Da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada

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Da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada por Rodrigo Xavier Leonardo Professor adjunto de Direito Civil nos cursos de graduação e pós-gradação em Direito da UFPR Mestre e Doutor em Direito Civil pela USP

Originalmente publicado como LEONARDO, Rodrigo Xavier. O percurso e os percalços da teoria da pessoa jurídica na Universidade Federal do Paraná: da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada, a partir de J. Lamartine Corrêa de Oliveira. In: KROETZ, Maria Cândida (org). Direito civil: inventário teórico de um século. Curitiba : Kairós, 2012, p.75. I. Introdução O tema da pessoa jurídica sempre foi caro à Universidade Federal do Paraná. Foi no salão nobre da Faculdade de Direito que a inovadora tese da desconsideração da pessoa jurídica foi pioneiramente enfrentada em âmbito nacional1. Dessa mesma escola provém um dos poucos estudos a respeito da pessoa jurídica no direito romano2, além de diversas outras obras monográficas de prestígio e grande repercussão3. Nesse contexto maior, insere-se o epicentro da preocupação teórica do professor Lamartine Corrêa em sua carreia docente na Universidade Federal do Paraná, que teve início no ano de 1960 e se extinguiu precocemente em 1987, com o seu passamento. 1

  Menciona-­‐se,   aqui,   a   conferência   de   Rubens   Requião   em   que   se   encontra   o   primeiro   registro   de   enfrentamento  do  tema  em  direito  nacional.  Cf.  REQUIÃO,  Rubens.  Abuso  de  direito  e  fraude  através  da   personalidade  jurídica.  Revista  dos  Tribunais.  a.58,  v.410,  dez.,  1969.   2  CARTAXO,  Ernani  Guarita.  As  pessoas  jurídicas  em  suas  origens  romanas.  Curitiba  :  Empreza  Gráfica   Paranaense,  1943.   3  Cite-­‐se,  apenas  como  exemplo,  as  seguintes  obras  monográficas:  CORRÊA  DE  OLIVEIRA,  J.  Lamartine.   Conceito   de   pessoa   jurídica.   Tese   apresentada   à   Faculdade   de   Direito   da   Universidade   Federal   do   Paraná   para  concurso  de  livre   docência   de  Direito  Civil.  Curitiba,  1962  (mimeo);  CORRÊA  DE   OLIVEIRA,  J.   Lamartine.   A   dupla   crise   da   pessoa   jurídica.   São   Paulo   :   Saraiva,   1979;   JUSTEN   FILHO,   Marçal.   Desconsideração   da   personalidade   societária   no   direito   brasileiro.   São   Paulo:   Revista   dos   Tribunais,   1987.    

Foi por intermédio desse assunto que o docente inseriu na pesquisa de Direito Civil uma preocupação com o direito comparado, investigando com profundidade a experiência de outras nações em busca de soluções teóricas para o problema da pessoa jurídica e a crise por ele constatada em meados do século XX. E agora, diante do primeiro centenário da Universidade Federal do Paraná, num século recém inaugurado, a obra organizada pela civilista, Professora Doutora Maria Cândida de Araújo Kroetz, nos oportuniza revisitar o tema da pessoa jurídica, à luz do pensamento do professor Lamartine Corrêa, porém tomando como pano de fundo a sociedade brasileira contemporânea. O Brasil e o mundo mudaram bastante desde a publicação da grande obra de Lamartine Correa a respeito do tema, intitulada “a dupla crise da pessoa jurídica” (Saraiva, 1979). A Universidade Federal do Paraná e o Direito Civil na Faculdade de Direito também se transformaram. Eis a chance de, ao reverenciar as gerações de civilistas que se foram, refletir sobre o tempo presente e tentar abrir janelas que prenunciam o porvir. Para tanto, neste capítulo, abordaremos o tema da pessoa jurídica em três partes. Na primeira, apresentaremos o tema da pessoa jurídica na sua problemática teórica e no contexto de crise enfrentado pela obra de Lamartine Correa. Na sequencia, expomos a repercussão da desconsideração da pessoa jurídica e opinamos sobre os reflexos dessa operação no direito contemporâneo para, por fim, ao colocar o tema em prospectiva, alguns desafios para o futuro. II. A pessoa jurídica como problema teórico e a sua crise. A pessoa jurídica surge como problema teórico na modernidade. É nesse período, com lindes imprecisos, que se encontra o nascedouro da questão que novamente se põe em debate. O direito moderno se apresenta como o produto de um projeto individualista de sociedade. Diz-se individualista, porque fundamentado no indivíduo, destacado de sua realidade comunitária

para figurar como eixo em relações atomizadas entre iguais e perante o Estado4. Não é por outra razão que a chamada teoria geral do direito civil, cujas bases fundantes são lançadas nesse mesmo período, adota por sustentáculo as figuras do direito subjetivo e do sujeito de direito. Todo o direito seria concebido para a potencial titularidade de um abstrato e formal sujeito individual, atomizado, apartado dos demais5. Os chamados grupos intermediários, que de algum modo pudessem se colocar como entreposto entre o indivíduo e o Estado, mereceriam severo repúdio, vez que compreendidos como ameaças à liberdade individual. A esse respeito, imerso no contexto cultural que emergia com a modernidade, Rosseau escreveu: "se, quando o povo suficientemente informado delibera, não tivessem os cidadãos qualquer comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral e a deliberação seria sempre boa. Mas quando se estabelecem facções, associações parciais a expensas da grande vontade de cada uma dessas associações torna-se geral em relação a seus membros e particular em relação ao Estado: poder-se-á então dizer não haver mais tantos votantes quantos são os homens, mas somente tantas quantas são as associações. As diferenças tornam-se menos numerosas e dão um resultado menos geral. E, finalmente, quando uma dessas associações for tão grande que se sobreponha a todas as outras, não se terá mais como resultado uma soma das pequenas diferenças, mas uma diferença única – então, não há mais vontade geral, e a opinião que dela se assenhoreia não passa de uma opinião particular. Importa, pois, para alcançar o verdadeiro enunciado da

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HESPANHA,  António  Manuel.  História  das  instituições:  épocas  medieval  e  moderna.  Coimbra:  Almedina,   1982.   p.210;   HESPANHA,   António   Manuel.   Cultura   jurídica   européia.   Síntese   de   um   milénio.   Florianópolis:  Fundação  Boitex,  2005.  p.101;    GROSSI,  Paolo.  L'ordine  giuridico  medievale.  10.ed.  Roma:   Laterza,  2003.  p.75  e  seguintes.     5  ORESTANO,  Riccardo.  Il    in  diritto  romano.  Torino:  Giappichelli,   1968.  t.1.  p.  17  e  seguintes).  Sobre  o  assunto,  conferir  também,  GIERKE,  Otto.  Political  theories  of  the   middle  age.  Trad.  Frederic  William  Maitland.  Boston:  Beacon  Press,  1958.  p.67  e  seguintes;  PEPPE,  Leo   (Org.).  Persone  giuridiche  e  storia  del  diritto.  Torino:  Giapichelli,  2004.  p.89  e  seguintes.  

vontade geral, que não haja no Estado sociedade parcial e que cada cidadão só opine de acordo consigo mesmo"6. Nesse contexto, justificar agrupamentos humanos com uma personalidade própria, diversa daqueles que lhes deram vida, apresentava-se efetivamente como um problema. Lamartine Corrêa, ao investigar o assunto, percebeu que a principal resposta que em seu tempo procurava dar conta da questão era proveniente das chamadas correntes normativistas. Com esteio em Kelsen, Ferrara, e outros expoentes do direito privado7, justificava-se a pessoa jurídica como o produto de normas jurídicas emanadas exclusivamente pelo Estado. Tal solução, no entanto, quanto colocada à prova frente às relações sociais apresentava severas limitações. Diversas realidades sociais que funcionavam em sociedade com elevado grau de diferenciação de seus criadores, com práticas equivalentes àquelas levadas a cabo pelas pessoas jurídicas, não eram reconhecidas como pessoas. Por qual razão? Segundo Lamartine Correa pela única e exclusiva ausência de previsão normativa que conferisse tal sustentação. Dessa constatação, o autor extraiu a primeira crise da pessoa jurídica: a chamada crise de reconhecimento8. Se a personificação de coletividades é um produto exclusivo da norma jurídica, as inevitáveis lacunas normativas deixariam de considerar realidades sociais que ostentariam todas as características de entidades personificadas. Tais entidades reais, a margem de qualquer previsão normativa, atuariam na vida em sociedade, praticariam atos jurídicos, seriam partes em relações jurídicas num limbo normativo. O mesmo normativismo também conduziria à segunda crise da pessoa jurídica. Se a pessoa jurídica é um produto da norma 6

