Da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada
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Da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada por Rodrigo Xavier Leonardo Professor adjunto de Direito Civil nos cursos de graduação e pós-gradação em Direito da UFPR Mestre e Doutor em Direito Civil pela USP
Originalmente publicado como LEONARDO, Rodrigo Xavier. O percurso e os percalços da teoria da pessoa jurídica na Universidade Federal do Paraná: da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada, a partir de J. Lamartine Corrêa de Oliveira. In: KROETZ, Maria Cândida (org). Direito civil: inventário teórico de um século. Curitiba : Kairós, 2012, p.75. I. Introdução O tema da pessoa jurídica sempre foi caro à Universidade Federal do Paraná. Foi no salão nobre da Faculdade de Direito que a inovadora tese da desconsideração da pessoa jurídica foi pioneiramente enfrentada em âmbito nacional1. Dessa mesma escola provém um dos poucos estudos a respeito da pessoa jurídica no direito romano2, além de diversas outras obras monográficas de prestígio e grande repercussão3. Nesse contexto maior, insere-se o epicentro da preocupação teórica do professor Lamartine Corrêa em sua carreia docente na Universidade Federal do Paraná, que teve início no ano de 1960 e se extinguiu precocemente em 1987, com o seu passamento. 1
Menciona-‐se, aqui, a conferência de Rubens Requião em que se encontra o primeiro registro de enfrentamento do tema em direito nacional. Cf. REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais. a.58, v.410, dez., 1969. 2 CARTAXO, Ernani Guarita. As pessoas jurídicas em suas origens romanas. Curitiba : Empreza Gráfica Paranaense, 1943. 3 Cite-‐se, apenas como exemplo, as seguintes obras monográficas: CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. Conceito de pessoa jurídica. Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná para concurso de livre docência de Direito Civil. Curitiba, 1962 (mimeo); CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo : Saraiva, 1979; JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
Foi por intermédio desse assunto que o docente inseriu na pesquisa de Direito Civil uma preocupação com o direito comparado, investigando com profundidade a experiência de outras nações em busca de soluções teóricas para o problema da pessoa jurídica e a crise por ele constatada em meados do século XX. E agora, diante do primeiro centenário da Universidade Federal do Paraná, num século recém inaugurado, a obra organizada pela civilista, Professora Doutora Maria Cândida de Araújo Kroetz, nos oportuniza revisitar o tema da pessoa jurídica, à luz do pensamento do professor Lamartine Corrêa, porém tomando como pano de fundo a sociedade brasileira contemporânea. O Brasil e o mundo mudaram bastante desde a publicação da grande obra de Lamartine Correa a respeito do tema, intitulada “a dupla crise da pessoa jurídica” (Saraiva, 1979). A Universidade Federal do Paraná e o Direito Civil na Faculdade de Direito também se transformaram. Eis a chance de, ao reverenciar as gerações de civilistas que se foram, refletir sobre o tempo presente e tentar abrir janelas que prenunciam o porvir. Para tanto, neste capítulo, abordaremos o tema da pessoa jurídica em três partes. Na primeira, apresentaremos o tema da pessoa jurídica na sua problemática teórica e no contexto de crise enfrentado pela obra de Lamartine Correa. Na sequencia, expomos a repercussão da desconsideração da pessoa jurídica e opinamos sobre os reflexos dessa operação no direito contemporâneo para, por fim, ao colocar o tema em prospectiva, alguns desafios para o futuro. II. A pessoa jurídica como problema teórico e a sua crise. A pessoa jurídica surge como problema teórico na modernidade. É nesse período, com lindes imprecisos, que se encontra o nascedouro da questão que novamente se põe em debate. O direito moderno se apresenta como o produto de um projeto individualista de sociedade. Diz-se individualista, porque fundamentado no indivíduo, destacado de sua realidade comunitária
para figurar como eixo em relações atomizadas entre iguais e perante o Estado4. Não é por outra razão que a chamada teoria geral do direito civil, cujas bases fundantes são lançadas nesse mesmo período, adota por sustentáculo as figuras do direito subjetivo e do sujeito de direito. Todo o direito seria concebido para a potencial titularidade de um abstrato e formal sujeito individual, atomizado, apartado dos demais5. Os chamados grupos intermediários, que de algum modo pudessem se colocar como entreposto entre o indivíduo e o Estado, mereceriam severo repúdio, vez que compreendidos como ameaças à liberdade individual. A esse respeito, imerso no contexto cultural que emergia com a modernidade, Rosseau escreveu: "se, quando o povo suficientemente informado delibera, não tivessem os cidadãos qualquer comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral e a deliberação seria sempre boa. Mas quando se estabelecem facções, associações parciais a expensas da grande vontade de cada uma dessas associações torna-se geral em relação a seus membros e particular em relação ao Estado: poder-se-á então dizer não haver mais tantos votantes quantos são os homens, mas somente tantas quantas são as associações. As diferenças tornam-se menos numerosas e dão um resultado menos geral. E, finalmente, quando uma dessas associações for tão grande que se sobreponha a todas as outras, não se terá mais como resultado uma soma das pequenas diferenças, mas uma diferença única – então, não há mais vontade geral, e a opinião que dela se assenhoreia não passa de uma opinião particular. Importa, pois, para alcançar o verdadeiro enunciado da
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HESPANHA, António Manuel. História das instituições: épocas medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982. p.210; HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica européia. Síntese de um milénio. Florianópolis: Fundação Boitex, 2005. p.101; GROSSI, Paolo. L'ordine giuridico medievale. 10.ed. Roma: Laterza, 2003. p.75 e seguintes. 5 ORESTANO, Riccardo. Il in diritto romano. Torino: Giappichelli, 1968. t.1. p. 17 e seguintes). Sobre o assunto, conferir também, GIERKE, Otto. Political theories of the middle age. Trad. Frederic William Maitland. Boston: Beacon Press, 1958. p.67 e seguintes; PEPPE, Leo (Org.). Persone giuridiche e storia del diritto. Torino: Giapichelli, 2004. p.89 e seguintes.
vontade geral, que não haja no Estado sociedade parcial e que cada cidadão só opine de acordo consigo mesmo"6. Nesse contexto, justificar agrupamentos humanos com uma personalidade própria, diversa daqueles que lhes deram vida, apresentava-se efetivamente como um problema. Lamartine Corrêa, ao investigar o assunto, percebeu que a principal resposta que em seu tempo procurava dar conta da questão era proveniente das chamadas correntes normativistas. Com esteio em Kelsen, Ferrara, e outros expoentes do direito privado7, justificava-se a pessoa jurídica como o produto de normas jurídicas emanadas exclusivamente pelo Estado. Tal solução, no entanto, quanto colocada à prova frente às relações sociais apresentava severas limitações. Diversas realidades sociais que funcionavam em sociedade com elevado grau de diferenciação de seus criadores, com práticas equivalentes àquelas levadas a cabo pelas pessoas jurídicas, não eram reconhecidas como pessoas. Por qual razão? Segundo Lamartine Correa pela única e exclusiva ausência de previsão normativa que conferisse tal sustentação. Dessa constatação, o autor extraiu a primeira crise da pessoa jurídica: a chamada crise de reconhecimento8. Se a personificação de coletividades é um produto exclusivo da norma jurídica, as inevitáveis lacunas normativas deixariam de considerar realidades sociais que ostentariam todas as características de entidades personificadas. Tais entidades reais, a margem de qualquer previsão normativa, atuariam na vida em sociedade, praticariam atos jurídicos, seriam partes em relações jurídicas num limbo normativo. O mesmo normativismo também conduziria à segunda crise da pessoa jurídica. Se a pessoa jurídica é um produto da norma 6
ROUSSEAU, Jean-‐Jacques. Do contrato social. Trad. Lourdes Santos Machado. 5.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p.47. (Coleção Os pensadores). 7 FERRARA, Francesco. Teoria delle persone giuridiche. 2.ed. riveduta. Napoli : Marghieri, 1923; KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4.ed. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado, 1976.. 8 CORRÊA DE OLIVEIRA, José Lamartine. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo : Saraiva, 1979. Tratamos da perspectiva teórica desse autor em outra oportunidade, cf. LEONARDO, Rodrigo Xavier. Revistando a dupla crise da pessoa jurídica. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo. Questões controvertidas: direito de empresa. v.8. São Paulo : Método, 2010, p.45.
