Da gentrificação à centralidade do corpo no novo comércio: o caso da rua Miguel Bombarda

September 12, 2017 | Autor: Mafalda Lourenço | Categoria: Sociology, Urban Sociology
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Universidade do Minho Departamento de Sociologia Mestrado em Sociologia  

Da gentrificação à centralidade do corpo no novo comércio: o

caso da rua Miguel Bombarda

 

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Projecto de investigação Orientado por Teresa Mora Julho de 2009

 

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Resumo  

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Introdução  

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A Rua Miguel Bombarda e a sua transformação  

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O comércio tradicional e o novo comércio da Rua Miguel Bombarda  

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Gentrificação e Hibridação  

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A Centralidade do corpo na oferta da Rua Miguel Bombarda  

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Metodologia qualitativa: a observação e a entrevista  

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As entrevistas em análise  

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Processo de transformação  

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Indícios da população residente  

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Relação entre comércio tradicional e novo comércio  

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Representações da oferta à procura  

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Questões abordadas para além do estudo  

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Conclusão  

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Bibliografia  

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Resumo Este trabalho visa a identificação do possível processo de gentrificação da Rua Miguel Bombarda, no seu sentido mais lato, bem como a percepção da relação da coexistência de comércio tradicional a par de um novo comércio que se tem vindo a instalar nesta mesma rua da cidade do Porto. Este último direccionado para o corpo, demonstrando a sua importância e centralidade na sociedade actual, como instrumento de construção de identidade e demarcação da diferença. Este projecto focar-se-á na oferta do novo comércio, pretendendo no futuro partir para o lado da procura, caso se mostre pertinente. Contudo, tendo em conta que apenas se trata de um projecto, através da auto-identificação de alguns dos agentes da oferta e da sua percepção sobre o público poder-se-á fazer uma pequena abordagem exploratória da oferta, bem como mostrar os traços gerais do público que frequenta a rua. A caracterização do público poderá ser mais à frente interessante para a fundamentação de um estudo em torno dos estilos de vida dos indivíduos que compram e/ou frequentam a Rua Miguel Bombarda. Os dados para este pequeno projecto foram adquiridos através da observação e de quatro entrevistas, sendo relativa ao comércio tradicional e as outras três direccionadas para os diferentes ramos de oferta comercial da Rua Miguel Bombarda.

 

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Introdução O projecto de investigação que se segue parte da observação empírica das alterações que tem vindo a sofrer o centro da cidade do Porto. Tal como outras cidades Europeias (Lisboa, Barcelona, Berlim), o Porto assiste, nos dias de hoje, apesar de numa fase ainda inicial, a movimentos em direcção ao centro, quer da actividade económica e cultural, como também do visível retorno de população para fixar aí a sua residência. A eleição da Rua Miguel Bombarda e sua área envolvente prende-se com o seu crescente dinamismo. Esta é conhecida pela concentração de inúmeras galerias de arte contemporânea e, inclusivamente, pelas lojas que oferecem produtos alternativos. Entenda-se alternativo como algo que não é possível encontrar em qualquer local de oferta predominantemente massificada como, por exemplo, numa grande superfície, e que pretende cativar um público particular. Contudo, a Rua Miguel Bombarda não oferece apenas este novo comércio, nela perduram ainda algumas actividades comerciais de carácter tradicional. Quando se deambula por este espaço pode-se entrar num minimercado tradicional, ir à florista e até mesmo ao típico café que acumula a função de salão de jogos. Esta coabitação merece uma análise, pois, aludindo a Simmel “o espaço não existe por si, este só faz sentido e “ganha vida” a partir da acção recíproca que se gera entre os indivíduos” (Carmo, 2006:10). Importa por conseguinte perguntar que tipo de relação mantêm os dois tipos de oferta? Sentir-se-ão os proprietários do comércio tradicional invadidos pelo novo comércio que se foi instalando na rua? Simplesmente não existe qualquer tipo de relação? Ou assiste-se, porventura, a uma relação de harmonia e até de cumplicidade? Outro ponto interessante será perceber se ainda se podem encontrar na Miguel Bombarda algumas características de contacto primário baseado no conhecimento mútuo e em laços sentimentais e emocionais (Wirth,1962:7) e se realmente a população que habita  

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nesta rua sempre viveu aí ou se surgem também novos residentes: estrangeiros, jovens, pessoas que rumam novamente ao centro da cidade, etc. Encontrar-se-ão indícios de um processo de gentrificação e hibridação? Após uma identificação da forma de ocupação do espaço comercial, pretende-se uma focalização apenas no novo comércio, deixando de parte o comércio tradicional e também as galerias de arte contemporânea, não esquecendo, todavia, a eventualidade de as galerias instaladas nesta rua fazerem com que, também o seu público seja, em alguns casos, motivado a entrar e comprar nas lojas aí presentes. O que diferencia as lojas da Rua Miguel Bombarda? Para responder a esta pergunta torna-se essencial conhecer a percepção dos proprietários deste novo comércio. Como se auto-identificam? O que pretendem oferecer? Que tipos de público desejam cativar? Se as suas expectativas se confirmam em termos de público? Como caracterizam quem compra realmente nas suas lojas? Que representações sociais se destacam nos discursos dos proprietários do novo comércio? Observando todo o contexto da rua ressalta ainda que a oferta das lojas da Rua Miguel Bombarda incide sobre produtos ligados à esteticização do corpo. Todos os objectos oferecidos pelo novo comércio remetem para a individualidade do sujeito, destacando-se os objectos que tem como alvo o corpo: corpo físico/corpo casa. O consumo desses objectos responde, por hipótese, à necessidade de procura de identidade e expressão do eu. E a decoração do corpo contribui, deste ponto de vista, para essa construção da identidade individual e delimitação da diferença em relação ao outro. Portanto, nesta perspectiva, tal oferta aponta para centralidade do corpo na sociedade actual.