ROUSSEAU,   Jean-­‐Jacques.   Do   contrato   social.   Trad.   Lourdes   Santos   Machado.   5.ed.   São   Paulo:   Nova   Cultural,  1991.  p.47.  (Coleção  Os  pensadores).   7 FERRARA,   Francesco.   Teoria   delle   persone   giuridiche.   2.ed.   riveduta.   Napoli   :   Marghieri,   1923;   KELSEN,   Hans.  Teoria  pura  do  direito.  4.ed.  Trad.  João  Baptista  Machado.  Coimbra:  Armênio  Amado,  1976..   8   CORRÊA   DE   OLIVEIRA,   José   Lamartine.   A   dupla   crise   da   pessoa   jurídica.   São   Paulo   :   Saraiva,   1979.   Tratamos   da   perspectiva   teórica   desse   autor   em   outra   oportunidade,   cf.   LEONARDO,   Rodrigo   Xavier.   Revistando  a  dupla  crise  da  pessoa  jurídica.  In:  DELGADO,  Mário  Luiz;  ALVES,  Jones  Figueirêdo.  Questões   controvertidas:  direito  de  empresa.  v.8.  São  Paulo  :  Método,  2010,  p.45.  

jurídica, a sua criação e o seu desenvolvimento não dependeriam de um elevado nível de institucionalização, mediante diferenciação e autonomização daqueles que lhe constituíram. Bastaria uma adequação formal aos requisitos legais para o seu surgimento, ainda que no plano da realidade social verdadeiramente se mantivesse uma indistinção entre a entidade criada e o seu criador. Isso permitiria que mesmo diante da ausência duma realidade institucional efetiva, desde que observados os quadrantes das formas descritas em Lei, pudessem ser constituídas pessoas jurídicas para a prática de atos ilícitos (aqui tomado o termo em sentido amplíssimo). Nesses casos, por intermédio da separação patrimonial, a pessoa jurídica serviria como um anteparo que impediria a responsabilização daqueles que lhe criaram, como mera forma, para fruir economicamente desses atos ilícitos. Aí se encontraria a segunda crise. A atribuição da personalidade a entidades independentemente de uma realidade institucional que lhes desse suporte, a partir de uma concepção formalista de que a Lei seria a fonte constitutiva da personalidade, permitia que essa forma fosse utilizada para fins contrários ao ordenamento jurídico. Além de diagnosticar a dupla crise da pessoa jurídica, Lamartine Corrêa propõe um remédio: uma revisão teórica do instituto da pessoa jurídica, do normativismo à uma concepção ontológicainstitucionalista9. A concepção ontológica-institucionalista reconheceria um substrato social, um suporte ôntico à pessoa jurídica, que justificaria o seu reconhecimento como um ser, ainda que diverso do ser humano. O ser humano seria de forma substancial, ou seja, um ens cuja existência independeria de fundamentos externos, extrínsecos a ele mesmo. A pessoa jurídica também seria um ser, porém de forma acidental, na exata medida em que sua existência seria dependente dos seres humanos que lhe dão sustentação.

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 Grifos  nossos,  CORRÊA  DE  OLIVEIRA,  J.  Lamartine.  Conceito  de  pessoa  jurídica,  p.164.  

Este substrato ontológico surgiria a partir de um processo de institucionalização, mediante um elevado nível de organização e expressão autônoma da entidade personificada em relação aos seres humanos que lhe deram sustentação. Daí, em linhas gerais, a concepção ontológica-institucionalista defendida pelo autor. Nesses quadrantes teóricos, a Lei não criaria a pessoa jurídica. O ordenamento jurídico, conforme um viés mais rente ou menos rente às liberdades democráticas, reconheceria tais formações sociais. Por intermédio dessa compreensão teórica, seria possível superar a primeira crise, vez que as entidades que, na realidade social, ostentassem um substrato ontológico institucional, deveriam ser consideradas pessoas jurídicas. Se o substrato ontológico institucional fosse dirigido para objetivos contrários ao ordenamento jurídico, alguns efeitos da personalidade jurídica, em especial a separação patrimonial, poderiam ser afastados pela chamada desconsideração da personalidade jurídica, possibilitando também uma superação da segunda crise. Essa tese que inovou o estudo da pessoa jurídica foi elaborada em um contexto particular multifacetado de seu autor. Sob a perspectiva filosófica, José Lamartine Correa de Oliveira firmava uma postura de crítica ao normativismo e, em especial, ao positivismo jurídico de viés kelseniano. Ainda nessa mesma seara, o autor buscou fundamento na filosofia tomista e no pensamento institucionalista francês10, sobretudo a partir das obras de Maurice Hauriou11, George Renard12

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 Para  um  panorama  geral  da  escola  institucionalista  francesa,  conferir,  dentre  outros,  GRESSAYE,  Jean   Brèthe   de   la.   The   sociological   theory   of   the   institution   and   french   juristic   thought.   In:   BRODERIK,   Albert.   The   french   institucionalists:   Maurice   Hariou,   Georges   Renard,   Joseph   T.   Delos.   trad.   Mary   Wlling.     Massachusetts  :  Harvard  University  Press,  1970,  p.15  et  seq.     11   Para   Hariou:   “una   istituzione   è   una   idea   di   opera   o   di   intrapresa,   che   si   realizza   e   dura   giuridicamente   in  un  ambiente  sociale;  per  la  realizzazione  di  tale  idea,  si  organizza  un  potere  che  la  fornisce  di  organi;   d’altra   parte,   tra   i   membri   del   grupo   sociale   che   è   interessato   alla   realizzazione   dell’idea   si   attuano   manifestazioni   comunitarie,   dirette   dagli   organi   del   potere   regolate   da   procedure”   (HARIOU,   Maurice.   Teoria  dell’istituzione  e  della  fondazione.  Milano  :  Giuffrè,  1967,  p.12).   12   RENARD,   Georges.   Les   degrés   de   l’existence   institutionnelle.   In:   La   théorie   de   l’institution:   essai   d’ontologie  juridique.  Paris  :  Sirey,  1930,  p.225.  

e Delos13, identificando-se, também, com as correntes filosóficas jusnaturalistas católicas, mormente com a doutrina social da igreja. Sob essa lente filosófica é que Lamartine Corrêa extrai de Santo Tomás de Aquino a diferença entre os seres de forma substancial e o seres de forma acidental para, por intermédio de um raciocínio de analogia por atribuição, reconhecer a personalidade às entidades de formação social sem colocá-las no mesmo patamar dos seres humano. Pessoa, em sentido ético, seria apenas o ser humano. Apenas ao ser humano seria reconhecida a dignidade. Às pessoas jurídicas, como seres de forma acidental, seria atribuída a personalidade por analogia ao ser humano14. Segundo Lamartine Corrêa, a pessoa jurídica seria uma “realidade análoga à pessoa humana, porque idêntica em inúmeros aspectos e distinta no mais importante: a substancialidade, que esta possui e aquela não. É pessoa, portanto. Mas não no sentido pleno da palavra e sim por analogia”15. Em coautoria com o Professor Francisco Muniz, esclarece-se que a pessoa humana seria mais que uma realidade ontológica. Seria uma realidade axiológica, vez que “ser e valor estão intimamente ligados, em síntese indissolúvel, eis que o valor está, no caso, inserido no ser. O homem vale, tem a excepcional e primacial dignidade de que estamos a falar, porque é”.16 Das correntes institucionalistas francesas, Lamartine Corrêa extrai uma epistemologia indutiva17, em que os fenômenos sociais são observados como base para as conclusões. A personalidade de determinadas organizações surgiria na realidade social e, por vezes, 13

 DELOS,  J,-­‐T.  La  théorie  de  l’Institution.  La  solution  réaliste  du  problème  de  la  personnalitè  morale  et  le   droit  à  fondement  objectif.  Archives  de  philosophie  du  droit  et  de  sociologie  juridique.  n.º  1-­‐2,  Cahier   double,  Recueil  Sirey,  1931,  p.99.     14 SZANIAWSKI,  Elimar.  Direitos  da  personalidade.  São  Paulo  :  Revista  dos  Tribunais.   15  CORRÊA  DE  OLIVEIRA,  J.Lamartine.   Conceito  de  pessoa  jurídica,   p.165.  A  respeito  da  substancialidade   da   pessoa   humana   e   de   sua   projeção   em   uma   reconstrução   da   noção   de   subjetividade   no   direito,   cf.   GEDIEL,   José   Antônio   Peres.   Os   transplantes   de   órgãos   e   a   invenção   moderna   do   corpo.     Curitiba   :   Moinho  do  Verbo,  2000,  p.46  e  seguintes.   16   Grifos   no   original,   CORRÊA   DE   OLIVEIRA,   José   Lamartine;   MUNIZ,   Francisco   José   Ferreira.   O   Estado   de   direito  e  os  direitos  da  personalidade.  Revista  dos  tribunais.  a.69,  v.532,  fev.  de  1980,  p.16.   17   Sobre   a   perspectiva   metodológica   no   institucionalismo   francês,   cf.   ENPC   LATTS,   Gilles   Jeannot.   Les   associations,  L’Etat  et  la  théorie  de  l’institution  de  Maurice  Hariou.  Les  annales  de  la  recherche  urbaine.   n.º89,  juin  2001,  p.19.    

