Da censura e do ufanismo à liberdade criativa: o samba-enredo nos Anos de Chumbo e no antológico 1985

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DA CENSURA E DO UFANISMO À LIBERDADE CRIATIVA: O SAMBA-ENREDO NOS ANOS DE CHUMBO E NO ANTOLÓGICO 1985 Jackson Raymundo*1

“Samba, oh samba Tem a sua primazia Em gozar de felicidade Samba, meu samba Presta esta homenagem Aos heróis da liberdade” Silas de Oliveira, Mano Décio e Manoel Ferreira, “Heróis da Liberdade”

RESUMO: Uma das manifestações culturais mais arraigadas pelo país, os desfiles de escolas de samba não ficaram imunes à apetência propagandística dos governos ditatoriais, assim como à censura por eles estabelecida. Durante o regime militar, se, por um lado, algumas escolas de samba fariam sambas-enredo ufanistas, desconsiderando contradições sociais, enaltecendo as “glórias” e reiterando slogans governamentais, por outro lado canções defenderiam a “liberdade”, destacariam o protagonismo de negros e mulheres na história do Brasil, fariam a denúncia da escravidão e, burlando a censura, deixariam mensagens subliminares de crítica ao presente e esperança no futuro. A contenção temática - e também linguística - a que as escolas de samba se submeteram nos anos de ditadura geraria um momento de “libertação” geral (ou “a hora da gozada”, segundo o pesquisador Fábio Fabato): no carnaval de 1985, o ano que marca o fim do regime, as letras das escolas de samba vieram, em sua maioria, carregadas de crítica política e de versos plenos de hedonismo e afrouxamento moral (com esses elementos se misturando, às vezes). O objetivo da pesquisa, então, é analisar o samba-enredo, a canção dos desfiles de escolas de samba, no contexto dos Anos de Chumbo e no ano que marca o fim da ditadura e a abertura política. Por delimitação metodológica (acesso às letras e representatividade), o corpus da pesquisa se restringe aos sambas-enredo das escolas do Grupo Especial do Rio de Janeiro, nos carnavais de 1969 a 1974 e de 1985, totalizando 78 canções.

ABSTRACT: One of the most deeply rooted cultural expressions across the country, the parades of samba schools were not immune to the appetite advertising of dictatorial governments and censorship established by them. During the military regime, some schools would bloodproud samba-plot, disregarding social contradictions, extolling the "glories" and reiterating government slogans. Other songs defend the"freedom", would emphasize the role of blacks and women in the history of Brazil, would denunciation of slavery and outwitting the censorship, let subliminal critical messages to the present and hope for the future. The thematic and linguistic contention that the samba schools underwent in the years of dictatorship would generate a moment of "liberation" general (or the “time of cum”, according to researcher Fabio Fabato): the carnival of 1985, the year that marks the end of the regime, the lyrics of samba schools came laden with political critique and verses full of hedonism and moral loosening (blending with these elements sometimes). The purpose of this research, then, is to analyze the samba-plot, the song of parades of samba schools, in 1

Graduado em Letras/UFRGS. Mestrando em Letras/UFRGS, especialidade Literatura Brasileira.

the context of the Years of Lead and in the year that marks the end of dictatorship and the political openness. For methodological boundaries (access to letters and representativeness), the research is restricted to sambaplot of the Special Group of Rio de Janeiro, carnivals from 1969 to 1974 and 1985, totaling 78 songs. PALAVRAS-CHAVE: Samba-enredo. Canção popular. Escolas de samba. Carnaval. Poética cancional.

