embora convergentes, tampouco seriam idênticos, indo do vero ânimo para o justiciamento sumário até a mera “curiosidade” sobre a aglomeração. Nos telejornais do dia seguinte, retornaram as imagens desse sujeito de muitos rostos e uma voz, com sutis diferenças com relação à caracterização anterior: JNa3/2-3 (Apresentadora/sinc): “(...) Hoje, a população de Diadema fez protesto na porta do quartel pedindo justiça.” (Repórter/off): “O portão do quartel da Pê-eme em Diadema quase não agüentou. Moradores da Favela Naval vieram protestar contra a violência dos policiais. (Multidão/sinc): < — QUER JUSTIÇA ! — CORRUUPITO !!!; gritos>“

JBa3/3 (População/sinc): “Lin-cha! Lin-cha! Lin-cha! “ (Repórter/off): “A população de Diadema voltou a protestar contra os pê-emes. Centenas de pessoas passaram o dia na frente do vigésimo quarto batalhão vaiando.. e gritando o tempo todo.”

Mudam as denominações: o JNa passou a usar “população” e “protesto”, caracterizando de maneira mais “politizada” a proferição em questão. O JNa continua (e o JBa passa) a remeter a(s) identidade(s) do(s) enunciador(es) a um espaço específico e circunscrito, por duas vezes: primeiro na apresentação (“população de Diadema”) e depois no off do repórter (“Moradores da Favela Naval”). A recorrência do “cuidado” em definir a origem das pessoas que se manifestavam chama a atenção para uma “deriva” do discurso dos midiadores. A localização estrita da origem dos protestos encaminha uma narração singulativa, através da qual os midiadores buscam fazer seus enunciados concordarem com as atribuídas expectativas de “punição exemplar” do “público telespectador”. Além disso, a referência singulativa às

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ocorrências permite-lhes evitar compromissos diretos com críticas contra todo sistema de justiça criminal. Naquele segundo dia de “protestos”, a manifestação diante do quartel da PM já havia ganhado grande previsibilidade, tanto para os midiadores quanto para manifestantes e policiais. No JNa, nesse momento, a aglomeração parece ter sido empregada como uma expressão audiovisual de uma convergência explícita de opiniões. As tomadas da “multidão”, presumivelmente, forneciam imagens capazes de servir à representação inicial da opinião pública. A decupagem visual e o discurso verbal complementam-se para a representação dessa “opinião icônica”. A manifestação é enquadrada em planos um pouco mais fechados que no dia anterior, criando a impressão da presença de grande contingente e aumentando a instabilidade dos planos, o que reforça a idéia de desordem, para a qual o relato do portão quase arrebentando converge. De modo análogo, embora muito fragmentários e impregnados de carga emocional, os pronunciamentos selecionados no JNa (“quer justiça!”, “corrupto!”) dispõem um conteúdo proposicional que não apela mais, primeiramente, para a retaliação imediata, mas se apóia em alguma expectativa de soluções legais. Contudo, essa expectativa parece frágil, pois as representações dos dois telejornais mostramse incoerentes entre si. O JBa abre a reportagem com o coro dos linchadores, para, em seguida, retomar as denominações “protesto” e “população”, fazendo um percurso bem diferente do adotado pelo JNa. O fato de que os relatos sejam desencontrados caracteriza, junto com as várias imagens do “protesto” enquanto “revolta”, uma situação em que a transformação do descontentamento em uma irrupção violenta parecia iminente. A despeito das divergências entre os telejornais, não restam dúvidas sobre a mudança de atitude dos enunciadores empíricos pertinentes ao ator sociedade civil não-organizada. As pessoas parecem ter-se apoiado na constituição de uma identidade coletiva (“a multidão”, “o protesto”) para a emissão pública de seus enunciados, e não ocultam mais suas identidades individuais. Acusando, insultando e ameaçando, as pessoas, imersas no coletivo, desembaraçavam-se em relação à exposição pública/público-mediática, o que dificilmente ocorreria em situações de gravação nas quais os sujeitos se confrontassem isoladamente com repórteres e cinegrafistas.

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Além disso, configurava-se uma situação em que, pela presença dos midiadores, os participantes do “protesto” viam-se na possibilidade de emitir enunciados que podiam ultrapassar o contexto espaço-temporal da demonstração. É provável que a presença das equipes de reportagem desse aos manifestantes a percepção dos seus próprios atos enquanto acontecimentos publicamente relevantes, levando-os a intensificar a emocionalidade de suas enunciações. A aglomeração manifestante restringia a mobilidade física das equipes de reportagem, o que implicava um relativo estreitamento da autonomia discursiva destas. Como, nessa situação, os midiadores são constrangidos a reproduzir expressões muito sintéticas e pouco fragmentáveis (gritos, palavras de ordem) pode-se dizer que, em certa medida, o relativo tumulto da manifestação reduziu as assimetrias da situação de gravação, favorecendo os enunciadores da sociedade civil não organizada. As vídeo-imagens explicitam essa configuração comunicativa, mostrando, de um lado, os policiais apreensivos, observando a manifestação, atrás do portão do quartel, e, do outro lado, os manifestantes expressando-se sem pudores em relação à cinegrafia, sem medo de retaliações; no meio da aglomeração, vêem-se as videocâmaras operadas com dificuldade e os repórteres e cinegrafistas se acotovelando junto com os manifestantes. Os telejornais do dia seguinte narram e mostram imagens do ato público promovido na praça Miosótis pela Prefeitura Municipal de Diadema. Nas imagens, observa-se uma “população” bem mais circunspecta: JNa4/5 (…) (Repórter/sinc): “No início da noite, moradores da cidade vieram pedir paz... e protestar contra a violência e a impunidade.”

JBa4/7 (Apresentador/off): “No final da tarde, moradores de Diadema participaram de uma manifestação contra a violência policial. Centenas de pessoas soltaram balões e pombas brancas para pedir paz..”

Lacônico, o relato do JNa é também pouco rigoroso: omite a atribuição da iniciativa do lato às instituições dos poderes públicos e da sociedade. Novamente, é utilizada a tomada aérea (feita a partir de um helicóptero), que dissolve as imagens das presenças individuais no conjunto dos “moradores da cidade [de Diadema]” e que, notavelmente, elide os personagens

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conhecidos e os emblemas esquerdistas das várias associações sindicais e político-partidárias, que se vêem abundantemente nas imagens do JBa. O JNa utiliza as tomadas aéreas em grandes planos gerais como maneira de representar, de modo homogeneizante, o ato público, que aparece principalmente como um ícone de um grande contingente contraposto ao (pretensamente) pequeno número de participantes do ato não público do ator polícia. (Cf. Seção 4.5, acima.) Nas imagens do JBa, ouvem-se apenas em background os pronunciamentos das pessoas do palanque, amplificados pelo sistema de som. Os participantes “do chão” não parecem muito empolgados; alguns conversam, abstraídos dos discursos do palanque, outros mostram cansaço. Nada se encontra da fúria expressa nas demonstrações coletivas anteriores, talvez porque a situação de interlocução não surgisse mais de uma iniciativa espontânea de indivíduos pessoalmente interessados. As imagens do ato público parecem demonstrar uma domesticação dos “protestos”, possível resultado da substituição do espontaneísmo da aglomeração diante do quartel de Diadema pela organização rotineira e planejada dos eventos político-partidários. De uma situação de anarquia (“multidão”), o “protesto” passou a ser mediado por dispositivos de enunciação hierárquicos. O uso do sistema de som e do palanque acentuavam as assimetrias das condições de enunciação dos participantes da manifestação, conformando uma situação de baixa reversibilidade nas interações comunicativas: o lugar de enunciador é fixado de modo central e privilegiado, sedimentando também o enunciatário em uma condição periférica. Os enunciados lingüísticos, coerentemente, perderam a síntese e o pathos do uníssono da aglomeração. Pela mediação de locutores privilegiados e institucionalizados, tiveram sua emocionalidade reduzida à “inflamação” codificada e à loquacidade rebarbativa dos discursos ditos “de esquerda”. Seu tom vingativo e insultuoso foi elidido, favorecendo sua remissão ao espaço público, àquele constituído pelos presentes e também (ou principalmente) ao mediático. Nos telejornais da semana seguinte, a “multidão” foi notada por sua falta, nas imagens de contextualização dos depoimentos dos policiais acusados em juízo: JNa11/3 (Repórter/off): “Ruas fechadas... revistas para entrar no fórum... cento e vinte homens em ação... Um superpoliciamento em Diadema... para proteger os dez pê-emes convocados pra depor.”

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JNa11/6 (Repórter/off): “No fim da tarde, os pê-emes foram levados... para o presídio militar de São Paulo. Eles só devem voltar a Diadema... quando a Justiça marcar... o Júri Popular.”

As imagens não mostram qualquer aglomeração nos arredores do Fórum de Diadema ou alhures, e não aparece qualquer enunciado de “protesto” ou de ameaça contra os acusados. Tanto na chegada, quanto na partida do ônibus que transportava os acusados, observa-se o grande número de policiais e de pessoas da mídia, mas poucos manifestantes, sugerindo tanto a expectativa do ator-polícia por um grande contingente potencialmente ameaçador, quanto o arrefecimento do interesse espontâneo dos anteriores manifestantes em tomar parte de uma demonstração pública naquele momento. No décimo segundo dia após a denúncia inicial, encontra-se no JBa12 e no AqA12 o relato de uma manifestação pública de “jovens de Diadema”, que foi a última demonstração coletiva registrada em telejornais durante o período analisado nesta pesquisa. JBa12/9-10-11 (Apresentador/sinc-estúdio): “Em Diadema, na Grande São Paulo, jovens protestam contra a violência policial, usando a arte das ruas, o graffiti.” (Apresentador/off): “A maquiagem retrata as marcas da violência. Um boneco baleado no chão, uma das vítimas. Outros bonecos, também baleados, estão de frente para uma parede, onde os graffitis falam da violência policial”.