 

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A Rua Miguel Bombarda e a sua transformação Numa primeira fase será essencial uma breve descrição da rua, nomeadamente a sua delimitação e explicitação do nome das ruas que a delimitam. A Rua Miguel Bombarda localiza-se entre as duas freguesias de Cedofeita e Massarelos, pois vai desde a Rua de Cedofeita até à Rua da Boa Nova. A actual Rua das Galerias chamava-se Rua do Príncipe, em honra do futuro rei D. João VI, príncipe regente durante a doença da sua mãe D. Maria I. Apenas em 1910 aquando da Implementação da República nasceu a Rua Miguel Bombarda. Tal como é hoje tem um comprimento de 650 metros e localiza-se no coração da cidade do Porto. As primeiras galerias da Rua Miguel Bombarda começaram a aparecer nos anos 90 e foi por meio destas que se começou a assistir a um crescente dinamismo. “Era uma rua sem história. Anónima, sossegada e incaracterística. Depois vieram as galerias de arte. Despertaram a atenção mediática e a curiosidade do público”. (in City, 01/12/1998, João Luís Pereira) Em 1998, ainda antes do Porto se assumir como capital da cultura 2001 - Porto 2001 Capital da Europeia da Cultura, os agentes activos da zona da rua Miguel Bombarda procuram levar avante um projecto de transformação e reabilitação vocacionado para a divulgação de arte e da cultura. Num artigo de Hélder Robalo revela-se que “O sonho do galerista Fernando Santos, elaborado sob a égide do Circuito Cultural da Miguel Bombarda, surgiu em 1998. O objectivo era, e é ainda, ali colocar galerias de arte e comércio alternativo, dinamizar uma rua que esteve quase ao abandono. O plano esteve parado até 2008, quando o executivo portuense, pela Empresa Municipal de Gestão de Obras Públicas (GOP), avançou com a obra.” (in Diário de Notícias,06/03/2009)  

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A Rua Miguel Bombarda oferece, hoje em dia, por um lado, toda uma gama de lojas relacionadas com trabalho criativo e, por outro, as 13 galerias de Arte Contemporânea onde se podem visitar inúmeras exposições. Apesar desta crescente oferta, do que chamo novo comércio – mobiliário, artes plásticas (galerias), alimentação, música, tratamento do corpo, vestuário e acessórios – persiste ainda algum comércio de cariz tradicional como os minimercados tradicionais, os snack-bares, salão de jogos, a florista e oficinas de restauro e pintura.

 

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Comércio tradicional e o novo comércio da Rua Miguel Bombarda No contexto da Rua Miguel Bombarda assiste-se a uma coexistência do comércio tradicional e de um novo comércio. Apesar deste último imperar, em virtude de toda a visível transformação que se tem vindo a processar desde o início dos anos 90, aquando da instalação das primeiras galerias de arte, o comércio tradicional está, de facto, ainda presente nesta rua. Como se pode verificar através observação da rua, ela conta com alguns estabelecimentos de comércio tradicional: dois minimercados; Florista Decoflor; Snack-bar Cindy; duas confeitarias (Olhos de Água e Célia); Lavandaria Olímpica; Restauro de antiguidades; Oficina de pintura; Oficina de restauro de antiguidades; Loja de mobiliário antigo. Todos estes estabelecimentos aqui enumerados remetem para o que chamo de comércio tradicional. Todos os outros estabelecimentos patentes nesta rua têm outras características, nomeadamente o produto oferecido e a decoração dos estabelecimentos, e, por tal, identificam-se como novo comércio, abrangendo diferentes áreas: vestuário, acessórios, artes plásticas (galerias), música, alimentação e mobiliário. No âmbito do vestuário podemos encontrar onze lojas: Amilod Zareg; Zoorb; Zona Z; Artes em Partes – Design de Moda; Frida; Origami; Cocktail Molotof; Miau Frou Frou; La paz; e King Kong. Dedicadas aos acessórios a rua conta com: Artes em partes – Loja de acessórios; Pickpocke; Wonder; Com pés e cabeça; Adorna Corações; Indícios Óbvios;eJoalharia Contemporânea. Na área do tratamento do corpo contamos com Fashion Nails e Hair Identity. Já na área do mobiliário podem-se encontrar: Loja de candeeiros; Galeria Design – Carisma; Tramite; Mundano; Oficina; Piurra; Bric e Petit Cabanon. Destinados à alimentação existem sete estabelecimentos: Freesugar; Restaurante Guernica; Garrafeira das Artes; Itamae; Café Bar  