jurídica, a sua criação e o seu desenvolvimento não dependeriam de um elevado nível de institucionalização, mediante diferenciação e autonomização daqueles que lhe constituíram. Bastaria uma adequação formal aos requisitos legais para o seu surgimento, ainda que no plano da realidade social verdadeiramente se mantivesse uma indistinção entre a entidade criada e o seu criador. Isso permitiria que mesmo diante da ausência duma realidade institucional efetiva, desde que observados os quadrantes das formas descritas em Lei, pudessem ser constituídas pessoas jurídicas para a prática de atos ilícitos (aqui tomado o termo em sentido amplíssimo). Nesses casos, por intermédio da separação patrimonial, a pessoa jurídica serviria como um anteparo que impediria a responsabilização daqueles que lhe criaram, como mera forma, para fruir economicamente desses atos ilícitos. Aí se encontraria a segunda crise. A atribuição da personalidade a entidades independentemente de uma realidade institucional que lhes desse suporte, a partir de uma concepção formalista de que a Lei seria a fonte constitutiva da personalidade, permitia que essa forma fosse utilizada para fins contrários ao ordenamento jurídico. Além de diagnosticar a dupla crise da pessoa jurídica, Lamartine Corrêa propõe um remédio: uma revisão teórica do instituto da pessoa jurídica, do normativismo à uma concepção ontológicainstitucionalista9. A concepção ontológica-institucionalista reconheceria um substrato social, um suporte ôntico à pessoa jurídica, que justificaria o seu reconhecimento como um ser, ainda que diverso do ser humano. O ser humano seria de forma substancial, ou seja, um ens cuja existência independeria de fundamentos externos, extrínsecos a ele mesmo. A pessoa jurídica também seria um ser, porém de forma acidental, na exata medida em que sua existência seria dependente dos seres humanos que lhe dão sustentação.
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Grifos nossos, CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. Conceito de pessoa jurídica, p.164.
Este substrato ontológico surgiria a partir de um processo de institucionalização, mediante um elevado nível de organização e expressão autônoma da entidade personificada em relação aos seres humanos que lhe deram sustentação. Daí, em linhas gerais, a concepção ontológica-institucionalista defendida pelo autor. Nesses quadrantes teóricos, a Lei não criaria a pessoa jurídica. O ordenamento jurídico, conforme um viés mais rente ou menos rente às liberdades democráticas, reconheceria tais formações sociais. Por intermédio dessa compreensão teórica, seria possível superar a primeira crise, vez que as entidades que, na realidade social, ostentassem um substrato ontológico institucional, deveriam ser consideradas pessoas jurídicas. Se o substrato ontológico institucional fosse dirigido para objetivos contrários ao ordenamento jurídico, alguns efeitos da personalidade jurídica, em especial a separação patrimonial, poderiam ser afastados pela chamada desconsideração da personalidade jurídica, possibilitando também uma superação da segunda crise. Essa tese que inovou o estudo da pessoa jurídica foi elaborada em um contexto particular multifacetado de seu autor. Sob a perspectiva filosófica, José Lamartine Correa de Oliveira firmava uma postura de crítica ao normativismo e, em especial, ao positivismo jurídico de viés kelseniano. Ainda nessa mesma seara, o autor buscou fundamento na filosofia tomista e no pensamento institucionalista francês10, sobretudo a partir das obras de Maurice Hauriou11, George Renard12
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Para um panorama geral da escola institucionalista francesa, conferir, dentre outros, GRESSAYE, Jean Brèthe de la. The sociological theory of the institution and french juristic thought. In: BRODERIK, Albert. The french institucionalists: Maurice Hariou, Georges Renard, Joseph T. Delos. trad. Mary Wlling. Massachusetts : Harvard University Press, 1970, p.15 et seq. 11 Para Hariou: “una istituzione è una idea di opera o di intrapresa, che si realizza e dura giuridicamente in un ambiente sociale; per la realizzazione di tale idea, si organizza un potere che la fornisce di organi; d’altra parte, tra i membri del grupo sociale che è interessato alla realizzazione dell’idea si attuano manifestazioni comunitarie, dirette dagli organi del potere regolate da procedure” (HARIOU, Maurice. Teoria dell’istituzione e della fondazione. Milano : Giuffrè, 1967, p.12). 12 RENARD, Georges. Les degrés de l’existence institutionnelle. In: La théorie de l’institution: essai d’ontologie juridique. Paris : Sirey, 1930, p.225.
e Delos13, identificando-se, também, com as correntes filosóficas jusnaturalistas católicas, mormente com a doutrina social da igreja. Sob essa lente filosófica é que Lamartine Corrêa extrai de Santo Tomás de Aquino a diferença entre os seres de forma substancial e o seres de forma acidental para, por intermédio de um raciocínio de analogia por atribuição, reconhecer a personalidade às entidades de formação social sem colocá-las no mesmo patamar dos seres humano. Pessoa, em sentido ético, seria apenas o ser humano. Apenas ao ser humano seria reconhecida a dignidade. Às pessoas jurídicas, como seres de forma acidental, seria atribuída a personalidade por analogia ao ser humano14. Segundo Lamartine Corrêa, a pessoa jurídica seria uma “realidade análoga à pessoa humana, porque idêntica em inúmeros aspectos e distinta no mais importante: a substancialidade, que esta possui e aquela não. É pessoa, portanto. Mas não no sentido pleno da palavra e sim por analogia”15. Em coautoria com o Professor Francisco Muniz, esclarece-se que a pessoa humana seria mais que uma realidade ontológica. Seria uma realidade axiológica, vez que “ser e valor estão intimamente ligados, em síntese indissolúvel, eis que o valor está, no caso, inserido no ser. O homem vale, tem a excepcional e primacial dignidade de que estamos a falar, porque é”.16 Das correntes institucionalistas francesas, Lamartine Corrêa extrai uma epistemologia indutiva17, em que os fenômenos sociais são observados como base para as conclusões. A personalidade de determinadas organizações surgiria na realidade social e, por vezes, 13
DELOS, J,-‐T. La théorie de l’Institution. La solution réaliste du problème de la personnalitè morale et le droit à fondement objectif. Archives de philosophie du droit et de sociologie juridique. n.º 1-‐2, Cahier double, Recueil Sirey, 1931, p.99. 14 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade. São Paulo : Revista dos Tribunais. 15 CORRÊA DE OLIVEIRA, J.Lamartine. Conceito de pessoa jurídica, p.165. A respeito da substancialidade da pessoa humana e de sua projeção em uma reconstrução da noção de subjetividade no direito, cf. GEDIEL, José Antônio Peres. Os transplantes de órgãos e a invenção moderna do corpo. Curitiba : Moinho do Verbo, 2000, p.46 e seguintes. 16 Grifos no original, CORRÊA DE OLIVEIRA, José Lamartine; MUNIZ, Francisco José Ferreira. O Estado de direito e os direitos da personalidade. Revista dos tribunais. a.69, v.532, fev. de 1980, p.16. 17 Sobre a perspectiva metodológica no institucionalismo francês, cf. ENPC LATTS, Gilles Jeannot. Les associations, L’Etat et la théorie de l’institution de Maurice Hariou. Les annales de la recherche urbaine. n.º89, juin 2001, p.19.
