Da (in)constitucionalidade de algumas modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, acessório ou munição: uma análise à luz dos princípios fundamentais do Direito Penal

July 27, 2017 | Autor: A. Almeida Da Sil... | Categoria: Criminal Law, Criminal Justice, Critical Criminology, Criminology (Social Sciences), Crime Prevention, Crime
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Faculdade de Direito Curso de Bacharelado em Direito

Trabalho de Conclusão

Da (in)constitucionalidade de algumas modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, acessório ou munição: uma análise à luz dos princípios fundamentais de Direito Penal

Angélica Almeida da Silva Vellar

Pelotas, 2014

Angélica Almeida da Silva Vellar

Da (in)constitucionalidade de algumas modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, acessório ou munição: uma análise à luz dos princípios fundamentais do Direito Penal

Trabalho de conclusão apresentado ao curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Pelotas, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Daniel Brod Rodrigues de Sousa.

Pelotas, 2014

Angélica Almeida da Silva Vellar

Da (in)constitucionalidade de algumas modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, acessório ou munição: uma análise à luz dos princípios fundamentais do Direito Penal

Trabalho de conclusão de curso aprovado, como requisito parcial, para obtenção do título de Bacharel em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal de Pelotas.

Data da Defesa: 13.10.2014

Banca examinadora:

Prof. Dr. Daniel Brod Rodrigues de Sousa (Orientador) Prof. Dr. Bruno Rotta Almeida. Prof. José Fernando Gonzalez.

“Há duas coisas que o Senhor Deus detesta: que o inocente seja condenado e que o culpado seja declarado inocente”. Provérbios 17.15

Resumo Os crimes do porte e da posse de arma de fogo, acessório ou munição – presentes no Estatuto do Desarmamento – têm levantado inúmeros questionamentos no tocante à sua proteção jurídica, principalmente no que diz com o modo desta proteção. O objeto deste trabalho é analisar os diversos posicionamentos acerca da temática, e examinar quais modalidades podem ser consideradas inconstitucionais à luz dos princípios fundamentais de direito penal. Para possibilitar isso, fez-se, inicialmente, uma abordagem histórica acerca da origem das armas de fogo e do surgimento do controle destes instrumentos pelo Estado, bem assim traçou-se os conceitos acerca dos objetos materiais dos delitos analisados, bem como foram tecidas considerações acerca da teoria do bem jurídico. Apontou-se o posicionamento da doutrina no tocante ao bem jurídico tutelado e à forma de sua proteção, bem assim o entendimento jurisprudencial. Da análise de todo esse arcabouço teórico e do confronto das modalidades analisadas com os princípios fundamentais de direito penal, concluiu-se pela inconstitucionalidade de algumas delas.

Palavras-chave: estatuto desarmamento; bem jurídico; crimes de perigo abstrato; inconstitucionalidade.

Abstract

The crimes of possession and possession of a firearm accessory or ammunition present in the Disarmament Statute - have raised numerous questions regarding their legal protection, especially when it comes to the way this protection. The object of this work is to analyze the various positions on the subject, and examine which modalities can be considered unconstitutional in the light of the fundamental principles of criminal law. To make this possible, if made, initially, a historical approach on the origin of firearms and the emergence of state control of these instruments, as well as outlined the concepts about the material objects of the crimes analyzed, as well as considerations were woven about the theory of legal right. Pointed out the positioning of the doctrine regarding the legal tutored well and the shape of your protection, as well as the jurisprudential understanding. Analysis of all this theoretical framework and comparison of treatment processes with the fundamental principles of criminal law, we concluded the unconstitutionality of some of them.

Keywords: disarmament statute; well legal; abstract danger crimes; unconstitutional.

SUMÁRIO 1.

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 8

2.

BREVE HISTÓRIA DAS ARMAS ................................................................... 10

2.1.

Das armas primitivas até as armas de fogo ............................................... 10

2.2.

Surgimento da política de controle de armas no mundo .......................... 11

2.3.

Controle de armas no Brasil ........................................................................ 13

3.

CONCEITO DE ARMA DE FOGO, MUNIÇÃO E ACESSÓRIO ..................... 19

4.

DA COMERCIALIZAÇÃO DE ARMAS DE FOGO, MUNIÇÕES E

ACESSÓRIOS E DO REGISTRO E DO PORTE DE ARMA DE FOGO ................... 21

5.

DAS MODALIDADES DO PORTE E DA POSSE ILEGAL DE ARMA DE

FOGO, MUNIÇÃO OU ACESSÓRIO NA LEGISLAÇÃO CRIMINAL BRASILEIRA 24 5.1.

Considerações iniciais ................................................................................. 24

5.2. Da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido (artigo 12) ................................................................................................................. 25 5.3. Do porte ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido (artigo 14) ................................................................................................................. 27 5.4. Do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso restrito ou proibido (artigo 16) ........................................................................ 30 6.

A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS MODALIDADES DO PORTE E DA POSSE

ILEGAL ..................................................................................................................... 36 6.1.

A importância da teoria do bem jurídico para o Direito Penal .................. 36

6.2. O bem jurídico protegido e o modo de sua proteção nas modalidades do porte e da posse de arma de fogo, acessório ou munição.................................. 48 7.

DO EXAME DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DE ALGUMAS

MODALIDADES DO PORTE E DA POSSE DE ARMA DE FOGO, ACESSÓRIO OU MUNIÇÃO À LUZ DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DE DIREITO PENAL ....... 52 7.1.

Considerações iniciais ................................................................................. 52

7.2. Da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido (artigo 12) ................................................................................................................. 55

7.3. Do porte ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido (artigo 14) ................................................................................................................. 59 7.4. Do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso restrito ou proibido (artigo 16) ........................................................................ 62 8.

ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA ................................................... 65

8.1.

Supremo Tribunal Federal (STF) ................................................................. 65

8.1.1. Arma desmuniciada – Habeas Corpus n.º 10.208-7.................................... 65 8.1.2. Decisões posteriores ao Habeas Corpus n.º 10.208-7: ............................. 68 8.2.

Superior Tribunal de Justiça (STJ): ............................................................ 69

8.3.

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS): .................. 73

8.4. A reafirmação da posição defendida a partir dos votos dicotômicos dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello no HC n.º 10.208-7: ......................... 74 9.

O CONTROLE JURISDICIONAL SOB NORMAS PENAIS INVÁLIDAS –

QUAL A SOLUÇÃO MAIS EFICAZ? ........................................................................ 78

10.

CONCLUSÃO ................................................................................................. 82

11.

REFERÊNCIAS .............................................................................................. 84

8

1.

INTRODUÇÃO Os crimes do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório

constituem verdadeira celeuma jurídica no que diz respeito à proteção jurídica a qual quis contemplar o legislador infraconstitucional por meio da Lei n.º 10.826/2003 – o Estatuto do Desarmamento. De um lado estão os que defendem a inconstitucionalidade dos dispositivos, sob a alegação de que tratariam de delitos de perigo abstrato e, nesse caso, o bem jurídico tutelado não sofreria ofensa alguma, configurando, assim, as condutas meras infringências ao exercício do poder regulamentar e, portanto, atípicas materialmente. Outros sustentam a regularidade dos delitos da posse e do porte no ordenamento jurídico. Adotando posicionamento estritamente legalista, entendem que o legislador ao antecipar a tutela do bem jurídico por meio do risco abstrato não necessitaria obedecer ao postulado da ofensividade. Há ainda aqueles que apontam para uma postura intermediária, defendendo a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, porém, mantendo a necessidade de aferição da ofensividade da conduta. Definir quais os bens jurídicos que deverão receber a tutela penal e a forma de sua proteção é tarefa tormentosa para o legislador, assim como é para o intérprete aferir a ofensividade do perigo ou da lesão que advém do bem atingido. No entanto, da Constituição Federal irradiam princípios vetores a todo o ordenamento jurídico, sobretudo para o direito penal, que busca controlar o corpo social de forma mais intensa do que todos os demais ramos do direito, pois emerge de si a ameaça punitiva. Daí porque exsurge a necessidade de definir precisamente o bem jurídico protegido pelas normas analisadas e a forma desta proteção. Entendendo-se que seriam crimes de perigo, será verificado se o risco seria concreto ou abstrato e, inclusive, em sendo o segundo, se não se estaria diante de delitos inconstitucionais. Desse modo analisar-se-á à luz dos princípios fundamentais do direito penal a constitucionalidade das modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, cuidando para que se delimite claramente o seu âmbito de proteção jurídica.

9

Inicialmente apresentar-se-á um breve histórico acerca do surgimento das armas e sua evolução até as letais armas de fogo e, posteriormente, será examinado o aparecimento das primeiras leis acerca do controle das armas no Brasil. Justifica-se a alusão histórica porque indispensável para melhor compreender o contexto em que a legislação de armas se desenvolveu. Depois partir-se-á para o exame das modalidades que serão estudadas, trazendo suas peculiaridades técnicas e jurídicas. Por fim, abordar-se-á a teoria do bem jurídico, os delitos de perigo e, mais precisamente, as modalidades consideradas inconstitucionais, buscando inclusive demonstrar qual o melhor meio de solver a inconstitucionalidade do ordenamento jurídico penal.

10

2.

BREVE HISTÓRIA DAS ARMAS

2.1.

Das armas primitivas até as armas de fogo

A utilização das armas como instrumento para ferir não é fato histórico recente, mas fruto do próprio desenvolvimento humano. Se, no período anterior ao surgimento da escrita (“pré-história”), os homens usavam armas – pedras, pedaços de madeira, pedaços de ossos polidos – para caça e defesa contra animais, com o tempo perceberam que poderiam as utilizar para defesa e ataque contra o seu semelhante. Com o incremento e aprimoramento da metalurgia, ainda na fase primitiva, as armas passaram a ser um pouco mais robustas e, digam-se, mais letais, pois produzidas a partir dos metais bronze, ferro ou cobre. Na Antiguidade, as principais armas desenvolvidas foram o arco e flecha, as espadas, os punhais, as adagas e as lanças. As armas de fogo, por sua vez, só foram surgir na Idade Média, acredita-se que na China, por volta do ano de 1259, tendo ligação direta com o desenvolvimento da pólvora no século IX, cujo descobrimento se atribui aos chineses ou árabes. Há duas referências históricas importantes acerca da origem das armas de fogo que projetavam balas de pólvora, e que tinham destinação bélica. A primeira ocorreu no ano de 1232, na China, no período da dinastia Sung, por ocasião da batalha Kai-Keng, entre chineses e mongóis. Relata-se que o exército chinês ao lutar com os mongóis utilizou objetos propulsores de projéteis de pólvora produzidos com tubos de bambu. O êxito no funcionamento do rústico artefato se dava por que o tubo de bambu era “preenchido por pedras ou outros objetos de arremesso onde uma mistura de salitre, enxofre e carvão em contato com o fogo criava um escape de gazes responsável por expelir os objetos.”.1 Ainda conta-se que os mongóis, após a batalha, passaram a construir o seu próprio modelo de arma, e acredita-se que foi por meio deles que o armamento se disseminou pelo continente europeu.