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110; Quintal; e Pimenta Rosa. Observam-se ainda as lojas direccionadas para o mercado musical como a Matéria-Prima, Loja de Discos, e Louie Louie Deluxe. Existem,por último, as galerias, espaços de exposição e venda de obras de Arte, sendo elas: Galeria Trindade, Galeria Design Carisma, Galeria João Lago, Galeria Franchini’s, Galeria Salão Maior, Galeria Fernando Santos, Galeria Presença, Espaço Mustang, Espaço de Exposição, Galeria Serpente, Galeria Arthobler, Galeria Minimal, Galeria Quadrado Azul e, finalmente, Galeria Miguel Bombarda. O que distingue o comércio tradicional do novo comércio? Após a análise dos testemunhos recolhidos e ao contrário do que se poderia previamente pensar, a distinção entre comércio moderno e tradicional parece não fazer sentido no que diz respeito ao tipo de relação discursivamente assumida pelo comerciante relativamente ao consumidor. Não se pode recorrer aqui à dicotomia comércio tradicional/comércio moderno, pois o novo comércio que se instalou nesta rua pretende uma aproximação ao comércio tradicional. Os três entrevistados afirmam que a relação face-a-face, a proximidade com o seu público, um atendimento personalizado, uma relação que ultrapassa a relação comercial é uma das características essenciais neste tipo de comércio que representam. Ambos os tipos de comércio (tradicional e novo) se contrapõem à ideia de “nãolugares” de Marc Augé – espaços de passagem incapazes de dar forma a qualquer tipo de identidade, como as grandes superfícies, locais permeados de pessoas em trânsito, espaços de ninguém, não geradores de identidade. Os “lugares” – como aqueles auto-identificados pelos três entrevistados – são, pelo contrário, espaços criadores de identidade, fomentadores de relações interpessoais. O autor afirma: “ [o lugar] é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa.” (Augé, 1994:51)

 

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Mas o produto que ambos os lugares (de comércio tradicional e do novo comércio) oferecem é, todavia, distinto, sendo este um factor que permite diferenciá-los, nomeadamente se atendermos às necessidades que aquele suprime e à sua funcionalidade. Se o comércio tradicional tende a suprimir necessidades básicas e primárias, o novo comércio pretende, por seu turno, suprimir outro tipo de necessidades. Necessidades secundárias adquiridas ou desenvolvidas por meio da experiência, convivência com outras pessoas, pela incorporação dos valores da sociedade em que vivem, ou por causa da própria personalidade segundo a teorização Maslow. (Maslow, 1968) Uma outra característica que pode ser considerada como factor de distinção é a decoração dos dois tipos de espaços. O comércio tradicional parece manter a decoração de origem. Já no que diz respeito ao novo comércio a decoração é nitidamente uma prioridade e caracteriza-se pela fusão entre detalhes antigos e modernos com reaproveitamento das infraestruturas já existentes.

 

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Gentrificação e Hibridação Para melhor perceber a realidade da Rua Miguel Bombarda é essencial enquadrá-la no contexto em que se encontra: a cidade do Porto. Alguns indícios da sua actual transformação podem ser encontrados nos relatos dos entrevistados. Apesar de afirmarem que ainda há muito caminho a percorrer, os três entrevistados em representação da Rua Miguel Bombarda afirmam que o Porto está a ganhar uma nova vida. O testemunho seguinte serve de ilustração:

“A Rua das Galerias é amanhã (07 de Março de 2009) inaugurada oficialmente e o autor deste projecto acredita que ajudará a trazer mais jovens para a Baixa de uma cidade que perdeu cem mil pessoas em 30 anos (…) Filipe Oliveira Dias diz que era importante concretizar a aspiração de fazer nascer uma cidade nova nesta zona, numa altura em que a juventude está a regressar ao centro do Porto.” (in Diário de Notícias, 06/03/2009, Hélder Robalo)

As transformações nas pequenas metrópoles decorrem, em boa medida, dos processos de globalização. As metrópoles constituem o local onde a globalização se localiza. Estas ressurgem então como territórios estratégicos da nova ordem económica global (Smith, 2002). “Por essa via se tornam territórios estratégicos, onde se assiste, continuadamente, a processos, frequentemente sobrepostos de urbanização, suburbanização, desurbanização e reurbanização, a contrário das teses mais apocalípticas, que falam simplesmente do seu abandono e desvitalização social e económica” (Rodrigues, 1999:96). Este processo de transformação urbana aponta para revitalização do papel das cidades como palco de produção de valor. Ou seja, as cidades posicionam-se habilmente face aos grupos sociais estratégicos – turistas, consumidores, profissionais altamente qualificados,

 

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novos residentes originários da classe alta e da classe média alta com mais capital – para a sua recomposição territorial. Tal como verificou Walter Rodrigues no caso de Lisboa (Rodrigues, 1999:115), no Porto parecem também evidenciar-se sinais de uma reconfiguração da territorialização do tecido social da cidade que apontam no sentido de processos de gentrificação residencial conjuntamente com processos de gentrificação económica e cultural. Este processo de gentrificação (residencial, económica e cultural) consiste na recomposição do centro da cidade e na renascença urbana que está patente na volta dos indivíduos à área central da cidade, atraídos pela nova oferta que aí se concentra. O que diferencia a gentrificação de qualquer outro processo de revitalização, reforma ou desenvolvimento urbano é o facto de se tratar de um processo onde tanto actores privados quanto públicos actuam visando um movimento habitacional de uma classe média para centros urbanos deteriorados. Nesta perspectiva, o processo de gentrificação poderá permitir uma melhor compreensão da realidade da Rua Miguel Bombarda, como um dos exemplos da revitalização, reestruturação urbana e económica do centro da cidade do Porto. Por outras palavras, a Rua Miguel Bombarda pode ser, por hipótese, considerada como uma peça desse processo urbano neoliberal de gentrificação, que se tem vindo a generalizar em diversas metrópoles europeias como estratégia urbana global, segundo Neil Smith (2002:428). A tendência de desurbanização do centro da cidade do Porto (o abandono populacional e o declínio económico) parece inverter-se. Presentemente, a cidade do Porto, pela observação de indícios do seu actual dinamismo, parece deparar-se com o retorno de população. Uma nova fase de reurbanização onde a actividade cultural e o lazer nocturno têm um papel preponderante, assim como aconteceu em alguns locais da cidade de Lisboa. O  