alcançaria uma elevada institucionalização ao redor de uma idéia de atuação (l’idée d’ouvre) 18. Assim como na natureza seria possível verificar uma gradação entre os inúmeros seres vivos, partindo dos mais simples em comparação aos mais complexos, dentre as diversas instituições surgidas em sociedade, seria possível verificar algumas com um padrão tão elevado de organização e atuação em sociedade que passariam a existir com independência das pessoas humanas que lhe criaram. Na perspectiva da metodologia do direito, ainda, José Lamartine Corrêa de Oliveira investiu nos estudos de direito comparado. Sua pesquisa sobre a dupla crise da pessoa jurídica se tornou possível após a investigação do assunto em diversos sistemas, classificando as opções encontradas nos diversos ordenamentos jurídicos em minimalistas, maximalistas, monistas e dualistas. Nos ordenamentos jurídicos classificados como minimalistas bastaria um mínimo de correspondência analógica entre os agrupamentos sociais e o ser humano para se operar a personificação. O direito francês seria um exemplo paradigmático para o autor. Nos ordenamentos jurídicos maximalistas, por sua vez, seria exigido um máximo de analogia entre essas entidades e o ser humano para que se pudesse reconhecer a personalidade jurídica (como, v.g., no direito suiço). A partir dos modelos minimalistas ou maximilistas, esses mesmos ordenamentos jurídicos poderiam adotar posições monistas, quando a pessoa jurídica fosse o único mecanismo de autonomização perante as esferas jurídicas individuais, e posições dualistas, quando, ao lado da pessoa jurídica, outras figuras
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Registre-‐se, no entanto, que J. Lamartine Corrêa de Oliveira, a despeito de reconhecer a importância do pensamento de Maurice Hariou, tece críticas severas ao idealismo platônico desse autor, que identificava numa idéia de obra (l´idée d’ouvre) o elemento essencial para a constituição de uma instituição: “A noção que possui a respeito das ‘idéias’ é demasiadamente platônica e, o que há em tal concepção de platonismo, é inaceitável e grandememente responsável por boa parte das resitências opostas à aceitação de sua doutrina. Para êle, as idéias são objetivas desde sua origem. São encontradas por homens inspirados (...)” (CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. Conceito de pessoa jurídica, p.132).
permitissem essa autonomia, tal como ocorreria, no direito alemão, entre a pessoa jurídica e a Gesamthandgemeinschaft19. O direito brasileiro, à época da publicação da dupla crise da pessoa jurídica, seria situado como um sistema minimalista e monista, o que agravaria as possibilidades de cada uma das duas crises da pessoa jurídica. Na perspectiva política, por fim, nosso autor figurava como um dos expoentes do movimento de redemocratização do Brasil que, à época dos fatos, alcançava seu ápice para o início de uma transformação nacional. Seja como advogado, que exerceu a presidência da Seccional da OAB no Paraná, seja como docente que professou um ensino jurídico crítico e democrático, Lamartine Corrêa não capitulou20. Sua obra sinalizou a precedência de valores transpositivos sobre as normas jurídicas, materialmente orientado a uma inserção do homem em seu contexto histórico e social21. Esse compromisso com a ciência, com a política e, sobretudo, com o ser humano, ainda ecoa nos corredores da Santos Andrade. E para além dela. III. Da desconsideração da pessoa jurídica à pessoa jurídica desconsiderada (ou o avesso do avesso...) A tese da dupla crise da pessoa jurídica alcançou uma incomum projeção. Em direito nacional, trata-se de obra obrigatória 19
LEONARDO, OAB, p.52-‐53. Pode-‐se colher a opinião crítica do autor nos escritos CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. A função social do advogado e a crise do ensino jurídico. In: semana do advogado (7 a 11 de agostode 1972). Ordem dos advogados do Brasil – Seção do Paraná, 1972; CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine; MUNIZ, Francisco José Ferreira; APPEL, Emmanuel José. Cultura, ensino e universidade: contribuição da UFPR ao debate constitucional. Curitiba : UFPR, 1986. Cabe mencionar, ainda, o resgate histórico e emotivo de PASSOS, Edésio. O tempo da memória: Vieira Netto: o discurso proibido. Lamartine Corrêa: a véspera dos bárbaros. 21 CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. A véspera dos bárbaros. Discurso de paraninfo proferido em 8 de março de 1968 aos bacharelandos da turma “Des. Hugo Simas”. Centro Acadêmico Hugo Simas, 1968 (mimeo). CORRÊA DE OLIVEIRA, J. Lamartine. Lição de resistência. Discurso de paraninfo aos Bacharéis em Direito de 1965 da Universidade Federal do Paraná, turma Ministro Alvaro Ribeiro da Costa (mimeo). 20
em todos os estudos monográficos sobre o assunto. Além mar, o livro tornou-se uma referência constante entre autores europeus, sobretudo portugueses, mantendo-se atual, mesmo muitas décadas após a sua publicação22. Da década de 1970 aos dias de hoje, o tema da desconsideração da pessoa jurídica apresentou um grande desenvolvimento. Desde que abordado pela primeira vez no país mediante estudo também tributado à nossa escola, o assunto foi objeto de inúmeros estudos monográficos, decisões judiciais e, sobretudo, alterações legislativas. Em princípio, a desconsideração da personalidade jurídica seria uma ferramenta hermenêutica para determinadas situações em que se verificasse a crise de função, ou seja, o descompasso entre as finalidades admitidas pelo ordenamento jurídico para a personificação e a realidade social, subjacente ou sobrejacente, de uma específica e determinada pessoa jurídica. Se a crise de função era um dos frutos do normativismo, certamente não seria o mesmo normativismo a sua solução. A superação da separação patrimonial que compõe o conjunto eficacial da personificação exigiria um esforço de interpretação da realidade social que transborda as formas. O caminho tomado pelo direito brasileiro, no entanto, foi outro. O pensamento de Lamartine Corrêa – que é referência obrigatória do tema, como antes indicado –, foi muito mais acessado no diagnóstico da crise do que na proposição de soluções. O Brasil acabou optando por tratar da crise de função pelo mesmo normativismo que lhe deu causa.