Note-se, quanto ao JBa, que o “protesto” aparece sem muito destaque no conjunto do texto do telejornal, inserido entre várias “matérias” curtas (na Seção “Giro pelo Brasil”). Coerentemente, adota-se, para identificar os promotores do “protesto” uma denominação muito vaga: “jovens”. Tanto o texto da locução quanto os planos selecionados pela edição de imagens exibem apenas os instrumentos de enunciação utilizados pelos manifestantes. Não são reproduzidos sequer fragmentos dos pronunciamentos, cuja emissão, aliás, não é nem mesmo relatada. A identidade dos manifestantes e o conteúdo proposicional de seus enunciados são reduzidos às suas formas audiovisuais mais imediatas. Não que essas sejam irrelevantes: apesar disso não aparecer na vaga denominação “arte das ruas”, sabe-se que o graffiti é uma contravenção punível, e que, quando articulado como forma de expressão pública (diferente da pichação ou tagging), constitui um típico ato de desobediência civil. Contudo, nem as implicações

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políticas do graffiti nem as suas conexões com os movimentos sociais são explicitadas no texto do telejornal. O AqA, telejornal paulista de abrangência local e atribuído apelo popular, mostrou-se mais generoso do que o JBa na “matéria” dedicada à manifestação. Dedica-lhe uma duração maior, reproduz alguns enunciados dos manifestantes e caracteriza um pouco melhor o caráter organizado daquela demonstração. Esse tratamento permite perceber as omissões do JBa e as do JNa — que sequer noticiou o “protesto”: AqA12/2-3 (Apresentadora/sinc): “Boa Noite. Jovens de Diadema saem às ruas para pedir paz e justiça. Eles fizeram uma proposta: trocar a violência pela arte. Foi um momento de descontração para moradores acostumados a viver com medo.” (Repórter/off): “A manifestação dos jovens de Diadema, no ABC paulista reuniu na praça Castelo Branco, uma das principais da cidade, dezenas de pessoas. Aqui, com graffiti, arte, dança, música, e o apoio de algumas entidades locais, os adolescentes, em sua maioria, fizeram um protesto pacífico, que tinha um único objetivo: a luta pela justiça, pela paz e pela cídadania.” (Manifestante1/sinc): “Devemos denunciar todas essas violências. A violência que estão fazendo com os sem terras! Devemos denunciar também.” (Repórter/off): “Tudo foi na verdade... um ato de repúdio à violência praticada pelos policiais militares na Favela Naval... naquela região. E para lembrar a ação dos policiais... e não deixar que o caso fique impune... os jovens chamaram a atenção... colocando no chão um boneco que lembrava Mário José Josino, o homem assassinado pelos policiais. O luto pela morte do trabalhador... estava no pescoço, nos braços... e na cabeça dessa gente... que pelo jeito está aprendendo a lutar... pelos direitos de cidadão.”

Nesse fragmento, que funciona como introdução da “matéria”, reaparecem vários elementos já discutidos: a referência aos “jovens”, o espaço simbólico da Favela Naval e seus moradores amedrontados (agora deslocados para Diadema). O caráter organizado da manifestação, relatado na locução, pode ser percebido também nas imagens: na instalação do “paredón” como fundo, no plástico grosso colocado no chão para quem quisesse dançar Break sem se machucar, no acesso ao microfone, para as denúncias e protestos. Os organizadores e enunciadores colocaram-se no mesmo nível do público enunciatário: todos estavam no mesmo chão, não se usaram palanques. O acesso aos dispositivos de enunciação foi organizadamente franqueado às pessoas do público interessadas em se pronunciar. A conformação do ambiente comunicativo adotada nessa “manifestação” demonstra a intenção de configurar um espaço de relações com a maior reversibilidade possível entre os enunciadores e os enunciatários. Isso vale não só para o discurso verbal, como também para a

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dança e para as artes plásticas. O “protesto”, como o texto do telejornal indica, é multimediático, associando várias formas de discurso: verbal-argumentativa, poético-musical (Rap), visual (a “instalação” graffitada) e corporal (dança Break). Atente-se, porém, para as divergências entre o discurso dos manifestantes e o do telejornal. O midiador demarcava cuidadosamente as referências geográficas da manifestação e atribuía o protesto a motivações singulares. O texto da apresentação faz referencia a “um único motivo” para a manifestação, muito embora a repórter o contradiga, citando três (“justiça, paz e cidadania”). A associação a outros espaços e contextos da violência policial (patente no “discurso inflamado” de um manifestante: “Devemos denunciar também...”) foi reduzida a uma única motivação, pela referência apenas às ocorrências do “caso Diadema” (“tudo foi na verdade um repúdio à violência praticada por policiais... naquela região...”). A propensão ao discurso singularizante aparece também na imputação de motivos imediatos à manifestação (“...não deixar que o caso fique impune...”). A edição de imagens segue a tendência do texto, dando particular destaque às imagens do boneco “representante” de Mário José Josino. O uso das faixas negras (detalhadas nas imagens) é, igualmente, referido apenas ao caso individual (“...luto pela morte do trabalhador...”). Nas várias formas de expressão dessa manifestação, porém, evidenciou-se a disposição dos presentes a sustentar um discurso iterativo sobre a violência policial. No tapume graffitado, além da referência específica à “polícia de Diadema”, figuram topônimos associados a diversos casos de brutalidade policial (“Favela Naval, Cidade de Deus, Vigário Geral, Carandiru, Candelária”). O fragmento do discurso, reproduzido na “matéria”, também procura partir dos crimes denunciados através da FFN para estabelecer conexões com episódios semelhantes de brutalidades policiais impunes. Há uma tensão entre as duas tendências explícita na conversação entre a repórter e o graffiteiro, na seqüência seguinte: AqA12/4 (Repórter/sinc): “Você colocou ali ó... ‘Corra, a polícia de Diadema vem aí’. Parece que já deu confusão isso hoje, né? Alguns policiais passaram aqui... e não gostaram.” (“Juneca, artista plástico”/sinc): “É, chegou uns policiais, dizendo que tavam sendo ofendidos, que eu tava generalizando... a polícia de Diadema, que não é verdade. E eu retruquei dizendo que... esse painel é referente ao que aconteceu em Diadema, mas também, sobre a violência policial, que ela é presente também, não só em Diadema, como São Paulo e todo o Brasil.” (Repórter/sinc-extracampo): “Mas você não está considerando que todos os policiais praticam esse tipo de violência.”

239 (“Juneca”/sinc): “Não...”[corte: entra imagem da FFN] (“Juneca”/off): “...que a violência existe, sim, mas não todos os policiais, né.”

Apesar do painel registrar vários topônimos além de “Diadema”, apenas esse parece ter chamado a atenção da repórter. Ela insiste em extrair uma autocrítica do artista plástico, embora não rejeite (nem questione) a generalização do problema da violência policial a um âmbito nacional. Além disso, não se pode — já que a fala do entrevistado foi editada — saber que tipo de concessão foi, de fato, feita pelo entrevistado. Outra discrepância aparece no plano das propostas dos manifestantes, apresentadas pelo telejornal como “trocar a violência pela arte”: AqA12/5-6 (Manifestante2/off): “Nós... não estamos aqui fazendo um ato só contra a violência. Nós também tamos fazendo pesquisa sobre o perfil dos jovens da cidade, pra poder propor...” (José Antônio/sinc263): “...políticas pra juventude, na área de emprego, educação... e pra isso, precisa ter os dados... concretos. E aí nós vamos ter um banco de dados sobre o que a juventude, se estuda se trabalha, então... o perfil da juventude. E além disso, também, estamos colhendo assinaturas contra a violência, pra levar pro governador do Estado pra tár... entregando mais uma coisa concreta...” (off, edição do depoimento): “...Disque denúncia...” (sinc): “...já era uma proposta nossa bem an... bem anterior a isso. Agora, a gente tem mais caminho pra isso. Já é quase uma conquista a gente ter um disque-denúncia aqui na cidade... pra juventude... pra juventude não, pra população.”

A fala de José Antônio, embora não seja introduzida nem posteriormente comentada pelo telejornal, mostra bem a dimensão propositiva da demonstração pública. Ela busca fazer o diagnóstico de demandas da juventude de Diadema por “prestações civilizatórias do Estado”264 e também coletar apoios formais para a instituição de um dispositivo de controle social sobre a violência (não só policial, não só para a juventude). O caráter substantivo dos objetivos expostos diverge completamente da forma atenuada com que as propostas daquele coletivo são expostas no texto do AqA (“fizeram uma proposta: trocar a violência pela arte”), e completamente omitidos, no texto do JBa (“jovens protestam... usando a arte das ruas, o graffiti”).

263

Segundo os caracteres inseridos pelo telejornal, José Antônio é o“Coordenador movimento”.