1

PARÉ, Ambroise. As primeiras lesões por armas de fogo: novo paradigma para o cirurgião militar. Revista Portuguesa de Cirurgia. Portugal. II Série, n.º 23, p. 77-78, dez. 2012. Disponível em: Acesso em: 26 de jun. 2014, 14:35:20.

11

A segunda referência vem da Batalha de Tarifa, na Espanha, em 1340,JaredDiamound aduz que os condes ingleses Derby e Salisbury, presentes na batalha, ficaram impressionados quando os árabes utilizaram canhões contra os espanhóis, tanto que levaram a invenção ao exército inglês, que adotou o artefato seis anos depois contra os soldados franceses na batalha de Crécy. 2 A partir daí as armas de fogo foram evoluindo. No século XVI, foi criado o sistema de disparo fecho de roda, que consistia em um dispositivo autônomo no qual o percursor era abaixado sobre a roda e o gatilho liberava a mola, que fazendo girar a roda, atritava a pirita (mineral duro e ígneo) e produzia faíscas, que atingiam a pólvora, provocando o disparo.3 No século XIX, são engendradas pelos americanos Samuel Colt (revólver carregamento simples) e Hugo Borchardt (pistola semiautomática) armas mais modernas, que inauguraram nos Estados Unidos a fase da industrialização do armamento belicoso.4 No século posterior, destacaram-se a pistola automática M1911, calibre 45 ACP, projetada pelo americano John Moses Brownin5, e a invenção das metralhadoras e dos fuzis, o de mais destaque inexoravelmente é o fuzil AK-47, projetado em 1947 por Mikhail Timofeevich Kalashnikov e produzido pela indústria de armamento da União Soviética no mesmo ano.

2.2.

Surgimento da política de controle de armas no mundo

Diante da rápida evolução tecnológica das armas e da demonstração de seu alto poder lesivo emergiu a necessidade de as nações criarem políticas de controle do uso e da comercialização de armas de fogo, tanto no âmbito interno como externo. Essa política, que passou a ser objeto inclusive de diretrizes internacionais, em tratados e convenções, de acordo com Luciano Bueno, é:

2

Armas, germes e aço. 3ªed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002. p. 249. PAGLIUCA, José Carlos Gobbis. PUPIN, Aloísio A. C. Barros Pupin. Armas: aspectos jurídicos e técnicos. 1ª ed. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 7. 4 Id., p. 9. 5 Id., p.10. 3

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um conjunto de leis e práticas que possibilitam aos órgãos estatais encarregados da segurança e da ordem pública a atuarem de forma administrativa e jurídica para minimizarem os riscos do mau uso de um 6 instrumento considerado intrinsicamente perigo.

Algumas nações se destacaram ao instituírem mecanismos de controle das armas de fogo dentro de seus territórios. A Inglaterra editou leis importantes como o Black Act, de 1722; o Six Act de 1820; o Pistol Act, de 1903 – que foi a primeira legislação que se tem conhecimento sobre o controle de pistolas – e o Aliens Bill, de 1911, o qual proibia estrangeiros de possuírem armas de fogo sem a autorização do chefe de polícia local. 7 Em 1911, o Estado de Nova York, nos Estados Unidos, criou a Lei Sullivan, a primeira no país a exigir licença para a posse de armas, malgrado a liberdade para possuir armas de fogo seja expressamente permitida no país desde a Constituição Americana de 1787.·. O Canadá, em 1892, obrigou os possuidores de armas de fogo a adquirirem permissão para posse e proibiu a venda de pistolas a menores de 16 anos8, assim como a Austrália que desde 1802 também exigia o registro das armas de fogo.9 A preocupação com um efetivo controle do uso e da comercialização de armas de fogo acentuou-se mais significativamente após a Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), principalmente na esfera internacional. Nesse período, foi criada a Liga das Nações, antecessora da ONU, por meio do Pacto da Sociedade das Nações – a primeira parte do Tratado de Paz de Versalhes. Os Aliados assinaram o pacto no dia 28 de junho de 1919, em Versalhes, França, que estabelecia no artigo 23 que os membros da Sociedade a encarregavam “da fiscalização geral do comércio de armas e munições com o país em que a fiscalização desse comércio é indispensável ao interesse comum”. 10

6

Controle de armas: um estudo comparativo de políticas públicas entre Grã-Bretanha, EUA, Canadá, Austrália e Brasil. 2001. 215 f. Trabalho apresentado como requisito para obtenção do título de mestre em Administração Pública. Escola de Administração de Empresas, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2001. p. 36. Disponível em: Acesso em: 27 de jun. 2014, 17:34:10. 7 Id., p. 57-58. 8 Id., p. 119 9 Id., p. 149. 10 Pacto da Sociedade das Nações. Disponível em: Acesso em: 28 de jun. 2014, 17:27:11.

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Com a Segunda Guerra Mundial e a utilização da bomba atômica pelos Estados Unidos contra as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, o enfoque internacional mais acentuado passou a ser o da não proliferação de armas nucleares. Nesse cenário é que a ONU exercerá papel imprescindível relativamente ao controle de armas de fogo nos anos vindouros. Atualmente a discussão acerca do controle das armas de fogo no âmbito interno gera inúmeras polêmicas. Os favoráveis a uma política de segurança pública pautada pelo controle das armas alegam que liberar a utilização e o comércio de aludidos instrumentos aos cidadãos encadeia aumentos significativos dos índices de violência urbana. Por outro lado, há os que invocam a existência de um direito individual de autodefesa que justificaria a ausência do controle das armas pelo Estado. Independentemente das motivações certo é que o assunto exige uma discussão minuciosa entre os diversos setores da sociedade de cada país, inclusive por meio de estudos e levantamentos estatísticos. Devendo inclusive considerar-se no debate questões culturais e sociais, até para que se tenha elementos suficientes para afirmar se é conveniente afastar do Estado o controle de instrumentos de potencial lesivo tão elevado, manter um controle absoluto ou ainda buscar uma solução intermediária.

2.3.

Controle de armas no Brasil

A história do controle de armas no Brasil remonta o período das Ordenações do Reino. A primeira menção se faz nas ordenações Filipinas de 1603, cuja vigência referente à parte criminal só terminou em 1830, com a promulgação do Código Criminal do Império.11 O livro 5, título 80, das mencionadas ordenações, informa as armas que eram defesas no Reino, naquela época era permitido apenas trazer armas brancas (espadas, adagas, facas e punhais): Defendemos, que pessoa alguma, não traga em qualquer parte de nossos Reinos, péla, de chumbo, nem de férro, nem de pedra feitiça; e sendo 11

ZAFARRONI, Eugênio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. Volume 1. 5ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 196.

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achado com ela seja preso, e êst na Cadêa por um mez, e pague quatro mil réis, e mais seja açoutado publicamente com baraço, e pregão pela Cidade, 12 Villa, ou Lugar onde for achado.

O Código Criminal de 1830 manteve a proibição, estabelecendo na parte quarta (dos crimes policiais), capítulo V (das armas defesas), artigo 297 ,o seguinte: “Usar de armas offensivas, que forem prohibidas. Penas - de prisão por quinze a sessenta dias, e de multa correspondente á metade do tempo, atém da perda das armas”.13 A definição de quais armas eram defesas era delegada às Câmaras Municipais consoante o artigo 299 do Código Criminal. De acordo com Liliana Buff de Souza e Silva e Luiz Felipe de Souza e Silva: Primeiramente, o uso de ‘armas defezas’ era considerado crime policial. Depois, por uma lei de 26,10.1831, punia-se além do uso das armas proibidas, também o uso, sem licença, de determinadas armas – pistola, bacamarte, faca de ponta, punhal, sovelas ou qualquer outro instrumento perfurante – com a pena de prisão com trabalho por um a seis meses, 14 duplicando-se na reincidência.

No livro III, capítulo V, o Código Penal de 1890 trouxe a proibição do uso de armas e da fabricação de armas e pólvora (artigos 376 e 377), que agora constituía contravenção penal, ao invés de crime policial, punida com prisão de 15 a 60 dias.15 Após a Primeira Guerra Mundial se intensificou a tensão em torno do comércio e do uso das armas de fogo, razão pela qual a Convenção de 10 de setembro de 1919, relativa ao comércio de armas e munições, foi assinada em Saint Germain-en-Laye, na França, pelos países Aliados, incluindo o Brasil, que a promulgou em 19 de maio de 1922, conforme o Decreto n.º 15.47516.

12

PORTUGAL, Ordenações Filipinas. Disponível em: Acesso em: 29 de jun. 2014, 20:27:08. 13 BRASIL, Código Criminal de 1830. Disponível em: Acesso em: 29 de jun. 2014, 20:29:08. 14 SILVA, Liliana Buff de Souza. SILVA, Luiz Felipe de Souza. Breve histórico sobre legislação de armas de fogo no Brasil, o Estatuto do Desarmamento e a ordem constitucional. In: DAON, Alexandre Jean (Org.). Estatuto do desarmamento: Comentários e reflexões – Lei 10.826/03. São Paulo: QuartierLatin, 2004. p.35-51. 15 BRASIL, Código Penal de 1890. Disponível em: Acesso em: 29 de jun. 2014, 20:34:30. 16 BRASIL, Decreto n.º 15.475/1922. Disponível em: Acesso em: 30 de jun. 2014, 21:23:05.

15

Demorou um pouco para que nosso país enrijecesse, embora timidamente, o controle sob o comércio de armas e munições na esfera penal, que só veio a se efetivar com o Decreto-Lei n.º 3.688/1941. A Lei de Contravenções Penais17, ainda vigente, tipificou no artigo 19 a conduta de “trazer consigo arma de fogo fora de casa ou dependência desta sem licença da autoridade policial”, punindo-a com “prisão simples, de 15 dias a 6 meses, ou multa, ou ambos cumulativamente”. Esse foi o primeiro passo à criminalização da conduta que ocorreria cinquenta e seis anos depois com a Lei n.º 9.473/97.18 A Lei n.º 9.473/97, que instituiu o Sistema Nacional de Armas – o SINARM – e estabeleceu as condições para o registro e para o porte de armas de fogo, além de definir os crimes correlatos, foi fruto da pressão internacional exercida pela Organização das Nações Unidas (ONU) para que o Brasil tratasse com mais rigor as infrações relativas às armas. O indicador mais evidente para que o Brasil dedicasse esforços para um controle mais rígido sob as armas internamente se deu em duas participações do país em sessões da Comissão de Prevenção do Delito e Justiça Penal da ONU. Nesse sentido Damásio de Jesus explica que: Realmente, as Nações Unidas têm insistido nas "campanhas de sensibilização pública sobre o controle de armas de fogo" ("Publica ware ness campaign son fire arms regulations"), conforme se verificou no Quinto Período de Sessões da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal, realizado em Viena, em maio de 1996 (Nações Unidas, doc. E/CN.15/1996/14, 16 de abril de 1996; Report on the Fifth Session, United Nations, Comission on Crime Prevention and Criminal Justice, Nova York, 1996, Suplemento n. 10, ps. 26 e 58). E no Sexto Período de Sessões, realizado em Viena, em abril-maio de 1997, a ONU voltou a insistir no valor 19 das campanhas de desarmamento e controle do uso de armas de fogo.