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A partir da década de 1990, a começar pelo Código de Defesa Consumidor (Lei n.º 8.078/90), a desconsideração da
Dentre os autores portugueses, pode-‐se mencionar, apenas como exemplo, duas obras monográficas que dialogam intensamente com J. Lamartine Corrêa: CORDEIRO, António Menezes. O levantamento da personalidade colectiva no direito civil e comercial. Coimbra : Almedina, 2000, p.102, p.112; CORDEIRO, Pedro. A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais. Lisboa : AAFDL, 1989, p.21, p.54, p.57, p.89-‐90, dentre outras passagens.
personalidade jurídica foi transposta dos julgados ao direito objetivo. Cumpre observar que, nessa passagem da construção jurisprudencial ao direito objetivo, verifica-se uma relevante transformação: ao passo que a experiência jurisprudencial limitava a desconsideração da personalidade jurídica às situações de abuso ou descompasso funcional do instituto, o direito positivo nacional passou a admiti-la independentemente de qualquer desvio de função. Isto inicia no Código de Defesa do Consumidor, pela original distinção entre aquilo que se convencionou chamar de uma teoria maior e de uma teoria menor da desconsideração da pessoa jurídica. A teoria maior exigiria a verificação de pelo menos um dos requisitos eleitos pelo legislador para que se operasse a desconsideração, nos termos do caput do art. 28 da Lei n.º 8.078/90: “O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”. Sublinhe-se que o extenso rol de situações que ensejariam a grave medida expande-se por hipóteses nada uniformes. A enumeração do caput do art. 28 da Lei n.º 8.078/90 perpassa por situações objetivas (como, v.g, o excesso de poder, a infração da lei, o fato ou ato ilícito), por situações com elevada subjetividade (como, v.g., má administração) e, ainda, por outras que podem ser apenas consequências de vicissitudes da própria atuação em mercado (como, v.g., um estado de insolvência). A amplitude é evidente. Não fosse suficiente a enumeração no caput do art. 28 da Lei n.º 8.078/90, a chamada teoria menor da desconsideração da pessoa jurídica, que estaria presente no parágrafo quarto ao art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, permitiria a limitação da separação patrimonial quando a personalidade jurídica significasse, apenas e tão-somente, um óbice ao ressarcimento do consumidor: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua
personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. O mesmo texto normativo foi reproduzido em diversos outros diplomas legislativos. Isto ocorreu, por exemplo, no direito ambiental (art. 4.º da Lei n.º 9.605/98), na Lei que versa sobre a atividade de distribuição de combustível (§3º ao art. 18 da Lei n.º 9.847/1999) e, também, na legislação a respeito da indústria de petróleo (art. 23 do Decreto n.º 2.953/1999). Ao lado dessas regras, cite-se também como exemplos de leis que tratam da desconsideração da pessoa jurídica, a legislação antitruste (art. 18 da Lei n.º 8.884/1994 e art. 34 da Lei n.º 12.529/2011) e, também, o Código Civil Brasileiro (art. 50, CCB). No direito trabalho é comum a desconsideração da personalidade jurídica pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor por analogia e, também, pela imputação da relação de emprego à empresa e não à sociedade empresária personificada empregadora (mediante aplicação do art. 2.º da CLT, ainda que se distanciando da compreensão da empresa como atividade e não como sujeito de direito). No direito tributário, por sua vez, isto se dá pela amplitude conferida ao polo passivo da obrigação tributária (cite-se, nesse sentido, sem prejuízo de outros, os arts. 124 e 135 do Código Tributário Nacional). Por intermédio deste sumário levantamento legislativo, constata-se quase uma dezena de fundamentos normativos diferentes que costumam ser apontados pelos tribunais como fundamento para a desconsideração da pessoa jurídica. Cumpre observar, portanto, que em direito brasileiro não há uma teoria ou um regramento de desconsideração da pessoa jurídica. Há diversas teorias da desconsideração da pessoa jurídica, com pressupostos e requisitos igualmente diferentes, que podem ser encontrados em um emaranhado normativo desuniforme.
Sob um viés comparado, as inúmeras e diferentes regras jurídicas a respeito da desconsideração da pessoa jurídica no Brasil, ao que tudo indica, inserem o país em uma posição singular. Ao passo que a experiência em direito comparado mantém a excepcional limitação dos efeitos da personalidade jurídica como uma construção exclusivamente jurisprudencial, no Brasil, tal como antes demonstrado, ela passa a ser constantemente objeto de um disperso tratamento legislativo23. Diante desse quadro, pode-se sustentar que, no tempo contemporâneo, vivemos uma crise às avessas: o advento de uma crise da crise da pessoa jurídica na proliferação legislativa de hipóteses para a sua desconsideração. Nessa nova crise, desfaz-se a personificação pela aplicação de normas jurídicas independentemente da real atuação em sociedade da entidade, a despeito da conformidade ou desconformidade da real atuação em sociedade, dessas entidades, ao ordenamento jurídico. Tantas são as hipóteses de desconsideração da pessoa jurídica que, como antes sustentamos24, da teoria da desconsideração da pessoa jurídica chegamos à situação da pessoa jurídica desconsiderada em direito nacional. Eis o normativismo, outrora denunciado por Lamartine Corrêa, que reaparece com uma nova roupagem: para resolver a crise de função, pela pura e simples aplicação de normas, desconstrói-se a eficácia da personificação independentemente de uma eventual utilização desfuncional.
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A conclusão é alicerçada em estudo de direito comparado desenvolvido por VANDERKERCKHOVE, Karen. Piercing the corporate veil. Netherlands : Kluwer Law International, 2007, p.27 e seguintes. 24 LEONARDO, Rodrigo Xavier. A pessoa jurídica no direito privado do século XXI. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (org.). Manual de teoria geral do Direito Civil. 1.ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2011, p.385. Uma interessante leitura crítica da banalização da desconsideração da pessoa jurídica é apresentada por NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo : Quartier Latin, 2007 e NALIN, Paulo; VIANNA, Guilherme Borba. Personificação, responsabilidade patrimonial e a nova crise da pessoa jurídica e das sociedades empresárias. Questões controvertidas: direito de empresa. v.8. São Paulo : Método, 2010, p.123.
