Da Favela ao Bairro: Entre Urbanidade Rarefeita e Exclusão

Share Embed


Descrição do Produto

LOBOSCO, Tales. Da Favela ao Bairro: Entre Urbanidade Rarefeita e Exclusão. PPLA Seminário Política e Planejamento. Curitiba, 5-8 Ago, 2008.

Resumo: Apesar de indiscriminadamente denominadas “comunidade”, as favelas parecem expressar esta “identidade” apenas na contraposição à cidade formal, como afirmação de sua precariedade urbana. A cidade formal, por seu lado, é vista, a partir da favela, como espaço opressivo, sujeito a controles, obrigações e censuras, fruto de uma “integração” em desequilíbrio, que os absorve como força de trabalho, porém a partilha do espaço urbano é feita através das estratégias de vigilância e controle, onde a violência das favelas permanece como ameaça latente, reforçando a estigmatização da população e sua exclusão simbólica, econômica e social. Este artigo pretende, portanto, através das articulações espaciais identificadas nesta urbanidade rarefeita, repensar os limites e possibilidades de intervenções no universo, tão rico quanto frágil, das redes sociais inscritas no território, que protegem da miséria, mas promovem um sistema perverso, onde os direitos se confundem com favores, distanciando-se da cidadania de fato.

INTRODUÇÃO A proposta deste trabalho é discutir a forma tradicional de se abordar o problema das favelas, através da compreensão dos mecanismos de articulação das redes sociais, assim como sua interação com a materialidade dos espaços construídos, buscando ferramentas para repensar os limites e possibilidades de intervenções em um universo, tão rico quanto frágil, de redes sociais inscritas no território. A atenção aqui se volta para o entendimento das estratégias de adaptação e reconfiguração espacial e territorial empregadas por seus habitantes para superar deficiências e rupturas operadas em um espaço urbanisticamente rarefeito, porém bastante articulado social e espacialmente, através das redes sociais e territoriais impressas no espaço, abordando principalmente as diferenciações encontradas entre a experiência de espaços que ainda guardam a expressão de uma materialidade gestada em seus processos intrínsecos e daqueles submetidos à reconfigurações, transformados, rearticulados. Apoiaremos-nos na sociologia de Bourdieu para entendermos a construção do espaço social, através das relações de proximidade e separação, relacionais e hierárquicas. A intenção é de elaborar uma leitura da relação entre as posições sociais, as disposições e as “tomadas de posição” que os agentes sociais fazem nos domínios mais diferentes da prática, onde preferências, escolhas e atitudes organizam-se segundo a estrutura do espaço social. “Para construir completamente o espaço dos estilos de vida no interior dos quais se definem os consumos culturais, conviria estabelecer, para cada classe e fração de classe, ou seja, para cada uma das configurações do capital, a fórmula geradora do habitus que, em um estilo de vida particular, retraduz as necessidades e as facilidades características dessa classe de condições de existência (relativamente) homogêneas e, feito isso, determinar a maneira como as disposições do habitus se especificam, para cada um dos grandes domínios da prática, realizando uma ou outra das possíveis estilísticas oferecidas por cada campo.” [BOURDIEU, 2007a] Distinção é de fato diferença, traço distintivo, que só existe em relação a outras propriedades. “Essa idéia de diferença, de separação, está no fundamento da própria noção de espaço, conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também por relações de ordem, como acima, abaixo e entre”. [BOURDIEU, 1996] A avaliação crítica da separação entre favela e cidade, seja ela através de sua materialidade ou da leitura de seus estilos de vida, deve ser pensada através de uma análise da suposta “distinção social” que entenda a realidade como relacional e construída socialmente. “De maneira mais geral, o espaço de posições sociais se retraduz em um espaço de tomadas de posição pela intermediação do espaço de disposições (ou do habitus); ou, em outros termos, ao sistema de separações diferenciais, que definem as diferentes posições nos dois sistemas principais do espaço social, corresponde um sistema de separações diferenciais nas propriedades dos agentes (ou de classes constituídas como agentes), isto é, em suas práticas e nos bens que possuem [...] O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas.” [BOURDIEU, 1996]