264

Termo usado por MÜLLER, 1998. (Capítulos V e VIII.)

240

Causa desconfiança a forma pela qual os telejornais falam em “arte” como uma proposta, ou segundo a qual se referem ao graffiti como “arte das ruas”. Primeiro, porque empregam concepções idealistas e românticas de arte e artista (típicas do senso comum burguês) para representar as pessoas, as expressões e os objetivos da manifestação do HipHop: trocar a violência pela arte é uma utopia; instituir um disque-denúncia em Diadema, não. Segundo, porque, nesse discurso, subjaz uma hierarquização entre “belas artes” e “arte das ruas” (popular). A primeira é privilegiada por produzir objetos privadamente apropriáveis como mercadorias, por pretender originar valores estéticos “eternos” e por visar ser exposta em

espaços

institucionalizados.



a

“arte

popular”

é

marginalizada

por

sua

efemeridade/historicidade, por ser pública, freqüentemente voltada para a re-politização do espaço urbano, e por produzir obras de difícil apropriação privada. Terceiro, porque os telejornais têm sido incapazes de sumarizar as formas de expressão presentificadas naquele ato público como um conjunto discursivo dotado de temáticas definidas, como o é o movimento HipHop. Assim, constata-se que, ao contrário do atribuído pelos telejornais, embora a esteticidade e a variedade das expressões empregadas sejam muito importantes, elas não são as finalidades da manifestação — pelo menos para seus organizadores. Nos fragmentos analisados não houve novidade quanto à perspectiva preconceituosa dos telejornais, em relação aos movimentos sociais em geral, e, em específico, à sua propensão a ignorar o movimento HipHop.265 Ao final da “matéria”, o JBa destaca a presença de uma moradora de Diadema, vítima de um caso bem anterior. Um de seus filhos, vítimas da brutalidade policial, havia ganhado celebridade internacional: JBa12/12 (Apresentador/off): “A mãe de Pixote, que foi morto a tiros pela polícia... fez um rápido desabafo”. (mãe de Pixote/sinc): “...Eu não quero falar, p’que eu tenho medo de falar... cês entende? Quem já passou tudo que eu passei, eu tenho medo...” 265

Em linhas bem gerais, o movimento HipHop (que já tem mais de vinte anos no Brasil) é constituído por uma rede de não-hierárquica de grupos de intervenção político-cultural de naturezas variadas, mas que tem em organizações locais (as posses) seu fundamento. Suas principais expressões artísticas são o Rap (música e poesia), o Graffiti (artes plásticas públicas) e o Break Boying (dança e expressão corporal). Seus objetivos genéricos são a luta contra o racismo e a exclusão social, o combate às drogas e à violência policial. Um dos seus mais importantes instrumentos de organização e intervenção pública são as rádios comunitárias, o que torna também uma de suas prioridades a luta pela democratização das mídias. (Ref. Movimento Hip Hop. Caros Amigos Especial n.3, setembro de 1998.)

241

A referência central do fragmento é dada pela identidade de uma vítima da brutalidade de membros da PMSP, Fernando Ramos da Silva, conhecido pelo nome do personagem ficcional que interpretou em um filme (“Pixote, a lei do mais fraco”). Talvez resultado da própria celebridade, a história de vida da pessoa real coincidiu sinistramente com a ficção. A mãe, Josefa Carvalho da Silva — identificada a partir da sua relação com a vítima e personagem — emite um enunciado em que, paradoxalmente, anuncia que nada vai dizer. A atitude de D. Josefa pode parecer surpreendente, pois a vítima se encontrava em uma situação de enunciação que lhe era plenamente favorável, mas se torna perfeitamente compreensível quando se sabe que sua família foi dizimada pela polícia paulista: dos dez filhos de D. Josefa, apenas três permaneciam vivos em 1992.266 De fato, embora o conteúdo de sua não proferição expresse de maneira eloqüente seu medo, sua presença demonstra seu interesse na manifestação, indicando o estatuto adquirido pelo EFN como referência fulcral para a representação dos episódios de violência policial como um conjunto.

5.2 — Organizações da sociedade civil

5.2.1— O Ministério Público (MP)

Torna-se necessário mencionar alguns aspectos sobre a participação do Ministério Público da União (MPU) no EFN, que se efetiva pela intensa e decisiva participação da Promotoria de Justiça de Diadema (na pessoa do Promotor José Carlos Guillem Blat) na cena pública e nos desdobramentos institucionais. Infelizmente, devido à focalização temática específica desta investigação, e às limitações concretas de sua execução, não será possível realizar a atraente tarefa de análise da participação do MP nesses dois âmbitos. Pode-se considerar, contudo, que o conjunto das intervenções da Promotoria Pública de Diadema nesse episódio é um objeto privilegiado para a compreensão da interpenetração da esfera jurídica e da esfera pública mediatizada. Deve ser explicada a inexatidão, do ponto de vista jurídico, da inclusão do Ministério Público (MP) na categoria de enunciador pertinente a organizações da sociedade civil. O MP, às vezes 266

BARCELLOS, 1993. (Capítulo 20.)

242

chamado de “quarto poder”, é uma organização situada em uma posição ambivalente, em termos de seu relacionamento com o Estado e com a sociedade civil. Encarregado da defesa “da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais e sociais indisponíveis”,267 o MPU é independente, não submetido às determinações de nenhum dos três poderes;268 mas, nem por isso, deixa de ser uma instituição oficial, que formaliza e institucionaliza demandas e problemas emersos no cotidiano. Portanto, a inclusão dos enunciados do MP no âmbito das organizações da sociedade civil justifica-se não pelo estatuto jurídico dessa instituição, mas pelo aspecto (especificamente abordado nesta pesquisa) de suas intervenções nos espaços público-mediáticos. Do ponto de vista do discurso da esfera pública, a participação da Promotoria de Justiça de Diadema demonstrou uma grande proximidade com a perspectiva própria às narrativas dos enunciadores das organizações da sociedade civil. Será feito um breve relato das aparições do Ministério Público de Diadema no contexto telejornalístico constituído pelo EFN, por se entender que possam ser elucidativas para a compreensão dos processos de apropriação público-política das imagens em vídeo e também para fornecer uma visão um pouco mais ampliada do quadro das interações comunicativas desdobradas nesse contexto. A participação do MP de Diadema no EFN exibe um traço distintivo e significativo: suas intervenções freqüentemente ultrapassaram o campo típico de atuação da Promotoria de Justiça (a participação na investigação das ocorrências e o encaminhamento de denúncias ao sistema de justiça criminal) e se estenderam a intervenções originais — às vezes agressivas — nos espaços público-mediáticos. Não há evidências de uma colaboração entre a Promotoria de Diadema e o JNa na denúncia mediática inicial. Mas existem fartos indícios da participação ativa dessa instituição após esse momento (EDT1, JBa4). O MP foi, em grande parte, o responsável pela disseminação das imagens da FFN pelos vários telejornais, convocando, no dia seguinte à teledenúncia inicial, uma coletiva de imprensa em que foram exibidas as vídeo-imagens da cópia preto e branca 269 267

Lei Complementar n°75, de 20 de mai. de 1993, art 1°.

268

Lei Complementar n°75, de 20 de mai. de 1993, art. 22°: “Ao Ministério Público da União é assegurada autonomia funcional, administrativa e financeira ...”. 269

Essa é a cópia feita por Francisco Romeu Vanni e enviada à polícia. Foi recebida em 25 de março pela Corregedoria da PMSP e vista pelo promotor Blat no dia seguinte. Esta fita constituiu a evidência material que recolocou em andamento o processamento das denúncias das vítimas (Caputi e Dias), no dia 7 de março de 1997, levando ao pedido de prisão administrativa dos dez policiais incriminados na FFN.

243

da FFN que foi recebida pela polícia militar e colocada sob a guarda do MP de Diadema; registradas por diversas equipes de reportagem, essas imagens foram utilizadas inúmeras vezes nos telejornais do período. A ação da Promotoria de Justiça foi, nesse sentido, decisiva para a tematização conjunta das ocorrências de crimes policiais pelos veículos de comunicação brasileiros (87% dos paulistanos teriam assistido aos trechos da famigerada fita, segundo o instituto Datafolha).270 Um traço característico da participação do MP no EFN, principalmente nas atividades investigativas, é que com freqüência seu representante se pronunciou na companhia de enunciadores pertinentes a outros atores políticos, com cujos esforços investigativos a atuação da promotoria era convergente. Regularmente, o Promotor José Carlos Guillem Blat aparece na cena dos telejornais acompanhado de equipes de reportagem e/ou de membros das Comissões Parlamentares de Inquérito da Assembléia Legislativa de São Paulo (CPI/ALSP).271 Não cabe aqui questionar — como faz um dos advogados dos PMs incriminados 272— se as freqüentes incursões do representante do MPU correspondem a seus eventuais interesses pessoais; é, sem dúvida, evidente que o promotor Blat procurou aproveitar as oportunidades de se pronunciar público-mediaticamente, fazendo-o sempre de modo bastante incisivo e mostrando-se taxativo ao considerar a natureza criminosa dos atos registrados na FFN. Autorizado por suas atribuições institucionais (das quais os midiadores apenas pretendem dispor), Blat não titubeia em se referir aos policiais incriminados através de epítetos acusadores — “bandidos de farda”, “criminosos fardados”, “maus policiais” — e, coerentemente, quando perguntado sobre os (então indefinidos) resultados do processamento criminal, garante sempre a punição dos acusados. O promotor utiliza frases curtas e sintéticas, principalmente nas entrevistas gravadas. Esse traço permite considerar que ele tenha sempre levado em consideração as condições de enunciação específicas dos espaços mediáticos, que desautorizam longas digressões retóricas. Houve, portanto, uma evidente intenção do 270

