Da “espetacularização” do patrimônio à revitalização: análise dos princípios norteadores do projeto Porto Novo Recife.

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO ESPECIALIZAÇÃO LATU SENSU EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO EVA FONSÊCA PASSAVANTE

DA “ESPETACULARIZAÇÃO” DO PATRIMÔNIO À REVITALIZAÇÃO: ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PROJETO PORTO NOVO RECIFE.

RECIFE, AGOSTO DE 2013

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO ESPECIALIZAÇÃO LATU SENSU EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO EVA FONSÊCA PASSAVANTE

DA “ESPETACULARIZAÇÃO” DO PATRIMÔNIO À REVITALIZAÇÃO: ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PROJETO PORTO NOVO RECIFE.

Trabalho de Conclusão de Curso desenvolvido por Eva Fonsêca Passavante, orientada pela Profª. Iana Ludermir, apresentado para obtenção de Título de Especialista no curso de Patrimônio Histórico: Preservação e Educação da Universidade Católica de Pernambuco

RECIFE, AGOSTO DE 2013

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO ESPECIALIZAÇÃO LATU SENSU EM PATRIMÔNIO HISTÓRICO EVA FONSÊCA PASSAVANTE

DA “ESPETACULARIZAÇÃO” DO PATRIMÔNIO À REVITALIZAÇÃO: ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PROJETO PORTO NOVO RECIFE.

EVA FONSÊCA PASSAVANTE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para obtenção de Título de Especialista em Patrimônio Histórico: Preservação e Educação, da Universidade Católica de Pernambuco

Aprovado em: _____________Nota: __________

Orientadora ____________________________________________ Iana Ludermir

RECIFE, AGOSTO DE 2013

AGRADECIMENTOS

Depois de um trabalho tão incentivado, tenho que agradecer à pessoas especiais nesse momento. Primeiramente agradeço a Deus e a São José, com quem tanto conversei e pedi luz. Aos meus pais, pelo incentivo incomensurável. Ao meu noivo, André Barbosa Neves, pelo amor dedicado a mim, pela presença constante ao meu lado, que mesmo sem entender nada quando eu conversava sobre o respectivo trabalho, dizia que eu conseguiria. Obrigado por caminhar comigo. À professora Iana Ludermir, pelo incentivo, apoio e orientação, que tornou possível o desenvolvimento e conclusão deste trabalho. À amiga Andresa Santana, pelo carinho e paciência nas horas do desespero. Às amigas Bruna Melo, Léa Gonçalves, Tatiana Gedales, Rafaela Cristina e Deborah Almeida, pela parceria e apoio em nossas reuniões. Às colegas de trabalho Juliana Melo, Lucyana Mendonça, Mariá Faria, Maria Eugênia Cirne e Aline Galdino, pelas conversas e momentos de descontração oferecidos por vocês no dia-a-dia. À amiga de longa data Bruna Azevedo, por ajudar com o meu abstract mesmo com tão pouco tempo para fazê-lo. Ao arquiteto Zeca Brandão, pela esclarecedora entrevista que me fez mudar a direção deste trabalho à apenas 10 dias de sua entrega. Obrigada a todos! Agradeço por acreditarem no meu potencial, mesmo quando nem eu mais acreditava. Sem vocês nada disso seria possível.

RESUMO O presente trabalho discorre sobre como os projetos de intervenção urbana podem “espetacularizar” o patrimônio e transformar a cidade em meras mercadorias de consumo turístico. Para investigar essa questão, far-se-á uma análise do projeto de intervenção denominado Porto Novo Recife, em Recife-PE. O respectivo projeto teve duas propostas elaboradas por diferentes profissionais e sob diferentes princípios norteadores, a partir, disso será possível perceber as consequências da espetacularização na conservação do patrimônio cultural. O procedimento adotado dar-se-á através de pesquisa bibliográfica, com o objetivo de compreender conceitos aplicados a esse trabalho e os princípios norteadores dos projetos em questão, além, de entrevista aos profissionais envolvidos nos projetos do Porto do Recife. A apresentação do trabalho está dividida em duas partes, que correspondem aos capítulos: a primeira, com as definições necessárias para o entendimento do tema, abordando o breve histórico da conservação, conceitos e terminologias aplicáveis a intervenções urbanas e, o processo de espetacularização. A segunda etapa representa as análises em si dos projetos escolhidos. O referido trabalho defende que os projetos de intervenções são necessários, mas precisam ter equilíbrio entre os diversos interessados para que não haja a espetacularização, ou, para que mesma, seja minimizada. Dessa forma, todos saem ganhando.

Palavras-chave: Intervenção urbana, espetacularização, áreas portuárias, city marketing, Porto Novo Recife.

ABSTRACT This paper discusses how urban intervention projects can "sensationalize" the city heritage and transform it into commodities for tourist consumption. To investigate this question, there will be an analysis of the intervention project called Porto Novo Recife, Recife-PE. The respective project had two proposals made by different professionals and under different guiding principles. From this, it will be possible to realize the consequences of the spectacle in the conservation of cultural heritage. The procedure adopted will be through a literature review in order to understand concepts applied to this work and the guiding principles of the project in question, in addition to interviewing the professionals involved in the projects of the Porto of Recife. This work presentation is divided into two parts. The first, with the setting necessary for understanding the subject, including the brief history of conservation concepts and terminology applicable to urban interventions and the spectacle process. The second step is the analysis itself of the chosen projects. Such work argues that the project interventions are needed, but they need to have balance between the various stakeholders so that there is a spectacle or a minimized one. That way, everyone wins.

Keywords: Urban intervention, spectacle, port areas, city marketing, Porto Novo Recife.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ______________________________________________________ 7 1. DEFINIÇÕES NECESSÁRIAS _______________________________________ 11 1.1. Conservação, restauração e as noções de salvaguarda do patrimônio cultural _______________________________________________________ 11 1.2. Intervenção urbana: conceitos e modelos ________________________ 16 1.3. Políticas públicas e marketing urbano: o processo de espetacularização. 19 2. O CASO DA REVITALIZAÇÃO DO PORTO DO RECIFE__________________ 24 2.1. Metodologia e critérios de análise_______________________________ 26 2.2. Porto Novo

Recife

(Núcleo Técnico

De

Operações Urbanas

-

NTOU/Governo do Estado) _______________________________________ 29 2.3. Porto Novo Recife (Gerencial Brasitec) __________________________ 43 2.4. A espetacularização e a conservação na intervenção do Porto Novo Recife _____________________________________________________________ 48 CONSIDERAÇÕES FINAIS ___________________________________________ 56 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ____________________________________ 58

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INTRODUÇÃO Com as transformações da cidade a partir do crescimento desordenado pós Revolução Industrial, a urbe começa a sofrer com o adensamento populacional e as políticas públicas de controle de salubridade tentavam remediar as consequências dessas transformações e “higienizar” a cidade. Começavam aí, os primeiros planos de renovação urbana. Desde então, diversas nomenclaturas foram utilizadas para denominar as práticas de intervenções urbanas, como regeneração, reestruturação, revitalização, requalificação, reabilitação. O centro das metrópoles é possuidor de diversas atividades, que tornam o lugar dinâmico, carrega grande simbolismo histórico, tanto pela relação social com o restante da cidade, quanto pelos seus edifícios. O centro representa a identidade local, é a história do lugar desde a sua formação, além de ter infraestrutura consolidada. Sua requalificação é necessária, pois, com o processo de expansão urbana e o deslocamento de vários setores para novas áreas, os centros históricos se tornaram subutilizados, e consequentemente degradados. Portanto, não é justificável, que uma área com tão valorada seja subaproveitada. Algumas das antigas áreas portuárias representam o berço e o lugar central dessas metrópoles. Essas áreas, assim como os grandes centros, foram esvaziados com o processo de modernização e novas instalações portuárias em lugares mais afastados e adaptados para os novos e gigantescos navios de carga. Os grandes componentes das antigas estruturas portuárias representam grande parcela do solo, hoje, sem uso, além de apresentarem-se como barreiras entre a cidade e as waterfronts. E justamente, por isso, podem se tornar locais para intervenções cenográficas. Com

a

globalização,

passa-se

a

viver

um

momento

de

grandes

transformações nas políticas urbanas mundiais. A administração pública, através das estratégias de city marketing, com projetos urbanos e planejamento estratégico, se empenha em vender, reforçar ou forjar a melhor imagem da cidade, muitas vezes dando

privilégio

ao

visitante

(turista).

Paradoxalmente,

a singularidade e

universalidade antes enaltecida nas “marcas” das cidades como caracterização do patrimônio regional, dão abertura para a criação de grandes cenários para turistas, com paisagens urbanas idênticas. Esse processo, não é diferente com as áreas portuárias de diversas cidades do mundo.

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A “espetacularização” pode distorcer e banalizar os valores do patrimônio e transformar as áreas que passam por intervenções em cenários espetaculares, seja pela ideia de congelamento - “museificando”1 a cidade - ou a ideia da tabula rasa, no sentido que Moreira (p. 18, 2004) descreve: Seria a intenção de transformar a cidade e de criar algo “novo”, de decidir sobre o seu presente e seu futuro (e de também sobre o seu passado) e, para tal, por vezes, destruir partes ou, em seu auge, destruí-la completamente ou abandoná-la, e fazer uma nova cidade ou novas partes dela.

Mas, como equívocos no planejamento e na implementação de alguns projetos de intervenção podem “espetacularizar” o patrimônio e transformá-los em meras mercadorias de consumo turísticos? A partir do problema descrito acima, este trabalho justifica-se pela necessidade de estudar as formas de espetacularização que manifestam-se atualmente nas intervenções patrimoniais. As políticas públicas para conservação do patrimônio devem estar equilibradas entre os interesses públicos, privados e os interesses dos cidadãos, só assim, os centros urbanos podem realmente “restituir” sua vida. As possibilidades de desenvolvimento e revitalização desses centros estão intimamente ligadas à sua auto-sustentabilidade econômica, porém, não apenas a ela. Esses planos não são apenas para dar novos usos ao espaço público degradado, eles tem que integrar a cidade e trazerem benefícios para sua população. Mas muitos estão servindo como estratégia política e se sobrepondo a esses benefícios que, muitas vezes são ilusórios. O objetivo geral deste trabalho é investigar como os projetos de intervenções contribuem para a “espetacularização” de sítios históricos das cidades, estudando mais profundamente projetos em áreas portuárias, e mostrando como esses projetos podem transformar áreas da cidade em “mercadorias” para o consumo turístico. Mais especificamente pretende-se revisar, no âmbito da conservação urbana, os conceitos de revitalização, requalificação, reabilitação e reconversão como princípios de intervenções em centros históricos; Analisar os dois projetos Porto Novo Recife, mostrando

os

princípios

de

cada projeto

e

identificando as formas

de

espetacularização em ambas as intervenções. E por fim, contribuir com a

1

Transformação da cidade em museu.

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identificação dos fatores que fazem com que as políticas públicas de intervenção sobre sítios históricos resultem na "espetacularização" da cidade. A metodologia aplicada a esse trabalho será de cunho bibliográfico e abrangerão leituras, análise e interpretação de livros, artigos, teses, dissertações, trabalhos de conclusão de curso e periódicos, adquiridos tanto em meio digital quanto em meio impresso. A fim de criar condições de selecionar e delimitar o material bibliográfico serão elaborados planos de leitura, sendo possível assim, elaboração de resumo que servirão para fundamentação teórica do trabalho. Para melhor entendimento sobre o projeto a ser analisado foi realizada uma entrevista com os autores dos projetos. Essa entrevista foi necessária para identificar os princípios norteadores em cada projeto e esclarecer quaisquer dúvidas sobre os mesmos. Dessa forma, a pesquisa se torna mais imparcial e transparente. A análise em si se dará sob o ponto de vista da espetacularização, que está dividida em três grupos: espetacularização midiática, espetacularização social e espetacularização arquitetônica. Essa análise dar-se-á separadamente para deixar claro e facilmente identificável para o leitor, tanto as propostas para cada projeto quanto as suas respectivas formas de espetacularização. Os critérios préestabelecidos para a referida análise são descritos mais minuciosamente no subcapítulo 2.1. Sendo assim, este trabalho será dividido em dois capítulos, que estão descritos a seguir. No primeiro capítulo, com o intuito de introduzir o tema, buscar-se-ão algumas definições que são necessárias para a compreensão do tema.