1 Introdução As escolas de samba se tornaram uma das mais expressivas manifestações culturais do Brasil. Nasceram entre os anos 1920 e 1930, na periferia do Rio de Janeiro (então capital federal), num contexto de nacionalismo artístico e busca de “símbolos pátrios”, e se espalhariam pelo país. Nas décadas seguintes, se consolidariam como a variante mais conhecida do carnaval brasileiro e espaço importante de criação artística e de formação de consciências, o que provocou a atenção do poder público - inclusive nos chamados períodos de exceção, como os anos de ditadura militar (ou, conforme a historiografia recente, ditadura civil-militar). Na versão mais consagrada, a ditadura civil-militar brasileira teve a duração de 21 anos: iniciou-se no golpe ocorrido na noite de 31 de março para 1º de abril de 1964 e se estendeu até a eleição de Tancredo Neves e posse de José Sarney, em 19852. O ciclo mais acentuado de repressão política ficou conhecido como Anos de Chumbo (1968-1974), consagrado na historiografia como o período compreendido entre a criação do AI-5, em dezembro de 1968, e o final do governo Médici, em março de 1974. No entanto, fatos anteriores à edição do AI-5, no mesmo ano de 1968, devem ser considerados, como o espancamento do elenco de Roda Viva pelo Comando de Caça aos Comunistas, a invasão do Congresso da UNE e prisão de milhares de estudantes e a criação do Conselho Superior de Censura e da Lei da Censura. Foi o período de maior perseguição aos artistas e à vida intelectual. Além da repressão e da censura, o ufanismo foi uma das principais marcas do governo Médici. Os movimentos pela volta da liberdade, somados aos problemas econômicos a partir do governo Geisel (1974-1979), forçariam o afrouxamento do regime, com implantação da Lei da Anista e o fim do bipartidarismo em 79. A transição “lenta e gradual” para a democracia teria 2

Nos últimos anos tem ocorrido um questionamento, por alguns historiadores, da duração da ditadura brasileira. Daniel Aarão Reis (UFF) defende que a ditadura, propriamente, se encerrou em 1979, com a Lei da Anistia e o pluripartidarismo, tendo ocorrido de 1979 a 1988 (promulgação da nova Constituição) um processo de transição. Já Marco Antonio Villa (UFSCar) enxerga a ditadura apenas como o período compreendido entre 1968 (AI-5) e 1979.

como marco o movimento pelas “Diretas Já”, que mobilizou o Brasil inteiro no ano de 1984. As eleições diretas só ocorreriam cinco anos depois, mas em janeiro de 1985 é eleito Tancredo Neves pelo voto indireto do colégio eleitoral, vindo a falecer antes de assumir (tarefa que caberia a José Sarney, dissidente do regime militar). O objetivo deste trabalho é analisar o samba-enredo, a canção dos desfiles das escolas de samba, no contexto da ditadura civil-militar e, assim, verificar as interferências do regime nas manifestações culturais populares. A fim de contrastar, o (sub)gênero samba-enredo foi situado em outro marco da história brasileira, o ano de 1985, que marca a redemocratização, mas que também foi prodigioso na cultura a partir da liberdade criativa gerada por esse fato político. Por delimitação metodológica, o corpus da pesquisa se restringe aos sambas-enredo das escolas do Grupo Especial do Rio de Janeiro, nos carnavais de 1969 a 1974 e de 1985, totalizando 78 canções. Tal escolha se deu pela possibilidade de acesso às letras e pela representatividade necessária ao objetivo da pesquisa. A coleta de dados se deu através da consulta a todas as canções, por meio do portal Galeria do Samba, e da escuta a todas as músicas, através dos vídeos no Youtube. Este procedimento foi essencial para o estudo das canções à luz do conceito de intermidialidade (literatura/música) 2 Desfile de escolas de samba: um gênero artístico Partimos do pressuposto de que o desfile de escolas de samba não é uma mera festividade, e sim um gênero artístico. Ao centrifugar linguagens e estilos, um novo sistema artístico é criado. Para Mussa & Simas (2010, p. 9), é “o maior complexo de exibições artísticas simultâneas do mundo moderno”. Os desfiles de escolas de samba contemporâneos portam, em geral, elementos do canto (o samba-enredo), da dança (o samba), da literatura (o enredo e o próprio samba-enredo, enquanto canção), do balé (as coreografias sincronizadas), do teatro (as encenações), da moda/figurino (as fantasias), das artes plásticas (as esculturas, pinturas, fotografias e outros elementos visuais), do cinema (os filmes às vezes exibidos) e, mais recentemente, a robótica (que faz movimentar elementos cênicos) e a internet (diversos desfiles recentes tiveram a interatividade do público). Em artigo de 1988, Luiz Paulo de Pilla Vares assim define o gênero:

Por sua linguagem, por sua música, pela dança e pela coreografia que apresenta, a escola de samba pode ser vista como um modelo de arte nova, capaz de expressar em seu movimento sempre surpreendente as mais autênticas tradições populares, revestidas de uma forma em que se pode perceber nitidamente todos os estilos de arte contemporânea em estado bruto, em que o primitivismo coabita com a mais cativante e revolucionária modernidade (PILLA VARES, 2000, p. 90)