SCHLEGEL. Maioria quer queda da cúpula da segurança. Folha de S. Paulo, 3 de abril de 1997, p. 3-1, editoria: Cotidiano. 271

Trata-se, na verdade de uma CPI já instalada, cujos trabalhos já se encontravam em andamento (“CPI do Crime Organizado”) e cujos membros decidiram incorporar as ocorrências da FFN como seu objeto; essa incorporação determinou a subseqüente (na mesma semana da denúncia mediática) instalação de uma outra Comissão, dedicada especificamente à sua investigação ( “CPI da PM de Diadema”). “ ‘c’ (...) Gamalher Corrêa, advogado do Rambo, durante discussão com o promotor José Carlos Blat”. (Frases. Folha de S. Paulo, 19 de abril de 1997, p. 3-1, editoria: Cotidiano) 272

244

promotor Blat em utilizar os espaços mediáticos para intensificar a atenção pública sobre as ocorrências e aumentar a pressão popular sobre seu processamento judiciário. Além disso, partindo de uma hipotética perspectiva da opinião pública brasileira, poder-se-ia afirmar que as proferições mediatizados do promotor de Justiça de Diadema também serviram para confortar os cidadãos, na medida em que ostentavam uma efetividade do Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, disponibilizou público-mediaticamente um discurso no qual os “distúrbios” representados pelas condutas “desviantes” de representantes do Estado eram reinseridos na ordem pública. O modo pelo qual o MP incorpora a FFN nos seus enunciados pode ser definido segundo três traços: jamais coloca em questão a autenticidade da fita enquanto evidência; sempre afirma sua factualidade com base em indícios adicionais (laudos periciais, depoimentos de vítimas, o inquérito policial), demonstrando uma constante precaução em relação às contranarrativas dos acusados e seus defensores (JBa5/8); sua perspectiva de semantização da FFN nas enunciações telejornalísticas é da incorporação da fita enquanto evidência criminal e jamais como sintoma de um problema institucional (relativo ao funcionamento dos organismos do sistema de justiça criminal) ou político (políticas governamentais para a segurança pública, “concepção popular de justiça”). Esse último elemento merece comentários adicionais, já que, embora esses últimos problemas estejam situados fora da alçada do promotor de Diadema, seriam (em tese) assuntos que demandariam ações do MP Federal. O tipo de extensão propendida pela Promotoria Pública de Diadema chegava ao limite da reabertura de inquéritos criminais arquivados nessa cidade, em busca de outros possíveis crimes cometidos pelos policiais incriminados na FFN.273 O MP Federal deixa de aproveitar o espaço de visibilidade do EFN para abordar tais problemas, apesar de a Promotoria Pública de Diadema (e também o Promotor de Justiça Militar) ter sido obrigada a enfrentá-los durante a realização de suas tarefas institucionais. Os promotores encontraram dificuldades adicionais na acusação de policiais criminosos, devido à resistência de suas vítimas em denunciar os agressores.274 Embora provavelmente não tenha sido a primeira prioridade das emissões público-mediáticas do promotor Blat, não se pode afirmar que tenha a focalização singulativa, judiciária e moral, sido uma característica 273

Crimes podem ser re-investigados. Folha de S. Paulo, 4 de abril de 1997, p. 3-1, editoria: Cotidiano.

274

GODOY. Promotor busca outras vítimas. Folha de S. Paulo, 2 de abril de 1997, p. 3-4, editoria: Cotidiano.

245

de seus enunciados públicos. Em algumas oportunidades (pouco ou não mediatizadas), o promotor Blat (que procurou contornar, através de medidas práticas, a falta de institutos jurídicos que assegurassem garantias às testemunhas) discutiu publicamente a necessidade desses dispositivos e também o problema da subnotificação de crimes policiais.275 No contexto telejornalístico configurado pelo EFN, contudo, problemas como a falta de um sistema de proteção às testemunhas e os das responsabilidades políticas de cada cidadão brasileiro na omissão em utilizar seus direitos contra a violência policial permanecem muito superficialmente abordados, enquanto o substrato ideológico, autoritário e discriminatório da cultura política brasileira (que subjaz à tolerância com esse tipo de crime) não foi criticado em momento algum.

5.2.2— Duas NGOs, nenhuma ONG276

É bastante intrigante que, diante da importância atribuída, no modelo discursivo de democracia, à atuação de organizações autônomas da sociedade civil, como agentes da revitalização da esfera pública, para o transporte de situações-problema do nível da vida cotidiana para esta esfera, para a dramatização dessas situações nos discursos públicos etc., a participação desse tipo de ator político no EFN pareça ter sido tão lateral. Enquanto as Organizações Não-Governamentais internacionais (NGOs) defensoras dos Direitos Humanos ocupam um lugar de certa relevância, no quadro da “repercussão internacional”, suas congêneres nacionais foram praticamente ignoradas nos relatos telejornalísticos. No conjunto dos telejornais analisados, apareceu uma única e tangencial menção a tais organizações brasileiras:

275

O MP de Diadema solicitou proteção policial para as testemunhas, depois que o advogado de alguns dos PMs acusados lançou a notícia que uma das principais testemunhas havia sido assassinada. O MP justificou sua solicitação considerando as declarações do advogado como tentativas de intimidar os depoentes. (GODOY. Testemunhas vão receber proteção. Folha de S. Paulo, 18 de abril de 1997, p. 3-1, editoria: Cotidiano.). Na semana anterior, o promotor de Justiça de Diadema fez declarações públicas junto com o representante da Human Rights Watch, afirmando a necessidade de “ampliar os mecanismos de proteção às testemunhas para garantir eficiência na apuração de crimes” e também que “a população precisa revogar a lei do silêncio. Não adianta criar lei antitortura se os torturados não denunciam”. (LOZANO. Entidade quer mais proteção a testemunha. Folha de S. Paulo, 10 de abril de 1997, p. 3-4, editoria: Cotidiano.). 276

NGO: Non-Governamental Organization; ONG: Organização Não-Governamental: a tradução dos termos oculta a dessemelhança dos contextos.

246

JBa3/11 (Âncora/sinc): “Hoje a comissão de Direitos Humanos foi até a casa da mãe do mecânico Mário Josino. As organizações de Direitos Humanos vão dar assistência jurídica e financeira à família.”

Nesse fragmento, o telejornal dá a entender que as “organizações de direitos humanos” teriam funções assistenciais, ou que se limitariam a atuar de modo defensivo. No JNa, a única referência feita às “ONGs” brasileiras aparece associada à criação, pelo governo federal, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SNDH), e à posse, como Secretário, do advogado — e tradicional defensor dos Direitos Humanos — José Gregori: JNa7/12-13 (Secr. José Gregori/sinc): “Nós criaremos... com muita rapidezsz... assim que essa secretaria realmente estiver... eh... instalada... um grupo de trabalho... multirepresentativo... para fazer, em um prazo de sessenta dias... essa avaliação... do modelo vigente das polícias militares... no país.” (Apresentadora/Sinc): “Serão convidados a participar desse grupo de trabalho... representantes de universidades... de organizações não-governamentais... e também do Estado Maior das Forças Armadas.”

Observe-se que, à inclusão de organizações autônomas da sociedade civil em um grupo de trabalho organizado pelo governo, subjaz uma limitação de seu horizonte de atuação à esfera do Estado. No texto de ambos os telejornais, as organizações autônomas brasileiras defensoras dos Direitos Humanos são identificadas apenas genericamente; no caso da referência do JBa, seu caráter autônomo (não governamental) sequer é demarcado. Nos exemplos vistos acima, fica patente a tendência dos telejornais em se referir às ONGs brasileiras associando-as (e, implicitamente, as assimilando) às instâncias dos poderes públicos: no JBa, são quase indiferenciadas de organização parlamentar; no JNa, aparecem associadas às iniciativas do executivo e justapostas — e implicitamente niveladas — às autarquias do Estado. Não há, portanto, nenhuma atenção da parte dos produtores de telejornais em demarcar o campo de ação das ONGs brasileiras na esfera pública, e muito menos em divulgar seus atos ou apresentá-las como espaços públicos alternativos. Se a limitação no grau de organização autônoma da sociedade brasileira pode explicar em parte a pequena relevância atribuída aos pronunciamentos e atos de ONGs brasileiras, deve-se considerar que o tema dos Direitos Humanos costuma ser marginalizado na cultura política brasileira, impregnada de concepções autoritárias de Estado e à subjacente “concepção