Primeiramente

discorrer-se-á sobre as formas de conservação, restauração e as primeiras noções de salvaguarda do patrimônio cultural, mostrando um breve histórico sobre o tema patrimônio. Num segundo momento, é necessário definir intervenção urbana, seus conceitos e modelos, onde são elucidadas as diversas terminologias comumente empregadas nos planos de intervenções. Para a conclusão da fundamentação teórica será revisado o tema espetacularização, abordando as políticas públicas, o marketing urbano e as formas de espetacularização da cidade para o mercado mundial. No segundo capítulo, para se chegar aos objetivos propostos, analisaremos o projeto de intervenção denominado “Operação Urbana Porto Novo Recife”. Esse

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projeto foi elaborado por duas equipes, gerando dois projetos diferentes, cada um com seus princípios norteadores. O primeiro projeto foi elaborado pela equipe do Núcleo Técnico de Operações Urbanas do Governo do Estado de Pernambuco, coordenado pelo arquiteto Zeca Brandão. Esse projeto seria executado com recursos públicos. O outro projeto foi elaborado a partir de uma licitação, com o arrendamento da área por uma empresa privada, sendo ela, responsável pelo projeto e execução. Inicialmente essa intervenção iria ser financiada com recursos públicos e só depois de construída arrendada por empresas privadas. Porém com o interesse do setor privado, o Governo do Estado viu a não necessidade de utilização dos recursos públicos, e resolveu deixar toda a intervenção por conta dos investidores privados. Para concluir o capítulo 2, será feito uma comparação das formas de espetacularização existente ou não em cada um das intervenções estudadas e as suas causas, referenciando sempre com os conceitos aplicados no capítulo 1. Por fim, com as considerações finais será possível esclarecer se os objetivos proposto neste trabalho foram alcançados, apresentar as dificuldades que emergiram durante sua execução e indicar possibilidades de futuras pesquisas complementares a esta, ou que surjam a partir dos questionamentos levantados neste trabalho.

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1. DEFINIÇÕES NECESSÁRIAS 1.1. Conservação, restauração e as noções de salvaguarda do Patrimônio Cultural

Para Choay (2006, p.11), patrimônio “estava, na origem, ligada as estruturas familiares, econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo”. Porém, o termo é usado atualmente com muito mais ramificações, e a definição de “Conjunto dos bens familiares2” se tornou muito mais ampla. O patrimônio histórico, o patrimônio artístico, o patrimônio natural e todas as demais formas de patrimônio são abarcados por um grande grupo chamado Patrimônio Cultural. Segundo Hugues de Varine-Boham, o Patrimônio Cultural pode ser dividido em três grandes categorias. O primeiro grupo, é relativo à natureza e o meio ambiente (rios, florestas, montanhas, praias, etc.) – chamado patrimônio natural. O segundo grupo refere-se aos elementos do saber, é o conhecimento e as técnicas do saber fazer - representa os elementos intangíveis/imaterial do patrimônio cultural. A terceira categoria reúne os objetos e artefatos produzidos pelo homem, envolvendo as

técnicas e as condições em cada lugar – compõe o chamado

patrimônio material (apud LEMOS, 2000). Propõe-se nesse trabalho o estudo desse último grupo. O patrimônio cultural é de fundamental importância para a memória, a identidade e a criatividade dos povos e a riqueza das culturas. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO): são patrimônios culturais obras de arquitetura, escultura e pintura monumentais ou de caráter arqueológico, de valor universal, excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência, e ainda obras isoladas ou conjugadas do homem e da natureza, de significativo valor histórico, estético, etnológico ou antropológico. (apud IPHAN, disponível em , acesso em: 27 de Abril de 2013)

As primeiras noções de patrimônio deu-se através da valorização dos monumentos da Antiguidade Clássica no período Renascentista (CHOAY, 2006). Esse período da história é caracterizado pelo humanismo, antropocentrismo e

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Significado de Patrimônio pelo Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 3.0, 2009.

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racionalismo, conceitos voltados para o conhecimento do homem e da evidência empírica como uma nova visão de mundo.3 No Quattrocento italiano, durante as décadas de 1420 e 1430, há uma estreita relação entre artistas e humanistas. Com a valorização da produção do trabalho humano, os monumentos greco-romanos, antes desprezado, pôde ser contemplado com livre deleite estético. Mesmo assim, o “conhecimento histórico continua sendo o primeiro e único necessário na instituição das ‘antiguidades’” (CHOAY, 2006, p. 50). A partir daí, coube aos papas, mesmo que ambivalentemente, as medidas de preservação e proteção dos edifícios antigos. Com base nessas novas idéias, os eruditos europeus começam a pesquisar suas próprias origens , buscando as “antiguidades nacionais” e descobrindo seus valores. É importante ressaltar que o método preservacionista empregado na época à arquitetura se restringia a conservação iconográfica, a partir da conceituação, inventários e livros ilustrados, salvo, em parte, na Inglaterra (CHOAY, 2006). Com a Revolução Francesa, a conservação iconográfica dava espaço a conservação real, orientada pelo significado histórico e reforçada agora pelo sentimento de nacionalidade, impresso pela Revolução. Foi instituído pela França, na Assembléia Nacional Constituinte, uma série de comissões destinadas a categorização e processos de guarda e controle dos bens e monumentos (CHOAY, 2006). Segundo Choay (2006, p. 136), com o advento da Era Industrial, marcada pela perda do fazer manual dos homens, o monumento histórico se consagra como “insubstituível; os danos que ele sofre são irreparáveis, sua perda irremediável”. A ideia de progresso e modernização são ameaçadas pelo monumentos históricos, que se apresentam como obstáculos ao novo modo de urbanização. Começa a formar-se então, o conceito de restauração. As primeiras noções sobre restauração, manifestam-se em duas vertentes antagônicas: uma intervencionista e outra anti-intervencionista, e concentram-se em dois teóricos: Viollet-le-Duc e Ruskin. Ruskin afirma que a restauração “significa a mais total destruição que um edifício pode sofrer: uma destruição da qual não se salva nenhum vestígio: uma destruição acompanhada pela falsa descrição da coisa destruída” (apud CUNHA,

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Disponível em Acesso em: 28 de Abril de 2013.

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2010, p. 23). Já para Viollet-le-Duc, “Restaurar um edifício é restituí-lo a um estado completo que pode nunca ter existido num momento dado” (apud CHOAY, 2006, p. 156). Com um posição intermediária entre Viollet-le-Duc e Ruskin estava um outro teórico, Camillo Boito. Para Araújo (2005): Seu discurso representa uma evolução da teoria da restauração a partir da mesma origem e para o mesmo caminho posteriormente traçado pela Carta de Atenas de 1931: a revisão e adaptação dos escritos de Ruskin e de Viollet-le-Duc. A partir do pensamento de Boito, foi feita a separação precisa do que significava restaurar e do que significava conservar.

Outro conceito importante é o elaborado por Alois Reigl em 1903 no “O Culto Moderno dos Monumentos”. Nessa obra, o autor define diversos conceitos de valores atribuídos aos monumentos, não só os valores históricos e artísticos até então discutidos. Para Cunha (2006) : A grande contribuição dessa obra do historiador da arte vienense reside no fato de se apresentarem, através dos diferentes tipos de valor atribuídos aos monumentos, decorrentes das distintas formas de percepção e recepção dos monumentos históricos em cada momento e contexto específicos, os contrastantes meios para sua preservação. E, ao indicar essas múltiplas possibilidades, impor ao sujeito da preservação a necessidade de fazer escolhas, as quais devem ser, necessariamente, baseadas num juízo crítico.

As primeiras normativas internacionais para salvaguarda do patrimônio ocorreram pós 1ª Guerra Mundial. As Cartas Patrimoniais são documentos que contém diretrizes e recomendações para a atuação na preservação do patrimônio. Elas refletem o período em que foram elaboradas e é importante ressaltar que são resultados de encontros técnico-científicos da área. Três, das referidas Cartas Patrimoniais são de maior interesse para a pesquisa, são elas: as Cartas de Atenas (1931 e 1933) e a Carta de Veneza. A Carta de Atenas de 1931 foi percussora das demais, sendo o resultado da Conferência Internacional de Atenas sobre o Restauro de Monumentos, do Escritório Internacional dos Museus Sociedades das Nações. Dispõe sobre a administração e a legislação, a valorização dos monumentos, as técnicas de conservação e a cooperação internacional com vistas à salvaguarda do patrimônio. Dois anos após, o Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), produz uma carta homônima a primeira. A Carta de Atenas 1933 diferencia-se da anterior pela ampliação do conceito de patrimônio para os conjuntos urbanos e não

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só mais edifícios isolados. Fundamenta-se em quatro funções básicas: habitação, trabalho, lazer e circulação. E segundo Melo (2012, p.28): Embora não seja voltada para o campo da conservação, mas sim para estabelecer a doutrina da arquitetura moderna, esta Carta recomendou a salvaguarda de todos os bens que constituíssem a expressão de uma cultura anterior e correspondessem a um interesse geral, contanto que não representassem o sacrifício da população em condições insalubres.

A Carta de Veneza, elaborado pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Históricos (ICOMOS) em 1964, destaca-se por expandir o conceito de monumento histórico aos sítios urbanos e as “obras modestas”, que tenham significância cultural. Além disso, estabelece que “as contribuições válidas de todas as épocas para a edificação devem ser respeitadas” (Carta de Veneza, 1964, art.11), levando em consideração a integridade da edificação independente do seu estilo. Ainda no artigo 11, subtrai o poder de decisão única do autor do projeto quanto ao que pode ou não ser eliminado. Antes da Carta de Veneza, no começo da década de 1860, Ruskin já tinha alertado sobre as intervenções que lesam a malha urbana, quando se inciaram as intervenções na cidade de Paris (CHOAY, 2006). Porém o termo “Patrimônio Urbano” só foi usado pela primeira vez em 1931 por Gustavo Giovannoni. Para Choay (2006, p. 200), Giovannoni funda uma doutrina de conservação e restauração do patrimônio urbano em três grandes princípios. O primeiro expõe a preocupação em integrar os conjuntos urbanos num plano diretor local, regional e territorial, incluindo o carácter social da população. Em seguida, demostra a importância do entorno para o monumento. Onde afirma que isolar um monumento é o mesmo que mutilá-lo e que o “conceito de monumento histórico não poderia designar um edifício isolado”. Por fim, ele introduz o conceito de ambiência e da necessidade preservar as relações de escala e morfologia. Os conceitos usados por Giovannoni antecipam as diretrizes descritas no Manifesto e na Declaração de Amsterdã (UNESCO, 1975) e na Recomendação de Nairóbi (UNESCO, 1976). Com o Manifesto de Amsterdã consagra-se um novo conceito, introduzido pela experiência de conservação no centro histórico de Bologna (1969, Itália). Este conceito, nomeado de Conservação Urbana Integrada (CI), foi definido no Manifesto (1975) como “o resultado da ação conjugada das técnicas da restauração e da pesquisa de funções apropriadas [...] deve ser, por isso, um dos pressupostos do planejamento urbano e regional ”.

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Para Zancheti e Lapa (in LACERDA; ZANCHETI, 2012, p.20), os princípios da CI são delimitados na Declaração de Amsterdã: • O patrimônio arquitetônico contribui para a tomada de consciência da comunhão entre história e destino. • O patrimônio arquitetônico é composto de todos os edifícios e conjuntos urbanos que apresentam interesse histórico ou cultural. Nesse sentido, extrapola as edificações e os conjuntos exemplares e monumentais para abarcar qualquer parte da cidade, inclusive a moderna. • O patrimônio é uma riqueza social; sua manutenção, portanto, deve ser uma responsabilidade coletiva. • A conservação do patrimônio deve ser considerada como o objetivo principal da planificação urbana e territorial. • As municipalidades, principais responsáveis pela conservação, devem trabalhar de forma cooperada. • A recuperação de áreas urbanas degradadas deve ser realizada sem modificações substanciais da composição social dos residentes nas áreas reabilitadas. • A conservação integrada deve ser calcada em medidas legislativas e administrativas eficazes. • A conservação integrada deve estar fundamentada em sistemas de fundos públicos que apoiem as iniciativas das administrações locais. • A conservação do patrimônio construído deve ser assunto dos programas de educação, especialmente dos jovens. • Deve ser encorajada a participação de organizações privadas nas tarefas da conservação • Deve ser encorajada a construção de novas obras arquitetônicas de alta qualidade, pois serão o patrimônio de hoje para o futuro.