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novo comércio instalado permite a vitalidade e viabilidade das áreas centrais da cidade, antes espaços fantasma e abandonados após a fuga para as periferias. Assim, o centro da cidade torna-se mais atractivo, não somente para os residentes como também para visitantes, investidores e consumidores. Locais, como possivelmente a Rua Miguel Bombarda, sofrem o processo de gentrificação e convertem-se em novos espaços complexos que integram agora residências, comércio, facilidades culturais: novos complexos de recriação, consumo, produção e residência. Importa também considerar que a dinâmica de hibridação parece estar presente no processo de gentrificação residencial. Segundo a percepção dos entrevistados, neste espaço reside uma população heterogénea: estrangeiros, estudantes, população jovem e, também, idosos, relativamente aos quais o testemunho de Adelina é esclarecedor. Segundo esta entrevistada, proprietária do minimercado, muitos dos idosos residem aí há mais de vinte ou trinta anos. O caso da Rua Miguel Bombarda aponta indícios de gentrificação económica, residencial e cultural. Todavia, será necessário, no futuro, um aprofundamento do seu conhecimento para estimar se de facto se trata de uma realidade. Com esta transformação, outras questões se põem: assistir-se-á a um processo de encontro, contacto, interacção, troca, hibridação cultural na Rua Miguel Bombarda? Será que a hibridação, da forma rápida que é característica na nossa época leva à extinção do comércio tradicional? Ou antes, presencia-se uma mudança cultural por acréscimo e não por substituição? Será a Rua Miguel Bombarda realmente um espaço híbrido? Considerando a cidade como local onde há cruzamento entre comércio e cultura e onde pessoas de diferentes origens se encontram e interagem, dir-se-á que a cidade como zona intercultural e local de encontro é caracterizada pela sobreposição e intersecção de  

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culturas, nas quais o que começa por mistura acaba por se transformar na criação de algo novo. Mas, se o que está perdido no processo de mudança cultural pode criar desintegração e fragmentação, a síntese e emergência de novas formas são, de facto, algo de positivo deste processo (Peter Burke, 2003). Similarmente, Canclini (1990:23) crê que apenas se pode “Viver em estado de guerra ou em estado de hibridação”. O mesmo autor entende por hibridação “processos socioculturais nos quais estruturas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar estruturas, objectos e práticas” (1990:14) Segundo este autor, a hibridação funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas. Como? Procurando reconverter o património para reinseri-lo em novas condições de produção e mercado. Na rua Miguel Bombarda coexistem o comércio tradicional e o novo comércio. Este tipo de comércio com características semelhantes ao comércio tradicional, nomeadamente no atendimento face-a-face, demonstra uma transformação cultural por acréscimo. Isto porque se assiste a uma mescla de características pertencentes ao comércio tradicional e de adaptação às novas necessidades da sociedade actual. Inclusivamente, os produtos oferecidos nas lojas da rua Miguel Bombarda parecem exprimir um processo de encontro, contacto, interacção e troca cultural. Coexistem saberesfazer tradicionais, com processos modernos e temos uma oferta de produtos modernos, executados de uma forma tradicional, muitas vezes manufacturados, como é o do artesanato urbano.

 

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A Centralidade do corpo na oferta da Rua Miguel Bombarda O corpo contemporâneo, ou melhor, o imaginário relativo ao corpo contemporâneo, difere de qualquer outro período histórico já presenciado. Apesar de o corpo ter sido deixado de lado ao longo da história pelo racionalismo humano, ele sempre ressuscita. Cada vez mais o corpo é alvo de grandes preocupações e questionamentos. Assistimos, especialmente nos grandes centros urbanos do mundo ocidental, uma crescente glorificação do corpo. Os produtos oferecidos na rua Miguel Bombarda remetem-nos para a percepção do corpo como um projecto um empreendimento que é susceptível de mudanças e de alterações. Os corpos marcam-se social, simbólica e materialmente. Marcas distintivas, expressivas e subtis. (Schillig,1997) Uma multiplicidade de sinais, códigos e atitudes produz referências que fazem sentido no interior da cultura e que definem quem é o sujeito. A marcação pode ser simbólica ou física, pela colocação de um piercing, por uma tatuagem, pela implantação de uma prótese ou até pelo uso de acessórios e roupas, estes últimos produtos oferecidos na rua. Como um projecto, o corpo é construído. A marcação que sobre ele se executa é quotidiana e supõe investimento. E essa marcação irá permitir que o sujeito seja reconhecido como pertencendo a uma determinada identidade; que seja incluído ou excluído de determinados espaços; que seja acolhido ou recusado por um grupo. Que seja, em síntese, aprovado, tolerado ou rejeitado. Assim, o público que frequenta este espaço, por meio dos objectos que aí adquire procura construir uma identidade e transpareça o seu estilo de vida. Podemos verificar através da teoria de David le Breton que analisa o corpo em contexto social e cultural, que este o vê como o canal pelo qual as relações sociais são vivenciadas.