alcançaria uma elevada institucionalização ao redor de uma idéia de atuação (l’idée d’ouvre) 18. Assim como na natureza seria possível verificar uma gradação entre os inúmeros seres vivos, partindo dos mais simples em comparação aos mais complexos, dentre as diversas instituições surgidas em sociedade, seria possível verificar algumas com um padrão tão elevado de organização e atuação em sociedade que passariam a existir com independência das pessoas humanas que lhe criaram. Na perspectiva da metodologia do direito, ainda, José Lamartine Corrêa de Oliveira investiu nos estudos de direito comparado. Sua pesquisa sobre a dupla crise da pessoa jurídica se tornou possível após a investigação do assunto em diversos sistemas, classificando as opções encontradas nos diversos ordenamentos jurídicos em minimalistas, maximalistas, monistas e dualistas. Nos ordenamentos jurídicos classificados como minimalistas bastaria um mínimo de correspondência analógica entre os agrupamentos sociais e o ser humano para se operar a personificação. O direito francês seria um exemplo paradigmático para o autor. Nos ordenamentos jurídicos maximalistas, por sua vez, seria exigido um máximo de analogia entre essas entidades e o ser humano para que se pudesse reconhecer a personalidade jurídica (como, v.g., no direito suiço). A partir dos modelos minimalistas ou maximilistas, esses mesmos ordenamentos jurídicos poderiam adotar posições monistas, quando a pessoa jurídica fosse o único mecanismo de autonomização perante as esferas jurídicas individuais, e posições dualistas, quando, ao lado da pessoa jurídica, outras figuras

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 Registre-­‐se,  no  entanto,  que  J.  Lamartine  Corrêa  de  Oliveira,  a  despeito  de  reconhecer  a  importância   do   pensamento   de   Maurice   Hariou,   tece   críticas   severas   ao   idealismo   platônico   desse   autor,   que   identificava   numa   idéia   de   obra   (l´idée   d’ouvre)   o   elemento   essencial   para   a   constituição   de   uma   instituição:  “A  noção  que  possui  a  respeito  das  ‘idéias’  é  demasiadamente  platônica  e,  o  que  há  em  tal   concepção   de   platonismo,   é   inaceitável   e   grandememente   responsável   por   boa   parte   das   resitências   opostas  à  aceitação  de  sua  doutrina.  Para  êle,  as  idéias  são  objetivas  desde  sua  origem.  São  encontradas   por  homens  inspirados  (...)”  (CORRÊA  DE  OLIVEIRA,  J.  Lamartine.  Conceito  de  pessoa  jurídica,  p.132).  

permitissem essa autonomia, tal como ocorreria, no direito alemão, entre a pessoa jurídica e a Gesamthandgemeinschaft19. O direito brasileiro, à época da publicação da dupla crise da pessoa jurídica, seria situado como um sistema minimalista e monista, o que agravaria as possibilidades de cada uma das duas crises da pessoa jurídica. Na perspectiva política, por fim, nosso autor figurava como um dos expoentes do movimento de redemocratização do Brasil que, à época dos fatos, alcançava seu ápice para o início de uma transformação nacional. Seja como advogado, que exerceu a presidência da Seccional da OAB no Paraná, seja como docente que professou um ensino jurídico crítico e democrático, Lamartine Corrêa não capitulou20. Sua obra sinalizou a precedência de valores transpositivos sobre as normas jurídicas, materialmente orientado a uma inserção do homem em seu contexto histórico e social21. Esse compromisso com a ciência, com a política e, sobretudo, com o ser humano, ainda ecoa nos corredores da Santos Andrade. E para além dela. III. Da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada (ou o avesso do avesso...) A tese da dupla crise da pessoa jurídica alcançou uma incomum projeção. Em direito nacional, trata-se de obra obrigatória 19

 LEONARDO,  OAB,  p.52-­‐53.     Pode-­‐se   colher   a   opinião   crítica   do   autor   nos   escritos   CORRÊA   DE   OLIVEIRA,   J.   Lamartine.   A   função   social   do   advogado   e   a   crise   do   ensino   jurídico.   In:   semana   do   advogado   (7   a   11   de   agostode   1972).   Ordem  dos  advogados  do  Brasil  –  Seção  do  Paraná,  1972;  CORRÊA  DE  OLIVEIRA,  J.  Lamartine;  MUNIZ,   Francisco  José  Ferreira;  APPEL,  Emmanuel  José.  Cultura,  ensino  e  universidade:  contribuição  da  UFPR   ao  debate  constitucional.  Curitiba  :  UFPR,  1986.  Cabe  mencionar,  ainda,  o  resgate  histórico  e  emotivo   de  PASSOS,  Edésio.  O  tempo  da  memória:  Vieira  Netto:  o  discurso  proibido.  Lamartine  Corrêa:  a  véspera   dos  bárbaros.   21   CORRÊA   DE   OLIVEIRA,   J.   Lamartine.   A   véspera   dos   bárbaros.   Discurso   de   paraninfo   proferido   em   8   de   março   de   1968   aos   bacharelandos   da   turma   “Des.   Hugo   Simas”.   Centro   Acadêmico   Hugo   Simas,   1968   (mimeo).  CORRÊA  DE  OLIVEIRA,  J.  Lamartine.  Lição  de  resistência.  Discurso  de  paraninfo  aos  Bacharéis   em  Direito  de  1965  da  Universidade  Federal  do  Paraná,  turma  Ministro  Alvaro  Ribeiro  da  Costa  (mimeo).     20

em todos os estudos monográficos sobre o assunto. Além mar, o livro tornou-se uma referência constante entre autores europeus, sobretudo portugueses, mantendo-se atual, mesmo muitas décadas após a sua publicação22. Da década de 1970 aos dias de hoje, o tema da desconsideração da pessoa jurídica apresentou um grande desenvolvimento. Desde que abordado pela primeira vez no país mediante estudo também tributado à nossa escola, o assunto foi objeto de inúmeros estudos monográficos, decisões judiciais e, sobretudo, alterações legislativas. Em princípio, a desconsideração da personalidade jurídica seria uma ferramenta hermenêutica para determinadas situações em que se verificasse a crise de função, ou seja, o descompasso entre as finalidades admitidas pelo ordenamento jurídico para a personificação e a realidade social, subjacente ou sobrejacente, de uma específica e determinada pessoa jurídica. Se a crise de função era um dos frutos do normativismo, certamente não seria o mesmo normativismo a sua solução. A superação da separação patrimonial que compõe o conjunto eficacial da personificação exigiria um esforço de interpretação da realidade social que transborda as formas. O caminho tomado pelo direito brasileiro, no entanto, foi outro. O pensamento de Lamartine Corrêa – que é referência obrigatória do tema, como antes indicado –, foi muito mais acessado no diagnóstico da crise do que na proposição de soluções. O Brasil acabou optando por tratar da crise de função pelo mesmo normativismo que lhe deu causa.

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A partir da década de 1990, a começar pelo Código de Defesa Consumidor (Lei n.º 8.078/90), a desconsideração da

 Dentre  os  autores  portugueses,  pode-­‐se  mencionar,  apenas  como  exemplo,  duas  obras  monográficas   que  dialogam  intensamente  com  J.  Lamartine  Corrêa:  CORDEIRO,  António  Menezes.  O  levantamento  da   personalidade   colectiva   no   direito   civil   e   comercial.   Coimbra   :   Almedina,   2000,   p.102,   p.112;     CORDEIRO,   Pedro.   A   desconsideração   da   personalidade   jurídica   das   sociedades   comerciais.   Lisboa   :   AAFDL,  1989,  p.21,  p.54,  p.57,  p.89-­‐90,  dentre  outras  passagens.  