Segundo Zancheti (2003), a CI teve diversas abordagens. Dentre as quais, ele destaca quatro: a reformista, a comunitária, a de mercado e a ambiental/cultural. A primeira, realizada nos anos 70 e 80, tentou construir uma “imagem política de eficiência administrativa, justiça social e participação popular nas decisões do planejamento urbano e regional” (De Lucia, 1992 apud ZANCHETI, 2003, p.94). A abordagem comunitária baseia-se nas iniciativas econômicas locais. Na abordagem de mercado (anos 80 e 90), as políticas urbanas são associadas à recuperação econômica e valorização imobiliária, onde a conservação urbana passa a ser chamada de revitalização ou reabilitação. Essa abordagem e seus respectivos termos serão discutidos no subcapítulo adiante, e será de maior relevância para o trabalho. Por último, a abordagem ambiental/cultural (anos 90) teve influência do conceito de “desenvolvimento sustentável” e da cultura como definidora dos processos de desenvolvimento, a partir da Conferência Mundial do Meio Ambiente e da Conferência Mundial de Cultura e Desenvolvimento.

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1.2. Intervenção Urbana: conceitos e modelos

A partir da introdução do conceito de patrimônio urbano, muitas intervenções surgiram em áreas históricas através de planos e programas que foram denominados com uma variedade de terminologias sempre acompanhados do prefixo RE – renovação, revitalização, reabilitação, regeneração, reestruturação entre outras. No final do século XIX, com o aumento da população e da insalubridade na urbe, surgiram os primeiros planos de Renovação Urbana. Essa política é caracterizada pela destruição da malha urbana, aberturas de largas avenidas e transformação da estética arquitetônica em nome da higienização, como exemplo temos a Reforma de Paris, realizada por Haussmann entre 1851-1870 (CHOAY, 2006) (VASCONCELLOS; MELO in VARGAS; CASTILHO, 2009). Esse tipo de intervenção urbana foi amplamente utilizado inclusive no período pós Segunda Guerra Mundial, corroborando com as ideias modernistas descritas implicitamente na Carta de Atenas de 1933. Para Amadio (1998, p.29 apud PASQUOTTO, 2010, p. 145): [...] surge inicialmente como uma perspectiva de solução, dentro das concepções do Movimento Moderno a um quadro de urgências econômicas e sociais, desencadeado pela crise de entre-guerras e o período pós-guerra na Europa e América do Norte.

Segundo Choay e Merlin (1988 apud VASCONCELLOS; MELO MELO in VARGAS; CASTILHO, 2009), esse modelo começa a ser criticado a partir da questão social, com o rompimento do vínculo dos habitantes com a área renovada, e com a revisão dos princípios ditados pelo urbanismo moderno. Para Del Rio (2004 apud PASQUOTTO, 2010, p. 145): Este tipo de ideologia e a forma de atuação das políticas públicas implicariam no esvaziamento das áreas centrais, com suas deteriorações físicas, econômicas e sociais. Os mais abastados se instalam no subúrbio, induzindo o comércio e as atividades culturais a migrarem com o seu público, abandonando as áreas centrais para os grupos menos favorecidos.

Na década de 1960, começa a consolidar-se o termo Revitalização. Esse processo revalorizava o solo urbano, e tendia a expulsar ou segregar a população que não podia pagar por ele. Há um consenso, mais ou menos na década de 1980, quanto ao perigo do significado do termo, visto que qualifica a área depreciadamente quando ignora a vida existente e propõe-se dar vida a um local que teoricamente já possui (BRAGA, 2008).

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Com a necessidade de mudar de termo, visto o contraditório significado do termo anteriormente citado, muitos outros termos foram utilizados nas ações de intervenções. Para Schicchi (2004 apud Braga, 2008, p. 34): Às ações de intervenções que tinham por objetivo a recuperação econômica e patrimonial das áreas históricas são dadas as seguintes classificações, Reconversão, Recomposição, Reciclagem e Reinvestimento. Àquelas preocupadas em intervir nos processos sociais existentes e não apenas restritas aos aspectos físicos e de valorização econômica, são dadas as denominações Regeneração, Reocupação e Repovoamento.

Em 1972, com a Carta Italiana Del Restauro, surge outra definição: a reestruturação urbanística. A abordagem do termo é feita do “ponto de vista funcional, tecnológico e de uso, entre o território, a cidade e o centro histórico” (VASCONCELLOS; MELO in VARGAS; CASTILHO, 2009, p. 58). A definição do termo Reabilitação só aparece em 1995, na Carta de Lisboa, e mesmo assim “induzindo a compreensão de seu significado como sinônimo de requalificação. Em seguida, aproxima esse conceito da definição de revitalização” (VASCONCELLOS; MELO in VARGAS; CASTILHO, 2009, p. 60). E complementa “a diferença entre os dois termos é o fato de o primeiro exigir a manutenção da identidade e das características, e o segundo admitir que esse mesmo procedimento possa ser adotado em zonas com ou sem identidade”. Segundo a Carta, Reabilitação urbana: É uma estratégia de gestão urbana que procura requalificar a cidade existente através de intervenções múltiplas destinadas a valorizar as potencialidades sociais, econômicas e funcionais a fim de melhorar a qualidade de vida das populações residentes; isso exige o melhoramento das condições físicas do parque construído pela sua reabilitação e instalação de equipamentos, infra-estruturas, espaços públicos, mantendo a identidade e as características da área da cidade a que dizem respeito.

Vasconcellos e Melo (2009 in VARGAS; CASTILHO) ainda comenta sobre outro termo, denominado de Regeneração, que começa a ser utilizado no limiar da virada do século XX. Faz-se uma comparação ao tecido da pele ao tecido urbano e afirma a relação do termo com a ideologia da recuperação, de dar nova vida ao tecido urbano no qual se aplica o plano. Sintetizando, Castriota (2007) divide as intervenções no patrimônio urbano em três grandes grupos. O primeiro modelo é o da preservação, onde a concepção se restringe ao patrimônio arquitetônico, reunidos em uma coleção de objetos identificados e catalogados, reconhecidamente com valor histórico, estético e de excepcionalidade,

preservando

edificações

isoladas,

estruturas

e

artefatos

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individuais. O marco legal dessa fase é o tombamento, com o predomínio de ações pelo Estado e os profissionais envolvidos nessa política eram, em sua maioria, arquitetos e historiadores. O segundo grupo é definido como conservação. Agora, a concepção de patrimônio é ampliada e volta-se para o patrimônio ambiental urbano, mudando o tipo de objeto e passando de monumentos isolados para conjuntos históricos com valor cultural /ambiental. O marco legal passa a ser áreas de conservação, onde o Estado continua sendo o protagonista, mas os planejadores urbanos passam a integrar o grupo de profissionais envolvidos junto com os arquitetos e historiadores. O terceiro modelo é o da reabilitação urbana. A grande diferença deste para o modelo anterior é que “o Estado vai deixar de desempenhar um papel negativo, de apenas impor restrições à descaracterização, e passa a articular projetos de desenvolvimento para as áreas a serem preservadas / conservadas / revitalizadas.” (CASTRIOTA, 2007, p. 23). Com isso, os administradores e gestores são incluídos ao grupo de profissionais envolvidos. O marco legal agora conta com novos instrumentos urbanísticos como a Transferência do Direito de Construir (TDC), as operações urbanas, além de outros instrumentos, caracterizados pela parceria. Segundo Vasconcellos e Melo (2009, p. 64, grifo nosso): As várias nomenclaturas dadas aos planos implicam uma grande confusão de conceitos. Concomitantemente, o poder público parece colaborar com essa confusão, legitimando novos termos para manter o privilégio de definir quais as culturas a serem selecionadas e valorizadas, associando o tipo de intervenção ao marketing político.

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1.3. Políticas públicas e marketing urbano: o processo de espetacularização.

Os planos de revitalização estão utilizando a cultura como estratégia principal para inserção das cidades no mundo globalizado. Nas políticas urbanas contemporâneas, utilizadas nesse planos, “existe uma clara intenção de se mostrar, reforçar e até mesmo forjar uma imagem singular de cidade” (JACQUES, 2003, p. 32). A partir disso, a cidade tornou-se uma mercadoria e, como qualquer produto, sai ganhando quem melhor vender sua imagem. “O patrimonio cultural urbano passa, assim, a ser visto como uma reserva, um potencial de espetáculo a ser explorado” (JACQUES, op. cit., p. 32, grifo nosso). Esse processo de espetacularização das cidades é indissociácel das estratégias de marketing urbano ou city marketing. Os grandes equipamentos culturais e suas arquiteturas monumentais passam a ser as principais âncoras dos megaprojetos urbanos, onde a cultura passa ser consumida como uma grife (JACQUES, op. cit., p.34). Castriota (2007, p. 25, grifo nosso) define city marketing, como “política urbana orientada ao atendimento das necessidades do consumidor, seja este empresário, turista ou o próprio cidadão”. Neste contexto, os centros históricos são requalificados de forma que chamem atenção do turista e acabam virando verdadeiros “parques temáticos”, muitas vezes com detrimento das necessidades da população local (JACQUES, op. cit.). Sanchez (1999, p. 120 ) alega: orientação para a demanda, atrativos da oferta urbana, posicionamento competitivo, ações de marketing, produção de imagem e planejamento estratégico”, que até há pouco tempo eram restritos ao âmbito empresarial, hoje são recorrentes no discurso dos administradores locais.

Para Sanchez (op. cit.), esse novo modelo de política pública, se originou nos Estados Unidos na década de 1980, mas só toma força com a reestruturação urbana de Barcelona para os Jogos Olímpicos de 1992, que transforma a cidade num modelo a ser seguido e acirra a competitividade na nova ordem econômica mundial. A partir disso, os meios de comunicação se tornaram um forte aliado político das

revitalizações

urbanas.

A

linguagem

promocional

criada

na

época,

transformaram as obras num autêntico espetáculo, como mostra o slogan do Jornal El País, de 25 de Julho de 1990: “Contemple o maior projeto europeu da atualidade” (SANCHEZ, op. cit., p.123).

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Segundo Sanchez (1999, p.124), as novas políticas de reestruturação urbana recomendam “apoiar-se em obras e serviços visíveis, sobretudo os que tenham caráter monumental ou simbólico”. A grande midiatização dessas intervenções urbanas projetam a ideia de usufruto de toda a população, e sugere implicitamente que todos os cidadão se beneficiarão daquela obra. “Entre os cidadãos e a cidade estão os meios tecnológicos de informação e comunicação. Eles não informam sobre a cidade, eles a refazem à sua maneira, hiper-realizam a cidade transformando-a num espetáculo” (SANCHEZ, loc. cit.). A participação dos cidadãos, o sentido de “pertencimento” à cidade, a adesão aos novos projetos ou serviços oferecidos, o elevado grau de aceitação e aprovação pública dos “projetos de cidade” e, principalmente, a aparente unanimidade que estes projetos têm alcançado são elementos reiteradamente apresentados pela linguagem oficial, pelo discurso hegemônico (SANCHEZ, op. cit, p. 127).

Essa sensação de pertencimento, patriotismo e possível usufruto leva os cidadãos a aceitar com mais facilidade os transtornos ou sacrifícios que esses projetos podem gerar na vida deles. Sanchez (op. Cit., p. 128) admite que em muitos casos é possível calcular os custos sociais dessas remodelações urbanas, caracterizando em modernizações seletivas ou excludentes, que podem expulsar a população original do local ou causar uma valorização imobiliária que implique na mudança da composição social dos habitantes da área “revitalizada”. Dessa forma, as transformações dos espaços urbanos em espetáculos turísticos levam a uma hipótese: A existência de uma relação inversamente proporcional entre espetáculo e participação popular. Ou seja, quanto mais espetacular forem as intervenções urbanísticas nos processos de revitalização urbana, menor será a participação da população nesses processos e vice-versa. Mas essa equação não é absoluta, variações na proporção dessa espetacularização também podem ocorrer: quanto mais passivo (menor participativo) for o espetáculo, mais a cidade se tona um cenário, e o cidadão um mero figurante; e no sentido inverso, quanto mais ativo for o espetáculo [...], mais a cidade se torna um palco e o cidadão, um ator protagonista ao invés de mero espectador (JACQUES, 2004, p. 26).

A imagem da cidade está intimamente ligada a sua cultura. Os centros históricos guardam, na maioria das vezes, a memória cultural de um lugar, de uma população e, às vezes, de uma nação. Porém, esse modelo de gestão, tende a homogeinizar a imagem das cidades. A cultura local, antes caracterizada como sinal de singularidade, está perdendo espaço para os modelos internacionais, é o processo de museificação urbana, onde, as cidades – de diferentes países e

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culturas diversas - se parecem cada vez mais entre si e com seus próprios cartões postais. Segundo Jacques (2003, p. 24): A memória de cultura local – o que a princípio deveria ser preservado – perde-se em prol da criação de grandes cenários para turistas. E o mais grave: na maior parte das vezes, a própria população local, responsável e guardiã das tradições culturais, é expulsa do local da intervenção, pelo processo de gentrificação.