 

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Este autor afirma que a condição humana é corporal. “Antes de qualquer coisa, a existência é corporal” (Breton,2006:7). O corpo produz sentidos continuamente. É por meio do corpo que o indivíduo assimila a substância da sua vida e a traduz aos outros por meio de sistemas simbólicos que partilha com os membros da sociedade. Assim, afirma que o corpo se tornou, na pós-modernidade, um alter-ego, uma duplicata, uma projecção de si mesmo. O corpo modelado por um contexto social e cultural é o primeiro objecto de comunicação do homem, prestamos atenção a uma imensidão de dados físicos e ao vestuário que condicionam a nossa relação com o outro. Seria interessante lembrar que os corpos são também marcados, fortemente, a partir da exterioridade do olhar e do dizer do outro. Os corpos são nomeados e discriminados conforme se ajustem, ou não, aos ditames e às normas de sua cultura. Portanto, os corpos são feitos, inventados, ou seja, construídos, assim como afirma Schillig. Giddens, acrescenta que a aparência corporal, para além do corpo como superfície, abrange igualmente a forma de vestir e os acessórios, algo que tem visibilidade e que pode ser usado para interpretar acções. O vestuário e os adornos são um meio de individualização e a escolha destes é relativamente aberta. Todavia, o modo de vestir sofre influências e pressões a ter em conta. Para o autor a aparência é um elemento central do projecto reflexivo do self. Ou seja, tem um papel crucial na construção da auto-identidade que se constrói num contexto de diversidade de opções. “O corpo não é apenas a entidade física que possuímos, ele é um sistemaacção, um modo de praxis, e a sua imersão prática nas interacções da vida do dia-a-dia é uma parte essencial da manutenção de um sentido coerente de autoidentidade.” (Giddens, 1997:92).

Apoiando-nos na teorização de Giddens, podemos adaptar ao público que frequenta e adquire as peças de vestuário, acessórios e adornos nas lojas da rua, procura construir a sua

 

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auto-identidade e demarcar a sua individualidade num contexto de diversidade de opções e que serão uma pessoa fundamental para o projecto reflexivo do self.

Estes autores realçam o papel fundamental que o corpo detém na sociedade contemporânea, sendo que é palco privilegiado de demarcação da diferença simbólica, por exemplo, pela forma como este é adornado. O corpo está no centro por ser o palco de construção e afirmação de identidade dos indivíduos. Consequentemente, ele é o instrumento identitário de demarcação da diferença, pois “As identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença (…) a identidade depende da diferença”, como afirma Woodward (2000:39). Todos os objectos oferecidos pelo novo comércio remetem para a delimitação da individualidade do sujeito. Destacam-se os objectos que tem como alvo o corpo físico e a casa como um corpo no sentido mais lato do conceito. O consumo destes objectos responde à necessidade de procura de identidade e expressão do eu. E a decoração do corpo contribui para essa construção da identidade individual e delimitação da diferença em relação ao outro.

 

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Metodologia qualitativa: a observação e a entrevista A metodologia que melhor se adequa a este projecto de investigação é a qualitativa, pois não faria sentido a utilização de uma metodologia quantitativa para analisar o objecto de estudo proposto, as representações sociais dos proprietários do comércio da Rua Miguel Bombarda, dados que são efectivamente subjectivos, atendendo à dimensão simbólica que lhes é subjacente. A observação e a entrevista semi-estruturada e são duas técnicas que integram a metodologia qualitativa e que julgo as mais pertinentes para o que aqui se pretende analisar. A observação empírica foi essencial para o despertar do interesse pela Rua Miguel Bombarda e esta será imprescindível para melhor percepcionar alguns aspectos da realidade daquela rua. A utilização da observação como forma de obter informação relativa à rua Miguel Bombarda prende-se com a necessidade de observar toda a oferta existente, assim como percepcionar toda a dinâmica da rua. Esta técnica permite adquirir informação em primeira-mão, sendo que os acontecimentos são observadores em situação real. A entrevista é definida por Haguette (1997:86) como um “processo de interacção social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objectivo a obtenção de informações por parte do entrevistado”. A entrevista pretende a recolha de dados sobre um determinado tema científico, através da qual os pesquisadores buscam obter informações, ou seja, colheita de dados objectivos e subjectivos. Este tipo de técnica permite uma maior liberdade ao indivíduo de expressar as suas percepções, o que pode levar, muitas das vezes, ao surgimento de outros aspectos inesperados e importantes para o estudo. Contudo, é necessária a elaboração de um guião, não somente para a organização da entrevista por parte do investigador, mas também para orientar o  

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indivíduo a ser entrevistado. Este tipo de técnica combina perguntas abertas e fechadas, onde o informante tem a possibilidade de discorrer sobre o tema proposto. O pesquisador deve seguir um conjunto de questões previamente definidas, fazendo-o, contudo, num contexto muito semelhante ao de uma conversa informal. O entrevistador deve ficar atento para dirigir, no momento que achar oportuno, a discussão para o assunto que o interessa, fazendo perguntas adicionais para elucidar questões que não ficaram claras ou ajudar a recompor o contexto da entrevista, caso o informante se tenha desviado do tema ou tenha dificuldades com ele. Este tipo de entrevista permite também uma maior proximidade ao entrevistado, propiciando um maior envolvimento e um maior “à vontade” para a fluidez do discurso. Estas entrevistas permitirão recolher informação acerca da relação de coabitação entre os diferentes comerciantes, tradicionais e modernos, e possibilitarão, igualmente, percepcionar quais as representações sociais dos novos comerciantes sobre a Miguel Bombarda, no pressuposto de que a escolheram para aí instalarem as suas lojas. Ou seja, com estas entrevistas pretende-se identificar a relação que se estabelece entre o comércio tradicional que persiste na Rua Miguel Bombarda e o novo comércio que tem vindo a emergir nesta mesma rua. Assim como percepcionar a opinião dos proprietários/trabalhadores das lojas em relação a eles mesmos e à sua oferta (auto identificação) e, inclusivamente, em relação ao seu público (procura), bem como as representações sociais do espaço cultural Miguel Bombarda que estão por detrás dos seus discursos. No caso do comércio tradicional será apenas escolhido um entrevistado, sendo que este estudo se direcciona mais para a nova oferta existente na rua. Todavia, esta entrevista não poderá deixar de se feita, pois somente com ela se percepcionará, ainda que, nesta fase de projecto, de uma forma assumida como meramente exploratória e superficial, qual a relação que os comerciantes tradicionais mantêm com os novos comerciantes, permitindo,