Vários aspectos compõem cada uma das linguagens artísticas citadas. Neste trabalho, interessa a canção - o samba-enredo. Este sub-gênero lítero-musical - “sub”, do samba - transpõe para o plano do verso uma história contada em forma de prosa, no enredo (o enredo baliza não só a canção, mas todo o desfile da escola de samba. As fantasias, os carros alegóricos, a comissão de frente etc. devem expressar a história contada naquele texto). Desde os primeiros anos de desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, nos anos 1930, até o ano de 1996 vigorou no carnaval do Rio de Janeiro a obrigatoriedade de apresentar “temas pátrios”. Cabe ressaltar que, naqueles anos de Estado Novo e forte clima nacionalista, não foi ideia do governo a criação de tal exigência, mas dos próprios carnavalescos (essencialmente negros, da periferia), interessados na aceitação social e no financiamento de suas agremiações pelo poder público. Nas décadas seguintes, as escolas de samba reproduziriam no carnaval de rua as narrativas oficiais, homenageando os heróis e as histórias canônicos, ensinados nas escolas regulares. Somente no início dos anos 1960 é que ganhariam força os enredos afro, com o destaque àqueles heróis de fora da historiografia oficial de então, como Zumbi dos Palmares, Ganga Zumba e Xica da Silva, assim como os temas relativos à escravidão. A presença, antes disso, ocorreu, mas de maneira escassa3. 3 O samba-enredo nos Anos de Chumbo Durante o regime militar, o ufanismo, marca do governo Médici, se faria presente nas letras das escolas de samba cariocas, desconsiderando contradições sociais, enaltecendo as “glórias” de heróis da história oficial e reiterando slogans governamentais. Por outro lado, várias canções defenderiam a “liberdade”, destacariam o protagonismo de negros e mulheres na história do Brasil, fariam a denúncia da escravidão e, burlando a censura, deixariam mensagens subliminares de crítica ao presente e esperança no futuro. 3

Em artigo anterior, publicado na Revista ArReDia, analiso a representação do negro nas primeiras décadas de existência dos desfiles de escolas de samba e do samba-enredo (Raymundo, 2013).

Muitas canções, ainda, passariam ao largo das posições políticas, produzindo sambas biográficos ou homenageando lugares conhecidos sem ufanismo nem crítica. Além disso, algumas escolas de samba fariam canções “moderadamente” ufanistas, mas de aspectos marginais da cultura brasileira, como o índio, o samba, o carnaval, o circo. Para a sistematização dos dados, a pesquisa procedeu uma sumária análise quantitativa das 62 canções dos carnavais de 1969, 1970, 1971, 1972, 1973 e 1974. Dessa análise resultou uma subdivisão em três campos: Críticas, Ufanistas e Outras, todas com temáticas mais ou menos recorrentes. Em momento posterior, para contrastar, foram analisadas as canções das 16 escolas de samba do ano de 1985. Nas canções críticas, as matérias mais comuns foram a liberdade, a escravidão, a negritude e a desigualdade social (mais de um tema andando junto, por vezes). Foram registradas 19 canções nesta categoria. Naquelas que chamo de canções ufanistas, algumas características formativas são corriqueiras: narrativas hiperbólicas da história do Brasil, com visões alinhadas ao poder hegemônico; representação pretensamente fiel de personagens da história oficial, dos livros didáticos; e ausência de crítica ou ponderação. Dezessete canções foram incluídas no grupo. Para respeitar os limites de tempo da comunicação e de extensão deste texto, não vou adentrar nas demais canções que não foram encaixadas em nenhum dos dois segmentos, podendo servir a estudo futuro. A seguir, serão elencados os tópicos constituintes de cada categoria, com algumas canções para exemplificar. 3.1 Canções críticas 3.1.1 Liberdade Apesar da forte censura, o tema da liberdade apareceu nos sambas-enredo do período estudado. As escolas de samba trabalharam a temática a partir de fatos históricos, como a Independência e a Abolição (Império Serrano, 1969) e a Batalha dos Guararapes (Unidos de Vila Isabel, 1972), ou personagens da história, como Anita Garibaldi e Ana Néri (Santa Cruz, 1970). A liberdade de criação artística também seria lembrada, através das rupturas provocadas pela Semana de Arte Moderna e o Modernismo literário (Imperatriz Leopoldinense, 1970). Esmiuçaremos, aqui, os dois primeiros sambas. A canção entoada pelo Império Serrano em 1969, o primeiro “ano de chumbo”, continua a