Logo em seguida, em 20 de fevereiro de 1997, é sancionada a Lei n.º 9.437/1997, trazendo o rigor exigido, e incrustada na promessa de redução da criminalidade urbana.

17

BRASIL, Lei de Contravenções Penais. Disponível em: Acesso em: 30 de jun. 2014, 22:00:03 18 BRASIL, Lei 9.437/1997. Disponível em: Acesso em: 1º de jul. 2014. 10:05:45. 19 JESUS, Damásio E. de. Porte de arma de fogo: seu controle pelas Nações Unidas e Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: . Acesso em: 1º de jul. 2014. 16:43:09.

16

A recém criada legislação de armas de fogo situou os verbos “possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo” em um mesmo dispositivo legal, que, em 2001, passou a ser tratado como crime de menor potencial ofensivo, devido à alteração trazida pela Lei n.º 10.259/2001.20 Não bastou a Lei n.º 9.437/1997 para concretizar a promessa de diminuir a criminalidade latente no Brasil. Segundo José Carlos Gobbis Pagliuca e Aloíso A. C. Barros Pupin, no ano de 1999, o Brasil possuía 2,3% da população mundial, e 8,8% dos homicídios por armas de fogo. 21 Mais uma vez a pressão internacional foi decisiva. O Brasil, pelo Decreto n.º3.229/199922, promulgou a Convenção Interamericana contra a fabricação e o tráfico ilícitos de armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais correlatos, e a partir daí se intensificou o debate para uma nova mudança na legislação brasileira de armas. A resposta à mudança erigiu com o projeto de Lei n.º 292de 1999, de iniciativa do Senado Federal23 e que na Câmara dos Deputados passou a ser o projeto de Lei n.º 1.555/2003. 24 Intensos debates foram travados à época acerca do projeto que visava o desarmamento civil, até que em 22 de dezembro de 2003 foi promulgada à Lei n.º 10.826.25 O estatuto do desarmamento ainda foi regulado por meio do Decreto 5.123/200426. Em 2005, conforme estabeleceu o artigo 35, §1º, do Estatuto do Desarmamento, foi decretado um referendo popular a fim de consultar a população 20

BRASIL, Lei 10.259/2001. Disponível em: Acesso em: 02 de jul. 2014. 09:49:00. 21 Armas, op. cit., p. 7. 22 BRASIL, Decreto n.º 3.229/1999. Disponível em: Acesso em: 5 jul. 2014. 11:42:09. 23 BRASIL, Projeto de Lei n.º 292/1999. Disponível em: Acesso em: 02 de jul. 2014. 10:00:07. 24 BRASIL, Projeto de Lei n.º 1.555/2003. Disponível em: Acesso em: 02 de jul. 2014. 11:23:09. 25 BRASIL, Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento). Disponível em: Acesso em: 05 de jul. 2014. 10:09:56.

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As empresas que comercializarem armas de fogo devem comunicar, mensalmente, as vendas realizadas em território nacional e a quantidade de armas em estoque. Possuindo responsabilidade legal sob essas mercadorias, que ficarão registradas como de sua propriedade, de forma precária, enquanto não vendidas, sujeitando os seus responsáveis às penas previstas em lei (art. 20 do Regulamento). Além disso, a comercialização de acessórios de armas de fogo e de munições, só poderá ser efetuada em estabelecimento credenciado pela Polícia Federal e pelo comando do Exército, que manterão um cadastro dos comerciantes (artigo 21 do Decreto). Pertinente referir que a compra de munições somente poderá ser efetuada para o calibre correspondente à arma registrada e na quantidade estabelecida por portaria do Ministério da Defesa (artigo 21, §2º, do Decreto n.º 5.123/2004). Atualmente a portaria que regulamenta a matéria é a de n.º 1.811/2006.39 As armas de fogo, munições e demais produtos controlados, de uso restrito, não poderão ser comercializados (artigo 19 do Regulamento 5123). No entanto, o Comando do Exército poderá autorizar, em caráter excepcional, a aquisição de armas de fogo de uso restrito (artigo 27 do Regulamento 5123), as quais serão registradas neste órgão autorizador. O certificado de registro de arma de fogo, que tem validade nacional, e é expedido pela Polícia Federal, comprova que a pessoa, física ou jurídica, está autorizada pelo poder público, representado pelo SINARM, a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa (artigo 5º da Lei 10.826/2003). Resumidamente, o registro, consoante explicam José Carlos Gobbis Pagliuca e Aloísio A. C. Barros Pupin40, é a identidade, a certidão de nascimento da arma de fogo, é ele que certifica a sua propriedade. Além disso é obrigatório, conforme dispõe o artigo 3º da Lei 10.826, vez que todo aquele que pretender possuir arma de fogo deve tê-la registrada.

39

Disponível em: Acesso em: 06 jul. 2014. 07:17:35 40 Armas, op. cit., p. 65.

23

Com efeito, o porte consiste na autorização dada pelo SINARM para que determinada pessoa possa trazer consigo, carregar arma de fogo fora das situações previstas no artigo 5º da Lei n.º 10.826/03. O porte é proibido em todo o território nacional, em regra, mas pode ser autorizado nos casos previstos no artigo 6º da Lei n.º 10.826/0341 e em legislação própria. Portanto, como explica Ricardo José Gasques de Almeida Silvares o rol previsto no artigo 6º não é taxativo, vez que lei poderá prever outros casos como ocorre nas leis atinentes aos membros do Ministério Público e da Magistratura.42 De acordo com o artigo 22 do Decreto n.º 5.123/04, o porte de arma de fogo de uso permitido vincula-se ao prévio registro da arma e seu cadastro junto ao SINARM. Terá validade em todo o território nacional e será expedido pela Polícia Federal, nos casos excepcionais, desde que preenchidos os requisitos do artigo 10 da Lei n.º 10.826/2003. O porte de arma de fogo é pessoal, intransferível e revogável a qualquer tempo, sendo válido apenas com relação à arma nele especificada, devendo o portador apresentar documento de identificação para atestar sua regularidade (artigo 24 do Regulamento).

41

o

Cf. Art. 6 É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para: I – os integrantes das Forças Armadas; II – os integrantes de órgãos referidos nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal; III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei; IV - os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 50.000 (cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço; (Redação dada pela Lei nº 10.867, de 2004) V – os agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência e os agentes do Departamento de Segurança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; VI – os integrantes dos órgãos policiais referidos no art. 51, IV, e no art. 52, XIII, da Constituição Federal; VII – os integrantes do quadro efetivo dos agentes e guardas prisionais, os integrantes das escoltas de presos e as guardas portuárias; VIII – as empresas de segurança privada e de transporte de valores constituídas, nos termos desta Lei; IX – para os integrantes das entidades de desporto legalmente constituídas, cujas atividades esportivas demandem o uso de armas de fogo, na forma do regulamento desta Lei, observando-se, no que couber, a legislação ambiental. X - integrantes das Carreiras de Auditoria da Receita Federal do Brasil e de Auditoria-Fiscal do Trabalho, cargos de Auditor-Fiscal e Analista Tributário. (Redação dada pela Lei nº 11.501, de 2007) XI - os tribunais do Poder Judiciário descritos no art. 92 da Constituição Federal e os Ministérios Públicos da União e dos Estados, para uso exclusivo de servidores de seus quadros pessoais que efetivamente estejam no exercício de funções de segurança, na forma de regulamento a ser emitido pelo Conselho Nacional de Justiça - CNJ e pelo Conselho Nacional do Ministério Público - CNMP. (Incluído pela Lei nº 12.694, de 2012) 42 Legislação Criminal Especial. op. cit., p. 313.

24

5.

DAS MODALIDADES DO PORTE E DA POSSE ILEGAL DE ARMA DE

FOGO, MUNIÇÃO OU ACESSÓRIO NA LEGISLAÇÃO CRIMINAL BRASILEIRA

5.1.

Considerações iniciais

É necessário esclarecer que serão apresentados os conceitos acerca das modalidades do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório com base na doutrina brasileira, sem, por ora, apontar as modalidades consideradas inconstitucionais. Também imprescindível referir alguns apontamentos introdutórios acerca dos tipos penais a serem analisados. Nesse sentido, diferentemente da lei anterior, que concentrava os tipos penais em um mesmo dispositivo legal, o Estatuto do Desarmamento estremou o porte da posse ilegal de arma de fogo de uso permitido e, ainda, agregou aos dispositivos a munição e o acessório. Os artigos 1243e 1444 do Estatuto tratam da posse e do porte ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido, respectivamente, e o artigo 16 45traz a posse e o porte ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso restrito. São estes os dispositivos os quais serão esmiuçados a partir de agora e que constituem normas penais em branco, já que dependem da análise de outras normas para sua integração ou complementação. Como elucida Renato Marcão “sua eficácia está condicionada à existência de outras espécies normativas (leis, portaria, regulamentos etc.)”. 46 Além disso, estes crimes são permanentes, porque a consumação se prolonga no tempo. Assim, consoante informa Ricardo José Gasques de Almeida 43

Cf. Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. 44 Cf. Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. 45 Cf. Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. 46 Estatuto do Desarmamento: Anotações e interpretação jurisprudencial da parte criminal da Lei n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2002. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva. p. 62.

25

Silvares, “a qualquer momento, pode ocorrer a apreensão da arma e a prisão em flagrante”.47

5.2.

Da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido

(artigo 12) Muito embora o nomen iuris “posse irregular de arma de fogo de uso permitido”, será adotado aqui o entendimento de Ricardo José Gasques de Almeida Silvares, que considera mais adequado o termo “posse ilegal” ao invés de “irregular”, porque segundo ele o crime se perfaz primeiramente por desobediência à norma legal e, subsidiariamente, à regulamentar.48 A conduta típica vem expressa em duas ações nucleares: possuir e manter sob sua guarda. Possuir para Renato Marcão significa “ter em seu poder, à disposição, em condições de fruição”49. Adverte ainda que “para possuir não é preciso que o agente seja o proprietário da arma, acessório ou munição”.50 Sendo assim não se deve confundir posse com domínio. Isso porque como exemplifica Ricardo José Gasques de Almeida Silvares “o agente pode ter pego a arma de terceiro, a título de ‘aluguel’ (fato não tanto incomum na criminalidade), não sendo, pois, seu titular”.51 Complementarmente, Luiz Flávio Gomes e William Terra Oliveira referem que a posse no aspecto jurídico-penal pressupõe a existência de um animus especial em relação à arma (animus possidendi ou ânimo de apoderamento), sujeição a regras temporais e circunstanciais para sua

configuração e a aferição de sua real

ofensividade.52 Mais, sustentam que isso limita o crime aos casos em que a pessoa realmente teve a intenção de manter-se na posse do objeto, para usufruir sua utilidade quando desejado.53 47

Legislação Criminal Especial. op. cit., p. 344. Id., p. 338. 49 Estatuto do Desarmamento. op., cit., p. 6. 50 Id., loc. cit. 51 Legislação Criminal Especial. op. cit., loc. cit. 52 Lei das armas de fogo. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p.126. 53 Id., loc. cit. 48

26

No tocante ao verbo “manter” sob sua guarda apontam-se as observações acertadas de Guilherme de Souza Nucci, para quem o termo implica o mesmo que posse.54 Justificando que “não há possibilidade de se manter algo sob tutela sem ter a posse”.55 Com o que concorda também Ricardo José Gasques de Almeida Silvares: Manter sob sua guarda significa conservar consigo. Não conseguimos aprender a diferença entre as condutas previstas no tipo do artigo 12, pois parece-nos óbvio que a circunstância de alguém manter um arma sob sua guarda, equivale à possuí-la, pois não há qualquer necessidade de que o 56 possuidor seja também o seu proprietário.