247

popular de justiça”.277 Mesmo assim, não se pode deixar de questionar a falta de disposição dos telejornais, se não a se contrapor a essas concepções, pelo menos em permeabilizar os espaços mediáticos para a emersão de discursos divergentes, como os provenientes dos grupos defensores dos Direitos Humanos. O negligente e às vezes preconceituoso modo de apresentar as manifestações populares e de veicular os enunciados de organizações autônomas da sociedade civil e movimentos sociais organizados (como o HipHop, que não é nomeado nem identificado como movimento organizado) afigura-se como uma demonstração do desinteresse dos telejornais (operado como uma atribuição de desinteresse ao público) em pluralizar o acesso de discursos dissensuais ou minoritários ao espaço público-mediático. Nesse contexto, cabe indagar qual teria sido a razão das aparições relativamente privilegiadas dos enunciados de representantes de ONGs de origem estrangeira. Sem pretender oferecer respostas definitivas para essa aparente incoerência, é preciso chamar a atenção do leitor para as circunstâncias históricas do momento da eclosão do EFN. O governo de F. H. Cardoso estava, no momento da eclosão desse Evento, na iminência de realizar as grandes privatizações das empresas estatais (Vale do Rio Doce, Telebrás), de desfazer vários monopólios estatais em áreas produtivas básicas e de renegociar as dívidas interna e externa. Em síntese, 1997 era o começo da “encenação do consenso” sobre a necessidade da abertura (ou desnacionalização) das empresas nacionais ao capital estrangeiro. É, portanto, bastante explicável a preocupação (“todo o trabalho do governo”, nas palavras do Presidente do Senado A. C. Magalhães — JNa1/24) do Executivo e de setores da iniciativa privada (incluindo aí as empresas de comunicação, como é demonstrado claramente nos editoriais de JNo2 e CAl2) em preservar a “boa imagem do Brasil” diante da “opinião pública internacional”, evitando “rachaduras” como o escândalo da divulgação das imagens da FFN. Nesse aspecto, pode-se supor que a mídia brasileira considerasse as ONGs nacionais interlocutores pouco relevantes na discussão dos problemas emersos com a FFN, mas fizesse uma avaliação contrária sobre o papel das organizações internacionais. Na representação telejornalística da “imagem do Brasil”, as ONGs de origem estrangeira ocupavam lugar 277

A partir da reinterpretação dos dados de um survey feito no Rio de Janeiro, Soares evidencia a centralidade da representação “despótica” da violência no discurso popular, que representa o “crime” como “facticidade isolada e de significação dada ou insofismável” (SOARES, 1996. p. 247-9). Essa perspectiva tende a apontar “soluções... que desprezam mediações institucionais ou legais” e a dirigir demandas a um “Estado tirânico” pretensamente auto-suficiente. (Ibidem, p. 36-7, 48-51). Sobre as dificuldades enfrentadas pelos defensores dos Direitos Humanos no Brasil. (Cf. CALDEIRA, 1991; PAIXÃO & BEATO, Crimes, vítimas e policiais. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, n. 9(1), mai. de 1997. p. 234; PAIXÃO, Segurança privada, direitos humanos e democracia. Novos Estudos CEBRAP, n.31, out. 1991. p. 138-9.)

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destacado no processo de formação da opinião pública (e institucional) dos países capitalistas centrais. Atente o leitor para a referência à Anistia Internacional (AI): JNa1/10 (Apresentador/sinc): “A repercussão no exterior. Uma comissão da Anistia Internacional deve vir ao Brasil para acompanhar as investigações do caso.”

JNa1/12-13 (Repórter/off): “A porta-voz da Anistia Internacional, Fionna MacAuley, ficou estarrecida com as imagens da violência. A Anistia, que tem sede aqui em Londres, deve enviar uma comissão a São Paulo... para acompanhar de perto as investigações do caso.” (Fionna MacAuley/sincro): “Temos preocupações sérias... e grandes... em relação à polícia militar, espechalmente a questão da impunidade. Recebemos... muitas denúncias, de todas regiões do país... eh... em quanto a... crimes cometidos pela pê-eme.”

A seqüência entre esses dois fragmentos (JNa1/11) é um resumo da cobertura dos telejornais estrangeiros; a justaposição entre a cobertura telejornalística estrangeira e a enunciação provocada278 da AI não nos parece casual. Suas características parecem sintomáticas das inclinações da abordagem dos noticiários dos oligopólios mediáticos brasileiros: a Anistia Internacional é situada no rol dos “formadores da opinião pública internacional”, categorização que torna as declarações de representantes de NGOs assimiláveis às dos telejornais da CNN ou da BBC (ou do francês Le Monde, citado na Folha de S. Paulo).279 Um segundo enunciado, pertinente às ONGs internacionais e trazido à cena do JNa uma semana depois, resulta da publicação pela Human Rights Watch/Americas (HRW) de seu relatório anual: JNa8/3-4 (Apresentadora/sinc): “A organização internacional... Human Rights Watch, especializada em Direitos Humanos... divulgou um relatório sobre a violência policial. O documento põe a culpa nos governos estaduais.” (Repórter/off): “ A violência na Favela Naval em Diadema... será o destaque próximo relatório. No divulgado hoje, a entidade faz uma crítica aos governos... que incentivam... a violação dos Direitos Humanos... através de promoções... por bravura.”

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Através de contatos telefônicos com membros da AI em São Paulo e em Londres, tomamos conhecimento de que a reportagem do JNa providenciou uma gravação (cuja cópia nos foi gentilmente enviada pela chefe do grupo de investigação para o Brasil, a mesma Fionna MacAuley) de parte do JNa1, apresentada para a representante da AI, para a realização dessa entrevista e com os comentários dessa representante. 279

Texto irônico lembra filme. Folha de S. Paulo, 3 de abril de 1997, p. 3-3, editoria: Cotidiano.

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Em termos do conteúdo proposicional das declarações, pode-se notar que a fala reproduzida da representante da AI não se afasta do posicionamento assumido pelo JNa: toma as ocorrências da FFN como exemplares e relata iterativamente a violência policial conexa à impunidade dos policiais criminosos. As ocorrências são problematizadas até o nível das avaliações gerais sobre a atuação do conjunto das polícias militares. No caso do relatório da HRW, não há diferenças significativas em relação à narração das ocorrências desencadeadoras do EFN proposta pela AI ou pelo telejornal. Aparece, contudo, uma divergência específica em relação ao posicionamento do telejornal (JNa2/28), que havia anteriormente defendido a política das “promoções faroeste” adotada pelo governo do estado do Rio de Janeiro (JNa2/28). Note o leitor também que o telejornal refere-se apenas às avaliações negativas presentes no relatório da HRW e não relata nem os avanços políticos relacionados à defesa dos Direitos Humanos no Brasil, mencionados nesse relatório (alguns dos quais são explicitamente associados à teledenúncia inicial do EFN), nem menciona as recomendações feitas pela entidade ao Governo Federal, aos governos estaduais, parlamentos e tribunais brasileiros. O aspecto em que a narrativa do JNa defasa de modo mais explícito do documento da HRW, no entanto, relaciona-se ao emprego da palavra “culpa”: essa palavra não aparece em nenhum ponto do relatório da organização. O telejornal parece aproveitar a enunciação da ONG internacional para através dela manifestar suas próprias avaliações, embora essa edição de texto possa ser “justificada” como uma simplificação lexical necessária para o “melhor” entendimento dos “telespectadores”. Cabe questionar o relativo privilégio da emersão nos espaços público-mediáticos das enunciações das ONGs internacionais de defesa dos DHs. Do ponto de vista do ator midiador, dar visibilidade mediática a essas entidades torna-se admissível ou mesmo confortável, pois nenhuma dessas organizações questionava o processo de produção da denúncia mediática, criticando a falta de atenção da mídia oligopolista em relação às condições de vida das populações excluídas. Pode-se acrescentar que tais ONGs deixaram de marcar publicamente seu dissenso em relação ao desrespeito sistemático e sistêmico ao funcionamento democrático dos espaços público-mediáticos, defendido pelo artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos que garante a existência de e o livre acesso à esfera pública política, o Artigo XIX: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de,

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sem interferência, ter opiniões e de procurar receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.”

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

El Hashma tinha a reputação de ensinar por sinais. Um homem que ficou imensamente atraído por essa idéia viajou por anos até que chegou à escola do sábio. Assim que o viu, Hashma disse: “Você precisa ser preparado para aprender, pelo menos os primeiros passos para a sabedoria, apenas por palavras.” O Homem protestou: “Eu posso conseguir palavras em qualquer lugar. Eu vim para aprender por sinais.” Hashma disse: “Todo mundo quer aprender por sinais, gestos e exercícios, depois que ouvem que isso seria possível. O resultado tem sido que ficam exaltados demais com essa possibilidade para serem capazes de realizá-la. Tal é sua exaltação que eles não a podem perceber, e gritam ‘Não estamos exaltados!’” “Portanto, nós precisamos de lançar mão de uma alternativa até que eles estejam prontos — palavras e leituras.” (Idries Shah, “Learning by signs”)

O estudo do Evento da Favela Naval permite uma pluralidade de discussões e pode ser abordado a partir de temas bastante variados. Procuramos, nesta pesquisa, focalizá-lo como uma oportunidade para investigar como as vídeo-imagens são incorporadas aos discursos públicos, e como estes se entrelaçaram "hipertextualmente", tendo as vídeo-imagens como objeto e ponto de partida comum. Para consolidar as avaliações feitas aqui acerca do EFN, cabe retomar as hipóteses iniciais à luz dos elementos trazidos pelas análises realizadas. Em relação à hipótese da "construção hipertextual" do Evento, nota-se, efetivamente, o entretecimento de enunciados e de perspectivas pertinentes a vários espaços comunicativos social e politicamente situados no contexto comum consubstanciado pela divulgação das imagens do primeiro vídeo-enunciado denunciador. A complexidade das referências, explícitas e implícitas, feitas em cada enunciado a outras proferições é uma característica de todos os textos que compõem o Evento da Favela Naval. A forma do enunciado que deu início ao Evento, ao qual todas as enunciações posteriores se contactaram, teve grande importância para o adensamento das interações discursivas sobre os temas abordados, e também para a forma dessas enunciações posteriores. Pode-se dizer que elas se constituíram como interpretações das vídeo-imagens, quer dizer, interpretações de um signo que, embora fosse todo o tempo tomado como "evidência material", não deixava