Este trabalho se baseia na experiência acumulada em pesquisas nas favelas da Babilônia, Vidigal e Rocinha no Rio de Janeiro, RJ e, nas aproximações mais específicas, utilizaremos o exemplo da ocupação da Babilônia, onde a pesquisa toma corpo através de um contato mais intenso com os moradores, buscado através de entrevistas, observação participante e da vivência mais próxima do cotidiano e dos problemas encontrados pela população local. O assentamento da Babilônia, situado junto ao bairro do Leme, na Zona Sul carioca. Possui aproximadamente 1426 habitantes, segundo o censo demográfico 2000 do IBGE, e assim como a maior parte das favelas cariocas, possui diferentes regiões, com características sociais, econômicas, espaciais e históricas heterogêneas, que são ocupadas por populações distintas segundo seu local de origem, tempo de permanência, integração ao espaço, etc. Ao visitante externo estes limites podem parecer fluidos, e incertos, mas os moradores, inseridos nas articulações sócio-espaciais locais, podem perceber linhas bastante nítidas delimitando cada micro-região. Elaboradas através de marcos externos, a partir da origem dos moradores, das características das residências, dos hábitos e fluxos que ali se organizam. FAVELAS, OCUPAÇÕES E ASSENTAMENTOS A especificidade do fenômeno favela, seu modo peculiar de materialização no espaço urbano, sua identidade, expressa pelo estatuto de ilegalidade e pela geografia própria e como locus privilegiado da pobreza, são questionados por autores como Valladares [2005], Lago [2003] e Valladares e Preteceille [2000], através da afirmação da pujança econômica de seus mercados, da heterogeneidade social, econômica e espacial identificada em seu interior, e das profundas distinções existentes entre territórios identificados pelo nome favela. Ao comparar dados como acesso à infra-estrutura urbana, renda e escolaridade e regularidade jurídica do terreno, identifica uma tendência de as favelas se encontrarem entre os piores indicadores, entretanto, evidencia também que não são raros os casos de setores identificados como não-favela apresentarem indicadores iguais ou piores e, paralelamente, foram identificados significativos casos de favelas com indicadores mais elevados, se situando muito próximos ou iguais à média da cidade formal. Tal questionamento relativiza a dicotomia entre espaços formais e “ilegais” e nos coloca frente à necessidade de um novo modo de compreender estes espaços, já que o fenômeno permanece presente e o contraste expresso nas linhas de contato com a cidade formal nos lembra que se trata de uma urbanidade rarefeita, que sobrevive em um movimento oscilante entre a exclusão simbólica de seus habitantes, a possível integração econômica, cultural e política e o mecanismo de redes sociais de assistência, que protege da miséria, mas promove um sistema perverso, onde os direitos se confundem com favores, distanciando-se da cidadania de fato. Também parece importante salientar a identificação de uma tendência entre as regiões com favelas mais antigas, como as encontradas no município do Rio de Janeiro, de apresentarem melhores índices, tanto de acesso a equipamentos urbanos, como relativos à regularidade jurídica do terreno. Esta melhora poderia ser explicada pelos investimentos realizados, há décadas, pelo poder público, por setores não-governamentais e pela população local em prol do incremento da urbanização local, assim como através das políticas de regularização de tais áreas. A favela não seria, portanto, o locus único e exclusivo da pobreza urbana, os pobres a teriam como

possibilidade para a solução, mesmo que temporária, do problema de moradia, onde a adesão ao modelo seria fruto da comparação de recursos e benefícios, sobre os quais pesariam as redes sociais existentes, infra-estrutura e serviços disponíveis, distâncias físicas e sociais, custos de transporte, possibilidades de trabalho, disponibilidade de tempo a ser empregado na autoconstrução, capacidade de pagar aluguel, representações espaciais e simbólicas a respeito de conforto, liberdade, violência, etc. AINDA FAVELA? A característica do favelamento atual não é o barraco, este seria, como defende Espinheira [2008], apenas a fase inicial do que atualmente se encontra como um casa em alvenaria de dois, três e até mais pavimentos. Os barracos se transformam continuamente, evoluem buscando o último estágio de um abrigo precário, a casa de alvenaria, sólida e permanente. “Os materiais recolhidos e reagrupados são o ponto de partida da construção, que vai depender diretamente do acaso dos achados, da descoberta de sobras interessantes. Os materiais são encontrados em fragmentos heterogêneos; a construção, feita com pedaços encontrados aqui e ali, é forçosamente fragmentada no aspecto formal. À medida que o abrigo vai evoluindo, os pedaços menores vão sendo substituídos por outros maiores, e o aspecto fragmentado da construção vai ficando cada vez menos evidente” [JACQUES, 2001]. Ainda que o estado de permanente incompletude seja claramente identificável, na constante transformação e ampliação das residências, ou mesmo através da ausência quase unânime de revestimento externo, a realidade atual das favelas é inquestionavelmente distante da imagem dos abrigos instáveis, barracos construídos com restos diversos de materiais de construção, onde a frágil composição, erguida com materiais heteróclitos, denuncia a precariedade e a temporalidade da moradia, que deve ser “reconstruída” de tempos em tempos. Se tais abrigos ainda existem, eles configuram apenas estágios iniciais e provisórios das favelas, ou as “franjas” destas nos limites incertos da cidade, frente a matas ou novos terrenos, onde a ameaça de remoção pesa forte e silenciosamente, desestimulando qualquer investimento mais durável e custoso na habitação. Lepetit [2001] descreve a habitação como signo social e suporte de uma prática cultural, que não são intangíveis, onde as maneiras de coabitar e a distribuição dos papéis entre os membros da comunidade de moradores são capazes de evoluir em curto prazo. Desta forma deveríamos “reconhecer que os subúrbios têm uma forte tendência a não continuar sendo subúrbios. Lembrar que o que se denomina faubourg encontrava-se do lado de fora da vigia. Lembrar que um boulevard, na origem, é um passeio público arborizado que circunda uma cidade, comumente ocupando o espaço onde estavam as antigas muralhas”. [PÉREC Apud LEPETIT, 2001] A transformação que percebemos no espaço-favela, que abandonou os barracos em madeirite e telhados de fibrocimento por casas de alvenaria e laje, em uma dinâmica construtiva quase incessante, parece ser apresentada de outra forma por seus moradores. Ao utilizarem o termo “comunidade” explicitariam a evolução processada no espaço como um suposto distanciamento da imagem de favela. O assentamento, através de um permanente processo evolutivo, estaria se transformando em algo, que pode ainda não ser identificado com a cidade formal, mas já não seria mais uma favela no sentido original do termo.