Esse processo se dá visto ao momento cultural que estamos vivendo, a chamada cultura-econômica. Jacques (op. cit.) propõe classificar a cultura, simplificadamente,

em três momentos: a cultura-estética, a cultura-étnica e a

cultura-econômica, que também reflete na evolução histórica da noção de patrimônio – patrimônio estético, étnico e econômico - e, que a nosso ver, exprime os modelos de gestão política urbana de patrimônio no decorrer do processo histórico. Os dois primeiros momentos podem ser melhor entendidos no subcapítulo o 1.1. Sintetizando, o primeiro momento corresponde ao “patrimônio-estético”, onde se preservava basicamente obras de arte de claro valor estético, e monumentos históricos. O documento que mais representa essa fase é a Carta de Atenas de 1931. O segundo momento, classificado como “patrimônio-étnico”, é marcado pela Carta de Veneza (1964) e pela Recomendação de Nairóbi (1976). Nesse momento, começava-se a pensar na preservação da cultura popular e na arquitetura vernacular, “considera-se objeto de estudo de preservação tanto cidades sem valor propriamente artístico, mas representativas culturalmente para uma determinada comunidade ou região, quanto obras ou práticas imateriais” (JACQUES, op. cit., p. 35). O terceiro e último momento, que representa a fase atual é o “patrimônioeconômico”. “É nesse período que ocorre a mercantilização do patrimônio, principalmente por intermédio das revitalizações dos sítios históricos com fim comercial” (JACQUES, op. cit, p. 35). O turismo como forma de cultura é intensificado e as cidades tendem a receber novos visitantes interessados na cultura local. Jacques (loc. cit., grifo nosso) revela: 4

Um documento sintomático dessa situação é a carta revisada do ICOMOS sobre o turismo cultural de 1999. Outro sintoma é o interesse de bancos internacionais na preservação de patrimônios urbanos: enquanto o 4

International Council on Monuments and Sites – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, organização civil, ligada à UNESCO, que desenvolve técnicas, princípios e políticas de conservação, proteção e reabilitação do Patrimônio Cultural nos países membros.

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World Bank financia projetos, seminários e mesmo livros sobre o tema [...], o BID também lança um programa internacional de revitalização de sítios históricos urbanos, o "Monumenta", que exige a auto-sustentabilidade econômica das intervenções. Parcerias com o setor privado são estimuladas e, hoje, a preservação do patrimônio urbano já é considerada por muitos empresários um empreendimento lucrativo, que tem base no turismo cultural globalizado.

Para Jeudy (2005, p. 20), o valor simbólico e o valor de mercado no patrimônio urbano se confundem na gestão contemporânea, pois ele perde seu valor simbólico ao passo que se torna uma mercadoria como as outras. Para manter o seu valor simbólico seria necessário que os valores mercadológicos fosse excluído. Sendo assim, “a prospectiva patrimonial se vê confrotada com uma contradição: por um lado, os patrimônios não podem ser tratados como produtos de marketing, mas por outro, não existe desenvolvimento cultural sem comercialização ”. Jacques (2003) ainda problematiza o estado atual de cultura, identificando que esse momento de “cultura-econômica” não inclui as outras duas noções anteriores. O caráter estético e étnico deveriam ser complementares ao caráter econômico do patrimônio, mas não o são. E por conseguinte, ocorre uma banalização dessas noções e o patrimônio se torna um cenário espetacular. Sobre essa inexistência de relação desses conceitos, Carlos (2007, p. 95) exemplifica: Com a intenção de viabilizar economicamente a sobrevivência de conjuntos arquitetônicos em cidades e bairros históricos, arquitetos e técnicos envolvidos com a questão da conservação urbana, submetem tipologias históricas a parâmetros edilícios que desconsideram suas características culturais, realçando apenas “morfologias históricas”, que reduzem-nas a elementos de um cenário urbano artificial.

Os processos de intervenção na urbe consolidada estão divididos em duas correntes antagônicas. Uma mais conservadora, que preconiza a petrificação do espaço urbano, congelando-o e provocando uma museificação5, são os exemplos típicos de cidades-cenários; a outra, neomodernista, segue a ideia da Tabula Rasa, da apologia da grande escala, do capitalismo selvagem, cidade genérica e da urbanização generalizada. Em ambos, o resultado é bem semelhante e pode ser chamado de “espetacularização” das cidades contemporanêas (JACQUES, op. cit., p.33) Carlos (op. cit.) destaca as consequências da conservação de cidade históricas no mundo: fachadismo, gentrificação e museificação. Lynch (1981, p. 246 apud CARLOS, op. cit., p. 96), afirma que: 5

Transformação da cidade em museu.

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a preocupação com um absoluto “grau de pureza” arquitetônica conduziu às práticas fachadistas em zonas históricas, expondo contradições entre funções e aparências das edificações. Nesse sentido, [...] uma “vez que a função atual já não pode ser negada nas extensas áreas da cidade, são estabelecidos limites precisos: o exterior dos edifícios é restaurado, apesar de o seu interior ser irrelevante”.

O conceito de tabula rasa, aqui utilizado urbanisticamente, refere-se a admissão da destruição de edificações já existente para abertura de novas construções, sem qualquer ligação arquitetônica com a anterior. Dando a liberdade da criação edilícia, que marca a identificação do passar dos tempos, da evolução, da modernidade, da possibilidade do esquecimento dos estilos arquitetônicos anteriores. Para Jeudy (2005) não nos é mais permitido esquecer, haja vista que a conservação patrimonial exerce um papel de rememoração quase que obrigatório. Ele afirma que da mesma maneira que a conservação pode estimular nostalgia e encantamento, ela pode engendrar o ódio ao patrimônio. Atualmente, o conceito acima é utilizado nos projetos de intervenções, onde o ícone muitas vezes exerce um papel de prestígio nas revitalização dos centros urbanos. Hazan (2003, s.p.) define como ícone “construção de impacto, seja por sua localização estratégica, visibilidade, escala, forma, aparência, monumentalidade ou uso”. Esses ícones são definidos a partir de uma concepção política e faz parte de um planejamento estratégico, que visa a projeção da imagem de uma cidade. Sendo assim, essas intervenções não tem apenas um papel de revitalizar os centros como também, buscam capturar investimentos, principalmente de fontes turísticas, a fim de garantir a sobrevivência das mesmas. A arquitetura pode ou não ser concebida para se tornar um símbolo. Hazan (2003, s.p.) ainda completa: Os ícones da contemporaneidade chamam atenção, não apenas por sua escala e monumentalidade, mas também por agregarem a essas duas características o fato de serem projetados por arquitetos conceituados mundialmente, que com seu reconhecimento profissional, ajudam a mitificar essas construções desde a sua concepção.

Desta forma, a arquitetura proposta nesses projetos de intervenções pode ser espetacular, tanto do ponto de vista da sua escala como da simples assinatura do arquiteto que o concebeu, se o mesmo for reconhecido internacionalmente. Conferindo assim, status mundial para esses projetos, e lançando mão do recurso da venda da imagem da cidade para atrair turistas, atitude esta que podem menosprezar o valor do patrimônio histórico destas cidades.

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2. O CASO DA REVITALIZAÇÃO DO PORTO DO RECIFE No período da colonização, as relações comerciais e políticas entre as metrópoles européias e suas respectivas colônias dependiam totalmente dos seus portos. E muito da configuração espacial formadora de várias cidades brasileiras vem dessa relação com suas áreas portuárias (LAPA; BORGES, 2007). A história do porto do Recife está profundamente ligada ao surgimento e ao desenvolvimento socioeconômico e cultural do estado de Pernambuco e do Nordeste, por ter sido o ponto de trocas de mercadorias e abastecimento das capitanias do Piauí, Ceará, Paraíba, Alagoas e Sergipe (MACHADO, 2004).

No século XVI, começaram a se instalar diversos povoados de imigrantes europeus na área contígua ao Porto do Recife. A partir da economia açucareira toda a área ao redor do porto foi sendo urbanizada, construíram-se armazéns, prédios, sobrados e estabelecimentos comerciais. Porém, só com a presença dos holandeses, em meados do séc. XVII, é que houve melhorias significativas nas atividades portuárias (MACHADO, 2004). O Porto do Recife, com as características atuais, é proveniente da reforma que aconteceu em 1909 e duraram até 1918. Foi palco importante nas duas grandes guerras, servindo de base de apoio às Forças Expedicionárias Brasileiras e NorteAmericanas (MACHADO, 2004). De acordo com Llovera (1999 apud LAPA; BORGES, op. cit., p. 3): As mudanças na economia mundial, o crescimento do comércio internacional, o avanço nas técnicas de comunicação e o desenvolvimento do transporte multimodal, onde se sobressaem os contêineres, impulsionaram o surgimento de novas funções e de uma nova concepção do papel das áreas portuárias e de suas áreas urbanas próximas.

E continua: Atualmente, os navios de carga demandam portos mais bem equipados, de calados mais profundos e mais eficientes no armazenamento, manuseio e transporte das mercadorias. [...] O processo de conteinerização fez com que a posição geográfica do porto em relação aos mercados não mais representasse um fator de concorrência decisivo (loc. cit.).

Portanto, como alternativa desde a década de 1970, as principais cidades brasileiras instalaram portos maiores afastados dos limites urbanos. Como consequência, as áreas portuárias antigas sofreram uma diminuição dos seus serviços e da sua área de trabalho, o que resultou em espaços degradados e obsoletos (SOARES; MOREIRA, 2007).

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Os elementos de infra-estrutura que compõe as essas zonas portuárias mais antigas, normalmente, se apresentam em grandes parcelas do solo, tem características próprias, tem certa imponência, além de estarem inseridos nos grandes centros urbanos. Del Rio (2001, s.p.) completa: Nos últimos anos, com o fenômeno mundial de revalorização das áreas de frente de água, as alterações nas relações entre o indivíduo e o seu tempo de lazer, o crescimento do turismo cultural e temático, e a tendência à construção de fragmentos qualificados de cidade, destacaram as áreas portuárias por suas potencialidades paisagísticas, lúdicas, logísticas e imobiliárias, bem como pela “revalorização mediática do seu capital simbólico” (Viegas et al, 1995). O turismo recreativo, cultural, de compras e de negócios, tem se mostrado importante dinamizador econômico e social nos projetos de revitalização das áreas centrais, particularmente nas áreas portuárias e frentes de água, onde a simbiose histórica entre cidade e mar pode ser amplamente explorada e transformada num efetivo cenário – são os Festival Market Malls, as marinas, os aquários e museus, os centros de conferências, etc. Foi o caso de Baltimore e tantas outras cidades norteamericanas, de Sydney com a Opera House e o Darling Harbor, e, recentemente, com Bilbao e o museu Guggenhein.

Com o Recife não aconteceu diferente. A transferência de parte das operações do antigo porto para o Porto de Suape, situado a 40km do Recife, entre os municípios do Cabo e Ipojuca, no final dos anos de 1960, começa a reduzir a área operacional do porto, transformando grande parte da zona portuária do bairro do Recife em área obsoleta. “Estas áreas suscitaram discussões e planos para sua reocupação, implicando na transformação do Bairro, com a fixação da população residente e ampliação da oferta de comércio, serviços e lazer” (BRANDÃO, 2012, p. 107). Atualmente é executada na área uma intervenção denominada Operação Urbana Porto Novo Recife, que compreende uma faixa de 1.500m de cais marítimo, numa área de “aterros sucessivos realizados nos séculos XVIII e XIX decorrentes da expansão e reforma do Porto” (BRENDLE; VIEIRA, 2012, s.p. ). Sendo assim, a partir de uma metodologia de análise, far-se-á uma explicação sobre o projeto em questão, a fim de chegar aos objetivos proposto no trabalho e verificar quais os princípios norteadores de projetos que podem espetacularizar o patrimônio.