ser um dos mais executados, regravados4 e apreciados sambas-enredo5. “Heróis da Liberdade” se tornou o caso mais conhecido de censura sofrida pelos cancionistas das escolas de samba no período da ditadura. Os compositores Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola foram chamados pelo Dops (o temido Departamento de Ordem Política e Social) para explicar o suposto caráter subversivo da letra (IMPÉRIO, 2013). A censura liberou os sambistas, mas exigiu a alteração do verso “É a revolução em sua legítima razão” para “É a evolução [...]” (POMPE, s. d.). Os versos de “Heróis da Liberdade” (autoria de Silas de Oliveira, Mano Décio e Manoel Ferreira) invocam, inicialmente, a condição de “lamento” do negro escravizado e o apelo pelo “fim da tirania”. A dimensão espacial é bem demarcada: “lá em Vila Rica / Junto ao Largo da Bica / Local da opressão”. Em seguida, chega-se à alegria gerada pela libertação dos negros, com a Abolição da escravatura. Ôôô Liberdade Senhor Passava noite, vinha dia O sangue do negro corria Dia a dia De lamento em lamento De agonia em agonia Ele pedia O fim da tirania Lá em Vila Rica Junto ao Largo da Bica Local da opressão

A canção tem versos politicamente fortes: recria trechos de hinos oficiais da nação (“Já raiou a liberdade / A liberdade já raiou” retrabalha o Hino da Independência) e transmite um conceito de liberdade, particularmente à juventude - “Essa brisa que a juventude / Esta chama que o ódio não apaga / Pelo universo [...]”. Ao final, em discurso metalinguístico, o samba é evocado: “Samba, oh samba! / Tem a sua primazia / Em gozar da felicidade”. A liberdade tão reprimida naqueles tempos também foi o mote de outro samba-enredo que 4

Em uma rápida pesquisa no Youtube, é possível verificar a interpretação de “Heróis da Liberdade” por pelo menos oito cantores, como Roberto Ribeiro, João Bosco, Dudu Nobre, Wander Pires, Elza Soares e Maria Rita. 5 Segundo o cantor Jorginho do Império, filho de Mano Décio (um dos compositores da canção), Natal da Portela, figura lendária do samba carioca, dizia que era “o samba-enredo de todos os mortos. Todo mundo que morresse, de onde fosse, tinham que cantar ‘Heróis da Liberdade’ (no enterro)” (IMPÉRIO, 2013)

se tornaria antológico: “Onde o Brasil aprendeu a liberdade” (autoria de Martinho da Vila), da Unidos de Vila Isabel em 1972. A narrativa principal gira em torno da Batalha dos Guararapes, o confronto seiscentista entre Portugal e Holanda no estado de Pernambuco. Aprendeu-se a liberdade Combatendo em Guararapes Entre flechas e tacapes Facas, fuzis e canhões Brasileiros irmanados Sem senhores, sem senzala E a Senhora dos Prazeres Transformando pedra em bala Bom Nassau já foi embora Fez-se a revolução E a Festa da Pitomba é a reconstituição

3.1.2 A condição do negro A condição do negro, sobretudo a escravidão, é outro assunto recorrente no período. Algumas escolas de samba trataram do tema de forma explicitamente crítica, em tom de protesto, como a Em Cima da Hora em 1969 e 1974. Outras, como a Portela em 1972, evidenciam o “orgulho negro”. As duas canções citadas da Em Cima da Hora tratam de perspectivas um pouco diferentes: enquanto a primeira enfoca na escravidão do Brasil colonial, a segunda fala do tráfico negreiro, mas destacando a religiosidade afro-brasileira. Demonstrando lucidez sobre a história brasileira, “Ouro escravo” (autoria de Jair dos Santos e Normy de Freitas) aborda a situação do negro escravizado no Brasil colonial. Compara, ainda, a situação do índio à do negro. Solto no campo, na serra ou junto ao mar Ao índio bronzeado não puderam escravizar Enquanto o negro era martirizado Na escavação do ouro trabalhando sem cessar

(Refrão) A toda crueldade resistia Oh! quanto o negro sofria

Considerado um clássico dentre os sambas-enredo afro, “Festa dos deuses afrobrasileiros” (Eládio Gomes), da Em Cima da Hora em 1947, é importante por pelo menos dois motivos: tematiza os cultos de matriz africana, num contexto de frágil liberdade religiosa, e pelo

forte teor de crítica social (com muita sensibilidade) demonstrado no conjunto dos versos.