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também de ser uma interpretação de determinadas realidades sociais. Em certa medida, o processo inicial de indicialização das imagens da FFN limitou as possibilidades interpretativas dos atores, impedindo-os de absorvê-las por completo em seus enunciados. Para manifestar e tentar validar sua perspectiva, cada ator foi obrigado a nela incorporar elementos dos enunciados e das operações discursivas de outros atores. As fronteiras do índice videográfico parecem definir um limite além do qual os enunciadores não podem avançar suas interpretações. Pode-se, como o fizeram alguns enunciadores, discutir o processo de sua produção (o "antes" e o "logo depois" da gravação), suas causas e finalidades. A comunidade da Favela Naval chama para si a autoria das imagens e justifica a produção da gravação como uma reação às agressões sofridas ao longo de meses. Alguns enunciadores da polícia, na impossibilidade de negar as ocorrências criminosas, insistem em atribuir a produção aos interesses escusos dos narcotraficantes locais. Os telejornais, ou atenuam as marcas do processo para se aproximarem do lugar do produtor, ou destacam parte dessas marcas para trazerem o cinegrafista ao centro das atenções, não só para se contraporem ao telejornal concorrente, mas também seguindo uma expectativa geral sobre as possibilidades democráticas dos espaços público-mediáticos. No limiar do horizonte da "mágica factualidade" da FFN, os enunciados interpretativos chegam a um máximo de indicialidade, quando tergiversam a partir das brechas das evidências videograficamente produzidas. Os elementos das ocorrências, situados fora do quadro videográfico, abaixo do limite da definição das vídeo-imagens ("entrelinhas", literalmente) e abaixo da sensibilidade da captação sonora, foram problematizados das mais diferentes formas. Esse tipo de interpretação aparece nas declarações emitidas em juízo pelos policiais agressores, quando diziam que "havia um clima estranho na favela", que tinham ouvido insultos das vítimas não registrados, ou que, ao redor do espaço das agressões, havia moradores armados. Mas o exemplo extremo aparece nas alegações do soldado acusado do assassinato ocorrido na noite da última gravação; como a morte não foi registrada na continuidade das imagens das agressões, abriu-se uma "fenda" nas evidências, que embora fosse irrelevante para a apreciação pública, abria uma (talvez a única) possibilidade para a negação da autoria do crime, no contexto discursivo da Justiça Criminal. Na maior parte dos enunciados, contudo, os esforços interpretativos não chegam a esses extremos, deixando mais ou menos intacto o quadro composto pela equipe de reportagem

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responsável pela denúncia mediática inicial. Esse quadro, como se viu, agencia as vídeoimagens dos crimes, apoiando sua natureza de evidência através de declarações das vítimas "presentes" nas imagens, de outras vítimas dos mesmos agressores, e de vítimas de ações policiais brutais diferentes, distanciadas espacial e/ou temporalmente. Na configuração do "acontecimento escandaloso", a partir da FFN, são apostas avaliações políticas, morais e éticas, dos próprios midiadores e de representações da sociedade civil. Com isso, o foco das atenções é dirigido para os públicos dotados de poder: ao Ministério Público, do qual se espera uma acusação consistente; à Justiça, na expectativa da punição dos culpados e do ressarcimento dos danos; aos parlamentos, que discutem alterações do quadro normativo, e também às CPIs, que investigam as responsabilidades políticas sobre as ocorrências; ao executivo, cujos atos administrativos punitivos e preventivos devem responder às demandas da sociedade civil. Deve-se notar que cada um dos poderes instituídos desempenha uma função própria, mas também assume parcialmente atributos de outros campos do Estado e mesmo da esfera pública. É o caso do MP, quando dá livre acesso às imagens da FFN para as equipes de reportagem, propiciando que o conjunto dos telejornais "cubra" as investigações e o processamento das denúncias. Ou da CPI da ALSP, que, dispondo do poder de agir como instituição de investigação, interroga oficiais do alto escalão da PMSP, para tentar esclarecer, além das responsabilidades pelo "escândalo", o porquê das irregularidades da apuração das denúncias pela corporação. O executivo federal, por sua vez, impedido de intervir executivamente em um caso que é de jurisdição estadual, propõe mudanças nas leis, buscando federalizar os crimes contra os Direitos Humanos. Sobre a constelação de padrões procedimentais de intervenção na esfera pública, sugerida nas hipóteses de trabalho, cabe aqui fazer algumas ponderações. Na extrema diversidade de dispositivos de enunciação, procedimentos de narrativização e de percursos narrativos dos enunciados que teceram o EFN, algumas recorrências puderam ser consteladas. Efetivamente, emergiram muito mais divergências entre as proferições de diferentes atores do que entre aqueles que foram emitidos por sujeitos agrupados em um mesmo ator. No entanto, apesar de as evidências coletadas ao longo desta pesquisa sugerirem tendências de convergência, nas proferições, de determinados atores para certos procedimentos típicos de intervenção públicomediática, esses dados não autorizam o estabelecimento de compromissos muito rígidos entre

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os atores (pelo menos tal como eles são constituídos nesta pesquisa) e procedimentos. No entanto, consideramos útil retomar algumas dessas confluências, detectadas ao longo do EFN.

Ator-midiador

Os atores-midiadores lançam mão de retóricas diferentes, na medida em que o Evento se desenvolve. De início, na construção do acontecimento, sua principal estratégia parece ter sido o apagamento das marcas da produção das evidências, principalmente da FFN, e ,em menor escala, de evidências coletadas pelas próprias equipes de reportagem. O telejornal denunciador mimetiza o processo de produção da FFN, presumivelmente para tentar aparecer como "proprietário da denúncia", mantendo sua posição retórica de narrador onisciente e heterodiegético dos processos sociais. Já se observou que, em princípio, seria possível utilizar as peculiaridades do processo de produção da FFN para questionar o funcionamento rotineiro dos telejornais e mesmo seus procedimentos "investigativos". O escamoteamento do produtor da primeira videodenúncia, e a posterior idealização abstratizante do “cinegrafista amador” permitiram que esse vídeo-enunciado inicial se desvinculasse parcialmente do contexto e dos processos concretos de sua produção, podendo, assim, circular com maior facilidade e maior contundência nos espaços público-mediáticos. Pode-se acrescentar que essa relativa autonomização inicial também corresponde a uma tendência do conjunto dos atores envolvidos no EFN a passar ao largo de questões acerca dos preconceitos sociais e étnicos e dos interesses não públicos dos oligopólios mediáticos, impregnados nas operações aparentemente "técnicas" e "normais" da produção noticiosa. Um traço característico da problematização inicial foi a contraposição entre os procedimentos investigativos oficiais e mediáticos. As diferenças entre os compromissos de cada um desses processos de produção de relatos factuais foram postas à sombra, de modo a salientar a "lentidão", o "corporativismo" e o formalismo dos procedimentos administrativos e judiciários. Questionou-se de modo bastante incisivo, no início da cobertura das controvérsias públicas sobre o Evento, a discrepância entre as atribuições públicas da Polícia Militar e o caráter "semipúblico" dos seus procedimentos administrativos rotineiros.

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Não se deve perder de vista, porém, que os enunciadores relacionados à mídia puderam inquirir sobre a legitimidade das instituições públicas, sem que a legitimidade de seus próprios procedimentos fosse publicamente submetida à crítica. Como se sabe, a "velocidade" na produção de reportagens geralmente é alcançada ao preço de um excessivo compromisso com as "fontes seguras", do emprego de critérios não democraticamente discutidos (e, por isso, potencialmente preconceituosos) de atribuição de relevância às ocorrências. Isso para não falar dos vários erros, de nomes trocados até acusações sem fundamento, cuja ocorrência jamais é admitida e cujos prejuízos muito raramente podem ser compensados. Diversas informações foram divulgadas sem que tivessem qualquer fundamento, ou foram referidas a fontes obscuras, que, por sua pequena relevância, não foram incluídas nestas análises. Houve casos mais graves, que poderiam gerar sérios danos às pessoas envolvidas: os telejornais difundiram, sem constrangimentos, várias acusações infundadas, prejulgando todo o tempo os policiais incriminados na FFN; expuseram publicamente, de maneira irresponsável e, às vezes, não autorizada, identidades de vítimas e de testemunhas de crimes policiais, inclusive a do próprio cinegrafista que gravou a Fita. Um outro componente importante da estratégia dos midiadores foi o estabelecimento de um jogo de projeções e identificações entre as vítimas das brutalidades policiais, as "vítimastestemunhas", e o público "telespectador", constituído como "testemunhas-vítimas" vicárias. A analogia entre quem assiste e quem sofre as agressões foi não só fundamental para dar ao relato sua intensidade "escandalosa", mas também delineia um quadro interpretativo no qual as generalizações sobre as ocorrências de violência policial se tornam apropriadas. Os telejornais foram um dos enunciadores que levaram mais longe as generalizações feitas a partir das videodenúncias, no espaço público-mediático, como demonstra o uso de formas narrativas mais generalizantes (freqüência singulativa, pausas digressivas, sumarizações). Isso não quer dizer que os “midiadores” foram os enunciadores que fizeram as reflexões ou as generalizações mais aprofundadas, mas que os enunciadores que eventualmente emitiram opiniões mais “radicais” tiveram, provavelmente, bem poucas oportunidades para se expressar. Permaneceram, além disso, várias incógnitas sobre algumas limitações da extensão das problematizações feitas pelos midiadores. Os telejornais tenderam a considerar (sem evidências suficientes) que os móveis dos agressores eram pecuniários, ou que se tratavam de ações típicas de indivíduos perversos.