personalidade jurídica foi transposta dos julgados ao direito objetivo. Cumpre observar que, nessa passagem da construção jurisprudencial ao direito objetivo, verifica-se uma relevante transformação: ao passo que a experiência jurisprudencial limitava a desconsideração da personalidade jurídica às situações de abuso ou descompasso funcional do instituto, o direito positivo nacional passou a admiti-la independentemente de qualquer desvio de função. Isto inicia no Código de Defesa do Consumidor, pela original distinção entre aquilo que se convencionou chamar de uma teoria maior e de uma teoria menor da desconsideração da pessoa jurídica. A teoria maior exigiria a verificação de pelo menos um dos requisitos eleitos pelo legislador para que se operasse a desconsideração, nos termos do caput do art. 28 da Lei n.º 8.078/90: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. Sublinhe-se que o extenso rol de situações que ensejariam a grave medida expande-se por hipóteses nada uniformes. A enumeração do caput do art. 28 da Lei n.º 8.078/90 perpassa por situações objetivas (como, v.g, o excesso de poder, a infração da lei, o fato ou ato ilícito), por situações com elevada subjetividade (como, v.g., má administração) e, ainda, por outras que podem ser apenas consequências de vicissitudes da própria atuação em mercado (como, v.g., um estado de insolvência). A amplitude é evidente. Não fosse suficiente a enumeração no caput do art. 28 da Lei n.º 8.078/90, a chamada teoria menor da desconsideração da pessoa jurídica, que estaria presente no parágrafo quarto ao art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, permitiria a limitação da separação patrimonial quando a personalidade jurídica significasse, apenas e tão-somente, um óbice ao ressarcimento do consumidor: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua

personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. O mesmo texto normativo foi reproduzido em diversos outros diplomas legislativos. Isto ocorreu, por exemplo, no direito ambiental (art. 4.º da Lei n.º 9.605/98), na Lei que versa sobre a atividade de distribuição de combustível (§3º ao art. 18 da Lei n.º 9.847/1999) e, também, na legislação a respeito da indústria de petróleo (art. 23 do Decreto n.º 2.953/1999). Ao lado dessas regras, cite-se também como exemplos de leis que tratam da desconsideração da pessoa jurídica, a legislação antitruste (art. 18 da Lei n.º 8.884/1994 e art. 34 da Lei n.º 12.529/2011) e, também, o Código Civil Brasileiro (art. 50, CCB). No direito trabalho é comum a desconsideração da personalidade jurídica pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor por analogia e, também, pela imputação da relação de emprego à empresa e não à sociedade empresária personificada empregadora (mediante aplicação do art. 2.º da CLT, ainda que se distanciando da compreensão da empresa como atividade e não como sujeito de direito). No direito tributário, por sua vez, isto se dá pela amplitude conferida ao polo passivo da obrigação tributária (cite-se, nesse sentido, sem prejuízo de outros, os arts. 124 e 135 do Código Tributário Nacional). Por intermédio deste sumário levantamento legislativo, constata-se quase uma dezena de fundamentos normativos diferentes que costumam ser apontados pelos tribunais como fundamento para a desconsideração da pessoa jurídica. Cumpre observar, portanto, que em direito brasileiro não há uma teoria ou um regramento de desconsideração da pessoa jurídica. Há diversas teorias da desconsideração da pessoa jurídica, com pressupostos e requisitos igualmente diferentes, que podem ser encontrados em um emaranhado normativo desuniforme.

Sob um viés comparado, as inúmeras e diferentes regras jurídicas a respeito da desconsideração da pessoa jurídica no Brasil, ao que tudo indica, inserem o país em uma posição singular. Ao passo que a experiência em direito comparado mantém a excepcional limitação dos efeitos da personalidade jurídica como uma construção exclusivamente jurisprudencial, no Brasil, tal como antes demonstrado, ela passa a ser constantemente objeto de um disperso tratamento legislativo23. Diante desse quadro, pode-se sustentar que, no tempo contemporâneo, vivemos uma crise às avessas: o advento de uma crise da crise da pessoa jurídica na proliferação legislativa de hipóteses para a sua desconsideração. Nessa nova crise, desfaz-se a personificação pela aplicação de normas jurídicas independentemente da real atuação em sociedade da entidade, a despeito da conformidade ou desconformidade da real atuação em sociedade, dessas entidades, ao ordenamento jurídico. Tantas são as hipóteses de desconsideração da pessoa jurídica que, como antes sustentamos24, da teoria da desconsideração da pessoa jurídica chegamos à situação da pessoa jurídica desconsiderada em direito nacional. Eis o normativismo, outrora denunciado por Lamartine Corrêa, que reaparece com uma nova roupagem: para resolver a crise de função, pela pura e simples aplicação de normas, desconstrói-se a eficácia da personificação independentemente de uma eventual utilização desfuncional.

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  A   conclusão   é   alicerçada   em   estudo   de   direito   comparado   desenvolvido   por   VANDERKERCKHOVE,   Karen.  Piercing  the  corporate  veil.  Netherlands  :  Kluwer  Law  International,  2007,  p.27  e  seguintes.   24   LEONARDO,   Rodrigo   Xavier.   A   pessoa   jurídica   no   direito   privado   do   século   XXI.   In:   TEIXEIRA,   Ana   Carolina  Brochado;  RIBEIRO,  Gustavo  Pereira  Leite  (org.).  Manual  de  teoria  geral  do  Direito  Civil.  1.ed.   Belo   Horizonte   :   Del   Rey,   2011,   p.385.   Uma   interessante   leitura   crítica   da   banalização   da   desconsideração   da   pessoa   jurídica   é   apresentada   por   NUNES,   Márcio   Tadeu   Guimarães.   Desconstruindo   a   desconsideração   da   personalidade   jurídica.  São   Paulo   :   Quartier   Latin,   2007   e   NALIN,   Paulo;   VIANNA,   Guilherme   Borba.   Personificação,   responsabilidade   patrimonial   e   a   nova   crise   da   pessoa   jurídica   e   das   sociedades   empresárias.   Questões   controvertidas:   direito   de   empresa.   v.8.   São   Paulo   :   Método,  2010,  p.123.  

E nesses quadrantes, o tema da crise funcional da pessoa jurídica segue um tortuoso caminho do avesso, do avesso e do avesso. Permitam-me explicar. Num primeiro momento, o instituto da pessoa jurídica é utilizado para fins contrários ao ordenamento jurídico que lhe dá sustentação. Em seguida, formula-se a tese da desconsideração da pessoa jurídica para aplicação nos casos de fratura entre a real atuação das entidades e as finalidades admitidas pelo ordenamento jurídico. Desse segundo momento chega-se a um terceiro, quando da teoria passa-se ao direito positivo, com inúmeras hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica independentemente de utilização desfuncional, com repercussão na jurisprudência nacional. Atualmente, o direito brasileiro vive um quarto momento. A partir dos excessos que o direito positivo encaminhou a respeito da desconsideração da personalidade jurídica, verificamos um esforço em se limitar as hipóteses de desconsideração, mediante hermenêutica integrativa que insere requisitos para aplicação da desconsideração da pessoa jurídica que remontam ao descompasso funcional inicialmente denunciados pela doutrina. Isto pode ser percebido, por exemplo, pelos enunciados das Jornadas de Direito Civil do Superior Tribunal de Justiça25, por contundentes manifestações doutrinárias a respeito do assunto e, também, por um movimento da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça26, que se inicia pela adoção da chamada teoria 25

  C i t e -­‐ s e ,   n e s t e   s e n t i d o ,   o s   s e g u i n t e s   e n u n c i a d o s :   “ S ó   s e   a p l i c a   a   d e s c o n s i d e r a ç ã o   d a   p e r s o n a l i d a d e   j u r í d i c a   q u a n d o   h o u v e r   a   p r á t i c a   d e   a t o   i r r e g u l a r ,   e   l i m i t a d a m e n t e ,   a o s   a d m i n i s t r a d o r e s   q u e   n e l a   h a j a m   i n c o r r i d o ”   ( E n u n c i a d o   n . º   7   d a   I   J o r n a d a   d e   D i r e i t o   C i v i l   d o   S T J ;     “ N a s   r e l a ç õ e s   c i v i s ,   i n t e r p r e t a m -­‐ s e   r e s t r i t i v a m e n t e   o s   p a r â m e t r o s   d e   d e s c o n s i d e r a ç ã o   d a   p e r s o n a l i d a d e   j u r í d i c a   p r e v i s t o s   n o   C C 5 0   ( E n u n c i a d o   n . º   1 4 6   d a   I I I   J o r n a d a   d e   D i r e i t o   C i v i l   d o   S T J ) .     26   A   mais   expressiva   adoção   da   chamada   teoria   menor   da   desconsideração   da   pessoa   jurídica   pelo   Superior   Tribunal   de   Justiça,   com   uma   considerável   expansão   dos   lindes   do   instituto,   ocorreu   em   recurso   especial   destinado   a   julgar   pedido   indenizatório   das   vítimas   de   explosão   do   Shopping   Center   de   Osasco.   N a q u e l a   o p o r t u n i d a d e ,   s o b   o   a r g u m e n t o   d e   q u e   “ a   l i q u i d a ç ã o   v a i   e n c o n t r a r   v a l o r   v u l t o s o .   O   c a p i t a l   s o c i a l   d a   B -­‐ 7   é   d e   R $   3 . 1 0 0 . 0 0 0 , 0 0   ( t r ê s   m i l h õ e s   e   c e m   m i l   r e a i s ) ,   p a r a   o u t u b r o   d e   1 9 9 5   ( . . . ) .   O   c a p i t a l   s o c i a l   d a   A d m i n i s t r a d o r a   O s a s c o   P l a z a   é   d e   R $   1 0 . 0 0 0 , 0 0   ( d e z   m i l   r e a i s   ( . . . )   E   o   v a l o r   r e a l   d a   e m p r e s a   s e m p r e   e s t a r á   n a   d e p e n d ê n c i a   d e   s u a   o p e r a ç ã o   r e g u l a r ” ,   c o n c l u i u -­‐ s e   p e l o   “ e s t a d o   d e   i n s o l v ê n c i a ” ,   j u s t i f i c a n d o   a   a p l i c a ç ã o   d a   t e o r i a   m e n o r   d a   d e s c o n s i d e r a ç ã o   d a   p e s s o a   j u r í d i c a .  