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2.1. Metodologia e critérios de análise

Dentro dos estudos feitos sobre espetacularização não foi encontrado critérios específicos para realização de análises sobre suas formas de classificação. Porém, a partir do que foi visto no Subcapítulo 1.3, pode-se enxergar a espetacularização em três grandes grupos, utilizados nos projetos de forma individual ou não, são eles: • Espetacularização Midiática; • Espetacularização Social; • Espetacularização Arquitetônica. A espetacularização midiática, como pode ser mais bem entendida no início do subcapítulo referido, desenvolve-se a partir das estratégias de marketing urbano. Esta estratégia tem a intenção de potencializar ou criar uma imagem da cidade para o mercado mundial, como forma de atração de turistas, empresários e até mesmo a própria população local. Essas políticas de reestruturação, onde a linguagem promocional tende a hiper-realizar a cidade, podem fazer com que os cidadãos aceitem mais facilmente esses projetos, que nem sempre traz reais benefícios. Dessa forma, a espetacularização social envolve o grau de participação popular nas intervenções urbanísticas. É necessário que a população, responsável pela memória cultural, se aproprie desses espaços, para assim, defender e exigir sua conservação, para que não seja segregada ou expulsa. Como mostrado na página 19 (JACQUES, 2004), existe uma relação inversamente proporcional entre espetáculo e participação popular, que não é absoluta e apresenta variações na proporção dessa escala de participação. Para medir essa espetacularização utilizaremos três critérios elaborados por Souza (2010) para o planejamento e gestão urbanos, mas que servem para esse trabalho. São eles: o escopo, o grau de interdisciplinaridade e o grau de participação popular. Sobre o escopo Souza (2010) fala em duas possibilidades no planejamento urbano. Podendo ser estritamente físico-territorial ou social-abrangente, este último, onde a parte espacial é apenas uma entre outras dimensões, mesmo que seja uma parte importante do planejamento. O grau de interdisciplinaridade pode variar desde muito pequeno, quando se trabalha apenas com a profissão do arquiteto, até o muito grande, no sentido da transdiciplinaridade. Passando pelo pequeno, médio e grande (SOUZA, 2010).

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No que concerne ao grau de participação popular, Souza (2010, p. 203-205) classifica da seguinte forma: 1. Coerção: situações normalmente encontradas em regimes ditatoriais ou totalitários, onde a população é obrigada a aceitar as intervenções; 2. Manipulação: “corresponde a situações nas quais a população envolvida é induzida a aceitar uma intervenção, mediante, por exemplo, o uso maciço da propaganda ou de outros mecanismos”. Neste caso o diálogo não é estabelecido, e a informação passada pelo responsável, não necessariamente é correta; 3. Informação: “neste caso, o Estado disponibiliza informações sobre as intervenções planejadas. [...] as informações serão menos ou mais completas, menos ou mais ‘ideologizadas’”; 4. Consulta: “o Estado não se limita a permitir o acesso a informações relevantes, sendo a própria população consultada”. Ele acrescenta que, na prática, argumentos técnicos são utilizados como justificativa para não incorporar as sugestões da população. 5. Cooptação: nessa classificação coopta-se indivíduos, como líderes populares, para aderirem a um determinado “canal participativo”. “A diferença em relação à consulta é que, nesse caso, instancias permanentes são criadas, não se limitando o Estado a promover pesquisas de opinião, audiências públicas ou similares”; 6. Parceria: situação onde o Estado e a sociedade civil organizada, através do diálogo e da transparência, colaboram para a viabilidade de uma intervenção. 7. Delegação de Poder: situação de co-gestão entre o Estado e a sociedade civil, onde o estado abdica de atribuições em favor da sociedade. 8. Autogestão: esta situação não se aplica à gestão baseada no sistema capitalismo + democracia representativa, e sim a um modo autogestionário, “sem a presença de uma instância de poder pairado acima da sociedade (Estado). [...] pressupõe a uma sociedade basicamente autônoma. Esses processos podem ser ilustrados com a figura a seguir.

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Figura 1 - Grau de participação popular

Fonte: SOUZA, 2010, p. 207

Podemos

identificar

uma

ligação

entre

o

escopo,

o

grau

de

interdisciplinaridade e o grau de participação popular, visto que, quando restringimos ao escopo físico-territorial, tende-se a trabalhar apenas com arquiteto ou arquiteto urbanista, o que põe limites a participação da população, que depende de outros indivíduos para sua participação autêntica. Por fim, a espetacularização arquitetônica, que, como exemplificado no subcapítulo 1.3 (ver p.22) pode ser divida em duas correntes antagônicas: a museificação e a tabula rasa. A museificação acontece quando tenta-se congelar o espaço urbano, numa época que já não existe mais. Esse processo de intervenção mais conservador tende a transformar a cidades grandes cenários para turistas, espetacularizando assim a cidade. Já o conceito de tabula rasa aplicada a esse trabalho, permite que os planos de revitalização introduzam novo elementos arquitetônicos, pertencentes à arquitetura pós-moderna e aqui denominados por ícones. A espetacularização nesse sentido ocorre tanto pela escala monumental da arquitetura, quanto pelo status do arquiteto que o concebeu. Sob o ponto de vista destes três grandes grupos, iremos analisar o projeto Porto Novo Recife, em ambas as propostas intervencionistas existentes, para assim, ser possível identificar quais os fatores que fazem com que as políticas públicas de intervenção sobre sítios históricos resultem na "espetacularização" desse projeto.

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2.2. Porto Novo Recife (Núcleo Técnico de Operações Urbanas NTOU/Governo do Estado)

Primeiramente foi elaborado um projeto de intervenção pelo Núcleo Técnico de Operações Urbanas (NTOU), coordenado pelo arquiteto Zeca Brandão. Esse núcleo inicialmente fazia parte da Secretaria de Planejamento e Gestão, e hoje, faz parte da Secretaria das Cidades do Governo do Estado de Pernambuco. Esse projeto abrange parte dos atuais Cais do Recife e de Santa Rita, com frentes d'água voltados para as bacias dos Rios Beberibe, Capibaribe, Pina e Jordão, numa faixa de 1,5 km de cais marítimo. Como pode ser visto na figura abaixo, seriam duas etapas (ver fig. 2), a primeira compreenderia os armazém 7 à 14, no Bairro do Recife. A etapa dois compreenderia os armazéns 15, 16, 17 e 18, além, do edifício Pescado Silveira - edificação de valor arquitetônico e representativo do estilo modernista, com autoria de um arquiteto muito relevante para o estado, Luís Nunes. Figura 2 - Etapas do Projeto Porto Novo Recife

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades-PE

A ideia original era de que toda a primeira etapa fosse construída com recursos públicos e posteriormente arrendada por empresas privadas. Para a etapa 2, os estudos apresentados pelo NTOU, se restringiram a nível de master plan, portanto, toda a área seria arrendada, inclusive a construção e reforma dos armazéns.

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Esse projeto fez parte de um plano estratégico para a Região Metropolitana do Recife, onde, a partir de um projeto, vários benefícios são agregados para a população e para a cidade. Por exemplo, os projetos que envolvem a Copa do Mundo 2014. A operação Urbana Cais do Porto é uma delas, onde envolve exigências da FIFA, mas com o pensamento de deixar para a população um legado concreto desse projeto. O conceito de integração urbana aplicada foi utilizado pela equipe, onde buscou-se conectividade, mix funcional, reciclagem de galpões, requalificação dos espaços públicos. A imagem a seguir mostra a integração do molhe6 de proteção, construído sobre uma barreira de arrecifes original, a área dos galpões do Programa de Revitalização de Áreas (REVAP)7, a cruz do patrão8, o entorno da Igreja do Pilar9 e o Parque do Forte do Brum, elementos estes, de estimado valor histórico e cultural para a cidade do Recife. (GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO). Figura 3 - Integração Urbana da área

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades-PE 6

Paredão nos portos marítimos, a modo de cais, destinado a proteger das vagas do mar as embarcações, podendo dispor de berços para atracação; quebra-mar (Dicionário eletrônico Houaiss, v.3.0, 2009). 7 Programa de Revitalização de Áreas Portuárias - REVAP, da Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ. 8 Datada do século XVIII (1745-1776), o marco é formado por uma negra coluna dórica, tendo no alto uma cruz. Servia de ponto de balizamento para a entrada dos navios no porto a partir de seu alinhamento com a torre da igreja de Santo Amaro das Salinas. A coluna foi construída no meio do istmo, mas atualmente se encontra a beira do cais que a protege da erosão fluvial. Disponível em: Acesso em: 10 de Agosto de 2013. 9 Monumento nacional, inscrito nos Livros de Tombo Histórico e de Belas Artes, a Igreja de Nossa Senhora foi construída no antigo Istmo do Recife, entre os anos de 1680 e 1683, com os materiais do Forte de São Jorge, invadido pelos holandeses. Disponível em: Acesso em: 10 de Agosto de 2013.

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A proposta teve por objetivo conciliar os seguintes interesses (BRANDÃO, 2012): a) Porto do Recife, visando transformar sua área não-operacional em geração de renda; b) Investidores privados, como forma de atrativo de investimento dos mesmo para a área; c) Poder público, pelos ganhos tributários e sociais que esses investimentos deverão propiciar Segundo Zeca Brandão (informação verbal)10: Nesses projetos existe uma tendência a segregar, a ficar um fragmento fora da cidade, e essas áreas são sempre nos centros urbanos que estão decadentes. E de repente você entra com investimento nessas áreas, e essas áreas levantam, mas não levam esse desenvolvimento pro entorno.

A partir de critérios que valorizassem o desenho urbano, tirassem o máximo proveito do espaço público (áreas livres) e integrasse o Cais com seu entorno, a equipe do NTOU, propôs dinamicidade através do programa de necessidades do projeto. A proposta procurava similaridade entre o futuro uso dos armazéns com os tipos de atividades já existentes na redondeza, caso do Armazém 14, onde funcionava, mesmo que precariamente, um teatro. Diante disso, a intervenção desenvolveu-se a partir de três modelos (fig. 4 e 5) de ocupação (BRANDÃO, 2012)11: 1. Ocupação por inserção de novo elementos pré-existentes com manutenção da leitura do galpão, mas com possibilidade de alterações volumétricas e das fachadas - referentes aos armazéns 10, 11, 12, 13, 16 e 17. 2. Ocupação apenas no interior do edifício, com manutenção e restauração da volumetria e das fachadas originais - referente ao armazém 14 e ao edifício do Pescado Silveira; 3. Ocupação por substituição de estruturas - referente à demolição do armazém 15 e implantação de novas estruturas edilícias de natureza distinta da original.

10

Depoimento à Eva Passavante, em Agosto de 2013 No livro, Brandão não faz menção aos armazéns 7 e 8, porém, em outra parte do texto, inclui o armazém 9 no grupo “1”.

11

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Figura 4 - Porto Novo 1 - Cais do Porto

Figura 5 - Porto Novo 2 - Cais de Santa Rita

Fonte: BRANDÃO, 2012, p.127

Fonte: BRANDÃO, 2012, p.120

O primeiro plano de uso para o Porto Novo 1 (fig. 6) estaria distribuído da seguinte forma: O armazém 7 e 8 seria o Terminal Marítimo de Passageiros; o armazém 9, o Museu Luiz Gonzaga; o armazém 10, a casa do artesanato; os armazéns 11, 12 e 13 funcionariam para comércio e serviços; o armazém 14 continuaria como teatro, e a área ainda seria contemplada com um Museu da Capitania e um edifício garagem. Posteriormente, houveram algumas mudanças, basicamente de relocamento de usos entre os armazéns e definição da área ao lado do armazém 10 como praça cultural (na fig. 7 em azul claro). Figura 6 - Primeiro Plano de Uso - Porto Novo 1 - Cais do Porto

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE

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Figura 7 - Segundo Plano de Uso - Porto Novo 1 - Cais do Porto

Fonte: a autora, segundo NTOU, Secretaria das Cidades - PE

O plano de uso baseou-se no misto de comércio, de serviços e escritórios; atividades de lazer, turismo e convenções; e estacionamento. Para isso, a distribuição se daria, para os armazéns 9, 12 e 13, da seguinte forma: no térreo estariam os bares, restaurantes, lojas e equipamentos de lazer; e nos mezaninos e pavimentos superiores seriam locados os escritórios. Desta forma, explica Brandão (informação verbal)12, o espaço poderia ser utilizado em todos os horários do dia, pela manhã, com a movimentação dos escritórios e a noite com a dinâmica das áreas de lazer. Sendo assim, o armazém 9, no segundo plano de uso, fica com a parte de comércio e serviço. O armazém 12 seria um pavilhão de feiras mais escritórios e no armazém 13, pólo gastronômico mais escritórios (fig. 8 à 10): Figura 8 - Proposta Armazéns 9

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE 12

Depoimento à Eva Passavante, em Agosto de 2013

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Figura 9 - Proposta Armazéns 12

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE Figura 10 - Proposta Armazéns 13

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE

Como é possível perceber, esses três galpões estão no grupo 1, que permite introdução de novos elementos para adequação do novo uso. Nesse sentido, Brandão (2012, s.p., grifo nosso) diz que as intervenções nos armazéns 9, 12 e 13 devem: [...] Transformar os armazéns em edifícios com até dois pisos úteis e arranjos flexíveis que comportem variações, como inserção de mezaninos ou espaços com pés-direitos duplos. Considera-se a possibilidade de substituição dos fechamentos em alvenaria e avanços volumétricos para além da linha da fachada, como balcões em balanço ou decks avarandados, contanto que seja mantida a estrutura original. A leitura de galpão é garantida externamente com a permanência da volumetria geral do edifício e internamente com a manutenção do pé direito único nas suas extremidades, funcionando como grandes entradas dos equipamentos e permitindo a leitura espacial original dos armazéns [ver fig. 11 à 14].