E nesses quadrantes, o tema da crise funcional da pessoa jurídica segue um tortuoso caminho do avesso, do avesso e do avesso. Permitam-me explicar. Num primeiro momento, o instituto da pessoa jurídica é utilizado para fins contrários ao ordenamento jurídico que lhe dá sustentação. Em seguida, formula-se a tese da desconsideração da pessoa jurídica para aplicação nos casos de fratura entre a real atuação das entidades e as finalidades admitidas pelo ordenamento jurídico. Desse segundo momento chega-se a um terceiro, quando da teoria passa-se ao direito positivo, com inúmeras hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica independentemente de utilização desfuncional, com repercussão na jurisprudência nacional. Atualmente, o direito brasileiro vive um quarto momento. A partir dos excessos que o direito positivo encaminhou a respeito da desconsideração da personalidade jurídica, verificamos um esforço em se limitar as hipóteses de desconsideração, mediante hermenêutica integrativa que insere requisitos para aplicação da desconsideração da pessoa jurídica que remontam ao descompasso funcional inicialmente denunciados pela doutrina. Isto pode ser percebido, por exemplo, pelos enunciados das Jornadas de Direito Civil do Superior Tribunal de Justiça25, por contundentes manifestações doutrinárias a respeito do assunto e, também, por um movimento da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça26, que se inicia pela adoção da chamada teoria 25
C i t e -‐ s e , n e s t e s e n t i d o , o s s e g u i n t e s e n u n c i a d o s : “ S ó s e a p l i c a a d e s c o n s i d e r a ç ã o d a p e r s o n a l i d a d e j u r í d i c a q u a n d o h o u v e r a p r á t i c a d e a t o i r r e g u l a r , e l i m i t a d a m e n t e , a o s a d m i n i s t r a d o r e s q u e n e l a h a j a m i n c o r r i d o ” ( E n u n c i a d o n . º 7 d a I J o r n a d a d e D i r e i t o C i v i l d o S T J ; “ N a s r e l a ç õ e s c i v i s , i n t e r p r e t a m -‐ s e r e s t r i t i v a m e n t e o s p a r â m e t r o s d e d e s c o n s i d e r a ç ã o d a p e r s o n a l i d a d e j u r í d i c a p r e v i s t o s n o C C 5 0 ( E n u n c i a d o n . º 1 4 6 d a I I I J o r n a d a d e D i r e i t o C i v i l d o S T J ) . 26 A mais expressiva adoção da chamada teoria menor da desconsideração da pessoa jurídica pelo Superior Tribunal de Justiça, com uma considerável expansão dos lindes do instituto, ocorreu em recurso especial destinado a julgar pedido indenizatório das vítimas de explosão do Shopping Center de Osasco. N a q u e l a o p o r t u n i d a d e , s o b o a r g u m e n t o d e q u e “ a l i q u i d a ç ã o v a i e n c o n t r a r v a l o r v u l t o s o . O c a p i t a l s o c i a l d a B -‐ 7 é d e R $ 3 . 1 0 0 . 0 0 0 , 0 0 ( t r ê s m i l h õ e s e c e m m i l r e a i s ) , p a r a o u t u b r o d e 1 9 9 5 ( . . . ) . O c a p i t a l s o c i a l d a A d m i n i s t r a d o r a O s a s c o P l a z a é d e R $ 1 0 . 0 0 0 , 0 0 ( d e z m i l r e a i s ( . . . ) E o v a l o r r e a l d a e m p r e s a s e m p r e e s t a r á n a d e p e n d ê n c i a d e s u a o p e r a ç ã o r e g u l a r ” , c o n c l u i u -‐ s e p e l o “ e s t a d o d e i n s o l v ê n c i a ” , j u s t i f i c a n d o a a p l i c a ç ã o d a t e o r i a m e n o r d a d e s c o n s i d e r a ç ã o d a p e s s o a j u r í d i c a .
menor da desconsideração da personalidade jurídica, fundamentada apenas em indícios hipotéticos de insolvência. Logo na sequência, no entanto, o mesmo Superior Tribunal de Justiça passou a construir critérios restritivos para a gravíssima medida, circunstanciados na efetiva verificação de um abuso do instituto, expressando preocupação com a sua banalização27. C o m i s s o , c o m p r e e n d e u -‐ s e q u e o § 5 . º d o a r t . 2 8 d o C ó d i g o d e D e f e s a d o C o n s u m i d o r t e r i a a p l i c a ç ã o i n d e p e n d e n t e d o c a p u t , r a z ã o p e l a q u a l , n a s r e l a ç õ e s j u r í d i c a s d e c o n s u m o , b a s t a r i a s e c o m p r e e n d e r a p e r s o n i f i c a ç ã o c o m o o b s t á c u l o p a r a o r e s s a r c i m e n t o ( v . g . , p e l a i n s o l v ê n c i a ) , p a r a q u e a m e d i d a d e d e s c o n s i d e r a ç ã o f o s s e o p e r a d a . N e s s e s e n t i d o , l ê -‐ s e n o a c ó r d ã o : “ A t e s e , o r a a c o l h i d a , d e q u e a t e o r i a m e n o r d a d e s c o n s t i t u i ç ã o a p l i c a -‐ s e à s r e l a ç õ e s d e c o n s u m o , e s t á c a l c a d a , c o m o d i t o , n a e x e g e s e a u t ô n o m a d o § 5 º d o a r t . 2 8 , d o C D C , i s t o é , a f a s t a -‐ s e , a q u i , a e x e g e s e q u e s u b o r d i n a a i n c i d ê n c i a d o § 5 º à d e m o n s t r a ç ã o d o s r e q u i s i t o s p r e v i s t o s n o c a p u t d o a r t . 2 8 d o C D C . E i s t o p o r q u e o c a p u t d o a r t . 2 8 d o C D C a c o l h e a t e o r i a m a i o r s u b j e t i v a d a d e s c o n s i d e r a ç ã o , e n q u a n t o q u e o § 5 º d o r e f e r i d o d i s p o s i t i v o a c o l h e a t e o r i a m e n o r d a d e s c o n s i d e r a ç ã o , e m e s p e c i a l s e c o n s i d e r a d o f o r a e x p r e s s ã o ‘ t a m b é m p o d e r á s e r d e s c o n s i d e r a d a ´ , o q u e r e p r e s e n t a , d e f o r m a i n e g á v e l , a a d o ç ã o d e p r e s s u p o s t o s a u t ô n o m o s à i n c i d ê n c i a d a d e s c o n s i d e r a ç ã o ” (R E C U R S O E S P E C I A L N º 2 7 9 . 2 7 3 – S P . R e l a t o r a p a r a o A c ó r d ã o , M i n . N a n c y A n d r i g h i , D J d e 2 9 . 0 3 . 2 0 0 4 ) . 27 A p a r t i r d o j u l g a d o c i t a d o n a n o t a d e r o d a p é a n t e r i o r , a t e r c e i r a t u r m a d o S u p e r i o r T r i b u n a l d e J u s t i ç a p a s s o u a a d o t a r d o i s c a m i n h o s n a a p l i c a ç ã o d a d e s c o n s i d e r a ç ã o d a p e s s o a j u r í d i c a . E m s e t r a t a n d o d e r e l a ç õ e s d e c o n s u m o , p o r f o r ç a d o § 5 º a o a r t . 2 8 d o C ó d i g o d e D e f e s a d o C o n s u m i d o r e , t a m b é m , e m m a t é r i a d e d i r e i t o a m b i e n t a l , p o r f o r ç a d o a r t . 4 . º d a L e i n . º 9 . 6 0 5 / 1 9 9 8 , b a s t a r i a m o s i n d í c i o s d e i n s o l v ê n c i a p a r a q u e a g r a v e m e d i d a s e o p e r a s s e . N a s d e m a i s s i t u a ç õ e s , s e r i a a p l i c á v e l a t e o r i a m a i o r , q u e e x i g i r i a a c o n f i g u r a ç ã o d o e x e r c í c i o a b u s i v o d a p e r s o n a l i d a d e j u r í d i c a c o m o p r e s s u p o s t o p a r a a d e s c o n s i d e r a ç ã o , n o s t e r m o s d o a r t . 