Desde o tempo do cativeiro A magia imperou Os negros vieram da África Com sofrimento e dor E chegando à Bahia Bahia de São Salvador ô ô ô Os negros pediam aos deuses Pra amenizar a sua dor

Numa conjuntura em que o movimento social negro começa a ganhar força pelo mundo, o “orgulho negro” foi enfatizado pela Portela em “Ilu Ayê, a terra da vida” (autoria de Cabana e Norival Reis), de 1972, outro samba consagrado6. Hoje, negro é terra, negro é vida Na mutação do tempo Desfilando na avenida Negro é sensacional É toda a festa de um povo É dono do carnaval

3.1.3 Desigualdade social A desigualdade social e o anseio por dias melhores surgem de maneira nítida em “O samba do morro à sociedade” (autoria de Vicente e Djalma do Cavaco), samba-enredo da Império da Tijuca em 1972. Tendo o samba como personagem principal, a narrativa retrata as diferenças sociais, desenvolvendo algumas oposições binárias, especificadoras das contradições (“salões” X “morro”, “barraco” X “castelo”). Vamos sambar Não importa o lugar Nos salões mais elegantes E lá no morro tão distante Vamos sambar Sem divisas sociais 6

Ily Ayê, a terra da vida” é uma das principais canções da Velha Guarda da Portela ainda hoje. Já foi também regravada por cantores(as) como Clara Nunes, Cauby Peixoto, Mônica Salmaso, Mariana Aydar e Eliane Faria, além de grupos como o MPB4.

3.2 Canções ufanistas O ufanismo, como já dito, foi uma característica política importante do governo Médici. Na canção das escolas de samba do período, dois elementos chamam a atenção para a nesse aspecto: a reverência aos bandeirantes e o alinhamento à ideologia do “Brasil grande”7. 3.2.1 Bandeirantes No primeiro rol, cabe ressaltar que vários sambas-enredo falam de bandeirantes, sempre de maneira acrítica (ninguém os relaciona com o extermínio dos indígenas, por exemplo, mas apenas como lideranças fundamentais para a formação do Brasil). Dois deles são modelares: “Mercadores e suas tradições” (autoria de Hélio Turco, Darcy e Jurandir), da Mangueira em 1969, e “Os modernos bandeirantes” (dos mesmos autores), da mesma escola em 1971. Ambas as canções são de certa forma repetitivas, reiterando clichês e redizendo palavras.

Vamos recordar Nesta grande apoteose Uma história triunfal Brasil dos mercadores Aventureiros e sonhadores Que desbravaram o sertão Deste imenso rincão

O samba de 1971 escancara o seu alinhamento ao projeto político de Médici. O refrão final é uma cópia do famoso slogan governamental “Ninguém segura este país”. 3.2.2 “Brasil grande” Vários são os sambas-enredo que poderiam ser mencionados pela proximidade com a ideologia do “Brasil grande”, elemento significativo do governo Médici. Alguns desses utilizaram-se da exaltação hiperbólica da natureza para desenhar o Brasil “gigante”, com léxico laudatório. Por exemplo, “Cântico à natureza” (autoria de Nei, Ailton e Dilmo), da Mangueira em 1970, e “Brasil das 200 milhas” (autoria de Pedro Paulo, Jorginho de Caxias, Capixaba e Joãosinho), da Unidos de Lucas em 1972. Ilustrarei este tópico com dois: “Martim Cererê” (autoria de Zé Catimba e Gibi), da Imperatriz Leopoldinense, e “Brasil anos 2000”, da Beija-Flor 7

A expressão “Brasil grande” identifica o desenvolvimentismo a qualquer custo dos governos militares, caracterizado por grandes obras, como a Transamazônica.