menor da desconsideração da personalidade jurídica, fundamentada apenas em indícios hipotéticos de insolvência. Logo na sequência, no entanto, o mesmo Superior Tribunal de Justiça passou a construir critérios restritivos para a gravíssima medida, circunstanciados na efetiva verificação de um abuso do instituto, expressando preocupação com a sua banalização27. C o m   i s s o ,   c o m p r e e n d e u -­‐ s e   q u e   o   § 5 . º   d o   a r t .   2 8   d o   C ó d i g o   d e   D e f e s a   d o   C o n s u m i d o r   t e r i a   a p l i c a ç ã o   i n d e p e n d e n t e   d o   c a p u t ,   r a z ã o   p e l a   q u a l ,   n a s   r e l a ç õ e s   j u r í d i c a s   d e   c o n s u m o ,   b a s t a r i a   s e   c o m p r e e n d e r   a   p e r s o n i f i c a ç ã o   c o m o   o b s t á c u l o   p a r a   o   r e s s a r c i m e n t o   ( v . g . ,   p e l a   i n s o l v ê n c i a ) ,   p a r a   q u e   a   m e d i d a   d e   d e s c o n s i d e r a ç ã o   f o s s e   o p e r a d a .   N e s s e   s e n t i d o ,   l ê -­‐ s e   n o   a c ó r d ã o :   “ A   t e s e ,   o r a   a c o l h i d a ,   d e   q u e   a   t e o r i a   m e n o r   d a   d e s c o n s t i t u i ç ã o   a p l i c a -­‐ s e   à s   r e l a ç õ e s   d e   c o n s u m o ,   e s t á   c a l c a d a ,   c o m o   d i t o ,   n a   e x e g e s e   a u t ô n o m a   d o   § 5 º   d o   a r t .   2 8 ,   d o   C D C ,   i s t o   é ,   a f a s t a -­‐ s e ,   a q u i ,   a   e x e g e s e   q u e   s u b o r d i n a   a   i n c i d ê n c i a   d o   § 5 º   à   d e m o n s t r a ç ã o   d o s   r e q u i s i t o s   p r e v i s t o s   n o   c a p u t   d o   a r t .   2 8   d o   C D C .   E   i s t o   p o r q u e   o   c a p u t   d o   a r t .   2 8   d o   C D C   a c o l h e   a   t e o r i a   m a i o r   s u b j e t i v a   d a   d e s c o n s i d e r a ç ã o ,   e n q u a n t o   q u e   o   §   5 º   d o   r e f e r i d o   d i s p o s i t i v o   a c o l h e   a   t e o r i a   m e n o r   d a   d e s c o n s i d e r a ç ã o ,   e m   e s p e c i a l   s e   c o n s i d e r a d o   f o r   a   e x p r e s s ã o   ‘ t a m b é m   p o d e r á   s e r   d e s c o n s i d e r a d a ´ ,   o   q u e   r e p r e s e n t a ,   d e   f o r m a   i n e g á v e l ,   a   a d o ç ã o   d e   p r e s s u p o s t o s   a u t ô n o m o s   à   i n c i d ê n c i a   d a   d e s c o n s i d e r a ç ã o ”   (R E C U R S O   E S P E C I A L   N º   2 7 9 . 2 7 3   –   S P .   R e l a t o r a   p a r a   o   A c ó r d ã o ,   M i n .   N a n c y   A n d r i g h i ,   D J   d e   2 9 . 0 3 . 2 0 0 4 ) .         27   A   p a r t i r   d o   j u l g a d o   c i t a d o   n a   n o t a   d e   r o d a p é   a n t e r i o r ,   a   t e r c e i r a   t u r m a   d o   S u p e r i o r   T r i b u n a l   d e   J u s t i ç a   p a s s o u   a   a d o t a r   d o i s   c a m i n h o s   n a   a p l i c a ç ã o   d a   d e s c o n s i d e r a ç ã o   d a   p e s s o a   j u r í d i c a .   E m   s e   t r a t a n d o   d e   r e l a ç õ e s   d e   c o n s u m o ,   p o r   f o r ç a   d o   § 5 º   a o   a r t .   2 8   d o   C ó d i g o   d e   D e f e s a   d o   C o n s u m i d o r   e ,   t a m b é m ,   e m   m a t é r i a   d e   d i r e i t o   a m b i e n t a l ,   p o r     f o r ç a   d o   a r t .   4 . º   d a   L e i   n . º   9 . 6 0 5 / 1 9 9 8 ,   b a s t a r i a m   o s   i n d í c i o s   d e   i n s o l v ê n c i a   p a r a   q u e   a   g r a v e   m e d i d a   s e   o p e r a s s e .   N a s   d e m a i s   s i t u a ç õ e s ,   s e r i a   a p l i c á v e l   a   t e o r i a   m a i o r ,   q u e   e x i g i r i a   a   c o n f i g u r a ç ã o   d o   e x e r c í c i o   a b u s i v o   d a   p e r s o n a l i d a d e   j u r í d i c a   c o m o   p r e s s u p o s t o   p a r a   a   d e s c o n s i d e r a ç ã o ,   n o s   t e r m o s   d o   a r t .   5 0   d o   C ó d i g o   C i v i l .   P e r c e b e -­‐ s e ,   n o   e n t a n t o ,   q u e   m e s m o   n a   a p l i c a ç ã o   d a   c h a m a d a   t e o r i a   m e n o r ,   a t u a l m e n t e   a   s e g u n d a   t u r m a   d o   S u p e r i o r   T r i b u n a l   d e   J u s t i ç a   d e s e n v o l v e   u m   c u i d a d o   m a i o r   n a   v e r i f i c a ç ã o   d o   e s t a d o   d e   i n s o l v ê n c i a   ( p a r a   a l é m   d a   m e r a   a v a l i a ç ã o   d o   c a p i t a l   s o c i a l   c o m p a r a d a   c o m   u m a   e x p e c t a t i v a   h i p o t é t i c a   d e   p a s s i v a ,   t a l   c o m o   n o   p r e c e d e n t e   a n t e s   c i t a d o ) .   C i t e -­‐ s e ,   n e s s e   s e n t i d o ,   a c ó r d ã o   d a   m e s m a   r e l a t o r a ,   M i n i s t r a   N a n c y   A n d r i g h i ,   e m   q u e   s e   e x i g e   u m a   m a i o r   d e m o n s t r a ç ã o   d o   o b s t á c u l o   a o   r e s s a r c i m e n t o   d o s   c o n s u m i d o r e s :   “(...)   Antes   do   novo   Código   Civil,   essa   teoria   encontrou   disciplina   nas   leis   trabalhistas,   no   Código   de   Defesa   do   Consumidor,   na   Lei   n.   8.884⁄94   e   na   Lei   n.   9.605⁄98,   diplomas   que,   mais   amplos,   deram   azo   a   duas   teorias,   uma   chamada   “teoria   maior”,   que   adota   o   pressuposto   entalhado   no   Código   Civil,   e   a   outra   denominada   “teoria   menor”,   segundo   a   qual   a   mera   insuficiência   patrimonial   é   bastante   para   a   aplicação   da   teoria   da   despersonalização.Todavia,  não  creio  que  essa  “teoria  menor”  encontre  fundamento  em  nosso  direito.   A  doutrina  do  Disregard  of  legal  entity  nasceu,  e  ainda  vige,  com  o  intuito  de  afastar  as  limitações  que  a   personificação  da  sociedade  jurídica  impõe  quanto  ao  alcance  dos  bens  dos  sócios  e⁄ou  administradores   que   utilizam-­‐na   em   desconformidade   com   o   ordenamento   jurídico   e   mediante   fraude,   vindo   a   enriquecerem  em  detrimento  da  sociedade.  Portanto,  o  elemento  abuso  de  direito  pressupõe  e  informa   o  instituto  do  disregard  doctrine.  Sendo  a  separação  patrimonial  dos  bens  empresariais  e  dos  sócios  o   fim   da   personalização   da   pessoa   jurídica,   na   hipótese   de   se   pretender   superar   essa   separação,   para   atingir  os  bens  particulares  dos  sócios  que  agiram  com  abuso  de  direito,  haverá  de  se  desconsiderar  a   personalização,  retirando  a  sociedade  da  relação  obrigacional,  porquanto,  se  ela  permanecer,  estar-­‐se-­‐á   considerando-­‐a,   e   não   o   contrário.     Assim,   na   hipótese   em   que   ambos   –   sócios   e   sociedades   –   respondam   pela   obrigação,   haverá   a   figura   da   responsabilidade   solidária   ou   subsidiária,   conforme   o  