Assim, o que parece ser percebido orgulhosamente por seus habitantes como uma evolução, que parte e se distancia da favela de origem, buscando um espaço integrado à cidade formal é entendido fora dela como uma atualização do conceito, que adquire uma nova materialização e organização interna, mas não se desvincula da imagem simbólica da favela tradicional. Gesto que insiste em manter o distanciamento original, associado aos “excluídos”, não aceitando desta forma que o “locus privilegiado da pobreza” se torne parte da cidade. A irregularidade do traçado, distante da rigidez das ruas da cidade formal, se mostra muito mais como fruto da materialização de interesses diferenciados e prioridades distintas do urbanismo tradicional e não de uma materialização específica de uma “cultura” de favela. Um sistema de vias que não nasceu da subordinação aos veículos automotores, mas ao contrário, se mostra como o resultado da importância de se adaptar a uma topografia bastante rigorosa, aos cortes e taludes das construções no espaço exíguo, e, principalmente, a uma dinâmica permanente de expansões e transformações, que não é vinculada a um plano específico, mas a um conjunto de regras tácitas e empíricas que garantem o espaço de circulação e a privacidade esperados em cada setor. O espaço disponível para as vias não é a “sobra” do tecido, mas o resultado de uma articulação de necessidades coletivas, limites individuais e pré-existências na disputa pelo espaço urbano. Facear a “tortuosidade” traz à tona a fronteira simbólica entre a favela e a cidade formal, este é o momento onde muitas vezes se deixa o asfalto carroçável e se passa às escadas e ruelas de terra batida. Percorrendo estes caminhos pode se presenciar a enorme variação do poder econômico, do acesso à infra-estrutura e serviços, que vai perdendo seu vigor, em direção a uma urbanização que se torna rarefeita, onde o dinamismo econômico começa a ceder, ficando cada fez mais incapaz de atender plenamente às necessidades da localidade. Diante da fragilidade social, da precariedade e inconstância de recursos, a moradia de aluguel, que consome parte importante do capital disponível, é considerada uma situação precária, aceita apenas temporariamente enquanto se busca uma alternativa mais adequada e definitiva, onde a autoconstrução parece ser a saída mais corrente e viável. No assentamento, para que o abrigo possa ser construído, é necessário “conquistar” o espaço onde se erguerá a habitação, em um universo extremamente denso, através de possibilidades diversas de negociação que incluem a cessão, compra, favores, etc. Neste contexto a laje tem uma posição extremamente privilegiada, por garantir uma provisão de “solo” disponível, plano, estável e regular, de propriedade incontestável e uso particular indiscutível na esfera de proximidade da rede social e familiar. Sua existência, somente possível nas moradias “em bloco”, traz um enorme diferencial a estas últimas, tanto simbólica quanto comercialmente, frente aos “barracos” e das antigas construções em adobe. A construção pode ser executada com materiais leves e reaproveitados, como madeirite e fibrocimento, ou através da alvenaria em tijolos. Entre as duas opções jogam o custo e o caráter perene da “casa de blocos”, que pode ter que aguardar os recursos disponíveis. A construção em blocos é realizada normalmente pelos próprios moradores, com ajuda de parentes e amigos, embora eventualmente possa haver a contratação de algum pedreiro, mas ainda assim, este é normalmente um profissional da própria localidade que trabalha ao lado dos próprios moradores, num esforço coletivo para suprir a necessidade imediata da habitação. A construção é ocupada tão logo se tenha as paredes levantadas e uma cobertura, mesmo que provisória, onde a falta de

revestimento se confunde entre um momento intermediário da obra inacabada e uma situação estável onde se garante a funcionalidade da moradia sem a necessidade de se arcar com os elevados custos de acabamento, originados não só devido ao preço do material utilizado, mas também pela necessidade de mão-de-obra especializada que esta fase demanda, se distanciando da lógica “artesanal” do resto da construção. MEIO AMBIENTE PARA MUDAR A VIDA Para Kopp [1990] o movimento moderno enquanto “causa”, deveria criar o espaço onde nasceria a “nova sociedade”, se tratava da produção de “um meio ambiente para mudar a vida”. “a cidade era um reflexo da sociedade, a sociedade nova, a sociedade socialista, deveria suscitar novas formas urbanas. A cidade inteira deveria agir como um 'condensador social' gigante”, para o qual contribuiria o ascetismo arquitetônico característico do trabalho dos construtivistas. Numa linha semelhante, a experiência dos parques proletários, construídos entre 1941 e 1944 no Rio de Janeiro, verdadeiros “alojamentos de transição”, buscava “preparar” os favelados relocados a uma nova vida, reeducando-os, para só depois transferi-los a um endereço permanente, de modo que a população transferida não carregasse consigo velhos hábitos que pudessem “contaminar” o novo espaço de moradia, uma espécie de “tavola-rasa” do espaço social. “Não se tratava apenas de retirar as famílias dos espaços insalubres das favelas, fornecendo-lhes novas moradias de acordo com as regras sanitárias. O objetivo era também dar assistência e educar os habitantes para que eles próprios modificassem suas práticas, adequando-se a um novo modo de vida capaz de garantir sua saúde física e moral” [VALLADARES, 2005]. As representações extremamente negativas existentes a respeito das favelas, associadas a doenças e mal comportamento permitiam apenas dois modos de se tratar o problema: exterminá-las ou “reeducar” sua população para que se esta se adequasse à vida partilhada em sociedade e não continuasse a reproduzir o espaço “degradado” que havia criado. Do mesmo modo, os conjuntos habitacionais, pensados como modelo de reassentamento de populações faveladas, baseados em padrões muito distantes da realidade destas, também denunciam sua intenção de gerar na população abrigada hábitos e padrões distintos, à semelhança da cidade formal, numa busca de “prepará-los” para a possibilidade de integração. O padrão de apartamentos amplamente reproduzido, com unidades rígidas, sem espaço para expansão, sem possibilidade de utilização da laje e com manutenção cara, demonstra um total descompasso com o modo de vida gerado nos espaços de urbanização rarefeita. Habitantes que apresentam taxas de natalidade muito superior à média da cidade, a mesma escassez de recursos que os obrigou a invadir o terreno inicial, forte dependência das redes sociais e de solidariedade existentes no espaço, grande fragilidade social e pouquíssima regularidade de proventos necessitam de uma extrema flexibilidade quanto à disponibilidade financeira e uma grande adaptabilidade do local de habitação, que abriga freqüentemente filhos, noras, genros, sobrinhos, etc. Desta forma buscam a possibilidade de expandir a residência original no mesmo local, ou próximo dele, sem onerar demasiadamente a família, e, se possível, que ainda possa gerar algum retorno financeiro através de habitações de aluguel ou mesmo da abertura de um pequeno espaço comercial. Das tensões existentes nesta incompatibilidade cria-se um híbrido, os conjuntos começam a ceder