O objeto material da posse ilegal é a arma de fogo, a munição ou o acessório, que já foram definidos anteriormente. O elemento normativo aparece na expressão “em desacordo com a determinação legal ou regulamentar”. Assim, desobedecendo às normas do Estatuto (Lei 10.826) ou do Regulamento (Decreto 5.123/2004) se consubstanciará a posse ilegal. Isso ocorrerá, por exemplo, com a arma de fogo sem registro pela autoridade competente (artigo 5 º, §1º, da Lei n.º 10.826/03) ou que estiver com o prazo de validade expirado (artigo 5º, §2º, da Lei n.º 10.826/2003); quando exigido o registro, o acessório não o tiver; ou quando a quantidade de munição e o rol de acessórios permitidos não estiver de acordo com a portaria n.º 1.811/2006, conforme determinou o artigo 21, §2º, do Regulamento. A pena cominada ao caso é de um a três anos de detenção, mais multa. Não se permite, pois, a transação penal (artigo 61 da Lei n.º 9.099/9557), contudo, possibilita-se a aplicação da suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei n.º 9.099/95).

54

Leis penais e processuais comentadas. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 84. Id., loc. cit. 56 Legislação Criminal Especial. op. cit., p. 339. 57 BRASIL, Lei n.º 9.099/1995. Disponível em: Acesso em: 20 de ago. 2014. 08:55:02. 55

27

5.3. Do porte ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido (artigo 14) Aqui também vale a lição acerca do nomen iuris apresentada quando do exame da posse, soando mais apropriada a expressão porte ilegal, que, clarifiquese, comporta todos os demais núcleos do tipo. O porte ilegal cujo objeto material é a arma de fogo, a munição ou o acessório de uso permitido comporta 13 ações nucleares, quais sejam “portar”, “deter”, “adquirir”, “fornecer”, “receber”, “ter em depósito”, “transportar”, “ceder” (gratuita ou onerosamente), “emprestar”, “remeter”, “empregar”, “manter sob sua guarda” e “ocultar”. Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira, sob à égide da lei anterior, entendiam que, enquanto conduta punível, ou seja, verbo típico: Portar uma arma de fogo significa trazê-la consigo, em condições de pronta utilização, mantendo-a sob sua disponibilidade imediata. Portar é levar a arma, circular om ela. Além disso, o verbo não abrange apenas o contato físico com a arma, mas também significa que o agente tem o objeto ao seu alcance, em condições de fazer rápido uso do mesmo. A ideia de portar não significa exatamente trazer a arma nas mãos, mas sim em qualquer lugar de fácil apossamento, sem obstáculos (como na cintura, no bolso, nas 58 imediações etc.), e fora dos casos de guarda autorizada.

Outros exemplos podem ser trazidos para melhor elucidar a questão como trazer a arma, munição ou acessório no porta-luvas ou no console do veículo, no assoalho deste, embaixo ou atrás do banco do motorista, presa no tornozelo, sob as vestes, em capanga, ou no arreio de animal.59 Deter, por sua vez, é o mesmo que trazer a arma consigo de maneira transitória e precária. Sendo punida a retenção passageira, sem contudo, o agente ter o animus de possuir ou ser proprietário.60 Seria a situação de quem permanece com arma de terceiro por um alguns segundos, por exemplo.61 Adquirir, segundo Ricardo José Gasques de Almeida Silvares é “a obtenção onerosa da arma, munição ou acessório seja por meio de compra ou troca”62. Para

58

Lei das armas de fogo, op. cit., p.154. CAPEZ, Fernando. op. cit., p. 362-363. 60 GOMES, Luiz Flávio. OLIVEIRA, William Terra. op. cit. p., 222-223. 61 SILVARES, Ricardo José Gasques de Almeida. op. cit., p. 356. 62 Legislação Criminal Especial. op. cit., p. 359. 59

28

Guilherme de Souza Nucci, significa “comprar mediante o pagamento de certo preço”.63 Vale analisar conjuntamente as condutas de fornecer e ceder a fim de delimitar suas peculiaridades. Fornecer arma de fogo, munição ou acessório é, segundo Ricardo José Gasques de Almeida Silvares, “entrega-la por qualquer meio, seja oneroso ou gratuito. É abastecer”.64 Ceder, por sua vez, a título oneroso ou gratuito equivale, no entendimento do autor supracitado, “a passar a outrem a posse do objeto, sem que haja, necessariamente, transferência de propriedade ou contraprestação”.65 Traz-se como exemplo a situação em que o agente precisou entrar em uma casa bancária e deixou a arma com um amigo, que o esperou à porta do estabelecimento. Nesse caso, os dois cometeriam ilícitos, o primeiro por ceder, e o segundo por deter o objeto sem autorização para o porte.66 Adverte-se ainda que conquanto a não tipificação do verbo vender fora do exercício da atividade comercial ou industrial (artigo 17 da Lei 10.826/2003), as ações de fornecer e ceder comportam, implicitamente, a ideia de venda Transportar significa deslocar a arma, munição ou acessório de um lugar para outro, fora das hipóteses configuradoras do porte e da posse.67 O transporte da arma de fogo necessita de uma autorização, o chamado porte de trânsito, nesse sentido dispõe o artigo 28 do Decreto 5.123/2004: O proprietário de arma de fogo de uso permitido registrada, em caso de mudança de domicílio ou outra situação que implique o transporte da arma, deverá solicitar guia de trânsito à Polícia Federal para as armas de fogo cadastradas no SINARM, na forma estabelecida pelo Departamento de Polícia Federal.

Desse modo, aquele que tiver o porte legal, inclusive o de trânsito, da arma de fogo, acessório ou munição não incorre na conduta de “transportar”. Mais especificamente, conforme delineia Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira:

63

Leis penais e processuais comentadas, op. cit., p.89. Legislação Criminal Especial. op. cit., p. 357. 65 Id., loc. cit. 66 Id., loc. cit. 67 Id., p. 356. 64

29

Quem possui o porte de arma não precisa de tal autorização (guia de trânsito), pois pode trazer consigo a arma em qualquer local (ressalvadas as restrições legais). Aquele que possui o registro da arma somente pode manter o objeto dentro de sua residência ou local de trabalho, devidamente 68 guardado.

Discorda-se, ademais, do entendimento defendido por Fernando Capez, segundo o qual o transporte se configuraria quando a arma é levada como um objeto inerte e inidôneo a qualquer emprego durante o trajeto. Apresentando a situação hipotética da condução de arma desmuniciada, desmontada, no porta-malas de automóvel, envolta em embalagem hermeticamente fechada.69 Isso porque a depender do caso não se estará defronte da ação de portar, nem de transportar ilegalmente arma de fogo. Adotando o entendimento de Ricardo José Gasques de Almeida Silvares serão analisadas as ações nucleares de “receber”, “ter em depósito”, “emprestar”, “remeter”, “empregar”, “manter sob sua guarda” e “ocultar”. Receber é o mesmo que aceitar o objeto de alguém, independentemente se como mero possuidor ou proprietário.70 Ter em depósito importa guardar, manter armazenado o objeto para seu uso, seja qual for o objetivo final, usar ou vender, desde que, neste último caso, não seja praticado no exercício da atividade comercial ou industrial.71 Remeter traz a ideia de remessa do objeto material para outro lugar, desacompanhado do agente, ou seja, este não está próximo do objeto. Nesse caso, o agente poderá encaminhar o objeto, por exemplo, por meio dos correios ou de terceiro.72 Emprestar é ceder em caráter temporário o objeto material, mas sempre com ideia de que o mesmo será devolvido posteriormente.73 Manter sob sua guarda significa a manutenção do objeto com o agente, mas em nome de terceiro. Se a mantença estiver foras das hipóteses do artigo 12 do Estatuto, então, configurar-se-á o porte.74

68

Lei das armas de fogo, op. cit., p.232. Curso de Direito Penal. op. cit. p. 363. 70 Legislação Criminal Especial, op. cit., p. 356. 71 Id., p. 357. 72 Id., loc. cit. 73 Id., loc. cit. 74 Id., loc. cit. 69

30

Ocultar é o mesmo que esconder a arma, o acessório ou a munição para que não sejam encontrados.75 Por fim, segundo Fernando Capez, empregar tem o sentido de emprego da arma de fogo para qualquer utilização, com exceção ao disparo, uma vez que nesse caso a conduta já está contemplada pelo artigo 15 do Estatuto.76 Segue o autor dizendo que se o emprego for, por exemplo, para a prática de ameaça, por força do princípio da consunção, o agente responderá pelo delito mais grave, ou seja o porte. De outro lado se o emprego for para a prática de roubo, responderá o agente pelo delito contra o patrimônio, porque mais grave.77 A pena cominada ao porte ilegal é a reclusão de dois a quatro anos, mais a multa, a qual não se permite sequer a suspensão condicional do processo.

5.4.

Do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de

uso restrito ou proibido (artigo 16)

O artigo 16, caput, do Estatuto do Desarmamento comporta todas as condutas analisadas a pouco, ou seja, os verbos atinentes à posse e ao porte ilegal de arma, munição ou acessório de uso permitido, com a diferença de que o objeto material é de uso restrito ou proibido. Assim, até para evitar tautologia, serão examinadas tão somente as modalidades equiparadas do parágrafo único, do artigo 16, da Lei n.º 10.826/2003, o qual diz que: Nas mesmas penas incorre quem: I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato; II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz; III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar; IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;

75

Id., loc. cit. Curso de Direito Penal. op. cit. p. 364. 77 Id., loc. cit. 76

31

V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente; e VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.

O parágrafo único traz três objetos materiais ainda não conceituados, quais sejam artefato explosivo, incendiário ou artefato isoladamente. Adotando a preleção de Guilherme de Souza Nucci artefato explosivo seria a “peça capaz de produzir abalo seguido de forte ruído, causado pelo surgimento repentino de energia física ou expansão de gás”.78 Um conceito mais técnico é o apresentado pelo artigo 3º, inciso LI, do Decreto 3.665/2000, tratando explosivo como um “tipo de matéria que, quando iniciada, sofre decomposição muito rápida em produtos mais estáveis, com grande liberação de calor e desenvolvimento súbito de pressão”. O artefato incendiário, por sua vez, seria a peça capaz de provocar fogo intenso, com forte poder de destruição. Também explica Guilherme de Souza Nuccique a expressão artefato isoladamente pode comportar duas acepções: ao tratar do acessório da arma, estabelece ser o “artefato que, acoplado a uma arma, possibilita a melhoria do desempenho do atirador, a modificação de um efeito secundário do tiro ou a modificação do aspecto visual da arma”. Usa-se, pois, o termo artefato como sinônimo de acessório da arma de fogo. Entretanto, pode-se considera-lo, também, qualquer peca destinada a explosão ou combustão. Dependendo, pois, do contexto, tende79 se a interpretá-lo de um modo ou de outro.