caso,   o   que   não   se   confunde   com   o   disregard   doctrine,   embora   cada   qual   seja   um   modo   de   responsabilização.     Em   direito   ambiental,   a   despersonalização   da   pessoa   jurídica   está   prevista   no   art.   4º   da  Lei  n.  9.605⁄98:  “Art.  4º.  Poderá  ser  desconsiderada  a  pessoa  jurídica  sempre  que  sua  personalidade   for   obstáculo   ao   ressarcimento   de   prejuízos   causados   à   qualidade   do   meio   ambiente.”     No   caso   dos   autos,  não  restou  caracterizado  o  abuso  da  personalização  societária  em  relação  à  poluição  perpetrada   no   meio   ambiente.   Houve   sim,   um   grande   descaso   com   o   patrimônio   público.   A   norma   legal   acima   citada  é  bastante  clara  ao  estabelecer  que  a  despersonalização  tem  lugar  quando  a  personalização  da   pessoa  jurídica  constituir  obstáculo  ao  ressarcimento  dos  prejuízos  ambientais.  Assim,  em  que  pese  meu   entendimento   de   que   tal   dispositivo   tem   de   ser   interpretado   em   consonância   com   os   princípios   informadores   da   teoria   da   desconsideração,   in   casu,   sequer   foi   aventada   a   hipótese   da   existência   de   obstáculos   à   reparação   buscada.   Ao   contrário,   as   informações   trazidas   pelas   mineradoras,   em   suas   peças  recursais,  dão  conta  de  que  os  trabalhos  de  recuperação  já  foram  iniciados”  (RECURSO  ESPECIAL   Nº   876.974   –   SP.   Ministra   Nancy   Andrighi.   Julgado   em   09.08.2007).   Registre-­‐se   que   há   acordão   da   segunda  turma,  de  relatoria  do  Ministro  João  Otávio  de  Noronha,  que  inclusive  afasta  expressamente  a   aplicação  da  chamada  teoria  menor:  “(...)  não  creio  que  essa  ‘teoria  menor’  encontre  fundamento  em   nosso  direito.  A  doutrina  do  Disregard  of  legal  entity  nasceu,  e  ainda  vige,  com  o  intuito  de  afastar  as   imitações  que  a  personificação  da  sociedade  jurídica  impõe  quando  ao  alcance  dos  bens  dos  sócios  e/ou   administradores  que  utilizam-­‐na  em  desconformidade  com  o  ordenamento  jurídico  e  mediante  fraude,   vindo   a   enriquecerem   em   detrimento   da   sociedade.   Portanto,   o   elemento   abuso   de   direito   pressupõe   e   informa   o   institto   da   disregard   doctrine   (RECURSO   ESPECIAL   N.º   647.493-­‐SC.   Relator   Ministro   João   Otávio   de   Noronha.   DJ   22.10.2007,   sublinhado   no   original).   A   preocupação   com   uma   excessiva   abrangência   na   utilização   da   desconsideração   da   personalidade   jurídica   é   expressa,   por   exemplo,   em   voto   vista   do   Ministro   Aldir   Passarinho   Júnior,   em   que   afirma:   “O   importante,   ao   meu   ver,   é   não   se   banalizar   o   instituto   do   ‘disregard’,   aplicando-­‐o   a   qualquer   caso.   Este   excesso   a   4ª   Turma   tem,   reiteradamente,   podado   (STJ.   Recurso   Especial   n.º   1.180.714-­‐RJ.   Rel.   Ministro   Luis   Felipe   Salomão.   DJE.   06/05/2011).  O  cuidado  para  se  evitar  uma  banalização  do  intituto,  ao  meu  ver,  decorre  e  justifica-­‐se  a   partir   de   julgados   anteriores   do   próprio   Superior   Tribunal   de   Justiça   e   dos   demais   Tribunais,   e   atualmente   é   reiterado   em   praticamente   todas   as   decisões   do   STJ.   Cite-­‐se,   ainda,   nesse   mesmo   sentido:(...)   para   a   desconsideração   da   personalidade   jurídica   não   basta   a   existência   de   um   dano   provocado   pela   sociedade   ou   pelo   sócio   ou   de   uma   dívida   por   qualquer   deles   assumida.   A   pessoa   jurídica  tem  existência  própria,  distinta  das  pessoas  físicas  que  a  compõem,  e  tem,  imanente,  o  princípio   da  autonomia  patrimonial,  de  sorte  a,  via  de  regra,  não  permitir  a  confusão  entre  seus  bens  e  aqueles   de  seus  sócios.  A  excepcional  penetração  no  âmago  da  pessoa  jurídica,  com  o  levantamento  do  manto   que  protege  essa  independência  patrimonial,  exige  a  presença  do  pressuposto  específico  do  abuso  da   personalidade   jurídica,   com   a   finalidade   de   lesão   a   direito   de   terceiro,   infração   da   lei   ou   descumprimento   de   contrato.   Em   outras   palavras,   há   de   se   ter   presente   a   efetiva   manipulação   da   autonomia   patrimonial   da   sociedade   em   prol   de   terceiros.   Nesse   contexto,   o   não   recebimento,   pelo   credor,  de  seu  crédito  frente  à  sociedade,  em  decorrência  da  insuficiência  de  patrimônio  social,  não  é   requisito   bastante   para   autorizar   a   desconsideração   da   personalidade   jurídica   e   conseqüente   avanço   sobre   o   patrimônio   particular   dos   sócios.   Estando   o   capital   social   integralizado,   estes   não   respondem   pelas   dívidas   sociais,   salvo   nas   situações   em   que   ficar   caracterizada   a   administração   irregular.   A   falta   de   bens  da  empresa,  necessários  à  satisfação  das  dívidas  contraídas  pela  sociedade,  consiste,  a  rigor,  em   pressuposto  para  a  decretação  da  falência  e  não  para  a  desconsideração  da  personalidade  jurídica”  (STJ.   RECURSO   ESPECIAL   Nº   787.457   -­‐   PR.   Relatora.   Min.   Eliana   Calmon.   j.   14/08/2007).   Ainda   a   esse   respeito:   “(...)   A   possibilidade   de   ignorar   a   autonomia   patrimonial   da   empresa   e   responsabilizar   diretamente   o   sócio   por   obrigação   que   cabia   à   sociedade,   torna   imprescindível,   no   caso   concreto,   a   análise   dos   vícios   no   uso   da   pessoa   jurídica   por   se   tratar   de   medida   que   excepciona   a   regra   de   autonomia   da   personalidade   jurídica,   e   como   tal,   deve   ter   sua   aplicação   devidamente   justificada,   pois   atinge  direito  de  terceiro  que  não  fez  parte  da  relação  processual  original  (STJ.  Recurso  em  Mandado  de   segurança   n.º   25.251.   Rel.   Ministro   Luis   Felipe   Salomão.   DJe   03/05/2010).   Os   acórdãos   aqui   apresentados  foram  levantados  e  discutidos  em  grupo  de  estudos  formados  pelos  estudantes  do  curso   de  graduação  Carolina  Raboni  e  Ricardo  Busana  Galvão  Bueno  e,  também,  pelo  mestrando  Rafael  Santos   Pinto  e  o  recém  mestre  João  Paulo  Capelotti,  todos  da  Universidade  Federal  do  Paraná.    