às pressões da população que o transforma de acordo com seus valores, adequando às suas necessidades, abrigando uma densidade habitacional muito maior do que o projeto poderia fazer supor. As ampliações, privatizações do espaço coletivo, adaptações e diferentes reinterpretações do projeto original, alteram o conjunto de tal forma que em pouco tempo ele mal se diferencia da favela original. LAY & REIS [2004] citam a indefinição hierárquica, a falta de relação entre os espaços abertos e as edificações e a indefinição sobre a responsabilidade territorial dos espaços abertos como responsáveis por uma “rejeição” do espaço pelos moradores, que ao não se apropriarem socialmente destes, deixam aberto o caminho das privatizações e transformações. “As favelas vão se formando através de um processo arquitetônico e urbanístico vernáculo singular, que não somente difere do dispositivo projetual tradicional da arquitetura e urbanismo eruditos seria mesmo seu oposto -, mas também se investe de uma estética própria, com características peculiares, completamente diferentes da estética da cidade dita formal.” A distância que se forma entre universos bastante díspares, e a incapacidade apresentada de se conjugar as diferentes linguagens, ou mesmo de dialogar com o processo e a estética originária das favelas, demonstra que “a lógica racional dos arquitetos e urbanistas, ainda prioritária, acaba impondo sua própria estética, quase sempre a da cidade dita formal. Para que se torne possível a boa integração com o resto da cidade, a favela deve se tomar um bairro formal comum” [JACQUES, 2003]. Para Jacques, a maneira de viver originária das favelas se aproxima mais da idéia de abrigar que de habitar. “Isso muda a relação de temporalidade, já que a grande diferença entre abrigar e habitar vem do fato de que abrigar é da ordem do temporário e do provisório, enquanto habitar é da ordem do durável e do permanente. O abrigo é provisório mesmo que ele deva durar para a eternidade; a habitação, ao contrário, é durável, mesmo que vá desmoronar amanha.” Do mesmo modo o distanciamento se torna evidente quando comparamos “a maneira de conceber o espaço dos arquitetos - que partem de projetos, de projeções de futuro espaciais e formais - à dos favelados, que não têm projetos preestabelecidos e que só vão tendo o contorno da forma do espaço em construção à medida que a vão investindo. Além disso, nos projetos arquiteturais, a finitude da forma já é predefinida e fixa, ao passo que, nas favelas, os abrigos quase nunca estão terminados nem têm forma fixa.” Esta organização territorial não espontânea se baseia na demarcação fixa, no fechamento e, em conseqüência, no cessar dos movimentos preexistentes, interrompendo “os fluxos naturais e espontâneos, as linhas de fuga e as linhas de desterritorialização das favelas já existentes” [JACQUES, 2001, 2003]. FAVELA E CIDADE FORMAL A partir da favela, a cidade formal é vista como um espaço opressivo, sujeito a controles, obrigações e censuras, fruto de uma “integração” em desequilíbrio, que os absorve como força de trabalho, extraindo o labor necessário, sem que isto signifique a partilha do espaço social. Neste contexto, o espaço-favela se configura como um território “familiar”, ainda que apresente distintos graus de apropriação e de acesso ao poder político e econômico. Entre os moradores da Babilônia, são freqüentes as imagens com conotações negativas enumeradas ao se referirem à cidade formal, porém pode-se perceber que a quase totalidade delas remete de alguma forma a um suposto tolhimento de suas liberdades individuais, principalmente quando estes espaços são pensados como possíveis locais de habitação. A favela lhes traria, portanto, a imagem de uma apropriação plena, onde os acordos tácitos são regidos