em 1974 (autoria de Walter de Oliveira e João Rosa), o último carnaval dos Anos de Chumbo. O primeiro samba transpõe para o plano da canção o poema homônimo (1928) de Cassiano Ricardo, ícone do verde-amarelismo, a variante nacionalista e ufanista do Modernismo brasileiro. O ufanismo é bastante valorizado em toda a letra da canção. Vem cá, Brasil Deixa eu ler a sua mão, menino Que grande destino Reservaram pra você [...] Gigante pra frente a evoluir Milhões de gigantes a construir

Já a canção entoada pela Beija-Flor é das mais perfeitas sínteses propagandísticas do regime militar. Praticamente nenhum elemento político do governo é esquecido: as rodovias derrubando matas para o “progresso” chegar ao “sertão”, o “pétroleo jorrando”, o slogan/linha política “Pra frente, Brasil”, a miscigenação como ideal racial, o Brasil como potência mundial. É estrada cortando A mata em pleno sertão É petróleo jorrando Com afluência do chão Sim chegou a hora Da passarela conhecer A idéia do artista Imaginando o que vai acontecer No Brasil no ano dois mil Quem viver verá Nossa terra diferente A ordem do progresso Empurra o Brasil pra frente

4 1985, a hora da “gozada” O ano de 1985, que se consolidou na historiografia como o fim da ditadura civil-militar, foi marcante também no desfile de escolas de samba do Rio de Janeiro. O otimismo e a esperança num futuro melhor se tornam explícitos, sem subterfúgios. A defesa da liberdade, uma forma de resistência nos Anos de Chumbo, agora é tranquilamente abordada. O trabalhismo e Getúlio Vargas, jamais mencionados naquele período (apenas de maneira indireta, pela Vila Isabel em 1970), ganham um enredo apologético. E um novo ingrediente aparece com tudo: a sátira política e social e a irreverência. A libertinagem é escancarada, afrontando os padrões moralistas. O

jornalista Fábio Fabato (2014, informação verbal), pesquisador do carnaval, sintetiza bem: 1985 é a “hora da gozada”, onde todo o grito contido em 21 anos de ditadura é posto para fora. A seguir, serão analisadas 14 canções, dentre as 16 do Grupo Especial do carnaval do Rio de Janeiro em 1985. A fim de sistematizar similaridades e diferenças, foram agrupadas em quatro categorias. Por não apresentarem maiores novidades em relação ao período anterior, duas canções não foram aprofundadas neste estudo: “Adolã, a cidade mistério”, da Imperatriz Leopoldinense, um enredo folclórico sobre a Ilha de Marajó, e “Se a lua contasse - Homenagem a Custódio Mesquita”, da Império da Tijuca, linearmente biográfico. 4.1 Otimismo e esperança A Mocidade Independente de Padre Miguel, vencedora do certame, desenvolve um enredo futurista, focalizando no então distante ano de 2001. Em “Ziriguidum 2001, carnaval nas estrelas” (autoria de Gibi, Tiãozinho e Arsênio), a escola de samba viaja ao espaço sideral, imaginando um mundo (ou universo) sem limites cósmicos. A Unidos de Vila Isabel fez um delicado e esperançoso enredo sobre a infância. Em “Parece até que foi ontem” (autoria de David Corrêa, Jorge Macedo e Tião Grande), o imaginário infantil é retomado com a alusão a personagens como Narizinho e Cinderela e a símbolos da criancice - os doces, as brincadeiras etc. A própria letra é um brincar, com refrão dizendo “Ê balão, balão, balão, / Balão que leva eu / Balão me dê luar...”. Em “Recordar é viver” (autoria de Noca da Portela e parceiros), samba-enredo da Portela, o passado é rememorado (mundo dos contos de fadas, o circo, o teatro de revista etc.), mas com um forte sentido de esperança no futuro. A liberdade é valor ressaltado. Falando sobre o choro, gênero musical, e os “chorões”, a Estácio de Sá também produziu um samba-enredo saudosista, mencionando sonhos e recordações, e homenageando músicas referenciais. Mas vai além: contextualiza-o ao momento de “festa”.