5 0 d o C ó d i g o C i v i l . P e r c e b e -‐ s e , n o e n t a n t o , q u e m e s m o n a a p l i c a ç ã o d a c h a m a d a t e o r i a m e n o r , a t u a l m e n t e a s e g u n d a t u r m a d o S u p e r i o r T r i b u n a l d e J u s t i ç a d e s e n v o l v e u m c u i d a d o m a i o r n a v e r i f i c a ç ã o d o e s t a d o d e i n s o l v ê n c i a ( p a r a a l é m d a m e r a a v a l i a ç ã o d o c a p i t a l s o c i a l c o m p a r a d a c o m u m a e x p e c t a t i v a h i p o t é t i c a d e p a s s i v a , t a l c o m o n o p r e c e d e n t e a n t e s c i t a d o ) . C i t e -‐ s e , n e s s e s e n t i d o , a c ó r d ã o d a m e s m a r e l a t o r a , M i n i s t r a N a n c y A n d r i g h i , e m q u e s e e x i g e u m a m a i o r d e m o n s t r a ç ã o d o o b s t á c u l o a o r e s s a r c i m e n t o d o s c o n s u m i d o r e s : “(...) Antes do novo Código Civil, essa teoria encontrou disciplina nas leis trabalhistas, no Código de Defesa do Consumidor, na Lei n. 8.884⁄94 e na Lei n. 9.605⁄98, diplomas que, mais amplos, deram azo a duas teorias, uma chamada “teoria maior”, que adota o pressuposto entalhado no Código Civil, e a outra denominada “teoria menor”, segundo a qual a mera insuficiência patrimonial é bastante para a aplicação da teoria da despersonalização.Todavia, não creio que essa “teoria menor” encontre fundamento em nosso direito. A doutrina do Disregard of legal entity nasceu, e ainda vige, com o intuito de afastar as limitações que a personificação da sociedade jurídica impõe quanto ao alcance dos bens dos sócios e⁄ou administradores que utilizam-‐na em desconformidade com o ordenamento jurídico e mediante fraude, vindo a enriquecerem em detrimento da sociedade. Portanto, o elemento abuso de direito pressupõe e informa o instituto do disregard doctrine. Sendo a separação patrimonial dos bens empresariais e dos sócios o fim da personalização da pessoa jurídica, na hipótese de se pretender superar essa separação, para atingir os bens particulares dos sócios que agiram com abuso de direito, haverá de se desconsiderar a personalização, retirando a sociedade da relação obrigacional, porquanto, se ela permanecer, estar-‐se-‐á considerando-‐a, e não o contrário. Assim, na hipótese em que ambos – sócios e sociedades – respondam pela obrigação, haverá a figura da responsabilidade solidária ou subsidiária, conforme o
caso, o que não se confunde com o disregard doctrine, embora cada qual seja um modo de responsabilização. Em direito ambiental, a despersonalização da pessoa jurídica está prevista no art. 4º da Lei n. 9.605⁄98: “Art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.” No caso dos autos, não restou caracterizado o abuso da personalização societária em relação à poluição perpetrada no meio ambiente. Houve sim, um grande descaso com o patrimônio público. A norma legal acima citada é bastante clara ao estabelecer que a despersonalização tem lugar quando a personalização da pessoa jurídica constituir obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos ambientais. Assim, em que pese meu entendimento de que tal dispositivo tem de ser interpretado em consonância com os princípios informadores da teoria da desconsideração, in casu, sequer foi aventada a hipótese da existência de obstáculos à reparação buscada. Ao contrário, as informações trazidas pelas mineradoras, em suas peças recursais, dão conta de que os trabalhos de recuperação já foram iniciados” (RECURSO ESPECIAL Nº 876.974 – SP. Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 09.08.2007). Registre-‐se que há acordão da segunda turma, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, que inclusive afasta expressamente a aplicação da chamada teoria menor: “(...) não creio que essa ‘teoria menor’ encontre fundamento em nosso direito. A doutrina do Disregard of legal entity nasceu, e ainda vige, com o intuito de afastar as imitações que a personificação da sociedade jurídica impõe quando ao alcance dos bens dos sócios e/ou administradores que utilizam-‐na em desconformidade com o ordenamento jurídico e mediante fraude, vindo a enriquecerem em detrimento da sociedade. Portanto, o elemento abuso de direito pressupõe e informa o institto da disregard doctrine (RECURSO ESPECIAL N.º 647.493-‐SC. Relator Ministro João Otávio de Noronha. DJ 22.10.2007, sublinhado no original). A preocupação com uma excessiva abrangência na utilização da desconsideração da personalidade jurídica é expressa, por exemplo, em voto vista do Ministro Aldir Passarinho Júnior, em que afirma: “O importante, ao meu ver, é não se banalizar o instituto do ‘disregard’, aplicando-‐o a qualquer caso. Este excesso a 4ª Turma tem, reiteradamente, podado (STJ. Recurso Especial n.º 1.180.714-‐RJ. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. DJE. 06/05/2011). O cuidado para se evitar uma banalização do intituto, ao meu ver, decorre e justifica-‐se a partir de julgados anteriores do próprio Superior Tribunal de Justiça e dos demais Tribunais, e atualmente é reiterado em praticamente todas as decisões do STJ. Cite-‐se, ainda, nesse mesmo sentido:(...) para a desconsideração da personalidade jurídica não basta a existência de um dano provocado pela sociedade ou pelo sócio ou de uma dívida por qualquer deles assumida. A pessoa jurídica tem existência própria, distinta das pessoas físicas que a compõem, e tem, imanente, o princípio da autonomia patrimonial, de sorte a, via de regra, não permitir a confusão entre seus bens e aqueles de seus sócios. A excepcional penetração no âmago da pessoa jurídica, com o levantamento do manto que protege essa independência patrimonial, exige a presença do pressuposto específico do abuso da personalidade jurídica, com a finalidade de lesão a direito de terceiro, infração da lei ou descumprimento de contrato. Em outras palavras, há de se ter presente a efetiva manipulação da autonomia patrimonial da sociedade em prol de terceiros. Nesse contexto, o não recebimento, pelo credor, de seu crédito frente à sociedade, em decorrência da insuficiência de patrimônio social, não é requisito bastante para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica e conseqüente avanço sobre o patrimônio particular dos sócios. Estando o capital social integralizado, estes não respondem pelas dívidas sociais, salvo nas situações em que ficar caracterizada a administração irregular. A falta de bens da empresa, necessários à satisfação das dívidas contraídas pela sociedade, consiste, a rigor, em pressuposto para a decretação da falência e não para a desconsideração da personalidade jurídica” (STJ. RECURSO ESPECIAL Nº 787.457 -‐ PR. Relatora. Min. Eliana Calmon. j. 14/08/2007). Ainda a esse respeito: “(...) A possibilidade de ignorar a autonomia patrimonial da empresa e responsabilizar diretamente o sócio por obrigação que cabia à sociedade, torna imprescindível, no caso concreto, a análise dos vícios no uso da pessoa jurídica por se tratar de medida que excepciona a regra de autonomia da personalidade jurídica, e como tal, deve ter sua aplicação devidamente justificada, pois atinge direito de terceiro que não fez parte da relação processual original (STJ. Recurso em Mandado de segurança n.º 25.251. Rel. Ministro Luis Felipe Salomão. DJe 03/05/2010). Os acórdãos aqui apresentados foram levantados e discutidos em grupo de estudos formados pelos estudantes do curso de graduação Carolina Raboni e Ricardo Busana Galvão Bueno e, também, pelo mestrando Rafael Santos Pinto e o recém mestre João Paulo Capelotti, todos da Universidade Federal do Paraná.