pelo senso comum, os limites não são escritos em leis e regras, mas apenas exercidos através de uma “consciência de comunidade”, em nome da qual se procura agir de modo a não incomodar os vizinhos e a, através do diálogo, estabelecer acordos sobre eventuais divergências de comportamento, espaciais, etc. Ainda que funcione muito melhor na teoria do que na prática, desta forma carregam o entendimento de que quem “faz as regras” são os próprios moradores, ao menos de uma maneira muito mais próxima e “íntima” do que a legislação governamental, da qual a expressão do poder coercitivo fica muito mais evidente, no cotidiano dos habitantes das favelas, do que a possibilidade de entendimento dos mecanismos de representatividade e de participação popular na formulação das regras institucionais. Ao negarem o nome “favela”, e se auto-afirmarem como comunidades, ao mesmo tempo que afirmam uma “convivência entre iguais”, reforçam, por outro lado, o distanciamento e a segregação espacial. Tal denominação utilizada indiscriminadamente parece expressar uma “identidade” apenas na contraposição à cidade formal, servindo de reafirmação da precariedade urbana do espaço, numa relação de comprometimento a respeito da organização espacial e das redes de solidariedade, em um território de disputas, a ser apropriado e conquistado. A territorialidade está impregnada de laços de identidade, que tentam de alguma forma homogeneizar o território, dotá-lo de uma área/superfície minimamente igualizante, seja por uma identidade territorial, seja por uma fronteira definidora de alteridade [SERPA, 2004]. Seus habitantes se articulam, portanto, dentro de um campo de forças através da busca por integração e pertencimento a um universo maior e as fantasias e frustrações de uma comunidade almejada em seu território imediato. A cidade formal, por seu lado, exercita as possibilidade de lidar com a incômoda convivência com tais “bolsões de pobreza”, através das tentativas de limitação de sua expansão, da implantação de eco-limites, de barreiras, estrangulamento de acessos e confinamentos. A estratégia de esconder, vigiar e controlar está ligada ao medo, a desconfiança do outro, ao choque da partilha do espaço urbano entre populações com acentuada iniqüidade. Esta tendência se mostra presente até mesmo nas intervenções urbanísticas, que atuam intensamente nas fronteiras com a cidade formal, deixando o miolo das ocupações quase intocado. “Tentam invisibilizar a realidade da favela, escondendo a feiúra e o atraso, demonstrativos, entre outras coisas, daquilo que não se quer ver, a difícil situação do país e a incompetência em administrar soluções. E, como alternativa, inserir estes assentamentos na paisagem como imagem remota e estática, uma espécie de pintura, separada da cena urbana vivida.” [SOUZA, 2007]. Os trabalhos de Lessa [2000], Leeds [1978] e Perlmann, criticam a afirmada “exclusão social” sofrida pelas populações das favelas, ao afirmar que estes estariam integrados à cidade formal, tanto econômica, quanto cultural e politicamente. “Os favelados, portanto, não são marginais à economia nacional; estão integrados na mesma de uma maneira que lhes é prejudicial” [PERLMANN, 2002]. Entretanto, percebemos na segregação existente, uma urbanidade centrífuga, onde as pessoas são empurradas para longe dos centros de decisão e poder, e do acesso à infra-estrutura e serviços. Ainda que permaneçam interligados à cidade formal, tanto cultural como política e economicamente, os constrangimentos severos vividos demonstram que mais do que “dentro” da cidade, estão na/à sua margem, uma urbanidade periférica, onde a periferia adquire ai uma conceituação sociológica e não a imagem geográfica do distanciamento da cidade, “pode se estar ao lado e ser periférico” como defende Espinheira [2008].

“As favelas continuam a ir além de seus limites por meio das relações que estabelecem com a cidade, às vezes culturais, coletivas como o samba e o carnaval. Mas elas extravasam, sobretudo por meio de elos que se estabelecem de maneira mais sutil e penetrante, de modo mais “subterrâneo”: em relações individuais, já que a maioria dos favelados trabalha nos bairros formais da cidade, às vezes, como empregados domésticos que moram, durante a semana, em apartamentos dos bairros ricos.” [JACQUES, 2001] Fisicamente os limites não são tão simples de definir, principalmente por aquelas pessoas que não detém um conhecimento prévio da área, ainda assim, mesmo entre os mais próximos não existe um consenso. No Leme, os moradores da Babilônia sobem a longa ladeira Ari Barroso, a pé ou em moto-taxis, ladeando grandes residências, que testemunham um passado bastante profícuo, e diversos blocos de apartamentos, para somente no topo desta, onde já se pode encontrar algumas biroscas, deixarem o leito carroçável pra entrar nas escadas e vielas do que consideram sua “comunidade”. Entretanto visto de baixo, do “bairro”, na esquina da ladeira, os primeiros sinais perceptíveis caracterizadores de um espaço-favela, são suficientes para identificá-la como tal. Os moto-taxis enfileirados à espera de passageiros é o primeiro deles, a aclividade, o trânsito de pessoas identificadas como originárias das comunidades caracterizam um espaço estranho, desconhecido e temido. Os moradores da ladeira, que é identificada pela prefeitura como parte da cidade “oficial”, percebem a incômoda proximidade, e, embora não sejam mais tão estranhos e desconhecidos se esforçam em afirmar o distanciamento e a diferença frente este espaço de fragilidade social, numa reação à forçada convivência entre “estranhos”, ao temor pela violência latente e a rejeição pela desvalorização que trazem aos imóveis. TERRITÓRIO DAS NEGOCIAÇÕES E DISPUTAS A falta de homogeneidade interna do espaço-favela é, portanto, testemunha das diversas possibilidades de apropriação e pertencimento a um território que, embora seja considerado “excluído”, possui igualmente seus mecanismos excludentes internos, que se expressam, em relação ao tempo de pertencimento, posição sócio-econômica, locais de origem e diferentes etnias, de forma bastante clara na distribuição espacial do território, reproduzindo, deste modo, as estratégias de segregação sofridas em relação à cidade formal. Perceberemos, portanto, que nas áreas centrais das favelas as relações com o solo encontram-se mais estabilizadas, e as relações de vizinhança mais consolidadas. Estes locais concentram o maior capital social da localidade, possuem a melhor acessibilidade e abrigam a maior parte da vida comercial da favela [BURGOS, 2002]. Aceder em direção a este espaço, se distanciando cada vez mais da periferia, faz parte das disputas e estratégias territoriais freqüentemente encontradas no espaço-favela, impressas no território de tal modo, que em algumas habitações deste centro poderemos encontrar níveis sócio-econômicos muito similares a diversos bairros formais. Tais regiões estão freqüentemente nas linhas de “fronteira” com a cidade formal e seus moradores se servem de maneira mais direta dos serviços e da acessibilidade ali disponíveis, mantendo ao mesmo tempo uma relação sócio-territorial, caracterizada por uma posição de prestígio em sua inserção nas redes sociais, evidenciada pelo local e qualidade da moradia.