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Contudo, é fato conhecido pela pesquisa social a existência de motivações ideológicas (a idéia das "classes perigosas" e da "guerra contra o crime") para as ações policiais violentas, e sabese que a polícia paulista foi particularmente impregnada desses valores e absorveu muitos procedimentos típicos da repressão política do período militar, que se fizeram presentes em diversos momentos, no EFN.280 Apesar dos telejornais se mostrarem indignados e "envergonhados" com os crimes, prestarem o "serviço" de informar os telefones para denúncias, aconselharem os telespectadores e prescreverem "receitas" para a solução do problema da brutalidade policial, deixaram de questionar algumas atitudes disseminadas da sociedade brasileira, que são pouco congruentes com a defesa da ordem democrática e dos Direitos Humanos. Isso aparece, com nitidez, no caso da não tematização da tendência à subnotificação de crimes cometidos por policiais. Seria possível colocar em questão o individualismo da decisão de não denunciar as agressões sofridas; essa opção das vítimas é explicável pelo medo de retaliações, mas, não é justificável à luz da manutenção da impunidade dos agressores. Isso aponta para uma segunda lacuna, talvez mais grave, na abordagem telejornalística do EFN: poucos foram os telejornais que tematizaram o problema da segurança das testemunhas de crimes policiais e que permitiram que a demanda de leis que criassem um sistema nacional de proteção às testemunhas (formulada pelas próprias testemunhas e por organizações da sociedade civil defensoras dos Direitos Humanos) ganhasse as atenções públicas. Outra lacuna da problematização telejornalística, associada à indulgência dos midiadores em relação ao seu público, refere-se à falta de uma crítica consistente às concepções autoritárias de solução do problema da criminalidade urbana, isto é, "a concepção popular de justiça" que legitima a violência policial, quando ela é praticada por "bandidos". A contradição entre as atitudes da população que, marginalizada, teme a polícia, mas que também considera válido o uso da violência (mesmo mortal) contra os "marginais", fica explícita na sondagem de opinião pública divulgada no JNa4 (seqüências 17 a 22). Para nosso espanto, o discurso que legitima a violência policial não foi tematizado de modo explícito em momento algum, apesar da variedade das controvérsias desencadeadas no EFN.

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Por exemplo: as pancadas nas solas dos pés, estratégia para espancar sem deixar marcas muito visíveis; a adulteração do boletim de ocorrência, que colocava o policial agressor como vítima; ou ainda a apresentação, para exames de balística, de armas diferentes das usadas nas "operações".

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Durante as duas semanas do EFN examinadas, pôde-se observar que o foco das atenções dos telejornais deslocou-se rapidamente das denúncias para os processamentos institucionais, principalmente para os processos judiciais de inquérito e julgamento dos acusados. No caso dos enunciadores ligados aos espaços parlamentares, as ações mais relatadas e mostradas foram aquelas voltadas à investigação das responsabilidades institucionais e menos as ações dos membros do poder legislativo enquanto legisladores. Isso pode ser explicado, em certa medida, ao menos pelo fato de alguns dos processos institucionais oferecerem resultados mais "espetaculares" do que outros. No EFN, os depoimentos de acusados e testemunhas, a emissão dos laudos técnicos e dos documentos da acusação, as sessões dos tribunais etc., assim como as sessões inquisitórias das CPIs da Assembléia Legislativa paulista, são largamente divulgados, enquanto as deliberações dos parlamentos são noticiadas de modo extremamente sintético. A importante decisão do Superior Tribunal Federal sobre a manutenção da investigação dos crimes cometidos por policiais nas corporações e dos julgamentos desses delitos na jurisdição da Justiça Militar281 não é sequer mencionada pelos telejornais. Há outros fatores que ajudariam a compreender as diferenças de exposição pública entre as ações dos poderes públicos e entre suas várias instâncias. Um primeiro fator seria a inclinação dos telejornais a se atribuírem tarefas de investigação criminal, que são, na verdade, encargo da polícia judiciária. A despeito das imperfeições do sistema de justiça criminal brasileiro, ou talvez justamente por causa delas, os meios de comunicação mimetizam os processos judiciários. As ações de “pseudo-investigação criminal” são feitas através da coleta de indícios e testemunhos, e, às vezes, de interrogatório dos acusados, que, ameaçados de serem difamados, aceitam os constrangimentos das entrevistas. No “pseudojulgamento”, são coligidos enunciados de diversos enunciadores especializados e não especializados que comentam as ocorrências, comentários que se conjugam como um contexto avaliativo, de cunho ético-moral, que oferece um quadro interpretativo “prêt-a-porter” ao público. Na pseudo-execução penal, os telejornais expõem os sujeitos acusados à execração pública e, em diversas ocasiões, também seus parentes e colaboradores.

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Conforme a decisão do STF, os crimes cometidos por pê-emes só passam à Justiça Comum quando forem considerados como crimes dolosos contra a vida. Quem define o dolo ou a culpa é, ainda, o Inquérito PolicialMilitar, realizado pelos colegas de farda dos acusados.

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Ator-polícia

Os discursos narrativos dos enunciadores ligados à PMSP são marcados pela propensão a representar singulativamente as ocorrências como "exceções", em relação ao padrão de atuação dos policiais. Evitando ao máximo as situações de exposição pública, os policiais militares discursavam, em geral, em um registro abstrato conformado pelo vocabulário judiciário e administrativo, de modo que as ocorrências tendiam a ser relatadas quase que exclusivamente segundo sua formulação oficial. Esse formalismo teve diferentes implicações: se, por um lado, diminuía os riscos das declarações oficiais, também expunha o descolamento da perspectiva da corporação em relação ao senso comum. A formulação da contranarrativa da "FFN armada pelos traficantes", que poderia ser considerada absurda, parece ter-se mostrado (pelo menos por algum tempo) aceitável para parte da opinião pública, como se viu no Capítulo 5. As vítimas são colocadas sob suspeita, enquanto os agentes do Estado, verdadeiros agressores, são representados como vítimas. A longa querela surgida no comando da PMSP sobre as responsabilidades quanto "à fita", ou mais exatamente, sobre quem deixou de tomar as precauções para evitar o escândalo, ocupou, durante várias semanas, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e o Comando da PMSP. Como foi visto, há possibilidade de que essa negligência tenha sido proposital, mas isso, evidentemente, não fez do EFN um processo favorável à corporação ou mesmo à "linhadura" da PM. Existem muitas evidências de uma grave perda de legitimidade das polícias militares (não só da PMSP, como do conjunto das PMs brasileiras). Há diversos relatos na imprensa de humilhações sofridas por policiais, sugerindo ter havido uma irrupção da insatisfação da sociedade com relação a sua atuação. Se não se podem tomar essas circunstâncias como "causas" dos movimentos grevistas dos policiais, não se pode também evitar de conceber que a superexposição dos policiais militares tenha intensificado e favorecido a manifestação de conflitos internos latentes e apontado para a falta de direitos civis dos policiais militares.282 282

Alguns relatos mediáticos fazem explicitamente essa conexão entre o EFN e o início das greves policiais de 1997: “Por conta do episódio de Diadema, os policiais estão evitando as ocorrências com confrontos, com medo de matar ou balear alguma pessoa e serem comparados aos dez policiais acusados de extorsão, tortura e execução. (...) Se dependesse da maioria dos soldados, a greve branca ou operação tartaruga já estaria decretada. (...). Os comandantes negam, mas os policiais dizem que os soldados estão confinados em suas companhias, com medo de se envolver em ocorrências graves.” (PMs evitam ocorrências com confrontos. Folha de S. Paulo, 5 de