Embalados neste som dolente Vamos nessa minha gente Unir os corações Anda, meu amor, a hora é esta Os chorões estão em festa Gemem primas e bordões... nos salões

Numa perspectiva distinta, mais crítica, a Em Cima da Hora aborda a saga do migrante

nordestino rumo ao Rio de Janeiro em “Me acostumo mas não me amanso” (autoria de Renato, Reco e Nunes). Saudosista, mas orgulhoso de sua origem e esperançoso quanto ao futuro, assim é o nordestino narrado pela escola. Tem versos bastante politizados, como “Faço parte do progresso, mas ninguém me dá valor”. Apesar da situação de “abandono” (“Eu aqui nesse abandono”), o eu-lírico mantém o sonho de dias melhores para sua região: “Sonhando vejo um novo agreste / Porque lá no meu Nordeste / Se chover de tudo dá”. 4.2 Sátira / irreverência Bem diferente daquela Beija-Flor prodigiosa em enredos chapa-branca dos anos de ditadura, a escola em 1985 exibiu um desfile escrachado. A liberalidade é a marca de “A Lapa de Adão e Eva” (autoria de Zé do Cavaco, Carlinhos Bagunça, Carnaval, H. O. e Patrício), definida como “O paraíso do prazer e do pecado”, em que “A culpada foi Madame Satã”. O paraíso criado por Deus foi desfeito, após a ação da serpente que “Fez Adão provar a maçã / E Eva comer a banana”, e “Em Sodoma e Gomorra acabou”. Quebrando um tabu moral, possivelmente pela primeira vez a palavra “gay” é entoada no sambódromo, no verso “Gay é sucesso”. A crítica política não fica de fora: “Hoje meu Rio é cidade de Babel / Emoldurado nesse meu painel / Política parece brincadeira”. O refrão principal é representativo do escracho, com uma subversão linguística e a brincadeira com o Cristo Redentor, símbolo da cidade do Rio e da fé católica.

Vem lourinha, vem sambar O crioulo só quer "Michael-Jequiar" De braços abertos o Redentor pede ao Pai Pra nos perdoar

Outro exemplo do escracho é “E por falar em saudade” (autoria de Almir Araújo, Marquinhos Lessa, Hércules Corrêa, Balinha e Carlinhos de Pilares), da Caprichosos de Pilares. Sob o pretexto de falar dos antigos carnavais, é feita uma canção de forte crítica política: condena-se da qualidade do leite ao confisco da poupança; pede-se o voto direto para presidente (que fora derrotado no ano anterior pela Câmara dos Deputados). Diretamente, o povo escolhia o presidente, Se comia mais feijão, Vovó botava a poupança no colchão Hoje está tudo mudado, Tem muita gente no lugar errado ...

Onde andam vocês, antigos carnavais ?

A liberalidade moral, atrelada ao clima de caos social, se torna explícita nos dois refrões: Bota, bota, bota fogo nisso A virgindade já levou sumiço [...] Tem bumbum de fora pra chuchu Qualquer dia é todo mundo nu...

Escola de samba que teria sua identidade vinculada à irreverência e à sátira política, a São Clemente, assim como a Caprichosos, produziu uma letra que relaciona os problemas sociais ao afrouxamento dos costumes. Em “Quem casa, quer casa” (autoria de Rodrigo, Isaías de Paula e Helinho 107), critica-se a situação do país a partir da falta de moradia. Nasci com a nobreza Na pobreza me criei Andei, andei (mas eu andei) Aqui cheguei Hoje mostro na Avenida Quem foge nesta vida de aluguel Trago chave de cadeia E os prazeres de motel

(refrão) Quem casa quer casa Eu não tenho onde morar Vou viver como índio Até melhorar

A Santa Cruz apresentou um samba-enredo biográfico que faz uma sátira comportamental. O homenageado em “Ibrahim, de leve eu chego lá” (autoria de Zé de Angola e Grajaú) é o jornalista Ibrahim Sued, colunista social de circulação em toda society carioca, fundador do “Clube dos Cafajestes” (no refrão, os versos expressam esse fato: “Podem me chamar de cafajeste, oi / Eu sou e quem não é? (e quem não é?) [...]”. A trajetória do “filho de imigrante pobre” que lutou para vencer é enfatizada, sobretudo com o binômio pobre/nobre.