As famílias destas áreas não ocupavam necessariamente tal espaço, no momento de sua chegada ao assentamento, o que encontramos mais freqüentemente são moradores apresentando um histórico de deslocamento interno desde as partes mais periféricas, e de difícil acessibilidade, até se instalarem ali como fruto de negociações e disputas, num movimento onde as chances de sobrevivência são ditadas pelo poder econômico, pelo tempo de permanência e através da articulação com as redes sociais existentes. Esta dinâmica permite que, numa trajetória socialmente ascendente, se aproximem do centro político e econômico, e, no caso contrário, acabem gerando movimentos centrífugos, que pressionam em direção à periferia territorial da favela, frente, muitas vezes aos “limites” de expansão horizontal da ocupação, numa área muito mais exposta a remoções, que se encontra, via de regra, sobre áreas de “preservação”, mangues ou áreas de risco. Tal movimento pode resultar igualmente numa “fuga” da localidade, perdendo o suporte das redes sociais, ou buscando outras, que possam estar melhor articuladas. Ainda que a situação de “irregularidade fundiária” pese sobre grande parte dos moradores de ocupações, a existência de ações de urbanização, e com elas, a passagem “do gato ao relógio”, confere a sensação de “legalidade” urbana, ao pagar pela água e luz, se identificam como consumidores, e com o direito de morar. Situação que favorece investimentos mais duradouros no habitat, mesmo que regido por regras mais flexíveis, onde o fornecimento não é interrompido na inadimplência. Conforme Pierucci [2003], o processo de modernização econômica excludente, pelo qual está passando a sociedade, e principalmente as cidades brasileiras, exacerba um fenômeno de estranhamento, através da preocupação a respeito de um futuro pior, valorizando a situação existente no passado. Na Babilônia, como em grande parte das favelas cariocas, quem freqüentemente recebe a “responsabilidade” por tal degradação é o migrante nordestino, tardiamente incorporado, que porta a imagem do “outro” como aspecto fisicamente identificável das mudanças no ambiente. Ao contrário da esperada “solidariedade”, surge uma forte distância social e rejeição dos antigos moradores frente aos recém-chegados, dos quais se esforçam em marcar as diferenças, reunindo-os sob a denominação generalizante de “paraíbas”, identificandoos como responsáveis pela desvalorizam dos imóveis mais antigos, e de certa degeneração da localidade. No caso da Babilônia, encontramos um espaço de circulação relativamente amplo para uma favela, com razoável arborização formam-se largos e recantos de parada que são bastante ocupados por moradores em encontros eventuais, conversas entre vizinhos e mesmo espaço de lazer das crianças. Este espaço agradável é bastante valorizado por eles e sua privatização com construções é entendida como totalmente proibida, tanto pela associação como pelo senso comum. Da mesma forma, a expansão para além do perímetro atual da favela também é restrita, demarcado com eco-limites pela prefeitura, e, portanto sofre os riscos permanentes de remoção, devido aos quais, as moradias ali encontradas são extremamente precárias, abrigando famílias em condições extremadas. Qualquer expansão só pode ser feita, portanto, adensando os “lotes particulares” ou sobre as lajes das casas existentes, principalmente nas partes centrais da ocupação, já que próximo aos limites da favela, onde a ocupação é menos densa, as vielas servem a um pequeno grupo de residências e a situação de vida é mais precária, de modo que o peso da necessidade

pode suavizar algumas permissividades e pequenos “desvios” urbanísticos. A associação de moradores atua como juízo e controle sobre as questões espaciais que possam suscitar discordâncias ou fujam ao censo comum. Ainda assim, um passeio por suas ruelas evidenciará algumas construções sendo executadas sobre espaços livres no miolo da favela, que parecem denunciar a existência de outros fatores pesando sobre tais regras estabelecidas. A legitimidade adquirida por famílias que vivam a tempos além dos eco-limites, ou a extrema necessidade, fruto da idade avançada ou de alguma incapacitação física que dificulte a mobilidade nas ladeiras podem ser igualmente entendidas como suficientes para a existência de alguma “permissividade” nestas regras, aceitando deste modo a ocupação de um novo espaço, mais próximo dos acessos e da parte mais urbanizada da favela, prerrogativa concedida apenas a moradores antigos, conhecido por todos e com inequívoca legitimidade espacial na ocupação. O ESTIGMA DA VIOLÊNCIA Se ao longo da última década, a exclusão social e a ilegalidade urbana foram “territorializadas” nas favelas, nos últimos anos a violência urbana seguiu o mesmo caminho, e, como toda população, os moradores dos assentamentos recebem o bombardeamento midiático da violência e da desordem urbana e social, que é apresentada, quase sempre, de alguma forma relacionada às favelas, quando não como acontecimentos específicos delas. Tais populações, ao não se identificar com as imagens expostas, passam a partilhar com a cidade formal muitos dos preconceitos e estigmatizações existentes em relação às favelas, com isto, se colocando em uma posição diferenciada. Ao entender que o local onde vivem não é igual ao exposto pelas telas de TV, assumem seu espaço como “algo diferente”, que não se enquadra na imagem fornecida. “Dois movimentos contraditórios estão por trás desse conflito. Por um lado, quando o morador de “favela” se utiliza do termo “comunidade” para nomear seu lugar de moradia, ele reafirma esse lugar como uma unidade fechada, ele reafirma a particularidade do seu território em relação à cidade, negando o estigma que este carrega, mas aceitando e colocando esse estigma em outras favelas, reafirmando, portanto, o termo.” [LAGO, 2003] Os altos níveis de violência urbana, associados à atual representação corrente, do locus da ilegalidade e da pobreza urbana como intrinsecamente ligado ao crime, se somam à superexposição pela mídia da violência nas favelas e dos enfrentamentos que por vezes ultrapassam os limites destas, fazendo com que a questão “transborde” para a cidade formal, de modo que, mesmo quando isto não ocorre, ela seja igualmente sentida como ameaça silenciosa e latente. Situação que reforça atitudes de fechamento e reclusão, atuando no reforço a preconceitos e estigmatização da população. REDES DE SOLIDARIEDADE, A BUSCA DA COMUNIDADE Quanto mais instável e insegura a situação sócio-econômica das populações, maior é a sua necessidade de aglomeração e alinhamento às redes sociais para conquistar seus direitos à cidade, à moradia, ou mesmo possibilitar o acesso ao trabalho. Quase toda favela possui uma área dramaticamente pobre, áreas miseráveis onde a precariedade existente indica que são zonas de fronteira. Ali se faz uma espécie de triagem entre aqueles que serão incluídos e aqueles que terão que abrir mão da estrutura de auxílio local. “Não é da generosidade do morador da