E não é só isso. É certo que, em muitas vezes, não obstante se utilizar o termo desconsideração da personalidade jurídica, sob um olhar crítico, tal medida efetivamente não se verifica. A autêntica desconsideração da pessoa jurídica pressupõe uma limitação da eficácia típica da personificação, que corresponde à composição de um sujeito de direito autônomo, que titulariza uma esfera jurídica separada e um patrimônio distinto daqueles sócios, acionistas, fundadores ou associados que lhe constituíram. Não é incomum perceber que em situações de responsabilidade solidária entre o sócio e a sociedade ou, ainda, em casos de responsabilidade do administrador por atos praticados pela companhia, a despeito da pessoa jurídica não ser efetivamente desconsiderada, tal teoria constantemente é invocada (ainda que não se verifique uma limitação da eficácia típica da personificação). Qualquer extensão eficacial de situações jurídicas passivas para além da pessoa jurídica costuma ser fundamentada na teoria de sua desconsideração, mesmo que a consequência jurídica não seja fruto da limitação da eficácia jurídica típica da personificação. As situações são completamente distintas e deveriam ser tratadas de maneiras diferentes. A responsabilidade pessoal do administrador, por exemplo, se dá por uma imputação direta de um dever a alguém diverso da pessoa jurídica que, muitas vezes, não compõe o quadro de sócios. Não se desconsidera, não se limita, não se altera a eficácia da personificação em nada. Apenas e tão somente atribui-se a alguém diverso da pessoa jurídica a responsabilidade de atos por esse alguém na qualidade de administrador da pessoa jurídica28. 28

 Em  acórdão  relatado  pelo  Ministro  Luis  Felipe  Salomão,  fixa-­‐se  a  distinção  entre  a  desconsideração  da   personalidade  jurídica  e  a  responsabilidade  do  administrador,  tantas  vezes  cambulhada  pela  legislação   (como,   p.ex.,   no   art.   50   do   Código   Civil),   com   repercussão   na   jurisprudência:   “(...)   não   há   como   confundir   a   ação   de   responsabilidade   dos   sócios   e   administradores   da   sociedade   falida   (art.   6.º   do   Decreto-­‐lei   n.º   7.661/45   e   art.   82   da   Lei   n.º   11.101/05),   com   a   desconsideração   da   personalidade   jurídica   da   empresa.   A   responsabilização   dos   sócios   ocorre   quando   estes,   por   ato   próprio,   praticam   a  

O Código Civil de 2002 encaminhou essa grave indistinção no art. 50, que trata das situações de desconsideração da pessoa jurídica29. O anteprojeto de novo código comercial parece seguir passos ainda mais equivocados, ao atribuir uma responsabilidade especial ao sócio controlador pelas obrigações trabalhistas independentemente de qualquer desvio funcional das sociedades30. Tal postura, obviamente, dificulta e, nalguma medida, vulgariza a teoria31. Concluímos que a proliferação legislativa em tema de desconsideração da personalidade jurídica acabou por agravar a crise de função, ao se sustentar no mesmo normativismo outrora denunciado por Lamartine Corrêa. Por vias tortuosas, isso encaminha, no tempo presente, um retorno do problema ao Poder Judiciário para que se avalie e se interprete as situações concretas da vida social em que se sucede um descompasso funcional apto a justificar a gravíssima medida da desconsideração.

abusividade   lesiva   à   sociedade   (ultra   vires,   por   exemplo),   ao   passo   que   na   desconsideração   da   personalidade  jurídica  é  a  pessoa  moral  que  tem  seu  uso  desvirtuado,  por  ato  dela,  tudo  em  benefício   dos  sócios  e  administradores.  Ou  seja,  na  primeira,  não  há  um  sujeito  oculto,  ao  contrário,  é  plenamente   identificável  e  evidente,  e  sua  ação  infringe  seus  próprios  deveres  de  sócio/administrador,  ao  passo  que   na  segunda,  supera-­‐se  a  personalidade  jurídica  sob  cujo  manto  se  escondia  a  pessoa  oculta,  exatamente   para   evidenciá-­‐la   como   verdadeira   beneficiária   dos   atos   fraudulentos”   (STJ.   RECURSO   ESPECIAL   N.º   1.180.714-­‐RJ.  Min.  Luis  Felipe  Salomão.  DJE:  06/05/2011).       29  “A r t .   5 0 .   E m   c a s o   d e   a b u s o   d a   p e r s o n a l i d a d e   j u r í d i c a ,   c a r a c t e r i z a d o   p e l o   d e s v i o   d e   f i n a l i d a d e ,   o u   p e l a   c o n f u s ã o   p a t r i m o n i a l ,   p o d e   o   j u i z   d e c i d i r ,   a   r e q u e r i m e n t o   d a   p a r t e ,   o u   d o   M i n i s t é r i o   P ú b l i c o   q u a n d o   l h e   c o u b e r   i n t e r v i r   n o   p r o c e s s o ,   q u e   o s   e f e i t o s   d e   c e r t a s   e   d e t e r m i n a d a s   r e l a ç õ e s   d e   o b r i g a ç õ e s   s e j a m   e s t e n d i d o s   a o s   b e n s   p a r t i c u l a r e s   d o s   a d m i n i s t r a d o r e s   o u   s ó c i o s   d a   p e s s o a   j u r í d i c a ” .     30   “Art.   184.   Sem   prejuízo   do   disposto   no   artigo   antecedente,   o   acionista   controlador   responde   por   obrigação   trabalhista   da   sociedade   anônima   até   o   limite   da   totalidade   dos   dividendos,   juros   sobre   o   capital  e  demais  participações  nos  resultados  sociais,  que  dela  tiver  recebido  desde  o  exercício  em  que   teve  início  o  contrato  de  trabalho  firmado  entre  a  sociedade  anônima  e  o  credor”  (COELHO,  Fabio  Ulhoa.   O  futuro  do  direito  comercial.  São  Paulo  :  Saraiva,  2011,  p.47)   31  Desenvolvemos  o  assunto  noutra  oportunidade,  cf.  LEONARDO,  Rodrigo  Xavier.  A  pessoa  jurídica  no   direito  privado  do  século  XXI.  In:  TEIXEIRA,  Ana  Carolina  Brochado;  RIBEIRO,  Gustavo  Pereira  Leite  (org.).   Manual  de  teoria  geral  do  Direito  Civil.  1.ed.  Belo  Horizonte  :  Del  Rey,  2011,  p.385.  Uma  interessante   leitura  crítica  da  banalização  da  desconsideração  da  pessoa  jurídica  é  apresentada  por  NUNES,  Márcio   Tadeu   Guimarães.   Desconstruindo   a   desconsideração   da   personalidade   jurídica.   São   Paulo   :   Quartier   Latin,  2007.  

VI. Da crise do reconhecimento à perda da centralidade. A crise de reconhecimento apontada por Lamartine Corrêa, em considerável medida, indicava uma inconguência estrutural entre a opção do Código Civil de 1916, em estabelecer um número fechado de entidades que seriam consideradas pessoas jurídicas de direito privado, comparada à realidade social, na qual inúmeras outras entidades atuariam tal como se pessoas jurídicas fossem. Nesse particular, o Código Civil de 2002 não promoveu alterações substanciais, mantendo a questão sob os mesmos quadrantes. Pelo texto codificado, a pessoa jurídica continua a corresponder um restrito número fechado de entidades (art.44, CCB), que têm seu ato constitutivo levado ao registro adequado (art.45, CCB). Por um viés mais amplo, no entanto, o assunto se tornou muito mais complexo no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, permitindo que a crise de reconhecimento tomasse proporções muito diferentes daquelas anteriormente denunciadas. A personificação em situações nas quais os dados de realidade institucional mínimos não se mostram presentes talvez indique uma crise ainda maior, decorrente da excessiva ampliação do catálogo de pessoas jurídicas, assim consideradas apenas e tão somente pelo arbítrio e pela conveniência do legislador, sem qualquer correspondência ao que, em realidade, até então se considerava como tal. A adoção pelo direito brasileiro das chamadas empresas individuais de responsabilidade limitada, que se tornaram espécie de pessoa jurídica pela Lei n.º 12.441/2011, é um exemplo expressivo dessa transformação. A um só tempo, mantém-se a tipicidade fechada do elenco de pessoas jurídicas e amplia-se esse rol sem qualquer preocupação com uma efetiva correspondência de autonomia institucional na realidade social.

Por outro lado, outros centros autônomos que servem para a imputação de direitos e deveres são cotidianamente reconhecidos como aptos a desenvolver atividades juridicamente relevantes independentemente da personificação (pelo menos pela exigência de atos constitutivos escritos levados ao registro, nos termos do art. 45 do Código Civil). Isto assim se sucede, por exemplo, pela atribuição de competências para que organizações associativas participem da construção de soluções em espaços democráticos independentemente da personificação32. Com efeito, um olhar crítico sobre o ordenamento jurídico brasileiro pode demonstrar como a diretiva política de ampliação dos espaços democráticos adota como um dos seus principais pilares a abertura à participação de organizações associativas, sobretudo àquelas de caráter local. As hipóteses, ainda que meramente exemplificativas, são expressivas33.  