 

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inclusivamente, recolher alguns dados relativos à ocupação residencial deste espaço da Rua Miguel Bombarda. Os proprietários das lojas e/ou os comerciantes serão alvo de uma entrevista que estará sujeita a uma posterior análise de conteúdo de forma a encontrar indícios das representações sociais que estão por trás dos seus discursos em relação ao público e a eles mesmos. Como seleccionar os indivíduos a serem entrevistados? No que diz respeito à escolha dos entrevistados, esta foi feita ao acaso, apenas sendo imprescindível que aqueles representassem os diferentes sectores de oferta da Rua Miguel Bombarda. Por se tratar de um projecto de investigação, foi escolhida uma loja de cada uma das áreas de ofertado novo comércio – uma relacionada com estética (Fashion Nails), uma de design de interiores (Piurra) e uma outra de vestuário e acessórios (Amilod Zareg) e uma loja do comércio tradicional –neste caso um minimercado (Avelina).

 

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As entrevistas em análise Com as entrevistas a três representantes do novo comércio (Rui – Piurra; Marina – Amilod Zareg; Pedro – Fashion Nails), pretendeu-se descortinar que tipo de relação se estabelece entre o novo comércio que tem vindo a emergir na Rua Miguel Bombarda e o comércio tradicional que persiste nesta mesma rua, assim como, percepcionar qual a opinião dos proprietários/trabalhadores das lojas em relação a eles mesmos e à sua oferta (auto identificação), em relação ao seu público (procura) e as representações sociais que estão por detrás do seu discurso. A entrevista ao comércio tradicional (Avelina – minimercado) permitiu percepcionar qual relação mantida com o novo comércio que tem vindo a emergir nesta mesma rua e, inclusivamente, perceber como é visto o processo de mudança da rua e se este tem vindo a trazer algumas vantagens.

Processo de transformação No que diz respeito à transformação da Rua Miguel Bombarda todos os entrevistados realçam o facto de que, realmente, o processo de mudança tem vindo a dar um novo dinamismo à rua, considerando que as galerias de arte e as novas lojas, estas caracterizadas pelos seus proprietários como alternativas (o que será analisado mais à frente) têm vindo a aumentar. Três dos entrevistados conheciam a rua já há alguns anos e confirmaram que esta estava sem vida e que foi de facto com a chegada das galerias que tudo começou a modificarse. Marina, da loja de vestuário e acessórios (Amilod Zareg), a única entrevistada que não conhecia bem a rua antes de escolhê-la para instalar aí a sua loja. Contudo, assegura que

 

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desde que está no Centro Comercial Bombarda, há dois anos, tem notado que abrem muitas novas lojas na rua. Os excertos de entrevistas que de seguida se apresentam são, a este respeito, elucidativos.

“Eu não conheci muito bem o período, quando as galerias começaram a aparecer vim cá algumas vezes e depois deixei de frequentar a rua. Depois durante uns anos em que as galerias começaram a impor-se, a posicionar-se e as pessoas a virem mais. Depois com o Artes em partes, também foi ao mesmo tempo que as galerias, sensivelmente até aparecer o CCB veio ainda dar um bocadinho mais de animação, por isso a rua passou por essa fase, aos poucos e com público com qualidade, as pessoas vinham por causa das galerias, do ambiente que era criado que era muito familiar e aos bocadinhos começou a haver muito mais gente” (Rui) “Sobre como era a rua antigamente não sei muito porque apenas a conheci há três anos quando comecei a pensar em montar esta loja. Não conheço como foi processada esta renovação, mas pelo que sei antes das galerias não existia nada de especial e estava tudo ao abandono. Acho que quando abriram as galerias começou a surgir mais interesse por esta rua. Desde que estou aqui noto que de dia para dia abrem mais lojas e há muito movimento na rua. A rua está em constante mudança e isso qualquer pessoa se apercebe.” (Marina) “Vivo aqui á 5 anos mas já conheço a rua desde há muito tempo. Na realidade esta rua tem vindo a ganhar muito dinamismo e cada vez mais público. O processo de transformação tem sido bastante lento, apesar de todos os impasses e atrasos no projecto que está para ser realizado desde 1998, isto agora parece estar num bom caminho, finalmente! Mesmo sem o investimento público isto tem evoluído muito, graças às pessoas que tem vontade de mudar e dar vida a isto.” (Pedro) “É assim: Eu não sei bem como isto começou. Mora aqui desde 1997. Comecei a ver abrirem aí as galerias, agora há três novas, mas as casas já existiam; uns compraram outros alugaram, restauraram e fizeram as galerias que de dia para dia evoluíram.” (Avelina)

 

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Embora todos os entrevistados apontem a necessidade de renovação de muitas das casas deterioradas, dizem que têm vindo a verificar-se algumas remodelações. Estes relatos em torno do processo de renovação desta rua revelam o dinamismo que afirmei existir na introdução deste trabalho de projecto.