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Ator sociedade civil

Previsivelmente, a diversidade de formas narrativas e dispositivos de enunciação dos atores da sociedade civil é extrema. Tal como os midiadores, e distintamente do ator-polícia, grande parte dos enunciadores pertinentes ao ator sociedade civil se pronuncia em uma linguagem de senso comum, que tende, em vários momentos, para a concretude e a dramatização das experiências vividas. Dizer que a gravação provavelmente não foi resultado de uma ação orientada para fins estrategicamente definidos não implica absolutamente que a FFN tenha sido resultado do mero acaso ou de uma intervenção externa à comunidade. Como se viu, os recursos de não identificação individual têm importância capital na enunciação das vítimas-denunciantes, e esses recursos são produto de negociações com o atormidiador. As formas coletivas de manifestação pública permitem que os cidadãos se expressem com grande liberdade, mas essa expressão sofre grandes constrangimentos no transporte para os espaços público-mediáticos. A diversidade de perspectivas comportada nessas manifestações é muito empobrecida, na sua filtragem pelos quadros cognitivos do discurso telejornalístico. No entanto, fica patente a disposição crítica dos cidadãos, mesmo aqueles social e economicamente marginalizados. A disposição para a participação em atos públicos demonstrada pelos "moradores de Diadema" — o "cerco" ao 24° Batalhão e à Delegacia de Diadema, o ato público organizado pela Prefeitura dessa cidade, o evento abril de 1997, p. 3-4, editoria: Cotidiano) “Soldados, cabos e sargentos da Polícia Militar de São Paulo ameaçam entrar em greve em 1º de mai., Dia do Trabalho. O movimento está sendo convocado em manifestações anônimas nos rádios da PM, nas zonas leste e sul de São Paulo. (...) O secretário da Segurança, José Afonso da Silva, informou que o caso está sendo apurado. O comandante da PM, coronel Claudionor Lisboa, lhe disse que ‘investigações preliminares apontam para interferências externas na rede de rádio’. (...) Lisboa disse ao secretário que as ‘‘interferências’’ citam ‘‘fatos do momento’’, como a violência em Diadema. (...) A última greve na PM ocorreu em 1988 e também foi convocada pelos rádios dos carros policiais. (...) Ontem de madrugada, uma mulher pediu aos praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes) que não compareçam ao trabalho no feriado. O pedido também foi feito aos aspirantes e tenentes. (...) A mulher dizia nas transmissões... que o movimento será contra os ‘baixos salários’ e ‘a falta de condições de trabalho’. (...) Desde o início da semana, outras manifestações estão ocorrendo no CPA-M3, responsável pelo policiamento na zona leste. O teor das mensagens é o mesmo. Praças e tenentes são chamados para a greve. (...) O direito de greve é vedado aos PMs pela Constituição. O Código Penal Militar enquadra a manifestação como crime de motim — se ela é armada, o crime é de revolta. (...) As penas são de quatro a oito anos de prisão (motim) e oito a 20 anos de prisão (revolta) ...” ( GODOY. PMs de São Paulo ameaçam fazer greve. Folha de S. Paulo, 10 de abril de 1997, p. 3-1, editoria: Cotidiano)

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produzido pelos "jovens"— parece destoar das atitudes de apatia e individualismo segundo as quais os cidadãos brasileiros são tão costumeiramente caracterizados. As pessoas vitimadas pelas agressões, com motivos evidentes, tratam das ocorrências de modo singularizante e sua perspectiva é a de uma avaliação moral que busca individualizar os culpados. No outro extremo, encontram-se enunciados de emissores pertencentes a movimentos sociais e organizações autônomas defensoras dos Direitos Humanos, que partem das ocorrências da FFN para criar nexos com diversos outros casos de brutalidades policiais. Seus enunciados chegam a questionar o modelo de segurança pública vigente no país, a negligência dos poderes públicos em relação a políticas de Direitos Humanos e à marginalização social e econômica de boa parte da população brasileira. O exame das declarações de pessoas ligadas a esses públicos foi dificultado pela exigüidade do espaço televisivo "concedido" a essas vozes pelos oligopólios mediáticos concessionários públicos da tele-radiodifusão no Brasil.

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[#1]

(Apresentador/sinc): "Imagens estarrecedoras! Exclusivas do Jornal Nacional!..." (Apresentadora/sincoff): "A PM de São Paulo tortura, assalta e mata em batidas policiais!"...”Agora, no Jornal Nacional”

[#2]

Do estúdio do Jornal Nacional para a favela Naval de Diadema em 31 de março e dalí para a favela Naval em 3 de março de 1997.

[#3]

Todas as câmeras de vídeo são seguras pela mão direita sobre o ombro direito. O cinegrafista, que não é musculoso, gravou a FFN usando uma câmera doméstica VHS.

[#4]

4 de abril: O cinegrafista, ainda anônimo, e um repórter do Jornal da Band, voltam ao local das gravações e mostram como foi registrada a FFN, quais os estratagemas foram empregados e algumas impressões pessoais do produtor da fita denunciadora. Mise en abîme: estão presentes três cinegrafistas — o da FFN, o da reportagem e um outro não identificado, que registra os dois cinegrafistas e o repórter.

[#5, #6 e #7]

No Jornal da Band de 4 de abril, as primeiras declarações do cinegrafista da FFN, Francisco R. Vanni, ainda se ocultando, como uma sombra projetada no vídeo-wall: “...eu sou movido a forte sentimento de justiça, mas não sou movido a caixão!” “—Por quê? Você ainda tá com medo de morrer?”, pergunta o âncora P. H. Amorim. “—Ôpa! Quem não tá? Até o Papa levou tiro!”, responde Vanni. A entrevista ao vivo foi conduzida com dificuldades pelo âncora, e a motivação da produção da FFN permaneceu obscura —suspeita, para alguns interlocutores.

[#8]

Quase um mês depois da denúncia mediática inicial, no dia 24 de abril de 1997, Francisco Romeu Vanni mostra seu rosto, numa entrevista na Rede Cultura. Acompanhado de seu advogado e de seu sobrinho, que o acompanhou nas gravações da FFN, opta pela publicidade como estratégia de sobrevivência.

[#9]

Delatando, em parte, a identidade do cinegrafista responsável pela gravação denunciadora, o JNa relatou com detalhes os ardis mobilizados para a produção, desde o contato inicial com os moradores da Favela até os cuidados em registrar informações importantes sobre os acontecimentos, como a identificação das viaturas e a demonstração da presença de testemunhas durante o espancamento de Sílvio Calixto Lemos.

[#10]

As imagens que “provam” a extorsão só o fazem pela omissão do fragmento seguinte, no qual o policial devolve o dinheiro ao rapaz de camisete e shorts.

[#11]

O editorial da Rede Globo, em tom conciliador e paternal, ficou a cargo do decano apresentador Cid Moreira.

[#12]

[#13]

Os soldados-pm mais violentos, Otávio Lourenço Gambra e Nelson Soares da Silva Jr, são confusamente identificados como “Rambo” e “peeme grandalhão” (JNa0, JNa1, JGl0). Associados sem muito rigor a ambos os policiais, inventados ou não, os apodos aplicados aos peemes agressores se prestaram bem às necessidades do relato dos crimes e da caracterização, simultaneamente individual e genérica, da figura do policial violento, que age ao arrepio da lei nas áreas urbanas socialmente marginalizadas.

[#14]

[#15]

[#16]

A iluminação é sofisticada: até o muro grafitado recebe luz. O som é captado por um microfone de lapela, deixando as imagens mais “limpas” e liberando as mãos do repórter para gesticulações.

[#17]

O Jornal da Noite, da Rede Bandeirantes, noticia de modo distanciado a exibição das imagens pelo telejornal da emissora concorrente. As imagens (da cópia em preto e branco) da FFN só seriam distribuídas para os telejornais no dia seguinte (1o de abril de 1997)

[#18]

De início, o cinegrafista só é lembrado quando “falha”, isto é, não lhe é possível registrar ações que são quase evidentes, mas exigiriam, para serem unanimemente aceitas, da “prova” da videografia.

[#19]

A construção das “passagens” do repórter (M. Resende) mostra a importância do uso de recursos visuais para inserir o narrador telejornalístico no espaço dos acontecimentos relatados.

[#20]

 Os planos das “passagens” da reportagem em direto do Jornal Nacional foram feitas com dois cinegrafistas e forte iluminação. O primeiro cinegrafista está numa posição bem próxima a do cinegrafista que produziu a FFN; o segundo (observar junto à borda direita do quadro do meio), fica “atrás da moita”. Note-se, no último quadro, que a parede de alumínio atrás do repórter é quase tão clara quanto a lâmpada do poste: a produção da reportagem “inundou” de luz o local dos crimes policiais, obtendo imagens tecnicamente perfeitas. As tomadas são muito semelhantes àquelas da cinegrafia da FFN.

[#21]

O “furo” que a reportagem não produziu... e o buraco na parede: seria o disparo contra Sílvio Lemos?

[#22]

Vários buracos de bala, alguns “furos” e muitos índices, na favela Naval.

[#23]

[#24]

A pessoa identificada pelo telejornal como testemunha da tentativa de assassinato de Sílvio Lemos teria mesmo chegado antes do disparo?

[#25 e #26]

[#25 e #26] (Cont.)

A vídeo-imagem do tapa do soldado Rogério Néri Bonfim em Cristiano Kobenik foi “reciclada” através de diversos recursos de edição e tratamento digital de imagens, servindo para variados fins: para a identificação do policial agressor, como vinheta de abertura das seqüências de “povo-fala”, como parte da vinheta de apresentação das sondagens de opinião pública e cenário eletrônico dos apresentadores, um emblema que identificava as notícias relacionadas ao “caso Diadema”.

[#27]

À medida em que se difudem pelos espaços mediáticos, vão se aderindo etiquetas (logomarcas das emissoras e agências de notícias) aos cantos das vídeo-imagens denunciadoras. Por fim, até mesmo o cinegrafista que as produziu acaba sendo inserido em alguns dos planos, saindo do anonimato e também do extracampo visual.

[#28]

[#29]

[#30]

Cov

rde!

[#31]

Os apresentadores do Fantástico não economizam inflexões tonais e expressões faciais. O texto, acompanhado pela trilha incidental, é grandiloqüênte e carregado de alusões a outros telejornais.

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