E não é só isso. É certo que, em muitas vezes, não obstante se utilizar o termo desconsideração da personalidade jurídica, sob um olhar crítico, tal medida efetivamente não se verifica. A autêntica desconsideração da pessoa jurídica pressupõe uma limitação da eficácia típica da personificação, que corresponde à composição de um sujeito de direito autônomo, que titulariza uma esfera jurídica separada e um patrimônio distinto daqueles sócios, acionistas, fundadores ou associados que lhe constituíram. Não é incomum perceber que em situações de responsabilidade solidária entre o sócio e a sociedade ou, ainda, em casos de responsabilidade do administrador por atos praticados pela companhia, a despeito da pessoa jurídica não ser efetivamente desconsiderada, tal teoria constantemente é invocada (ainda que não se verifique uma limitação da eficácia típica da personificação). Qualquer extensão eficacial de situações jurídicas passivas para além da pessoa jurídica costuma ser fundamentada na teoria de sua desconsideração, mesmo que a consequência jurídica não seja fruto da limitação da eficácia jurídica típica da personificação. As situações são completamente distintas e deveriam ser tratadas de maneiras diferentes. A responsabilidade pessoal do administrador, por exemplo, se dá por uma imputação direta de um dever a alguém diverso da pessoa jurídica que, muitas vezes, não compõe o quadro de sócios. Não se desconsidera, não se limita, não se altera a eficácia da personificação em nada. Apenas e tão somente atribui-se a alguém diverso da pessoa jurídica a responsabilidade de atos por esse alguém na qualidade de administrador da pessoa jurídica28. 28
Em acórdão relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, fixa-‐se a distinção entre a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade do administrador, tantas vezes cambulhada pela legislação (como, p.ex., no art. 50 do Código Civil), com repercussão na jurisprudência: “(...) não há como confundir a ação de responsabilidade dos sócios e administradores da sociedade falida (art. 6.º do Decreto-‐lei n.º 7.661/45 e art. 82 da Lei n.º 11.101/05), com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa. A responsabilização dos sócios ocorre quando estes, por ato próprio, praticam a
O Código Civil de 2002 encaminhou essa grave indistinção no art. 50, que trata das situações de desconsideração da pessoa jurídica29. O anteprojeto de novo código comercial parece seguir passos ainda mais equivocados, ao atribuir uma responsabilidade especial ao sócio controlador pelas obrigações trabalhistas independentemente de qualquer desvio funcional das sociedades30. Tal postura, obviamente, dificulta e, nalguma medida, vulgariza a teoria31. Concluímos que a proliferação legislativa em tema de desconsideração da personalidade jurídica acabou por agravar a crise de função, ao se sustentar no mesmo normativismo outrora denunciado por Lamartine Corrêa. Por vias tortuosas, isso encaminha, no tempo presente, um retorno do problema ao Poder Judiciário para que se avalie e se interprete as situações concretas da vida social em que se sucede um descompasso funcional apto a justificar a gravíssima medida da desconsideração.
abusividade lesiva à sociedade (ultra vires, por exemplo), ao passo que na desconsideração da personalidade jurídica é a pessoa moral que tem seu uso desvirtuado, por ato dela, tudo em benefício dos sócios e administradores. Ou seja, na primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é plenamente identificável e evidente, e sua ação infringe seus próprios deveres de sócio/administrador, ao passo que na segunda, supera-‐se a personalidade jurídica sob cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente para evidenciá-‐la como verdadeira beneficiária dos atos fraudulentos” (STJ. RECURSO ESPECIAL N.º 1.180.714-‐RJ. Min. Luis Felipe Salomão. DJE: 06/05/2011). 29 “A r t . 5 0 . E m c a s o d e a b u s o d a p e r s o n a l i d a d e j u r í d i c a , c a r a c t e r i z a d o p e l o d e s v i o d e f i n a l i d a d e , o u p e l a c o n f u s ã o p a t r i m o n i a l , p o d e o j u i z d e c i d i r , a r e q u e r i m e n t o d a p a r t e , o u d o M i n i s t é r i o P ú b l i c o q u a n d o l h e c o u b e r i n t e r v i r n o p r o c e s s o , q u e o s e f e i t o s d e c e r t a s e d e t e r m i n a d a s r e l a ç õ e s d e o b r i g a ç õ e s s e j a m e s t e n d i d o s a o s b e n s p a r t i c u l a r e s d o s a d m i n i s t r a d o r e s o u s ó c i o s d a p e s s o a j u r í d i c a ” . 30 “Art. 184. Sem prejuízo do disposto no artigo antecedente, o acionista controlador responde por obrigação trabalhista da sociedade anônima até o limite da totalidade dos dividendos, juros sobre o capital e demais participações nos resultados sociais, que dela tiver recebido desde o exercício em que teve início o contrato de trabalho firmado entre a sociedade anônima e o credor” (COELHO, Fabio Ulhoa. O futuro do direito comercial. São Paulo : Saraiva, 2011, p.47) 31 Desenvolvemos o assunto noutra oportunidade, cf. LEONARDO, Rodrigo Xavier. A pessoa jurídica no direito privado do século XXI. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (org.). Manual de teoria geral do Direito Civil. 1.ed. Belo Horizonte : Del Rey, 2011, p.385. Uma interessante leitura crítica da banalização da desconsideração da pessoa jurídica é apresentada por NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo : Quartier Latin, 2007.
VI. Da crise do reconhecimento à perda da centralidade. A crise de reconhecimento apontada por Lamartine Corrêa, em considerável medida, indicava uma inconguência estrutural entre a opção do Código Civil de 1916, em estabelecer um número fechado de entidades que seriam consideradas pessoas jurídicas de direito privado, comparada à realidade social, na qual inúmeras outras entidades atuariam tal como se pessoas jurídicas fossem. Nesse particular, o Código Civil de 2002 não promoveu alterações substanciais, mantendo a questão sob os mesmos quadrantes. Pelo texto codificado, a pessoa jurídica continua a corresponder um restrito número fechado de entidades (art.44, CCB), que têm seu ato constitutivo levado ao registro adequado (art.45, CCB). Por um viés mais amplo, no entanto, o assunto se tornou muito mais complexo no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, permitindo que a crise de reconhecimento tomasse proporções muito diferentes daquelas anteriormente denunciadas. A personificação em situações nas quais os dados de realidade institucional mínimos não se mostram presentes talvez indique uma crise ainda maior, decorrente da excessiva ampliação do catálogo de pessoas jurídicas, assim consideradas apenas e tão somente pelo arbítrio e pela conveniência do legislador, sem qualquer correspondência ao que, em realidade, até então se considerava como tal. A adoção pelo direito brasileiro das chamadas empresas individuais de responsabilidade limitada, que se tornaram espécie de pessoa jurídica pela Lei n.º 12.441/2011, é um exemplo expressivo dessa transformação. A um só tempo, mantém-se a tipicidade fechada do elenco de pessoas jurídicas e amplia-se esse rol sem qualquer preocupação com uma efetiva correspondência de autonomia institucional na realidade social.
Por outro lado, outros centros autônomos que servem para a imputação de direitos e deveres são cotidianamente reconhecidos como aptos a desenvolver atividades juridicamente relevantes independentemente da personificação (pelo menos pela exigência de atos constitutivos escritos levados ao registro, nos termos do art. 45 do Código Civil). Isto assim se sucede, por exemplo, pela atribuição de competências para que organizações associativas participem da construção de soluções em espaços democráticos independentemente da personificação32. Com efeito, um olhar crítico sobre o ordenamento jurídico brasileiro pode demonstrar como a diretiva política de ampliação dos espaços democráticos adota como um dos seus principais pilares a abertura à participação de organizações associativas, sobretudo àquelas de caráter local. As hipóteses, ainda que meramente exemplificativas, são expressivas33.