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Figura 11 - Corte transversal armazéns 9, 12 e 13

Figura 12 - Perspectiva interna armazéns 9, 12 e 13

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE

Figura 13 - Perspectiva - Armazém 9

Figura 14 - Perspectiva - armazéns 12

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE

O armazém 7 ficou determinado para o Terminal Marítimo de Passageiros (TMP), que em uma intervenção mais antiga, tinha sido locado no armazém 12, mas não funcionava bem por diversos motivos. O principal motivo era que o calado deste último não era compatível com os atuais navios de passageiros, portanto os turistas deveriam atracar próximo ao armazém 7, e fazer o deslocamento com vans até o armazém 12. Sendo assim, na Operação Urbana Cais do Porto resolveu-se transferir o terminal para o armazém 7. É importante esclarecer que a intervenção no armazém 7 já está em fase de conclusão, e que essa é a segunda intervenção realizada no mesmo, que em 2010, foi reformado para abrigar o atual receptivo turístico. O armazém abrigará [...] espaço de lazer e serviços, com restaurantes, lanchonetes, cafés e lojas, e as salas de embarque e desembarque, com raio X, alfândega, esteiras rotativas e portões de chegada e partida. Na planta, ainda está previsto memorial do Porto do Recife, onde serão vistas fotografias, plantas e objetos do mais antigo porto de Pernambuco (Disponível em

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Acesso em: 10 de Agosto de 2013).

Na área em frente ao armazém 7 (fig. 15), foi instalado um outro edifício com característica pós-modernista, denominado de Sala Pernambuco. Este edifício conta com uma fachada em estrutura metálica que, segundo o arquiteto criador Moises Andrade, lembra um barco de papel13. A Sala Pernambuco possui três pavimentos: O térreo, onde existem vagas de estacionamento coberto para 30 carros; o primeiro andar, onde está localizado o check-in, que divide espaço com a “arena” de manifestações culturais; e o pavimento mais alto, onde estão as salas dos órgãos envolvidos, como Polícia Federal, Anvisa, Receita Federal e a administração local (Disponível em Acesso em: 10 de Agosto de 2013). Figura 15 - Proposta armazéns 7 e Sala Pernambuco

Fonte: http://www.copa2014.gov.br

Segundo Brandão (informação verbal)14, o armazém 8 seria reservado para dar suporte ao Terminal Marítimo de Passageiros, visto que o mesmo foi projetado para a capacidade atual e a tendência era que essa capacidade fosse aumentada com a Intervenção no Cais do Porto. Esse armazém na época do projeto estava alugado para um moinho e estariam apenas aguardando o término do contrato de locação para sua inserção no plano de revitalização. Para o armazém 10, estava prevista a instalação do Museu Luiz Gonzaga. A praça ao seu lado, comumente chamada de Praça do Murinho (fig. 16), serviria como área de lazer e espaço de integração entre os galpões 10 e a Central do Artesanato, situada no armazém 11 (fig. 17).

13

Informação disponível em Acesso em: 10 de Agosto de 2013. 14 Depoimento à Eva Passavante, em Agosto de 2013.

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Figura 16 - Praça do Murinho (em amarelo)

Fonte: http://www.copa2014.gov.br Figura 17 - Perspectiva externa armazém 11 - Central do Artesanato

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE

A Central do Artesanato, de autoria de Carlos Augusto Lira, contempla auditório, área de exposições, Centro de Atendimento ao Turista e um restaurante com capacidade para 400 pessoas15. Esta intervenção foi a primeira do master plan a ficar pronta, em Setembro de 2012.

15

Figura 18 - Armazém 11 - Central do Artesanato (vista pro rio)

Figura 19 - Armazém 11 - Central do Artesanato (vista pra Praça do Marco Zero)

Fonte: www.pernambuco .com

Fonte : http://3.bp.blogspot.com

Informação disponível em Acesso em: 10 de Agosto de 2013

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O armazém 14, classificado no modelo 2, não sofreria alteração de fachada nem de volumetria. Essa edificação tem elementos característicos do período da arquitetura eclética e, portanto, o envelope do edifício, deve ser restaurado (fig. 20). Seu uso seria mantido, condizente com o que funciona atualmente, um teatro, acrescido com uma área para boliche. E assim como os armazéns 9, 12 e 13, na sua entrada principal deveria manter o pé-direito único, afim de não perder a leitura de galpão. A praça ao lado do Armazém 14 funcionaria como uma praça de eventos (fig. 21). Figura 20 - Perspectiva externa - armazém 14

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE Figura 21 - Praça de eventos - ao lado do armazém 14

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE

O segundo trecho do projeto de intervenção, situado no Cais de Santa Rita, corresponde aos armazéns 15, 16, 17 e 18, além do edifício Pescado Silveira (fig. 22 e 23) - pertencente na época do projeto à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Para essa etapa, o NTOU propôs, a título de master plan, que os armazéns

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16, 17 e 18 fossem transformados em um Centro de Convenções e a área do armazém 15 junto com o Pescado Silveira fosse transformado em um hotel-marina. Para Brandão (2012, p.119, grifo nosso): O conjunto formado pelo edifício do Pescado Silveira e o armazém 15 demanda uma abordagem especial. Considera-se que o edifício do Pescado, da mesma maneira que o armazém 14, apresenta características bem definidas de um pensamento arquitetônico típico de uma determinada época. Merece, portanto, ser valorizado devendo ser referencial para as novas intervenções propostas no seu entorno. Sendo assim, as novas ocupações devem ser balizadas pelas suas características, abrindo-se mão da conservação do armazém 15 - que sendo uma repetição do mesmo modelo dos anteriores, não acarretaria em perda da memória do seu padrão arquitetônico. Figura 22 - Armazém 15 e edf. Pescado Silveira

Figura 23 - Edifício Pescado Silveira

Fonte: BRANDÃO, 2012, p.115

Fonte: BRANDÃO, 2012, p.115

A proposta para o conjunto de edificações que substituiriam o armazém 15 era que eles remetessem ao padrão de ocupação do edifício Pescado Silveira - torre sobre pódio. Sendo assim, o programa se distribuiria da seguinte maneira: “na barra horizontal, administração e apoio do hotel e da marina e o estacionamento; no terraço (cobertura da barra horizontal), a área de lazer do hotel (piscina, bar, restaurante, etc.); nas torres, os apartamentos do hotel” (BRANDÃO, 2012, p. 122). Em depoimento à autora, Brandão ainda acrescenta que, entre os novos edifícios e o Pescado Silveira, haveria um tratamento de fachada parecido, com intenção de manter uma leitura do conjunto (fig. 24). Para a parte do Centro de Convenções, correspondentes aos armazéns 16 à 18, “o programa distribui-se da seguinte maneira: térreo - lojas, área livre, apoio/serviços do centro de convenções e estacionamento; e pavimentos superiores - centro de convenções” (BRANDÃO, 2012, p. 122). A intenção de locação de lojas no pavimento térreo era de criar uma alameda comercial na rua que existe entre os

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galpões 17 e 18. Pela figura 25, é possível observar também o desejo de manter a estrutura dos galpões existente. Figura 24 - Edifício Pescado Silveira e área do armazém 15

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE Figura 25 - Armazéns 16, 17 e 18.

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades - PE

Após a construção do master plan, várias empresas mostraram-se interessadas em investir nesse projeto. A partir disso, o governo estadual resolveu que apenas os armazéns 7, 10 e 11 seriam construídos com recurso público, além, da parte urbanística do projeto. Os demais, armazéns 9, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e o edifício Pescado Silveira, seriam licitados para arrendamento, sendo a empresa arrendatária responsável pelas intervenções, que não ficou vinculada ao projeto do NTOU. Sobrando o armazém 8, que não foi integrado ao projeto de revitalização do Porto, devido a sua locação com finalidade de depósito de um moinho. Porém, nesse processo, ocorre uma mudança brusca na intervenção do armazém 10: sua demolição. Essa decisão ocorre, sob a alegação de que, com a

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demolição, estabeleceria uma relação direta de um bem tombado - Torre Malakoff16, com a abertura de um grande vão no nível do pedestre na frente da torre. O projeto é do escritório Brasil Arquitetura, onde um dos arquitetos responsáveis, Francisco Fanucci (apud SERAPIÃO, 2011, s.p.) define: Inicialmente, a ideia era ocupar um galpão que existe no porto e construir outro volume ao lado. Estamos fazendo algo parecido: no espaço que estava vazio [a Praça do Murinho] se erguerá um edifício usando alguns elementos do antigo, que será demolido para dar lugar a um bloco novo (fig. 26 e 27). Figura 26 - Imagem aérea - Armazém 10.

Armazém 11 Armazém 10

Praça do Murinho Armazém 09

Fonte: A autora, segundo BRENDLE; VIEIRA, 2012 s.p. Figura 27 - Perspectiva aérea - Cais do Sertão. Torre Malakoff

Armazém 11 Antigo Armazém 10

Antiga Praça do Murinho

Armazém 09

Fonte: A autora, segundo BRENDLE; VIEIRA, 2012s.p.

A proposta do Escritório Brasil Arquitetura é criar o Cais do Sertão Luiz Gonzaga composto por dois volumes (fig. 27, 28 e 29) que se conectam através de uma praça com marquise e abertura para um Cajueiro, onde um dos volumes é uma

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A Torre Malakoff, antigo Observatório Astronômico e Portão Monumental do Arsenal da Marinha, funciona hoje como um espaço cultural, tombado como monumento histórico pela Fundape em 1992, durante décadas orientou as navegações que saíam e chegavam ao Porto do Recife. Disponível em Acesso em: 11 de Agosto de 2013.

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“‘reconstrução volumétrica’ caricatural e mimética do armazém portuário tipo” (BRENDLE; VIEIRA, 2012 s.p). O outro volume nada condiz com a paisagem circunvizinha, é composto por um bloco retangular, onde o que se destaca na fachada são cobogós (fig. 28). O projeto propõe “mergulhar” no sertão, conduzindo o espectador à experiências como “ocupar o sertão”, “viver no sertão” e “trabalhar no sertão”. O roteiro é indicado a partir do Rio São Francisco, como guia de condução no espaço. O edifício possui ainda biblioteca e discoteca multimídia, espaço para exposições temporárias, auditório com 260 lugares, oficinas, salas de múltiplo uso e restaurante na cobertura (SERAPIÃO, 2011, s.p.). Figura 28 - Perspectiva - Cais do Sertão e Torre Malakoff

Figura 29 - Perspectiva - Cais do Sertão

Fonte: http://www.arcoweb.com.br.

Fonte: http://www.arcoweb.com.br.

Por fim, para melhor analisar a espetacularização no projeto de revitalização do Porto Novo Recife, faz-se necessário esclarecer os contrapontos do projeto da iniciativa privada, correspondentes a intervenções nos armazéns 9, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18 e o edifício Pescado Silveira.