favela que os miseráveis esperam a solidariedade, mas da engrenagem existente no micro-sistema da favela, que torna obrigatório para as lideranças socorrer as pontas mais frágeis daqueles que pertencem ao território. Isto confere prestígio e legitimidade ao exercício da autoridade, criando laços de lealdade que podem ser mobilizados para os mais diversos fins.” [BURGOS, 2002] É essa solidariedade baseada no território que explica a manutenção, em última instância, da própria noção de “comunidade”, ainda que inadequada enquanto conceito, perfeitamente ativa e recorrentemente utilizada pelos moradores das favelas. Apesar de constantemente relembrada, a coesão entre os moradores e a suposta condição de “comunidade” nem sempre se mostram tão simples e unânime entre os que partilham tal espaço. A construção de muros e cercamentos, apesar de percebidos como “privatizadores” do espaço, e como responsáveis pelo distanciamento entre os moradores, na contramão da almejada noção de “comunidade”, não só é bastante difundida, como a grande maioria ainda concorda com esta pratica por alegadas questões de privacidade e segurança. O mercado imobiliário da cidade informal é necessariamente regulado por contratos baseados em relações interpessoais, que têm por código dimensões como a lealdade e a confiabilidade. “Não é por acaso que, dificilmente, um novo morador chega à favela sem algum tipo de conhecimento prévio. Seu ingresso no território da favela precisa de um mediador, uma espécie de "fiador" informal, em geral um parente ou amigo” [BURGOS, 2002]. Nesta linha, os moradores da Babilônia descrevem um processo de “enraizamento”, pelo qual passam os novos habitantes que chegam à localidade. Abrigam-se, inicialmente, em cômodos de aluguel, onde possuem uma condição de associados, que se aproxima a de “hóspedes” do proprietário da casa principal, já que sozinhos não teriam legitimidade no grupo. Esta situação de convivência em habitações de aluguel significa, freqüentemente, convívio próximo e contato estreito, portanto necessitam de respeito e obrigações mútuas, das quais depende a permanência do inquilino. Após este momento inicial, onde se torna conhecido e começa a tecer suas próprias redes de sociabilidade, passa a buscar um espaço onde será possível erguer o embrião de sua futura casa, pra onde trará futuramente os familiares de sua cidade de origem, estabelecendo assim uma nova base de penetração de suas próprias redes sociais originais. CONSIDERAÇÕES FINAIS O fenômeno favela não pode ser caracterizado como espaço específico, locus da pobreza e ilegalidade urbanas, visto que as marcações utilizadas para diferenciá-lo da cidade formal não são nem específicas e exclusivas de tais áreas, nem obrigatoriamente encontradas nelas. Ainda que possa ser identificado e compreendido como tal pelo “senso comum”, através da interpretação de um conjunto de signos associados ao espaço-favela, outros problemas se apresentam, como a heterogeneidade da materialização encontrada entre os territórios identificados como espaçofavela, ou mesmo internamente a estes, o que tornaria perigosa e arbitrária tal generalização. A favela entretanto, parece ser o locus de práticas específicas e portadora de “disposições”, que não são identificadas simples e diretamente como características das camadas mais pobres da cidade. Seus modos de vida não podem ser completamente sobrepostos pelas estruturas da cidade tradicional e formal, sem que isto signifique a perda de sua espontaneidade no conflito, devido ao desequilíbrio entre anseios e práticas de sua população com a rigidez e regras tradicionais. As favelas, consideradas por Kopp [1990] como a “forma superior da liberdade e da

vontade criadora das massas”, articulam um espaço onde as regras são ditadas pela necessidade, articuladas e negociadas entre os que partilham o território. Tanto o método construtivo, quanto os materiais empregados demonstram a reprodução de soluções tradicionais, e não identificamos nenhuma busca por soluções inovadoras ou melhor adaptadas, atitude que estaria ligada ao medo de arriscar frente a pesados investimentos, mas também a uma reprodução de modelos reconhecidos, que não os diferencie negativamente da cidade. “A favela respira mercado, seus moradores desejam ardorosamente serem incluídos pela cidade, mas mobilizam, de modo até certo ponto inadvertido, a noção de comunidade, que serve como mecanismo de pavimentação da solidariedade interna à favela, e enquanto moeda de negociação com os atores da cidade.” [BURGOS, 2002], onde o termo “comunidade” não seria entendido como uma “identificação”, mas surgiria apenas através da diferença, na oposição frente à cidade formal; no momento de se requisitar algo que se legitima pelo benefício da “comunidade”; ou para justificar uma liberdade e uma flexibilidade da estrutura urbana não encontrada ou permitida na cidade formal. Mesmo que se identifique a pujança de seu mercado interno, morar, ou permanecer, na favela seria fruto de uma escolha ligada à inserção nas redes sociais, e, ainda que algumas habitações nas favelas atinjam valores próximos a de muitas regiões da cidade formal, resta o reconhecimento de que mais do que o valor bruto do imóvel acabado, as facilidades do mercado informal estariam ligadas à extrema flexibilidade quanto à instável disponibilidade de recursos, o domicílio pode, desta forma, sofrer pequenas evoluções sucessivas, desde um pequeno barraco numa fração de terreno invadido, até receber paredes em bloco, infra-estrutura, laje, acabamentos, etc. Apesar de todos os avanços conquistados desde a política de remoções das décadas de 60 e 70, marcadas pela arbitrariedade e pelo emprego da violência, onde o processo de redemocratização da sociedade brasileira tornou possível a difusão de questões como o direito à cidade e a regularização fundiária, até a consolidação da prática de urbanização das favelas, como política ampla e plenamente difundida em todos os níveis, ainda se identificam vozes dissonantes neste uníssono, que buscam na política ambiental, como remarcou Compans [2007], ou através do combate à violência a justificativa para defender a remoção de expansões identificadas nas favelas existentes e mesmo de “embriões de favelas”, evitando desta forma que se desenvolvam como suas irmãs maiores, multiplicando o problema.