Outra definição ainda não apresentada é a de marca e numeração. Luiz Flávio Gomes e Willian Terra de Oliveira explicam que a primeira seria “o nome, expressão ou sinal que individualiza e identifica o produto”80, já numeração seria “o número de série que singulariza a substância”.81 Pagliuca e Gobbis acrescentam: É o chamado número de série, que embora denominado número, pode ser formado por caracteres alfanuméricos. É colocado nas armas mediante processo de punção mecânica, e, modernamente, por raio laser. O processo de punção é abrasivo e, por isso, os sulcos deixados no metal, mesmo quando a arma seja raspada, lixada ou similar, permite, na grande 78

Leis penais e processuais comentadas. op. cit., p. 102. Id. p. 100. 80 Id. loc. cit. 81 Lei das armas de fogo, op. cit.,p.291. 79

32

maioria, o descobrimento da numeração original mediante perícia, enquanto 82 que o laser, de menor perfuração, impossibilita o mesmo aproveitamento.

Afora essas definições, é pertinente o esclarecimento de Fernando Capez no tocante ao alcance do objeto material das modalidades do parágrafo único, afirmando que não importa se é de uso permitido ou restrito.83 Isso porque, sustenta o autor, o legislador equiparou a posse e o porte ilegal de arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito às hipóteses do parágrafo único apenas para efeitos da incidência de idêntica sanção penal.84 Além disso, tampouco importa se a arma foi obtida por meio ilícito ou se possui registro. Ainda, nesses casos, manifestar-se-ão as condutas do parágrafo único, do artigo 16.85 A pena prevista para as modalidades equiparadas é a mesma do caput, reclusão de três a seis anos, mais multa. Dito tudo isso, é possível analisar a primeira modalidade, qual seja a supressão, conforme ensina Fernando Capez, é a “eliminação total, mediante raspagem ou qualquer outro método”.86 Já a alteração, conforme firma o mesmo autor é a “modificação parcial da numeração ou do sinal de identificação de arma de fogo ou artefato”.87 Consoante Ricardo José “essenciais para o controle dos armamentos são os respectivos sinais de identificação, como o número de série que toda a arma de fogo deve possuir”88, em razão disso, o autor defende a pertinência do dispositivo. O inciso II, do artigo 16, do Estatuto, trata da modificação das características de arma de fogo, prevendo duas condutas. A primeira já tinha previsão semelhante no artigo 10, §3º, inciso II, da Lei n.º9.437/97, lei revogada pelo Estatuto do Desarmamento, e tem por finalidade tornar a arma de fogo de uso permitido em de uso restrito ou proibido. Isso ocorrerá, por exemplo, se for alterado o cano, a câmara ou o calibre. Nesse sentido:

82

Armas, op. cit., p. 101. Curso de Direito Penal. op. cit. p. 388. 84 SILVARES, Ricardo Gasques de Almeida., op. cit., p. 368. 85 Id., loc. cit. 86 Curso de Direito Penal. op. cit., loc. cit. 87 Id., loc. cit. 88 Legislação Criminal Especial. op. cit., p. 366. 83

33

1. serrar o cano de espingarda calibre 12, porque o Decreto 3665/2000 exige que as armas de alma lisa de calibre 12 ou inferior devem ter cano de comprimento mínimo de 61 cm. Assim, encurtando o cano, a espingarda torna-se mais perigosa, porque espalha chumbo em área muito grande; 2. Transformar um revólver calibre 38 em 357 Magnum através de modificação do tambor, que vai permitir a utilização de munição 3 vezes mais potente; 3. Adaptar silenciador na arma de fogo com o objetivo de abafar o estampido; 4. Adaptar mira telescópica que aumenta mais de 6 vezes ou com 89 emprego de luz – laser – para marcar o alvo.

A segunda refere-se a modificação da arma para induzir em erro autoridade policial, perito ou juiz. Nesse caso, inovou o legislador. Anteriormente aquele que modificasse as características da arma para induzir de algum modo o juiz ou o perito respondia pelo artigo 347 do Código Penal, com penalidade bem menor.90 A posse, a detenção, a fabricação e o emprego de artefato explosivo ou incendiário sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar constitui a modalidade típica do artigo 16, paragrafo único, inciso III, do Estatuto do Desarmamento. Os conceitos de posse, detenção e emprego já foram esmiuçados quando do estudo da posse ilegal e do porte de uso restrito, não há porque renová-los. A fabricação seria o manufaturamento de algo a partir de matérias-primas, aquele que mediante determinadas substâncias produz o artefato explosivo ou incendiário pratica esta conduta.91 Não se deve confundir este dispositivo com o artigo 253 do Código Penal (“Fabricar, fornecer, adquirir, possuir ou transportar, sem licença da autoridade, substância ou engenho explosivo, gás tóxico ou asfixiante, ou material destinado à sua fabricação”)92, cuja pena é de detenção de seis meses a dois anos, mais multa. A lei 9.437/97 já tipificava esta conduta (“possuir, deter, fabricar artefato explosivo e/ou incendiário”), e compreende-se que já havia derrogado o artigo 253 do Código Penal. A nova lei é mera repetição daquela, com a ressalva de que o Estatuto acrescenta o verbo empregar.93

89

THUMS, Gilberto. Estatuto do Desarmamento: primeiras anotações. Disponível em: Acesso em: 06 de jun. 2014. 13:58:09. 90 Legislação Criminal Especial. op. cit, p. 369. 91 Id. p. 372. 92 BRASIL, Código Penal Brasileiro. Disponível em: Acesso em: 06 de jun. 2014. 13:58:09. 93 SILVARES, Ricardo Gasques de Almeida., op. cit., p. 371.

34

Outra dúvida que pode surgir é com relação à eventual revogação do artigo 251 do Código Penal (“Expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, mediante explosão, arremesso ou simples colocação de engenho de dinamite ou de substância de efeitos análogos”), cuja pena é de reclusão, de três a seis anos, e multa – bem como de seu parágrafo primeiro (“Se a substância utilizada não é dinamite ou

explosivo de efeitos análogos), sancionado com a pena de

reclusão de um a quatro anos, mais multa. Não estaria nesse caso a conduta abarcada na figura típica “empregar” do parágrafo único, inciso III, do artigo 16 do Estatuto? Prepondera o entendimento de que se ocorrer perigo concreto para vida ou patrimônio alheio à conduta resta tipificada nos artigos 250 ou 251, ambos do Código Penal. Acaso não demonstrado o perigo concreto incidirá na modalidade do Estatuto.94 Conclui-se que se a posse, detenção, emprego ou fabricação tiver autorização, como ocorre nos casos de empresas de construção pesada (túneis, linhas de trens) ou mineradoras, estará afastada a conduta. O inciso IV pune a conduta de possuir, portar, adquirir, transportar e fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado. Diferentemente do inciso I, que prevê a ação daquele que realiza o ato material de suprimir ou alterar o sinal de identificação da arma de fogo.95 A venda, a entrega ou o fornecimento de arma de fogo, acessório, munição, ou explosivo à criança ou ao adolescente constitui conduta punível, nos termos do inciso V, parágrafo único, do artigo 16, do Estatuto do Desarmamento. Criança, nos termos do artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente, é a pessoa com até 12 anos de idade, e adolescente a com idade entre 12 e 18 anos. 96 Oportuno aludir que a conduta do inciso V, do parágrafo único, do artigo 16, do Estatuto, assemelha-se à do artigo 242 do Estatuto da Criança e do Adolescente (“Vender, fornecer ainda que gratuitamente ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente arma, munição ou explosivo”), cuja pena original era de 94

Assim entendem: CAPEZ, Fernando, op. cit., p. 393; SILVARES, Ricardo Gasques de Almeida, op. cit., p. 372; MORAES, Alexandre de Morais. SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação Penal Especial. Série fundamentos jurídicos. 9ª. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 362. 95 CAPEZ, Fernando. op. cit., p. 393. 96 BRASIL, Lei n.º 8.069/1990(Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm Acesso em: 24 de jul. 2014. 23:05:54.

35

detenção de seis meses a dois anos, mas com a nova redação dada pela Lei n.º 10.764, de 12 de novembro de 2003, editada um mês antes da entrada em vigor da Lei 10.826/2003, foi agravada para reclusão de três anos a seis anos, mesma pena do artigo citado do Estatuto do Desarmamento. Assim, entende-se que o artigo 242 do ECA foi revogado pela nova lei.97 Diverge-se das razões de Alexandre de Morais e Gianpaolo Poggio Smanio, os quais informam que a norma foi derrogada, inferindo que o artigo 242 do Código Penal continuaria aplicável no tocante a outras armas que não as de fogo.98 Isso porque considerar, por exemplo, a mesma pena (reclusão de três a seis anos) para quem vender, fornecer ou entregar arma branca à criança ou ao adolescente fere o princípio da proporcionalidade, não obstante, o Estatuto utilize a expressão “arma” isoladamente. Derradeiramente, o inciso VI, do artigo 16, do Estatuto, inflige pena a quem produz, recarrega ou recicla, sem autorização legal, ou adultera, de qualquer forma, munição ou explosivo. Em conformidade com o que exprime Fernando Capez, compreende-se que o verbo “produzir” visa reprimir tão somente a conduta de produção mais rudimentar do explosivo e da munição. Diversamente, do inciso III, que sugere a produção por meio industrial, ao utilizar o termo “fabricar”.99 Em que pese a advertência formal, as duas condutas remetem a mesma sanção penal. De resto, recarregar significa por carga novamente na munição ou explosivo, e reciclar é o ato de reaproveitar o material, sem a devida autorização legal. Adulterar, por sua vez, implica a modificação da munição ou explosivo, e que, por óbvio, dispensa a expressão autorização legal, porque não é possível adulterar nem com permissão legal.100

97

Leis penais e processuais comentadas. op. cit., p. 103. Legislação Penal Especial. op. cit., p. 363. 99 Curso de Direito Penal. op. cit., p. 400. 100 Curso de Direito Penal. op. cit., p. 400-401. 98

36

6.

A PROTEÇÃO JURÍDICA DAS MODALIDADES DO PORTE E DA POSSE

ILEGAL

6.1.