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2.3. Porto Novo Recife (Gerencial Brasitec) Como explicado anteriormente, o projeto de intervenção Porto Novo Recife foi elaborado parte pelo Governo do Estado e parte pela iniciativa privada. Como o Porto do Recife é uma área integrada ao Programa de Revitalização de Áreas Portuárias - REVAP, da Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ, o edital da licitação para arrendamento, elaborado pelo Porto do Recife, foi a continuidade do edital da ANTAQ em 2010. A licitação de arrendamento ocorreu em novembro de 2011 na modalidade concorrência, do tipo maior oferta, com o objetivo de arrendar as áreas portuárias não operacionais do Porto do Recife, para a implantação de “complexo integrado comercial, hoteleiro, de convenções e exposições”17. Os espaços arrendados foram: o armazém 9, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, Antigo Prédio da Conab (Pescado Silveira), além das áreas contíguas aos armazéns 14, 15, 16, 17 e 18. O edital descreve as áreas que seriam arrendadas identificando o número do armazém, a época da construção, a sua área, tipo de estrutura, tipo de fundação, tipo de parede, tipo de coberta, além da função para o qual foi construído, carga admissível e finalidade na intervenção atual. Para o armazém 9 ficou determinado (grifo nosso): Implantação, manutenção e exploração comercial de escritórios para o desempenho de atividades comerciais compatíveis com o plano de desenvolvimento urbano da cidade, com ar-condicionado central, automação predial, gerador, controle de acesso por cartão magnético, CFTV – circuito fechado de TV e vagas de garagem privativas para todas as unidades;

Para os armazéns 12, 13 e 14: Implantação, manutenção e exploração comercial de restaurantes, bares, lojas de entretenimento e comerciais, locais para exposições e eventos fechados, contendo número de vagas de garagem compatível;

Para o armazém 15, o antigo prédio da Conab e as áreas contíguas: Implantação, manutenção e exploração comercial de hotel e/ou apartamentos de longa estada, com no mínimo 200 (duzentas) unidades, observando o padrão igual ou superior a 3 (três) estrelas, com restaurantes, lojas, bares, salas de reunião, piscina, academia de ginástica e contendo número de vagas de garagem compatível;

Para os armazéns 16, 17 e a área entre os dois: Implantação, manutenção e exploração comercial de Centro de Convenções e exposições integrado ao hotel, com capacidade mínima de 4.000 (quatro 17

Edital nº 007/2011. Disponível em Acesso em: 1 de agosto de 2013

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mil) pessoas, com espaços modulares para possibilitar o maior número de eventos possíveis e contendo número de vagas de garagem compatível.

E para o armazém 18 e suas áreas contíguas fica determinado como área de expansão com posterior definição do uso. A ganhadora dessa licitação foi a empresa Gerencial Brasitec Serviços Técnicos, subsidiária da Companhia Excelsior de Seguros, que criou, junto com as empresas GL Empreendimentos e Maxxima Empreendimentos, a Sociedade de Propósito Específico (SPE) com o nome Porto Novo Recife S.A. A SPE, de acordo com o edital, tem o direito de explorar a área durante 25 anos, prorrogáveis pelo mesmo período. A intenção deste subcapítulo era descrever o projeto, o programa de necessidades e o partido arquitetônico. Porém, não há muita divulgação deste projeto e após tentativas de contato com a empresa ganhadora da licitação, com o próprio Porto do Recife e com o a empresa do arquiteto responsável pelo projeto JCL arquitetos, não foi informado e nem cedido nenhum material sobre o mesmo, que pudesse ser feito uma análise detalhada, como no projeto do NTOU. Portanto, a análise aqui apresentada será feita com base no que já foi executado do projeto, com informações divulgadas pela mídia e com complementação das informações cedidas por Zeca Brandão18 em depoimento a autora. O Termo de Referência do edital da ANTAQ denomina de Festival Center o conjunto dos armazéns 12, 13 e 14. Essa denominação, diferentemente no NTOU, continuou sendo utilizada no projeto da Gerencial Brasitec. Segundo Falcão (2013, s.p.): A área do armazém 12 será uma grande praça de alimentação com 16 lanchonetes, cafeterias, sorveterias e pequenos restaurantes. Terá ainda uma academia. No armazém 13, haverá um grande restaurante e um bar. O outro galpão será destinado a casa de shows.

Para Romero Maranhão Filho, um dos sócios da SPE, há um potencial para restaurantes e academia no bairro, visto que naquela área existem muitas empresas, além do público residencial dos edifícios de alto padrão que foram e estão sendo construídos na área. No Festival Center ainda haverão 350 vagas de estacionamento19. Em depoimento à autora, Zeca Brandão informa que, no projeto da iniciativa privada, a área ao lado do armazém 14 foi transformada em 18

Secretario Executivo do Núcleo Técnico de Operações Urbanas do Governo do Estado de Pernambuco 19 É importante ressaltar que nada foi divulgado sobre o armazém 9.

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estacionamento. A primeira imagem da figura 30 dá a entender que a informação passada por Brandão procede. O empresário Sérgio Petribú Bivar20, da empresa Porto Novo Recife S.A., diz que no Festival Center terão 6 cinemas, um boliche e praça de alimentação. Dessa forma, comparando com as informações dos dois últimos parágrafos, é possível perceber a inexatidão de divulgação sobre o projeto para a população local. Figura 30 - Divulgação Festival Center

Fonte: JC ONLINE, 2012

As imagens divulgadas pela SPE mostram que a volumetria dos galpões é mantida, porém a leitura externa de armazém perde-se um pouco (fig. 31 e 32).

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Figura 31 - Perspectiva - Armazém Festival Center

Figura 32 - Perspectiva - Frontal Armazém Festival Center

Fonte: JC ONLINE, 2012

Fonte: JC ONLINE, 2012

Informação disponível em < http://pedesenvolvimento.com/2012/10/11/um-novo-porto-no-recife/> Acesso em: 11 de Agosto de 2013

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Além do Festival Center, a Gerencial Brasitec arrendou o armazém 15 e o edifício Pescado Silveira (antigo edifício da Conab) para transformá-los num HotelMarina. Optou-se por demolir ambos os edifícios e construir no local um prédio de característica edilícia pós-modernista (fig. 33), diferente das edificações do entorno. Figura 33 - Hotel-Marina

Fonte: JC ONLINE, 2012

Para os armazéns 16, 17 e 18, pré-determinados para servirem como Centro de Convenções, assim como no hotel-marina, não sabe-se nada do programa de necessidades nem da distribuição interna do edifício. A partir da perspectiva divulgada (fig. 34), pode-se perceber que não houve um esforço em manter a leitura arquitetônica de armazém. Figura 34 - Centro de Convenções

Fonte: JC ONLINE, 2012

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Com os devidos esclarecimentos sobre os dois projetos e todo o processo de transição entre eles, é possível analisá-los do ponto de vista da espetacularização e da conservação, a partir dos conceitos descritos no capítulo 1. Sendo assim, optouse por fazer no próximo subcapítulo essa análise pormenorizada, para que o entendimento fique mais legível para o leitor.

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2.4. A Espetacularização e a conservação na intervenção do Porto Novo Recife

A partir do que foi descrito nos dois subcapítulo anteriores junto com os conceitos do capítulo 1, é possível verificar os tipos de espetacularização, decorrentes dos princípios norteadores deste projeto. Primeiramente, o administrador local optou por fazer a revitalização da área estudada com bases num evento - a Copa do Mundo 2014, que aliado ao planejamento estratégico, exemplificado por Sanchez (ver p. 19), demonstra a intenção de vender a cidade como um espetáculo turístico para o mercado global. O que é visto com preocupação, pois muitas vezes, quando confrontado com a atração de investimento e de turistas, a conservação do patrimônio cultural é colocada em segundo plano. "A estratégia considerou o redesenho de partes de projetos anteriormente propostos para a área portuária, em função de oportunidades específicas, como a Copa do Mundo de 2014" (Brandão, 2012, p.112). Uma das formas de espetacularização midiática é a divulgação onde se tenta passar uma imagem especial, incomum, diferenciado, do lugar (ver p. 19). Antônio Rueda, diretor da SPE Porto Novo Recife, expõe essa proposta no projeto, e ainda revela a intenção de atrair o turismo internacional: Este é um projeto inovador em que resgatamos a identidade do Recife Antigo. O hotel será um lugar diferenciado, porque é o primeiro que ficará literalmente à beira-mar do Recife, com 300 apartamentos, marina internacional, e vai trazer o turismo náutico internacional. Um empreendimento que vai gerar mais de 3 mil empregos e vai mudar a cara do Recife” (Disponível em Acesso em: 30 de julho 2013)

O hotel poderia ser atrativo do ponto de vista da paisagem do porto, da maneira como conservaria a forma edilícia local (caso optar-se pela manutenção dos edifícios antigos), da qualidade do serviço, mas o diretor o diferencia pela sua localização. Cabe ainda dizer aqui que, com a demolição dos edifícios ali existentes para construção de edifícios com características arquitetônicas contemporânea, que interrompem a paisagem do porto, de fato, não é uma forma de resgatar a identidade do Recife, e sim de “mudar a cara” da cidade. Valendo-se das estratégias de city marketing, os responsáveis apontam os possíveis benefícios do projeto de revitalização, como a modernidade e o acesso da população, mas no fim demonstra o interesse econômico vindo com o projeto - o que caracteriza uma espetacularização midiática.

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A população terá acesso à beira do cais, desfrutando de equipamentos modernos, e o porto terá um acréscimo de receita com os arrendamentos e aluguéis, diz a antiga presidente do Porto do Recife, Marta Kümmer. (Disponível em: Acesso em: 30 de julho 2013).

Por outro lado, seguindo o princípio de integração urbana, o arquiteto do projeto defende (BRANDÃO, 2006 apud BRANDÃO, 2012, p. 116, grifo nosso): Se concessões devem ser feitas para que o projeto seja atraente do ponto de vista econômico, algumas restrições também devem ser impostas – o cerne conceitual da proposta é a valorização do caráter público do lugar, a possibilidade da população usufruir os espaços costeiros, os usos poderem propiciar uma vivência democrática e permanente da cidade e que a intervenção extrapole a importância local e potencialize a revalorização da região central da Região Metropolitana como um todo.

A venda da cidade para o mercado global continua nas estratégias de city marketing, mais uma vez voltadas no sentido de modernização para o turista, demonstrando assim a espetacularização midiática (BRANDÃO, 2012, p. 116): [...] com o afluxo de pessoas necessidade de hospedar ou importância. Essa tendência acrescentar ao programa internacional.

à área, o potencial turístico se eleva e a dar apoio hoteleiro aos visitantes ganha termina por acarretar a necessidade de equipamentos hoteleiros de nível

Para Pedro Mendes, antigo presidente do Porto do Recife: É uma transformação como aconteceu em outros países, que transformaram sua área portuária em complexo turístico e até hoje vem dando certo. Toda a perspectiva desse nosso trabalho é que tudo fique pronto antes da Copa. (Disponível em < http://g1.globo.com/pernambuco /noticia/2012/05/projeto-promete-transformar-area-do-porto-do-recife-emcomplexo-turistico. html> Acesso em: 10 de Agosto de 2013).

Esses discursos são resultados da linguagem promocional utilizada como aliado político nas reestruturações urbanas e seu efeito é a espetacularização midiática. Assim, como descreve Sanchez (ver p. 19) essa midiatização interfere na forma que a população enxerga esses projetos, e consequentemente, pode fazer com que valorizem ou não o seu patrimônio. É a população que detém a cultura local e que pode defender um bem de uma intervenção arbitrária. É ela também que, deixando-se levar pela informação equivocada, pode destruir seu patrimônio. A espetacularização social nesse projeto se deu desde o inicio do mesmo, quando o Governo do Estado listou os interessados (ver p. 31) e, esta lista, não contemplava a população. Na proposta do NTOU, a espetacularização social pode ser classificada, no grau de participação popular, como pseudoparticipação - no grau de “Informação”. A

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informação sobre o projeto foi divulgada, porém o diálogo com a população não foi estabelecido21 e a informação não foi completa, haja vista, as informações truncadas sobre as mudanças no projeto. Quanto ao grau de interdisciplinaridade, segundo Zeca Brandão22, pode-se classificar como pequeno, pois os profissionais envolvidos no projeto foram arquitetos e arquitetos-urbanistas. E quanto ao escopo, corresponde apenas ao físico-territorial, não abrangendo o social. Apesar disso, vê-se no projeto elaborado pela equipe do NTOU, que há uma intenção de fazer uma intervenção voltada não apenas a revitalização econômica da área, mas para dinamização com “valorização do caráter público do lugar” (ver página anterior). Já o projeto da iniciativa privada, diferentemente do projeto do NTOU, tem um caráter de espetacularização social maior, podendo ser enquadrado no grau de pseudoparticipação “Manipulação”. A espetacularização, nesse caso, se dá pela falta de informação divulgada para população, onde a mesma, não sabendo sobre o projeto, perde um pouco do poder de decisão sobre o uso daquela área. E como dito anteriormente (ver p. 26), a população detém grande parte do poder de conservar um patrimônio a partir da forma como lhe é permitido se apropriar daquele bem. Mas como é possível se apropriar desse novo porto sem participar dele ou compreendêlo? Pode-se dizer aqui que o grau de participação popular se aproxima do grau de “Coersão”, onde a população é quase que obrigada a aceitar a intervenção. A espetacularização social também acontece por meio da valorização imobiliária que implique na mudança da composição social dos habitantes daquela área (ver p. 20). “[...] Futuramente, prevemos uma demanda turística por conta de todos os investimentos que estão sendo feitos para requalificação do Recife Antigo e ainda um público residencial, por conta do projeto imobiliário do Cais José Estelita e dos imóveis de alto padrão que estão sendo construídos em Santo Amaro e na Rua da Aurora”, comenta um dos sócios da empresa da iniciativa privada, Romero Maranhão Filho (apud FALCÃO, 2013, s.p., grifo nosso).