Na sociedade quem sabe, sabe

Quem não sabe, quer saber Desse gigante nobre Filho de imigrante pobre Que lutou pra vencer

Num samba-enredo eufórico, o Império Serrano tematiza a cerveja em “Samba, suor e cerveja, o combustível da ilusão” (autoria de Beto Sem Braço). Não é satírico como os sambas anteriores, mas é irreverente ao indicar na bebida alcoólica uma fuga dos “dissabores da vida” e um atalho para a felicidade: “Haja frio ou calor / Cervejando lá se vai dissabor”, diz o refrão. 4.3 Liberdade O tema da liberdade já aparecera em letras anteriormente mencionadas, mas exerce um papel mais central nas canções da Mangueira, da União da Ilha e da Unidos do Cabuçu. O enredo da Mangueira é sobre Chiquinha Gonzaga. Para falar da compositora e pianista, o samba-enredo “Abram alas que eu quero passar - Chiquinha Gonzaga” (autoria de Jurandir, Hélio Turco e Darcy) enfoca a liberdade por ela protagonizada. Tem versos antes improváveis, como “Desprezou a burguesia / O requinte dos salões”. A União da Ilha narra a história de João Cândido, o “Almirante Negro”, em “Um herói, uma canção, um enredo” (autoria de Didi, Aurinho da Ilha e Aritana), e aborda a principal canção feita em sua homenagem, “Mestre-Sala dos Mares”, composta por João Bosco e Aldir Blanc e eternizada na voz de Elis Regina, inserindo palavras e versos em vários trechos. A própria Revolta da Chibata, da qual Cândido foi o líder, dificilmente poderia ser saudada nos Anos de Chumbo. Tem versos politicamente fortes, como “Se o sangue assina a tortura / O sangue se apaga com amor”. Na estrofe seguinte, a crítica à anista e a confiança na supremacia da liberdade: A mentira veio no fantasma da anistia O mar nunca afogou As ondas que agitam a liberdade O vento que passou Só ventou saudade

A letra da Unidos do Cabuçu, institulada “A festa é nossa, ninguém tasca ou Quem ri por último, ri melhor” (autoria de J. Leão, João do Cabuçu, Celsinho, João do Cavaco e Jorginho Harmonia), traz diversos valores, como a liberdade e esperança, e faz a denúncia do massacre indígena e da escravidão negra. É ácida na condenação aos poderosos, mas esperançosa em

relação ao povo. Liberdade Para este povo sofredor Que já está de saco cheio De comer o pão que o diabo amassou

4.4 Getúlio Vargas No ano da derrocada da ditadura, Getúlio Vargas volta a ser tema dos desfiles das escolas de samba, com “Anos trinta, vento sul - Vargas” (autoria de Bala, Jorge Melodia e Jorge Moreira), enredo do Salgueiro. O trabalhismo estava forte no Rio de Janeiro: Brizola era o governador, que um ano antes inaugurara o Sambódromo da Marquês de Sapucaí. O enredo trata Vargas de forma ufanista, inclusive relevando o autoritarismo do Estado Novo e criando um duelo bem X mal: “Apagou a chama da rebeldia”, “Mandou nossos heróis além mar / Para as forças do mal derrotar”, “Festejava as vitórias no Estado Novo”. O que merece destaque é a improbabilidade de Getúlio ser assunto durante a ditadura, visto que Brizola, o principal herdeiro de seu legado, era o inimigo “número 1” do regime. Nos Anos de Chumbo, a única tentativa de citar Getúlio partiu da Vila Isabel em 1970. Fala dele, mas omite seu nome: “Tem gaúcho lá nos pampas que não é de brincadeira / Estadista de renome já nos deu este torrão” (“Glórias gaúchas”, autoria de Martinho da Vila).

REFERÊNCIAS GALERIA DO SAMBA. www.galeriadosamba. Acesso em: março/abril 2014. IMPÉRIO, J. Herdeiro de Mano Décio, abençoado por Martinho: depoimento. [abril, 2013]. Rio de Janeiro: Samba em revista - Revista do Centro Cultural Cartola. [sem identificação de entrevistador] MUSSA, Alberto; SIMAS, Luiz A. Samba de enredo: história e arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 238 p. PILLA VARES, Luiz P. Samba: a arte total. In: FISCHER, L. A.; SEDREZ, M. (Org.). Conversas entre confetes. Porto Alegre: Secretaria Municipal da Cultura, 2000. p. 87-97 POMPE, C. Carnaval na luta pela liberdade. http://www.vermelho.org.br/coluna.php?id_coluna_texto=4565&id_coluna=2 RAYMUNDO, J. Escola de samba: uma escola do povo negro, o negro enredo do samba. ArReDia, Dourados, v. 1, n. 3, p. 60-73, jul./dez. 2013.

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