A importância da teoria do bem jurídico para o Direito Penal Tem futuro a teoria do bem jurídico indaga Luís Greco. 101 As modalidades

analisadas tratam de delitos de lesão ou de perigo? Se de perigo, seria este concreto ou abstrato? Se abstrato, seriam todas as modalidades inconstitucionais, pois, ferem o princípio da ofensividade? A partir de singela abordagem acerca destas questões e da tentativa de respondê-las é que se buscará demonstrar a legitimidade ou não da criminalização das modalidades estudadas. Luís Greco de forma bastante lúcida frente à realidade moderna do direito penal, a partir da análise de uma decisão do Tribunal Constitucional Alemão a respeito da constitucionalidade do crime de incesto, traça questionamentos acerca da viabilidade e da continuidade da teoria do bem jurídico. Para o autor, a decisão da Corte Alemã levou em conta dois argumentos contra a teoria do bem jurídico. O primeiro baseado na problemática conceitual e o segundo acerca da fundamentação da teoria, ou seja, com que embasamento pretende se posicionar acima do legislador e limitar o poder punitivo.102 Ademais, ele descreve que o Tribunal patrocina que a intervenção estatal nos direitos fundamentais deve estar formalmente amparada em lei e, materialmente, respeitar os limites da esfera nuclear da autonomia da vida privada, bem como ser proporcional.103 Nesse sentido, deve-se retomar à compreensão do que seria bem jurídico e a partir de qual momento parte à sua construção. Adiantando-se, desde já, que não há um conceito fechado, acabado acerca de sua significação.104

101

GRECO, Luís. Tem futuro a teoria do bem jurídico? Reflexões a partir da decisão do Tribunal Constitucional Alemão a respeito do crime de incesto (§173 Strafgesetzbuch). Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 18, n.º 82, p. 165-185, jan.-fev., 2010. 102 Id. p. 169-170. 103 Id. p. 166. 104 SMANIO, GianpaoloPoggio. O bem jurídico e a Constituição Federal. Disponível em: http://livrose-revistas.vlex.com.br/vid/bem-juridico-federal-41278381. Acesso em: 27 de jul. 2014. 10:28:17.

37

A concepção de bem jurídico, como aponta Fábio Roberto D´Ávila, já encontrava seu suporte inicial na obra de Cesare Beccaria, dos delitos e das penas.105 É por meio desta obra que toma força a ideia de que o crime não se trata de afronta à divindade, mas de fato danoso à sociedade.106Inaugura-se, então, a fase de secularização do Direito Penal e sua dissociação da moral. Seria a projeção da ideia de dano que, segundo Fábio Roberto: assumia-se, assim, como elemento central do fenômeno criminoso, mas também como elemento crítico de criminalização, preenchendo um importante papel na realização das aspirações ilustradas de contenção e validação do poder punitivo do Estado, através da imposição de vínculos objetivos de legitimidade. Contudo, nesse momento histórico, falar-se em 107 tutela de bens jurídicos em sentido estrito, não era ainda possível.

Somente com as ideias de Feuerbach, no início do século XIX, é que se passou construir um conceito material do delito, embora com caráter eminentemente subjetivista. O ilícito penal, nesta época, era uma ofensa ou uma lesão a um direito subjetivo.108 Foi com Birnbaum que a teoria do bem jurídico se arregimentou de contornos objetivos. Assim, a proteção penal devia voltar-se para determinado objeto, e não para direitos subjetivos.109 Na visão de Fábio Roberto, a formulação de Birnbaum retrata a noção de bem jurídico como objeto de proteção da norma penal, bem assim a ideia de ofensividade, em suas formas fundamentais, dano e perigo.110 Despontam também as contribuições de Binding e Franz von Liszt para a teoria do bem jurídico. Para GianpaoloPoggioSmanio, Binding defendia que “pode converter-se em bem jurídico tudo que aos olhos do legislador tem valor como condição para uma vida saudável dos cidadãos”111, a posição advém de sua acentuada linha positivista. Por outro lado, ele sustentava que o bem jurídico se lança para a coletividade, e 105

D´ÁVILA, Fábio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: Escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 60. 106 Id., loc. cit. 107 Id., p. 61. 108 SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 31. 109 Id., loc. cit. 110 Ofensividade em Direito Penal, op. cit., p. 64-65. 111 O bem jurídico e a Constituição Federal, op. cit.

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apenas com esse viés social os objetos dos juízos individuais de valor gozavam de proteção jurídica.112 Já para Franz von Liszt, apesar de alinhar-se ao pensamento de Binding, de acordo com Ângelo Roberto Ilha da Silva, não limitava os bens jurídicos à vontade do legislador. Desenhava que o legislador apenas os apanhava das relações sociais para apenas reconhecê-los por meio da incriminação legal.113 No período das duas grandes guerras mundiais, a teoria do bem jurídico sofreu forte abalo quando do surgimento das filosofias nazi-fascistas, a Escola de Kiel, na Alemanha, defendia que o delito constituía mera violação a deveres.114 A conceituação consistia em primoroso artifício para sustentar a repressão criminal imposta pelos governos totalitários da época. Segundo Luigi Ferrajoli, o primeiro objetivo da cultura penal-democrática póssegunda guerra mundial foi de restaurar a referência semântica do conceito de bem jurídico a situações objetivas e interesses de fato, independentemente das normas jurídicas ou preexistentes a elas. Mas também restituir a este conceito importância crítica e função axiológica, embora se aponte como limitador interno valores ou bens constitucionais.115 Todavia, Ferrajoli sustenta que a limitação travada pela Constituição na determinação de bens jurídicos não deve ser acolhida. Para ele, os bens merecedores da tutela penal não podem depender nem estar condicionados ao que dizem as normas positivas, mas devem elaborar-se autonomamente.116 Essa visão também é apoiada por Gianpaolo: A visão constitucional defendida hoje por inúmeros doutrinadores em todo o mundo nada mais é do que o desenvolvimento da visão positivista, reconhecendo a criação do conceito do bem jurídico penal a partir das normas jurídicas hierarquicamente superiores às demais, quais sejam aquelas decorrentes da Constituição Federal. (...) O conceito de bem jurídico existe anteriormente à norma jurídica, e, portanto, o conceito de bem jurídico penal é anterior à normal penal, ainda que de matiz 117 constitucional.

112

Id. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição, op. cit.,p. 32. 114 Ibid., p. 33-34. 115 Tradução livre. Derecho penal mínimo y bienes jurídicos fundamentales. Disponível em: Acesso em: 13 de ago. 2014, 16:34:23. 116 Id. 117 O bem jurídico e a Constituição Federal, op. cit. 113

39

Gianpaolo busca amparo para sua tese na Teoria da Imputação Objetiva de Günther Jakobs, embora não pretenda como este mitigar a teoria do bem jurídico.118 Pertinente dizer que Jakobs, autor do direito penal do inimigo, faz duras críticas à teoria do bem jurídico como justificador da tutela penal, afirmando: O que com razão pode ser qualificado como um ataque perigoso a um bem jurídico tem que ser, segundo parece, socialmente nocivo, se se intenta definir o estado da sociedade pela intangibilidade dos bens jurídicos. Tomar o bem jurídico como exclusivo ponto de partida sem dúvida conduz ao extravasamento, porque com isso cai completamente fora da perspectiva a 119 esfera jurídica do autor.

O importante para Jakobs é o reconhecimento da vigência da norma por parte dos membros sociais, já que ele entende que dessa forma restam asseguradas as expectativas da sociedade.120 Ferrajoli, para escapar de um conceito estritamente positivista de bem jurídico, defende o que ele chama de “princípio da ofensividade pessoal”, segundo o qual o Estado somente poderia justificar condutas criminosas que fossem dirigidas a impedir ofensas a bens fundamentais da pessoa, sejam elas de dano ou de perigo. No entanto, admite que daí decorre um outro problema, que seria definir o que são bens fundamentais das pessoas.121 Juarez Tavares, por sua vez, discorrendo acerca das quatro visões formadas ao longo do contexto histórico sobre a teoria do bem jurídico, a positivista, a neokantiana, a ontológica e a visão funcionalista, formula sua própria visão, a qual intitula de “visão crítica”.122 Voltando

às

problematizações

de

Luís

Greco,

ele

explica

que

Winfried Hassemer, em voto divergente, criticou severamente a posição dominante do Tribunal Alemão na decisão que atestou a constitucionalidade da proibição penal do incesto. Sustentando que uma convicção social não seria capaz de legitimar

118

Id. JAKOBS, Günther. Fundamentos do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003. p. 110. 120 BEM, Leonardo Schmitt de. O Princípio da Proteção de Bens Jurídicos. Disponível em: Acesso em: 02 de ago. 2014, 08:00:00. 121 Derecho penal mínimo y bienes jurídicos fundamentales. op. cit. 122 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002. p. 187-197. 119

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constitucionalmente uma norma penal, já que para esta finalidade haveria instrumentos mais idôneos do que o direito penal.123 Explica Greco que a tese defendida pela Corte Alemã é a do moralismo jurídico-penal, segundo o qual a imoralidade de uma conduta já é uma razão suficiente para justificar a incriminação.124 Todavia, trazer a moral como justificativa para criminalização de condutas induz a um retrocesso histórico para o Direito Penal, uma perigosa via para criminalizar posturas dominantes na sociedade e marginalizar minorias. Se aceita-se a teoria do bem jurídico, deve-se sustentar, conforme Greco, que “o direito penal não pode proteger a moral, porque a sua tarefa se esgota na proteção de bens jurídicos, e a moral não é um bem jurídico. ‘Meras moralidades’ não são assunto, do direito penal”.125 Não obstante, aponta que se a teoria do bem jurídico fosse aplicada à decisão “o Tribunal não poderia mais recorrer à proibição de outras convicções morais, nem tampouco a certos aspectos da proteção do matrimonio e da família (principalmente no que diz respeitos aos papéis estruturadores dessas instituições”.126 O autor afirma que “só o recurso à autonomia pode servir de baluarte contra a fundamentação democrática da tese moralista pelo Tribunal Constitucional Alemão”, ou seja, não se estaria necessariamente vinculando posicionamento contrário à decisão com um conceito de bem jurídico.127 Em verdade, considera que o erro na decisão se deu porque não foi aplicada à tese de autonomia da vontade privada para infirmar a punição de um comportamento imoral.128 No entanto, Greco externa que a Corte Alemã exagerou ao recusar totalmente a ideia de bem jurídico, já que aferir se um comportamento é adequado, necessário e proporcional pressupõe um referencial, e este seria o bem jurídico. 129 A teoria do bem jurídico, embora as dificuldades apresentadas por Greco, persiste

como

principal

justificador

da

proteção

penal,

reconhecida

predominantemente na doutrina.130 123

Tem futuro a teoria do bem jurídico? Reflexões a partir da decisão do Tribunal Constitucional Alemão a respeito do crime de incesto (§173 Strafgesetzbuch), op. cit., p. 168. 124 Id., p. 172. 125 Id., p. 174-175. 126 Id., p. 176-177. 127 Id., p. 178. 128 Id., loc. cit. 129 Id., loc. cit.

41

Nesses termos, vale anotar o que diz Juarez Cirino Santos: Consideradas todas as limitações e críticas, o conceito de bem jurídico, como critério de criminalização e como objeto de proteção, parece constituir garantia política irrenunciável do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, nas formações sociais estruturadas sobre a relação capital/trabalho assalariado, em que se articulam as classes soais fundamentais do 131 neoliberalismo contemporâneo.

Igualmente Pierpaolo Cruz Bottini: A dificuldade para fixar critérios de identificação de bens jurídicos, e a identificação de tipos penais sem um objeto de tutela evidente – como o crime de maus tratos a animais e, na Alemanha, de incesto – atrai questionamentos à capacidade de rendimento do conceito para legitimar ou limitar o iuspuniedi. Tal dificuldade não afasta a importância do instituto do bem jurídico, seja como critério negativo de legislação, seja como parâmetro 132 de proporcionalidade de penas.