Essa forma de espetacularização vai de encontro com um dos princípios da Conservação Integrada (ver p. 15), que diz que “A recuperação de áreas urbanas degradadas deve ser realizada sem modificações substanciais da composição social

21 22

Informação dada por Zeca Brandão em depoimento a autora. Informação dada por Zeca Brandão em depoimento a autora.

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dos residentes nas áreas reabilitadas”. Afinal, a conservação do patrimônio depende, em grande parte, do valor cultural que é atribuído à ele, e a cultura representa a identidade da população local (ver p. 21). “Ora, é a consciência do passado que permite criar uma identidade comum entre este, o presente e o futuro” (LACERDA, p. 47, in LACERDA; ZANCHETI, 2012). Ou seja, é a consciência do passado que faz conservá-lo para o futuro, e só se pode ter consciência do passado se apropriando do mesmo. Por fim, a espetacularização arquitetônica que, como exemplificado no subcapítulo 1.3 (ver p.22) pode ser divida em duas correntes antagônicas: a museificação e a tabula rasa. A espetacularização arquitetônica ocorre desde o início nessa intervenção. O edital de licitação para arrendamento das áreas não-operacionais do Porto do Recife estabelece no item “4.4 DAS OBRAS FUTURAS”23: I. As obras necessárias para o desenvolvimento das novas funções devem, sempre que possível, ser adaptadas à forma dos armazéns portuários cuja volumetria deverá ser mantida. [...] III. Pequenos saques e marquises poderão ser utilizados a fim de permitir as adaptações necessárias, bem como para individualizar as unidades dos imóveis, devendo, porém, permanecer clara a memória do Porto e sem descaracterizar suas instalações. [...] IX. No Cais de Santa Rita as construções existentes poderão ser substituídas por equipamento de hotelaria e marina flutuante.[...]

No projeto inicial do NTOU, a espetacularização ocorre apenas no sentido de tabula rasa, quando a equipe propõe a demolição do armazém 15. O restante do projeto foi elaborado com equilíbrio quanto ao tratamento da leitura edilícia de galpão e seus novos usos, condizente ao que dispõe o edital nos ítens I e III acima. Porém, a partir do momento que o Governo do Estado resolve executar com recursos públicos apenas os armazéns 7, 10 e 11, há uma mudança de princípios norteadores de projetos que espetacularizam o patrimônio arquitetonicamente. Ambos os projetos foram realizados por grifes arquitetônicas. O armazém 7 por Andrade & Raposo Arquitetos, o armazém 10 pelo escritório Brasil Arquitetura e o armazém 11 por Carlos Augusto Lira. O primeiro e o último encontram-se em Recife, e o escritório Brasil Arquitetura em São Paulo. E como explicado por Hazan (ver p. 23) essas grifes arquitetônicas, junto com seus megaprojetos, são responsáveis por conferir status a projetos urbanos, que muitas vezes, mitificam uma intervenção e podem com isso, menosprezar o patrimônio histórico. 23

Disponível em < http://www.portodorecife.pe.gov.br > Acesso em: 1 de Agosto de 2013.

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Isso acontece com a Sala Pernambuco, projetado para ficar no terreno em frente ao armazém 7. Este edifício se destaca quanto a sua forma, na arquitetura da paisagem do porto (fig. 35 e 36). Figura 35 - Perspectiva Sala Pernambuco

Figura 36 - Sala Pernambuco (em construção)

Fonte: JC ONLINE, 2012

Fonte: JC ONLINE, 2012

A espetacularização arquitetônica ocorre com mais intensidade quando se decide demolir o armazém 10, aplicando fortemente o conceito de tabula rasa. Segundo BRENDLE e VIEIRA (2012, s.p.), a proposta para o armazém 10 Cais do Sertão Luiz Gonzaga se enquadra no conceito de Monnier (2006) para o edifício evento, e no ícone para Hazan (ver p. 23): Edifício evento é aquele que o emprego maciço das técnicas de informação insere de forma importante e súbita no espaço público para neste exercer uma representação forte e impositiva... O edifício evento é fruto de uma encenação fabricada por profissionais de comunicação que estão mais preocupados com a eficácia dessa comunicação do que em produzir uma informação equilibrada.

Para BRENDLE e VIEIRA (loc. cit.), a demolição do armazém 10 “acentua a interrupção do tecido figurativo da estrutura urbana do conjunto definidor da área portuária [...] o resultado é o claro comprometimento da integridade do conjunto”. As autoras ainda completam dizendo que: A garantia da autenticidade e legibilidade de tecidos consolidados da cidade pressupõe uma ação projetual onde a criatividade tem papel fundamental desde que aliada a uma atitude de respeito ao documento histórico. Este com certeza não é o caso do Cais do Sertão Luiz Gonzaga. Intervenções contrastantes com o tecido antigo não são necessariamente desrespeitosas da pré-existência.

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Figura 37 - Cais do Sertão Luiz Gonzaga - antiga área do armazém 10

Fonte: http://www.brasilarquitetura.com

A equipe NTOU, ainda previa a demolição do armazém 15, com a justificativa que “[...] sendo uma repetição do mesmo modelo dos anteriores, não acarretaria em perda da memória do seu padrão arquitetônico” (ver p. 39). Essa visão não é legítima, pois a paisagem é composta pelo conjunto arquitetônico, e a sua perda interrompe a leitura do conjunto. O projeto elaborado pela iniciativa privada teve como pontos principais de espetacularização arquitetônica, a demolição do armazém 15 e do edifício Pescado Silveira. Aqui é interessante fazer uma análise das idéias dos dois projetos simultaneamente. O projeto do NTOU propôs a demolição do armazém 15 e construção de edificações condizentes com o edifício Pescado Silveira, assim, optou-se por manter a leitura da edificação mais recente e de características modernistas, no projeto para o hotel-marina. Já o projeto da Gerencial Brasitec propôs a demolição das duas edificações, com isso, elaborou um projeto com características contemporâneas, que não faz referência arquitetônica a nenhuma construção circunvizinha. Ambos os projetos se enquadram na espetacularização arquitetônica, porém, o projeto do NTOU, procura equilibrar a leitura da paisagem, mesmo que parcialmente. Assim, nota-se que existem edificações novas, porém, não chamam mais atenção que o patrimônio histórico. O mesmo não ocorre com o projeto do hotel-marina da iniciativa privada, que bem ao estilo “arrasa-quarteirão” não manteve qualquer ligação com o entorno (ver fig. 38 e 39).

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Figura 38 - Hotel-Marina - projeto NTOU

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades, PE Figura 39 - Hotel-Marina - projeto Gerencial Brasitec

Fonte: JC ONLINE, 2012

Outra análise simultânea dos dois projetos é a da proposta para o Centro de Convenções. No projeto NTOU, a equipe propõe manter a estrutura dos galpões 16, 17 e 18 (ver fig. 40), porém, com o hotel-marina com linhas modernistas, na frente desses armazéns, a continuidade paisagem do porto já é interrompida, mesmo tentando manter a permeabilidade visual e física no pav. térreo do hotel-marina. O projeto da Gerencial Brasitec para o centro de convenções ainda não foi divulgado. Porém, com apenas uma imagem de divulgação, que se percebe é que possivelmente a leitura da estrutura do galpão será perdida (fig. 41). Figura 40 - Perspectiva Centro de Convenções - NTOU

Figura 41 - Perspectiva Centro de Convenções Gerencial Brasitec

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades-PE

Fonte: JC ONLINE, 2012

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Por fim, é importante observar o tratamento arquitetônico volumétrico dado aos armazéns tipo em cada projeto. A leitura de armazém é mais clara na proposta do NTOU (fig. 42 à 45). Figura 42 - Perspectiva galpão tipo - NTOU

Figura 43 - Perspectiva galpão tipo Gerencial Brasitec

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades-PE

Fonte: JC ONLINE, 2012

Figura 44 - Perspectiva galpão tipo - NTOU

Figura 45 - Perspectiva galpão tipo Gerencial Brasitec

Fonte: NTOU, Secretaria das Cidades-PE

Fonte: JC ONLINE, 2012

Com essa análise pode-se concluir que ambos os projetos tiveram suas formas de espetacularização, porém, fica claro que o projeto inicial do NTOU tende a minimizar esse efeito e quando isso ocorre, há uma conservação mais consciente do patrimônio. Sendo assim, entende-se o conflito onde o patrimônio é tratado como mercadoria de consumo turístico mas não o deveria ser. Então como revitalizar, de forma auto-sustentável com comercialização e sem danos ao patrimônio?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho surgiu com o intuito de investigar a espetacularização existentes nas políticas públicas voltadas para o patrimônio, que atuam através de planos de intervenções urbanas, normalmente denominados com diversas terminologias acompanhados do prefixo RE – renovação, revitalização, reabilitação, regeneração, reestruturação. A salvaguarda do patrimônio cultural já passou por diversas fases, que iniciou-se com a valorização dos monumentos da Antiguidade Clássica, no período do Quattrocento. Porém, as primeiras noções sobre restauração só ocorrem no período Industrial, e mesmo assim, com conceitos antagônicos, que permeiam entre a admissão ou não da restauração. Durante esse período basicamente se preservava e restaurava apenas monumentos arquitetônicos. A partir da Carta de Atenas de 1933 o conceito de patrimônio é ampliado, abarcando também os conjuntos urbanos. E nos princípios de Conservação Integrada, a preservação do patrimônio cultural toma uma forma maior, onde novas áreas, antes não aplicada ao patrimônio, são utilizadas. É ressaltada a função social do tecido urbano, a integração da área histórica na cidade com a possibilidade de inserção no mercado, o incentivo a novas construções e aos investimentos privados e municipais. Esse novo momento, onde é exigido que os centros históricos sejam revitalizados e reintroduzidos na cidade de forma que possam se auto-sustentar, elevou o patrimônio para o nível mercantil. Sendo assim, os planos de revitalização passaram a espetacularizar a cidade para o mercado mundial, a fim de vender a imagem da cidade para os turistas. As intervenções propostas com esses planos normalmente se valem de estratégias de marketing e planejamento estratégico, aliados a interesses particulares, para potencializar seus benefícios. Esses modelos de gestão podem fazer com que o patrimônio se torne um cenário artificial ou que sejam rebaixados até a condição do desaparecimento. Sendo assim, a análise realizada no projeto de intervenção do Porto do Recife indica que a mercantilização dessa intervenção valorizou interesses privados perante

os

interesses

públicos.

Equívocos

durante

o

planejamento

e

a

57

implementação do projeto além de espetacularizar o patrimônio, provocou decisões que foram extremamente danosas ao conjunto arquitetônico em questão. Durante a análise do projeto, muito se descobriu sobre diversos temas, que não puderam ser abarcados aqui. Sugere-se que, a partir do que foi esclarecido até então, façam-se outra pesquisas que podem desenvolver, por exemplo, a questão da influência da iniciativa privada nos projetos de intervenções urbanas e nas políticas públicas do patrimônio. Outro assunto sugerido é um estudo sobre a questão do direito à rememoração e ao esquecimento do patrimônio cultural como princípios norteadores de intervenção patrimonial, exposto por Jeudy. Entende-se por fim, que a questão da mercantilização do patrimônio é de extrema importância para a sustentação econômica do mesmo, porém, não deve se sobrepor ao valor histórico e cultural do bem. Portanto, para que uma revitalização ocorra, sem espetacularização, e de forma saudável para o patrimônio, para a população, para o poder público e a iniciativa privada, é necessário uma interação entre todos esses agentes a fim de conseguir um equilíbrio dos diversos interesses e princípios que devem nortear esse tipo de projeto. Deixo aqui uma questão: Requalificar porque e para quem?

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