Bibliografia ALVITO, Marcos. “Um bicho-de-sete-cabeças”, In: ZALUAR, Alba & ALVITO, Marcos (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 181-208. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. 144 p. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007a. 560p. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007b. 322p. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 1996. 224p. BURGOS, Marcelo B. “Favela, cidade e cidadania em Rio das Pedras”, In: BURGOS, Marcelo B. (Org.). A utopia da comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 21-90. BURGOS, Marcelo B. “Dos parques proletários ao Favela-Bairro - as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro”, In: ZALUAR, Alba & ALVITO, Marcos (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 25-60. COMPANS, Rose, “A Cidade Contra a Favela: A Nova Ameaça Ambiental”. In: R. B. Estudos Urbanos e Regionais, V. 9, N. 1, Maio 2007 p. 83-99. ESPINHEIRA, Gey. Entrevista no documentário “Ferida Aberta - Novos Alagados, Salvador - Bahia” de Alexandre Apsan Frediani, disponível em: http://www.youtube.com/watch? v=CRaZrLSwcUg, Acessado em 15.Jun.2008. HAESBAERT, R. O Mito da desterritorialização. Do “Fim dos Territórios” à Multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. JACQUES, Paola B. A estética da ginga: A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. 160 p. JACQUES, Paola B. Les Favelas de Rio: Un enjeu culturel. Paris: L'Harmattan, 2001. 178 p. KOPP, Anatole. Quando o moderno não era um estilo e sim um causa. São Paulo: Nobel/EDUSP, 1990. 256 p. LAGO, Luciana C. do. “Favela-Loteamento: re-conceituando os termos da ilegalidade e da segregação urbana”. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 10, 2003, Belo Horizonte (MG), Anais. Belo Horizonte: ANPUR, 2003. CD ROM. LAY, Maria C. & REIS Antônio T. "Habitação social: diferenças no papel de espaços abertos comunais segundo tipos habitacionais" In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 11, 2005, Salvador (BA), Anais. Salvador: ANPUR, 2005. CD ROM.

LEEDS, Anthony & LEEDS, Elizabeth. A Sociologia do Brasil Urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1978. 327 p. LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Org: SALGUEIRO, Heliana A. São Paulo: EDUSP. 2001. 328p. MARICATO, Ermínia. “Autoconstrução, a arquitetura possível”. In: MARICATO, E. (Org.). A Produção Capitalista da Casa (e da Cidade) no Brasil Industrial. São Paulo: Editora Alfa-Omega. 1979. 166 p. MARZULO, Eber P., “Espaço dos pobres. Identidade social e territorialidade na modernidade tardia”. In: ARAUJO, F.; HAESBAERT, R., Identidades e territórios: questões e olhares contemporâneos. Rio de Janeiro: Acess Editora, 2007a. 136 p. MARZULO, Eber P. “Favelização ampliada: o processo de segregação espacial das classes populares”. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 12, 2007b, Belém (PA), Anais. Belém: ANPUR, 2007. CD ROM. PERLMANN, Janice E. O Mito da Marginalidade. Favelas e política no Rio de Janeiro. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 377 p. PIERUCCI, Antônio F. “Experiência urbana da diversidade: além do conflito de interesses, o conflito de valores”. In: Maria F. Gonçalves; Carlos A. Brandão; Antônio C. Galvão. (Org.). Regiões e cidades, cidades nas regiões. São Paulo: Editora UNESP/ANPUR, 2003. p. 69-80. RIBEIRO, Luiz C. de Q. & LAGO, Luciana C. do. “Oposição favela-bairro no espaço social do Rio de Janeiro”. São Paulo em Perspectiva, Vol. 15 N°1 , 2001. p. 144-154. SERPA, Angelo. “Espaço público e acessibilidade: Notas para uma abordagem geográfica”. GEOUSP, Espaço e Tempo, São Paulo, n. 15, 2004. p. 21-37. SOUZA, Maria J. N., “Apontamentos sobre a Maré”. In: R. B. Estudos Urbanos e Regionais, V. 9, N. 1, Maio 2007 p. 53-68. VALLADARES, Licia do P. & PRETECEILLE, Edmond. "Favela, favelas: unidade ou diversidade da favela carioca" In: RIBEIRO, L. C. (org.). O futuro das metrópoles. Rio de Janeiro: Revan, 2000. p. 375-403. VALLADARES, Licia do P. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. 204 p. WACQUANT, Loïc. Os condenados da cidade. Rio de Janeiro: Revan, 2001. 204 p.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.