Necessita a teoria, entretanto, buscar solucionar criteriosamente seus embaraços e, sobretudo, focar não mais em uma conceituação puramente dogmática, mas ascender a um conceito político-criminal, vez que só assim será possível encontrar amparo para limitar o poder de punir do Estado. Como frisado por Francisco Muñoz Conde: Assim como ocorre com o conceito de delito, também tem o penalista que elaborar um conceito material, não simplesmente formal, do bem jurídico 130

Nesse sentido alguns exemplos: 1. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Volume 1. São Paulo: Saraiva, 211. p. 41-43; 2. SILVARES, Ricardo José Gasques de Almeida. op. cit., p. 317-319; 3. GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 11-26. 4. D´ÁVILA, Fábio Roberto, op. cit., p. 57-79, 5. SILVA, Ângelo Roberto Ilha da, op. cit, p. 29-49; 6. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. Volume 1. 9ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 402-403; 7. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Volume 1. 10ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2008. p. 4-6; 8. SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: Parte Geral. 3ª ed. Curitiba: Lumen Iuris, 2008. p. 14-18. 9. HASSEMER, Winfried. Derecho Penal Simbólico y Protección de bienes jurídicos. Disponível em: Acesso em: 29 de jul. 2014. 14:03:23. 10. ASÚA, Luis Jiménez. Principios de Derecho Penal: La ley y el delito. Buenos Aires: Abeledo-Perrot S.A. e I. Editorial Sudamericana S.A, 1997. p. 20; 11. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 372-384; 12. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. 13. RAMÍREZ, Juan Bustos. PrincipiosFundamentales de underecho penal democrático. Disponível em: http://www.juareztavares.com/textos/bustos_penal_democratico.pdf Acesso em: 02 de ago. 2014. 10:09:54; 14. STRECK, Lênio Luiz. Bem jurídico e Constituição: Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção eficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra formas penais inconstitucionais. Disponível em: Acesso em: 10 de ago. 2014. 12:45:09. 131 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: Parte Geral. 3ª ed. Curitiba: Lumen Iuris, 2008. p. 18. 132 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 136.

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que, comparado com as concepções extrajurídicas, lhe permita uma função critica dos bens jurídicos protegidos pelo legislador. No entanto, esta função crítica não deve ser limitada apenas aos bens jurídicos, mas também ao modo de protegê-los, para lançar-se finalmente a uma função politicocriminal que determine quais bens jurídicos deve-se proteger, e como deve 133 se dar sua proteção pela norma penal.

Aceitando, pois, a teoria do bem jurídico, importante trazer um conceito acerca de bem jurídico. Assim, e depois de tudo que foi dito, parece mais adequada e coerente a visão crítica engendrada por Juarez Tavares: Bem jurídico é um elemento da própria condição do sujeito e de sua projeção social, e nesse sentido pode ser entendido como um valor que se incorpora à norma como seu objeto de preferência real e constitui, portanto, o elemento primário da estrutura do tipo, ao qual se devem referir a ação típica e todos os seus demais componentes. Sendo um valor e, portanto, objeto de preferência real e não simplesmente ideal ou funcional do sujeito, o bem jurídico condiciona a validade da norma e, ao mesmo tempo, subordina sua eficácia à demonstração de que tenha sido lesado ou posto em perigo. Por isso são invalidadas normas incriminadoras sem referência direta a qualquer bem jurídico, nem se admite sua aplicação sem nenhum resultado de dano ou perigo a esse mesmo bem jurídico. A existência de um bem jurídico e a demonstração de sua efetiva lesão ou colocação em 134 perigo constituem, assim, pressupostos indeclináveis do injusto penal.

Constata-se

que

esse

valor

deve

identificar-se

com

os

ditames

constitucionais, embora o viés positivista entende-se que desse modo melhor se susterá o conceito político-criminal de bem jurídico. A propósito, Ângelo Roberto Ilha da Silva, refere que: A Constituição, em seu aspecto de – assim pensamos possa ser rotulado – força motriz propulsora de irradiações vinculantes decorrentes de seus valores fundamentais, visa a proporcionar a concretização destes no âmbito normativo infraconstitucional, cujo especial interesse para nós é a positivação irrogada pelo direito penal e mais ainda no delineamento dos 135 bens jurídico-penais.

Assenta-se, portanto, que a Constituição é fruto histórico de seu tempo e visa prestigiar aqueles valores socialmente reconhecidos. Por isso, Luciano Feldens admite que “a atividade de identificação (reconhecimento) social dos bens (valores

133

Tradução livre. CONDE, Francisco Muñoz. Introducción ao Derecho Penal. Buenos Aires: B de F Ltda, 2001. p. 93. 134 Teoria do Injusto Penal. op. cit., 198-199. 135 Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição, op. cit.,p. 43.

43

ou interesses) a serem juridicamente protegidos é lógica e temporalmente anterior à sua recepção normativa”.136 Prossegue Feldens: Por materializar um consenso valorativo prévio à legislação em geral, é inegável que a Constituição assume aqui uma especial relevância, funcionando como parâmetro de referência dos fatos sujeitáveis à pena. Afinal, se por um lado não se promulga uma Constituição com a finalidade de oferecer ao legislador penal um catálogo de bens jurídicos, não há dúvida de que através da mesma se consolidam normativamente valores 137 impetrantes em determinado momento na sociedade.

Mas não são todos os valores constitucionais que podem ser considerados bens jurídicos, há que se delimitar o sistema valorativo ao abrigo do princípio da subsidiariamente ou intervenção mínima. Isso porque o direito penal possui sanções severas, não bastando qualquer afetação para legitimar a sua intervenção.138 Por isso Greco conceitua que: Bens jurídicos seriam, portanto, dados fundamentais para a realização pessoal dos indivíduos ou para a subsistência do sistema social, nos limites de uma ordem constitucional.Por isso é que o fato de o Colégio Pedro II ser mantido na órbita federal não é um bem jurídico, enquanto a vida, a liberdade, a autenticidade da moeda e a probidade da Administração o 139 são.

Dessa forma não se pode perder de vista que o bem jurídico está vinculado umbilicalmente ao princípio da dignidade humana, devendo sempre refletir um valor dirigido à proteção da pessoa humana.140 Pois bem, definido o que é bem jurídico e, firmado, que deve estar arrimado na Constituição, resta agora perguntar-se: 1º) Para que serve o bem jurídico (sua função)? 2º) A quem os bens jurídicos se dirigem (seus titulares)? 3º) Como devem ser protegidos?

136

FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal: A Constituição Penal. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 68. 137 Id. p. 68-69. 138 GRECO, Luís. “Princípio da Ofensividade” e crimes de perigo abstrato: uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 12, n.º 49, p. 100. jul.-ago., 2004. 139 Id. p. 107. 140 Crimes de perigo abstrato., op. cit., p. 135.

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Ângelo Roberto Ilha da Silva apresenta de forma não limitativa oito funções do bem jurídico (seletiva, teleológica, dialética, limitadora ou de garantia, dogmática, humanizadora e orientadora).141 Consigna, ainda, que em todas estas funções está implícita a dedução de que o legislador só pode incriminar, subsidiariamente, condutas lesivas a bens fundamentais e imprescindíveis à vida em comunidade.142 Zaffaroni atribui a importância da teoria do bem jurídico a duas funções a ele inerentes: a) uma função garantidora, que emerge do princípio republicano; b) uma função teleológico-sistemática, que dá sentido à proibição manifestada no tipo e a limita. Ambas funções são necessárias para que o direito penal se mantenha dentro dos limites da racionalidade dos atos de governo, 143 impostos pelo princípio republicano (artigo 1º da CF).

Afora isso, os bens jurídicos têm destinatários, ou seja, um titular a quem se dirigem. Assim, e filiando-se ao posicionamento de Luís Greco, aposta-se na teoria dualista, que sustenta existirem bens jurídicos individuais (destinam-se aos indivíduos) e coletivos (direcionam-se à coletividade), os quais, sublinha-se, não se confundem.144 O conceito de bem jurídico não pode estar adstrito a bens jurídicos individuais, abrangendo também os bens jurídicos da coletividade. Entretanto, os últimos serão legítimos somente quando servirem ao cidadão em particular.145 Exprime-se

melhor,

a

tutela

de

bens

coletivos

(transcendentais,

supraindividuais ou universais) é fruto da evolução do Estado liberal para o Estado social, sendo a partir deste que emerge a construção de novos riscos, como direitos que transcendem à esfera do indivíduo, que afetam um grupo de pessoas ou toda a coletividade, sem deixar de envolver a ideia da pessoa como membro da comunidade.146 Pierpaolo Cruz Bottini toma como exemplo da referência antropocêntrica dos bens jurídicos coletivos o crime de falso testemunho. Revela ele que: 141

Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição, op. cit.,p. 38-43. Dos crimes de perigo abstrato em face da Constituição, op. cit.,p. 42. 143 ZAFFARONI, Eugênio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. Volume 1. 9ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 406. 144 “Princípio da Ofensividade” e crimes de perigo abstrato. op. cit., p. 102/103. 145 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do direito penal. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 19. 146 PRADO, Luz Régis. Apontamentos sobre o ambiente como bem jurídico-penal. Disponível em: Acesso em: 14 de ago. 2014. 09:02:56. 142

45

Nessa espécie delitiva, somente haverá tipicidade material se a conduta afetar o interesse das partes em um processo singular e justo, ou seja, se violar o direito dos cidadãos de acesso à Justiça e ao livre convencimento do juiz, mediatizado pelo bem jurídico definido como administração pública da Justiça, de cunho coletivo. A declaração falsa que não importe em potencial lesão à participação dos envolvidos no processo, nem ofereça risco de afetar a decisão judicial, não será penalmente relevante, ainda que, com isso, a administração da Justiça fique afetada em sua credibilidade 147 pelas declarações falsas.

Falta, por derradeiro, apontar como devem ser protegidos os bens jurídicos. A proteção dos bens jurídicos pode-se dar por meio da opção por delitos de lesão (dano) ou delitos de perigo (concreto ou abstrato). Cezar Roberto Bittencourt conceitua os dois tipos da seguinte forma: Crime de dano é aquele para cuja consumação é necessária a superveniência de um resultado material que consiste na lesão efetiva do bem jurídico. A ausência desta pode caracterizar a tentativa ou um indiferente penal, como ocorre com os crimes materiais (homicídio, furto, lesão corporal). Crime de perigo é aquele que se consuma com a superveniência de um resultado material que consiste na simples criação do perigo real para o bem jurídico protegido, sem produzir um dano efetivo. Nesses crimes, o elemento subjetivo é o dolo de perigo, cuja vontade limitase à criação da situação de perigo, não querendo o dano, nem mesmo 148 eventualmente.