32
Em tese de doutoramento, defendemos que a Constituição Federal atribuiu competências para o desenvolvimento de relevantes atividades por organizações associativas independentemente dessas entidades ostentarem estatutos escritos e registrados: “referidas organizações – pela projeção social que alcançam e não pela existência de estatutos escritos e inscritos – constituem núcleos institucionalizados para o exercício de direitos coletivos (...) Partindo-‐se do pressuposto de que, no presente momento histórico, objetiva-‐se construir uma sociedade pluralista, não parece admissível que o reconhecimento das associações em sentido estrito mantenha-‐se dependente de um ato registral que, em última análise, é de competência unificada do Estado. Referido raciocínio, por sua circularidade, faria com que o pluralismo objetivado fosse fulminado pelo mesmo Estado que lhe projeta”.E, naquela oportunidade, concluímos: “De que adianta atribuir competências para as associações em sentido estrito, visando descentralizar o desenvolvimento de atividades de sensível relevância social, se o reconhecimento dessas mesmas associações ficar dependente de um unificado ato estatal?” (LEONARDO, Rodrigo Xavier. As associações em sentido estrito. Tese de doutorado defendida perante o Programa de Pós-‐Graduação da Universidade de São Paulo – USP. Orientador: Prof. Dr. Alcides Tomasetti Jr, São Paulo, 2006, p.186). 33 O art. 29, incisos XII e XIII da Constituição Federal, ao tratar da organização dos Municípios (com original posição na história federativa brasileira), estabelece a cooperação de associações para o planejamento das cidades. No item pertinente à assistência social, o art. 204 da Constituição Federal determina uma política de descentralização que, expressamente, menciona a possibilidade de participação da população por intermédio de organizações representativas. Os artigos 231 e 232 da Constituição Federal reconhecem a comunidade dos índios, atribuindo às suas organizações legitimidade para ingressar 33 em juízo em defesa de seus direitos e interesses . Mais adiante, no art. 68 do ADCT, atribui-‐se aos remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade definitiva das terras que estejam ocupando. Há um traço comum em todas essas hipóteses normativas. Todas essas normas poderiam ser classificadas como normas secundárias de competência, adotando-‐se, aqui, a classificação de Herbert Hart. Nelas, não se determinam propriamente condutas que devam ser praticadas por essas associações, encaminha-‐se a atribuição de competências para o desenvolvimento dalgumas atividades nelas descritas (Sobre o assunto, cf. HART, Herbert. El concepto del derecho. Trad. Genario Carrió. 2.ed.
Outro exemplo se dá com a crescente adoção dos chamados patrimônios de afetação, que se apresentam como outra via à separação patrimonial, talvez até mesmo em resposta à pessoa jurídica desconsiderada ante tantas hipóteses de sua desconsideração, tal como sustentamos no item precedente34. Constata-se, ainda, que determinadas organizações deliberadamente se afastam da personificação, segundo os requisitos traçados pelo direito objetivo, como estratégia de atuação35. E a crise de reconhecimento, observada por Lamartine Corrêa, foi em alguma medida invertida. Por outros meios, foram abertas portas para o desenvolvimento de atividades por entidades que não se submetem aos critérios para a atribuição da personalidade jurídica, diluindo a centralidade da personificação no ordenamento jurídico. Não mais existe correspondência entre a noção de sujeito de direito e o binômio pessoa humana e pessoa jurídica. Há inúmeros
México: Nacional, 1980. p.113-‐117, e também BOBBIO, Norberto. Studi per una teoria generale del diritto. Torino: Giappichelli, 1970. p.180. 34 A respeito do assunto, permita-‐se citar dissertação de mestrado, defendida perante o Programa de Pós-‐Graduação em Direito da UFPR, que trata do assunto com ineditismo. Cf. (XAVIER, Luciana Pedroso. As teorias do patrimônio e o patrimônio de afetação na incorporação imobiliária. Dissertação de mestrado defendida perante o Programa de Pós-‐Graduação da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Xavier Leonardo, Curitiba, 2011, p.97). 35 “(...) naquilo que doutrinariamente se conheceu por crise da pessoa jurídica, sublinhe-‐se que o surgimento de diversas organizações que, por estratégia, recusam-‐se submeter ao prévio registro para obter a personificação demonstra uma situação inusitada: a pessoa jurídica, tal como concebida tradicionalmente, perdeu sua exclusividade como meio para a conformação de núcleos institucionalizados para o desenvolvimento de atividades coletivas. Justamente por isto, a personificação (pelo menos tal como concebida e retratada no Código Civil) não detém mais exclusividade na conformação dos grupos organizados ainda que, doutrinariamente, não se reconheça isto. As estratégias sociais de ação coletiva, deliberadamente, muitas vezes são feitas à margem dos critérios tradicionais de personificação das organizações. Não obstante isto, tais organizações atuam com tal intensidade e eficiência social que se torna verdadeiramente impossível ignorar a sua existência jurídica. Mais que isto. Referida postura teórica ignora que o próprio ordenamento jurídico confere competências a essas organizações independente de estarem previamente registradas ou não” (LEONARDO, as associações em sentido estrito, 2006, p.187).
sujeitos de direito que titularizam situações jurídicas ativas e passivas que não são pessoas36. A pessoa jurídica, portanto, perdeu a sua centralidade e convive com diversos outros suportes para se alcançar o efeito da autonomia das esferas jurídicas e da separação patrimonial. Isto é sintoma de uma nova crise de reconhecimento, com contornos próprios ao século XXI. IV. A pessoa jurídica e os desafios para o futuro Das teorias analíticas colhe-se a crítica sobre as possibilidades de se encerrar no termo pessoa jurídica uma realidade única, imóvel e imutável no tempo e no espaço. Não se pode negar que as sucessivas e diferentes crises do instituto da pessoa jurídica transformaram-na severamente. Talvez como resultado de uma época de incertezas e imprecisões conceituais, a pessoa jurídica foi conceitualmente dilarecerada e parte de suas funções até mesmo foram transportadas para outros institutos. Nesse contexto, há diversos desafios. Tal como outros institutos de direito privado submetidos a transformações, é necessário um trabalho de reconstrução e de readequação à sociedade contemporânea, inclusive sopesando os riscos que os excessos da desconsideração da pessoa jurídica encaminharam. De outro vértice, a maior inserção do Brasil na economia internacional exige providências compatíveis na estruturação do direito privado. Já faz algum tempo que o direito privado europeu convive, por exemplo, com o desafio da comunicação cultural entre as figuras
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LEONARDO, Rodrigo Xavier. Sujeito de direito e capacidade: contribuição para uma revisão da teoria geral do direito civil à luz do pensamento de Marcos Bernardes de Mello. In: DIDDIER JR, Freddie; EHRHARDT JR, Marcos (org). Revisitando a teoria do fato jurídico. 1.ed. São Paulo : Saraiva, 2010, p.549-‐570.
personificadas do civil law e o trust, proveniente do direito angloamericano. O Brasil não pode escapar de semelhante desafio e, mais uma vez, as universidades públicas e, particularmente, a Universidade Federal do Paraná ostenta um papel relevante na reflexão e construção crítica desse futuro, alicerçada na tradição e no conhecimento dos seus mestres que se foram.
V. Referências bibliográficas
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