Indícios da população residente As entrevistas realizadas dão alguns indícios em relação aos residentes desta rua. Os relatos dos entrevistados levam a crer que a rua Miguel Bombarda, no que concerne à população residente, é constituída por jovens, idosos e alguns estrangeiros. Todavia, para se poder afirmá-lo com certeza, ter-se-ia de apurar qual o seu tecido residencial. O Rui é da Póvoa do Varzim mas mora, actualmente, na Rua Miguel Bombarda e, na qualidade de morador, pode ser um bom informante sobre a população residente. Segundo ele, residem na rua muitas pessoas idosas, mas, simultaneamente, há muita gente jovem, como ele, a eleger a rua (ou área envolvente) para viver. “Há muita gente nova que veio para cá, muitos estudantes, estrangeiros, mas também há muita gente que vive cá há muitos anos. Tipo 50% 50%.” (Rui)

O Pedro vive há cinco anos na rua Miguel Bombarda e diz que tem aumentado o número de jovens que aí vivem, conhece pelo menos duas pessoas na casa dos 30 que se mudaram para a rua. “Desde que vivo aqui tenho notado que muita gente jovem se muda para cá. Conheço pelo menos duas pessoas que na casa dos trinta que vieram para cá morar há pouco tempo. E também há muita gente que conheço que quer morar aqui ou na área envolvente.” (Pedro)

 

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Na sua entrevista, Marina refere que residem naquele espaço muitas estudantes de Erasmus e muitos jovens. “O que me parece é que vivem aqui muitos jovens, mas claro que também existem muitos residentes idosos. Ah! Moram aqui também muitos Erasmus.” (Marina)

Relação entre comércio tradicional e novo comércio Parece existir uma interacção entre os diferentes tipos de comércio. Segundo os entrevistados todos se dão bem e não há qualquer tipo de problemas entre eles. Isto poder-seá dever ao facto de não se constituírem como concorrência directa. Por exemplo, a Avelina somente se refere ao minipreço que abriu na rua ao lado que lhe veio afastar muita da sua clientela. Avelina não frequenta, nem é cliente assídua das lojas do novo comércio, ao contrário de todos os entrevistados do novo comércio que afirmam serem clientes de alguns estabelecimentos do comércio tradicional. A Marina diz que é cliente habitual da Confeitaria Célia e o Pedro deixa muitas vezes a sua roupa ao cuidado da senhora da lavandaria. O Rui diz que conhece alguns dos proprietários do comércio tradicional e que, às vezes, recorre às suas lojas.

Representações da oferta à procura As representações sociais incluem significados e sistemas simbólicos. Os significados são produzidos e posicionam-nos como sujeitos. É através destes significados – produzidos pelas representações – que cada um de nós dá sentido à nossa experiência. As representações

 

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devem, então, ser compreendidas como um processo cultural que estabelece identidades individuais e colectivas e sistemas simbólicos nos quais elas se baseiam. (Woodward, 2000) As representações sociais destes indivíduos demonstram as concepções dos mesmos em relação à realidade. Um mundo de significados que transmitem as percepções dos proprietários em torno deles mesmos e do seu público. Como os proprietários do novo comércio caracterizam a sua oferta e o seu espaço comercial? Por meio da análise das entrevistas verifica-se que a caracterização de cada um dos estabelecimentos se assemelha, assim como a sua descrição se aproxima da percepção que têm do espaço Rua Miguel Bombarda. Os proprietários consideram que a Rua Miguel Bombarda é uma rua com dinamismo que oferece produtos diferentes, alternativos e artísticos. Permite aos que a frequentam encontrar objectos distintos das lojas massificadas e também um atendimento baseado na proximidade com o cliente. “Esta rua tem características diferentes quando comparada com as outras ruas do Porto. Aqui encontramos coisas diferentes, diferenciadas e alternativas e a maior parte das galerias da cidade. É aqui que as pessoas se terão que deslocar para, se quiserem visitar as galerias, ver uma exposição e adquirir uma obra de arte (...) Os objectos que vendo na minha loja são todos produzidos em Portugal e com produtos de cá. Sou eu que os projectos e trabalho em todo o processo de criação, não têm nada a ver com os produtos massificados. Apesar de tudo não sou contra as pessoas comprarem e lojas de massa, pode-se comprar aqui qualquer coisa e depois complementar com um uma coisa desse tipo de lojas ou vice-versa (...) Não tenho nenhuma peça igual, mesmo com o mesmo tecido nunca ficam iguais porque são partes diferentes.” (Marina) “Eu acho que há uma busca das pessoas de encontrar algo diferente e artístico, acho que cada vez mais as pessoas se fartam de ter uma coisa. É aquela questão das casas Ikea, tu vais a casa de um amigo, vais a casa de outro e é tudo tirado da mesma prateleira. Aqui, o que se encontra, realmente são produtos...aquelas pessoas que procuram produtos com que se identificam, que tenham mais valor, não estou a falar em termos de custo, mas que se identifiquem mais e diferente, É aquela questão alternativa,

 

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se se pode usar, mas é procura de algo especial, que surpreenda (...) Aqui podem personalizar objecto consoante queiram.” (Rui) “Na minha loja pretendo que o cliente se sinta à vontade e confortável. Sou uma alternativa aos salões de estética que existem em toda a parte. As pessoas vêm aqui porque sabem que as vou tratar de outra forma e ofereço tratamentos distintos do habitual. À rua vêm porque é uma rua diferente, com um ambiente agradável sem muita confusão de cidade e tem produtos que não é normal encontrar noutras partes.” (Pedro)