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  Em   tese   de   doutoramento,   defendemos   que   a   Constituição   Federal   atribuiu   competências   para   o   desenvolvimento   de   relevantes   atividades   por   organizações   associativas   independentemente   dessas   entidades   ostentarem   estatutos   escritos   e   registrados:   “referidas   organizações   –   pela   projeção   social   que   alcançam   e   não   pela   existência   de   estatutos   escritos   e   inscritos   –   constituem   núcleos   institucionalizados   para   o   exercício   de   direitos   coletivos   (...)   Partindo-­‐se   do   pressuposto   de   que,   no   presente  momento  histórico,  objetiva-­‐se  construir  uma  sociedade  pluralista,  não  parece  admissível  que   o  reconhecimento  das  associações  em  sentido  estrito  mantenha-­‐se  dependente  de  um  ato  registral  que,   em  última  análise,  é  de  competência  unificada  do  Estado.  Referido  raciocínio,  por  sua  circularidade,  faria   com   que   o   pluralismo   objetivado   fosse   fulminado   pelo   mesmo   Estado   que   lhe   projeta”.E,   naquela   oportunidade,   concluímos:   “De   que   adianta   atribuir   competências   para   as   associações   em   sentido   estrito,   visando   descentralizar   o   desenvolvimento   de   atividades   de   sensível   relevância   social,   se   o   reconhecimento   dessas   mesmas   associações   ficar   dependente   de   um   unificado   ato   estatal?”     (LEONARDO,  Rodrigo  Xavier.  As  associações  em  sentido  estrito.  Tese  de  doutorado  defendida  perante  o   Programa   de   Pós-­‐Graduação   da   Universidade   de   São   Paulo   –   USP.   Orientador:   Prof.   Dr.   Alcides   Tomasetti  Jr,  São  Paulo,  2006,  p.186).     33   O   art.   29,   incisos   XII   e   XIII   da   Constituição   Federal,   ao   tratar   da   organização   dos   Municípios  (com  original  posição  na  história  federativa  brasileira),  estabelece  a  cooperação  de  associações   para  o  planejamento  das  cidades.  No  item  pertinente  à  assistência  social,  o  art.  204  da  Constituição  Federal   determina  uma  política  de  descentralização  que,  expressamente,  menciona  a  possibilidade  de  participação   da   população   por   intermédio   de   organizações   representativas.   Os   artigos   231   e   232   da   Constituição   Federal  reconhecem  a  comunidade  dos  índios,   atribuindo   às   suas   organizações   legitimidade   para   ingressar   33 em   juízo   em   defesa   de   seus   direitos   e   interesses .   Mais   adiante,   no   art.   68   do   ADCT,   atribui-­‐se   aos   remanescentes   das   comunidades   dos   quilombos   a   propriedade   definitiva   das   terras   que   estejam   ocupando.  Há  um  traço  comum  em  todas  essas  hipóteses  normativas.  Todas  essas  normas  poderiam  ser   classificadas   como   normas   secundárias   de   competência,   adotando-­‐se,   aqui,   a   classificação   de   Herbert   Hart.   Nelas,   não   se   determinam   propriamente   condutas   que   devam   ser   praticadas   por   essas   associações,   encaminha-­‐se   a   atribuição   de   competências  para   o   desenvolvimento   dalgumas   atividades   nelas  descritas  (Sobre  o  assunto,  cf.  HART,  Herbert.  El  concepto  del  derecho.  Trad.  Genario  Carrió.  2.ed.  

Outro exemplo se dá com a crescente adoção dos chamados patrimônios de afetação, que se apresentam como outra via à separação patrimonial, talvez até mesmo em resposta à pessoa jurídica desconsiderada ante tantas hipóteses de sua desconsideração, tal como sustentamos no item precedente34. Constata-se, ainda, que determinadas organizações deliberadamente se afastam da personificação, segundo os requisitos traçados pelo direito objetivo, como estratégia de atuação35. E a crise de reconhecimento, observada por Lamartine Corrêa, foi em alguma medida invertida. Por outros meios, foram abertas portas para o desenvolvimento de atividades por entidades que não se submetem aos critérios para a atribuição da personalidade jurídica, diluindo a centralidade da personificação no ordenamento jurídico. Não mais existe correspondência entre a noção de sujeito de direito e o binômio pessoa humana e pessoa jurídica. Há inúmeros

México:   Nacional,   1980.   p.113-­‐117,   e   também   BOBBIO,   Norberto.   Studi   per   una   teoria   generale   del   diritto.  Torino:  Giappichelli,  1970.  p.180.       34   A   respeito   do   assunto,   permita-­‐se   citar   dissertação   de   mestrado,   defendida   perante   o   Programa   de   Pós-­‐Graduação   em   Direito   da   UFPR,   que   trata   do   assunto   com   ineditismo.   Cf.   (XAVIER,   Luciana   Pedroso.   As   teorias   do   patrimônio   e   o   patrimônio   de   afetação   na   incorporação   imobiliária.   Dissertação   de   mestrado   defendida   perante   o   Programa   de   Pós-­‐Graduação   da   Universidade   Federal   do   Paraná   –   UFPR.   Orientador:  Prof.  Dr.  Rodrigo  Xavier  Leonardo,  Curitiba,  2011,  p.97).     35   “(...)   naquilo   que   doutrinariamente   se   conheceu   por   crise   da   pessoa   jurídica,   sublinhe-­‐se   que   o   surgimento  de  diversas  organizações  que,  por  estratégia,   recusam-­‐se  submeter  ao  prévio  registro  para  obter   a   personificação   demonstra   uma   situação   inusitada:   a   pessoa   jurídica,   tal   como   concebida   tradicionalmente,   perdeu   sua   exclusividade   como   meio   para   a   conformação   de   núcleos   institucionalizados   para   o   desenvolvimento   de   atividades   coletivas.   Justamente   por   isto,   a   personificação   (pelo   menos   tal   como   concebida   e   retratada   no   Código   Civil)   não   detém   mais   exclusividade  na  conformação  dos  grupos  organizados  ainda  que,  doutrinariamente,  não  se  reconheça   isto.   As  estratégias  sociais  de  ação  coletiva,  deliberadamente,  muitas  vezes  são  feitas  à   margem  dos  critérios   tradicionais   de   personificação   das   organizações.   Não   obstante   isto,   tais   organizações   atuam   com   tal   intensidade  e  eficiência  social  que  se  torna  verdadeiramente  impossível  ignorar  a  sua  existência  jurídica.   Mais  que  isto.  Referida  postura  teórica  ignora  que  o  próprio  ordenamento  jurídico  confere  competências  a   essas   organizações   independente   de   estarem   previamente   registradas   ou   não”   (LEONARDO,   as   associações  em  sentido  estrito,  2006,  p.187).  

sujeitos de direito que titularizam situações jurídicas ativas e passivas que não são pessoas36. A pessoa jurídica, portanto, perdeu a sua centralidade e convive com diversos outros suportes para se alcançar o efeito da autonomia das esferas jurídicas e da separação patrimonial. Isto é sintoma de uma nova crise de reconhecimento, com contornos próprios ao século XXI. IV. A pessoa jurídica e os desafios para o futuro Das teorias analíticas colhe-se a crítica sobre as possibilidades de se encerrar no termo pessoa jurídica uma realidade única, imóvel e imutável no tempo e no espaço. Não se pode negar que as sucessivas e diferentes crises do instituto da pessoa jurídica transformaram-na severamente. Talvez como resultado de uma época de incertezas e imprecisões conceituais, a pessoa jurídica foi conceitualmente dilarecerada e parte de suas funções até mesmo foram transportadas para outros institutos. Nesse contexto, há diversos desafios. Tal como outros institutos de direito privado submetidos a transformações, é necessário um trabalho de reconstrução e de readequação à sociedade contemporânea, inclusive sopesando os riscos que os excessos da desconsideração da pessoa jurídica encaminharam. De outro vértice, a maior inserção do Brasil na economia internacional exige providências compatíveis na estruturação do direito privado. Já faz algum tempo que o direito privado europeu convive, por exemplo, com o desafio da comunicação cultural entre as figuras

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 LEONARDO,  Rodrigo  Xavier.  Sujeito  de  direito  e  capacidade:  contribuição  para  uma  revisão  da  teoria   geral   do   direito   civil   à   luz   do   pensamento   de   Marcos   Bernardes   de   Mello.   In:   DIDDIER   JR,   Freddie;   EHRHARDT   JR,   Marcos   (org).   Revisitando   a   teoria   do   fato   jurídico.   1.ed.   São   Paulo   :   Saraiva,   2010,   p.549-­‐570.    

personificadas do civil law e o trust, proveniente do direito angloamericano. O Brasil não pode escapar de semelhante desafio e, mais uma vez, as universidades públicas e, particularmente, a Universidade Federal do Paraná ostenta um papel relevante na reflexão e construção crítica desse futuro, alicerçada na tradição e no conhecimento dos seus mestres que se foram.

V. Referências bibliográficas

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