Como caracterizam o seu público? Segundo os proprietários contam com público fixo e público de passagem (curiosos). O público mais frequente são pessoas que dão valor a coisas diferentes que eles oferecem, que pretendem ser atendidos de outra forma e com algum poder económico. Pessoas ligadas às artes e/ou, normalmente, com formação superior e inclusivamente turistas. “Um pouco todo tipo de gente, especificamente esta loja, o tipo de loja que é há muita gente que vem porque saem muitos artigos em revistas de decoração. Vêm já quase de propósito à loja, alguns deles, bastantes até se calhar. Depois há sempre as pessoas que vêm cá, curiosos que vêm ao CCB ou em dia de inaugurações e que gostam e que vêm a loja e depois voltam cá durante a semana, para ver mais calmos.” (Rui) “Não vem aqui qualquer pessoa, são pessoas que dão valor aos produtos que compram e estão fartas deste tipo de comércio massificado que anda para aí. É claro que é preciso dinheirinho.” (Pedro)

O Rui afirma que se tratam de pessoas já com alguma estabilidade económica dos trinta anos para cima. Quase todos os seus clientes têm formação superior, sendo muito raro aparecerem clientes sem formação superior. “Já vendi a recém licenciados, normalmente é sempre o pessoal que já está no mercado de trabalho há algum tempo, curiosamente uma média de idades um bocado alta, pessoas mais velhas que se calhar grande parte dos meus clientes são esses, pessoas já com uma estabilidade financeira, mais por aí, mas um pouco de tudo, se for a ver há pessoas mais novas, acho que abrange um leque bem grande. São pessoas com uma formação superior, uma formação média alta, tendo em conta o produto que é, é um produto direccionado para esse tipo de pessoas. E pessoas que adoptam estilos de vida diferentes do habitual.” (Rui)

 

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Mariana quando projectou a loja pensava ter como clientes indivíduos na casa dos vinte, contudo a sua clientela vai desde os vinte até aos cinquenta anos de idade. Pessoas que dão valor ao trabalho de um designer de moda e que compreendem o porquê do preço elevado. Também afirma ter como clientes os turistas que visitam a rua. “No início pensei que os meus clientes seriam pessoa à volta da casa dos vinte anos até aos trinta, mas afinal as pessoas que aqui vêm vão desde os vinte até aos 50 anos de idade. É mesmo bastante frequente ter pessoas com cinquenta anos a entrar e comprar. (...) Muitos turistas passam, curiosos entram e compram (...) Têm de ser pessoas que dêem valor ao que faço e que compreendam que o preço elevado se justifica (...) Tenho muitos clientes ligados às artes.” (Marina)

Questões abordadas para além do estudo Várias questões tocadas nas entrevistas não são tidas em conta neste pequeno projecto, podendo ser abordadas num trabalho de investigação futura. O Rui referiu que existem inúmeros ateliers pela zona que não são visíveis quando se passa pelas ruas. Mencionou também que há muitos criadores a morar na rua, como ele, e que isso favorece um intercâmbio de experiências e projectos em conjunto. Na lógica do que afirma o autor Ulldemolins (2005) a concentração de criadores, pelo contacto e interacção, leva a uma proliferação de uma produção artística híbrida. Outra das questões interessantes que Rui referiu foi a aproximação aos modelos das grandes cidades da Europa, pelo facto de utilizar a cultura e as actividades criativas como motor de renovação do centro das cidades. Finalmente, a festa das inaugurações bimensal pode ser também objecto de estudo. Actividade que pretende dar visibilidade (Rui) e dinamizar (Avelina) a rua, cativar e aumentar público (Marina) e que, de festa para festa, cada vez conta com mais gente.

 

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Conclusão Este pequeno projecto pode ser visto como uma primeira etapa exploratória para um futuro trabalho de investigação. Como pudemos verificar ao longo deste trabalho, a rua Miguel Bombarda tem, realmente, características que apontam para o seu actual dinamismo, possivelmente por meio dum processo de gentrificação nas suas várias vertentes: cultural, económica e habitacional. A observação e as entrevistas realizadas remetem para uma rua direccionada para as actividades e comércio artístico. Se há 10 anos atrás a rua estava parada, desde a instalação das primeiras galerias assiste-se a um dinamismo cultural e económico e encontram-se alguns indícios de novos residentes: jovens e estrangeiros. Nota-se um processo de hibridismo no contacto e interacção do comércio tradicional e do novo comércio patentes na rua Miguel Bombarda. Este último caracterizando-se como uma mistura de comércio tradicional e das necessidades da sociedade contemporânea. Em alguns dos casos, adaptando novas formas híbridas como, por exemplo, o artesanato urbano. Com este estudo pretendia-se, igualmente, obter uma melhor percepção das transformações da rua Miguel Bombarda e das suas especificidades e, inclusivamente, percepcionar porque é considerada uma rua especial e alternativa no contexto do centro da cidade do Porto. As três entrevistas possibilitaram compreender como se identificam os proprietários das lojas e como caracterizam este espaço Miguel Bombarda e analisar, assim, através da oferta, em que se baseia a visão do espaço como alternativo, diferente e cultural. Estes consideram que toda a oferta se distingue pela oposição à oferta/produção massificada, pois apresentam objectos diferentes, originais e, em alguns dos casos, personalizáveis. Esta caracterização das lojas – na opinião dos entrevistados – remete para o facto das pessoas que as procuram irem em busca de algo diferente e alternativo ao que podem

 

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encontrar em qualquer parte. Segundo Rui, trata-se de pessoas com estilos de vida específicos/alternativos que procuram demarcar a diferença e a sua individualidade através dos produtos consumidos na Rua Miguel Bombarda. Produtos estes que têm como alvo o corpo no seu sentido mais lato, corpo físico e corpo casa, palco de delimitação e demarcação da individualidade de cada um. Esta questão tocada pelo entrevistado pode constituir objecto de estudo se, eventualmente, este projecto tiver uma nova fase.

 

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Bibliografia

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