Os delitos de perigo subdividem-se em: perigo concreto e perigo abstrato. Nos delitos de perigo concreto, o perigo necessita ser comprovado. Deve-se, portanto, demonstrar a situação efetiva de risco ocorrida in concreto ao bem jurídico tutelado. Os crimes de perigo abstrato, por sua vez, consubstanciam-se na técnica legislativa de criminalizar determinadas condutas, sem contudo, exigir a produção de um resultado naturalístico.149 Diante do exposto, os crimes de perigo abstrato encontram certa resistência em parcela da doutrina brasileira.150

147

Crimes de perigo abstrato. op. cit., p. 142-143. BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 311. 149 Crimes de perigo abstrato. op. cit., p. 87. 150 Por exemplo: 1. STRECK, Lênio Luiz. Bem jurídico e Constituição, op. cit. p. 21; 2. GOMES, Luiz Flávio. Teoria Constitucionalista do Delito e Imputação Objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 120-130; 3. FERRAJOLI, Luigi. Derecho Penal Mínimo y Bienes jurídicos fundamentales. op. cit. p. 11. 4. JESUS, Damásio de. Crimes de porte de arma de fogo e assemelhados. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 11. 5. CORRÊA, Fabrício da Mata. A inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Disponível em: 148

46

Entre os doutrinadores, Luiz Flávio Gomes sustenta a inconstitucionalidade dos delitos de perigo abstrato, estribando-se na teoria constitucionalista do delito, por ele desenvolvida, que refuta as tendências penais exageradas que buscam configurar o delito como mera violação de um dever ou de uma norma.151 Para o autor: Se a primeira exigência (emanada da teoria constitucionalista do delito) orienta que o resultado jurídico deve ser concreto, resulta claro que o direito penal da ofensividade é incompatível com o perigo abstrato (ou presumido). Não há espaço no direito penal fundado na pena privativa de liberdade para 152 o perigo abstrato.

Respeitável a construção do autor, mas entende-se deve ser refutada. A ideia de delito abstrato comportada por Luiz Flávio Gomes repousa apenas na corrente que define os tipos de perigo abstrato como delitos formais, de mera conduta. O autor deixa de infirmar outras concepções acerca do perigo abstrato, e é por isso que sua posição se mostra equivocada. Para a corrente do perigo abstrato como delito formal, a mera prática da ação descrita no texto legal satisfaz a ocorrência do ilícito penal, sem referência a qualquer elemento de antijuricidade.153 No Brasil, tratam os delitos de perigo abstrato como delitos formais – além de Luís Flávio Gomes – Damásio de Jesus154, Júlio Fabbrini Mirabete155 e Amadeu de Almeida Weinmann156, os três últimos sem sustentar sua inconstitucionalidade. No entanto, os delitos de perigo abstrato não se limitam tão somente a este conceito, Fábio Roberto D´Ávila aponta vários autores que objetivam a construção de modelos de perigo abstrato que superam a ideia inicial de tipos penais meramente formais:

Acesso em: 15 de ago. 2014. 16:34:08. 151 GOMES, Luiz Flávio. Teoria Constitucionalista do Delito e Imputação Objetiva: O novo conceito de tipicidade objetiva na pós-modernidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 120130 152 Id. p. 122. 153 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. op. cit. p. 111. 154 Afirma ele “perigo presumido (abstrato) é o considerado pela lei em face de determinado comportamento positivo negativo. É a lei que o presume juirs et iure. Não precisa ser provado”. Direito Penal: Parte Geral. Volume 1. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 189. 155 Para o autor o perigo abstrato é “presumido pela norma que se contenta com a prática do fato e pressupõe ser ele perigo”. Manual de Direito Penal: Parte Geral (arts. 1º a 120 do CP). 21ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. p. 134. 156 Princípios de Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Rio, 2004. p. 188.

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Da proposta de (re)leitura dos crimes de perigo abstrato como presunção relativa de perigo (Schörder), ao perigo abstrato como perigosidade (Gefärlichkeit) (Gallas, Giusino, Meyer, Hirsch, Zieschang e Mendoza Buergo), passando pela tomada do perigo abstrato como probabilidade de perigo concreto (Cramer), como negligência sem resultado (Horn, Brehm, Schünemann e Roxin), ou, ainda, como risco de lesão ao bem jurídico (Wolter e Martin), sem querer mencionar, por certo, a nossa própria proposta desenvolvida por ocasião da nossa tese doutoral, em que a ofensa de cuidado-de-perigo, correspondente aos crimes de perigo abstrato, surge como interferência jurídico-penalmente desvaliosa na esfera de manifestação do bem jurídico, a ciência jurídico-penal permite hoje afirmar, sem qualquer tipo de receio, a total superação das tradicionais 157 compreensões formal-positivistas dos crimes de perigo abstrato.

Logo, arrisca-se a defender a tese acerca do perigo abstrato como perigosidade ou periculosidade. Que, segundo Pierpaolo, constitui “elemento qualitativo” para legitimar “a atuação do ‘ius puniendi’ nas hipóteses de perigo abstrato”.158 Ademais, o autor explica que para a tese da periculosidade: A ação que importa ao direito penal será aquela que apresenta algum grau de risco para o bem jurídico, o que não implica, necessariamente, a verificação concreta de perigo ou de lesão, mas apenas na criação de condições potenciais para o surgimento deste resultados. A ação absolutamente inócua, quem nem em abstrato apresenta riscos para os interesses protegidos, mesmo que esteja formalmente descrita no tipo como passível de sofrer sanções, não interessa ao direito penal, é irrelevante sob a perspectiva de um sistema punitivo de um Estado Democrático de 159 Direito.

Na mesma linha, discorre Blanca Mendonza Buergo: A perigosidade da conduta compreende, pois, elemento imprescindível do injusto, que apenas há de se afirmar quando a conduta descrita no tipo constituir uma ação anti-normativa por se potencialmente lesiva ou perigosa para o bem jurídico protegido: em suma, o desvalor objetivo material da ação perigosa constitui elemento central da constituição do tipo de injusto. Consequentemente, só cabe adiantar a tutela penal de forma legítima no momento em que se pode apreciar que o comportamento proibido é objetivamente capaz de afetar o bem jurídico, tendo ainda em conta as 160 exigências próprias da atribuição de responsabilidade penal.

157

Ofensividade em Direito Penal. op. cit., p. 78. Crimes de perigo abstrato. op. cit., p. 116. 159 Id., loc. cit. 160 Tradução livre. BUERGO, Blanca Mendoza. La configuración del injusto (objetivo) de los delitos de peligro abstracto. p. 70-71. Disponível em: Acesso em: 24 de ago. 2014. 10:09:46. 158

48

Os delitos de perigo abstrato merecem abertura frente à contemporânea expansão do direito penal com a consideração de bens jurídicos coletivos e o gerenciamento de novas situações de risco, o que não implica, porém, a supressão ou mitigação dos princípios fundamentais do Direito Penal. Assim, posiciona-se favorável à utilização da técnica legislativa de criação de tipos de perigo abstrato, defendendo-se, ademais, a constitucionalidade destes delitos e a possibilidade de aplicação do principio da ofensividade para aferir se tais condutas são inócuas ou não ao direito penal. A lesividade não pode ser entendida como princípio que só atinge comportamentos que danificam bem jurídicos, mas deve incluir também a ameaça real ou potencial dos objetos de tutela.161 Nesse sentido, lúcidas as observações de Fábio Roberto d´Ávila que também acredita

que

os

crimes

de

perigo

abstrato

não

constituem

categorias

necessariamente desprovidas de ofensividade: Restringir a riqueza e complexidade da situações tradicionalmente denominadas crimes de perigo abstrato uma exangue ainda, à mera violação de um dever, 162 equivocado.

noção jurídico-penal de perigo às de perigo concreto, relegando aos presunção absoluta de perigo ou, é, sem dúvida, desnecessário e

Por fim, insta dizer que a teoria do bem jurídico e suas imbricações seguem com relevância oxigenada pelas novas ideias produzidas pela doutrina, mesmo diante de suas dificuldades. Em razão disso, a teoria da exclusiva proteção de bens jurídicos como finalidade do Direito Penal deve perdurar.

6.2.

O bem jurídico protegido e o modo de sua proteção nas modalidades do

porte e da posse de arma de fogo, acessório ou munição A doutrina brasileira especializada, de um modo geral, apresenta como bem jurídico tutelado para as modalidades sob análise, a segurança pública ou coletiva, ou ainda, a incolumidade pública.

161

Crimes de perigo abstrato. op. cit., p. 130. Ofensividade em Direito Penal. op. cit., p. 78.

162

49

Quanto ao modo protetivo do bem, semelhantemente, apontam para a estrutura do perigo abstrato, adotando o seu conceito formal. De acordo com Damásio de Jesus “a incolumidade pública é, pois, o interesse que se encontra vinculado não a uma pessoa considerada isoladamente e sim ao corpo social”.163 Fernando Capez refere que: Assim como na lei anterior, tutela-se, principalmente, a incolumidade pública, ou seja, a garantia e a preservação do estado de segurança, integridade corporal, vida, saúde e patrimônio dos cidadãos indefinidamente 164 considerados contra possíveis atos que os exponham a perigo.

Quanto ao perigo abstrato afirma o doutrinador referido que “basta a realização da conduta, sendo desnecessária a avaliação subsequente sobre a ocorrência, in casu, de efetivo perigo à coletividade”.165 Fernando Capez ainda argumenta o seguinte: Não há dúvida de que um fato, para ser típico, necessita produzir um resultado jurídico, qual seja, a lesão ao bem jurídico tutelado. Sem isso não há ofensividade, e sem esta não existe crime. Nada impede, no entanto, que tal lesividade esteja ínsita em determinados comportamentos. Com efeito, aquele que se dispõe a circular pelas vias públicas de uma cidade ilegalmente armado ou dispara arma de fogo a esmo está reduzindo o nível de segurança da coletividade, mesmo que não exista uma pessoa por 166 perto.

Alexandre de Moraes e Gianpaolo Poggio Smanio apontam como bem jurídico protegido a incolumidade pública, e consideram que os crimes dos artigos 12, 14 e 16, do Estatuto do Desarmamento, são de perigo abstrato e de mera conduta, em que o tipo não exige que pessoa determinada tenha sido exposta a risco, e cuja configuração independe de qualquer resultado.167 Guilherme de Souza Nucci indica a segurança e a paz pública como objeto de proteção das normas examinadas, imputando que os crimes são de perigo abstrato, cuja “probabilidade de dano, com o mau uso da arma, é presumida pelo tipo penal”.168 163

JESUS, Damásio de. Crimes de porte de arma de fogo e assemelhados. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 8-9. 164 Curso de Direito Penal. op. cit., p. 325. 165 Id. p. 327. 166 Id. p. 328. 167 Legislação Penal Especial. op. cit., p. 335, 345, 354. 168 Leis penais e processuais comentadas. op. cit., p.86.

50

Ricardo Antônio Andreucci traz a proteção da incolumidade pública, representada pela segurança coletiva, julgando que os crimes relativos à posse e ao porte são de perigo abstrato ou mera conduta.169 Para Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira: o legislador cumprindo a ordem constitucional e sensível à realidade hodierna resolveu inserir no âmbito da tutela penal a ‘segurança’ enquanto valor social coletivo. Realizou para tanto uma decisão valorativa e normativa, optando pelo processo de criminalização daquelas condutas que lesionem tal bem jurídico. (...) Para tanto, em relação às armas de fogo, o Estado tomou a decisão de tipificar uma série de condutas por entender serem elas contrárias à segurança social enquanto bem jurídico de natureza 170 coletiva, e não individual.

Ricardo José Gasques de Almeida Silvares aponta que o verdadeiro objeto dos delitos analisados é a segurança pública, porquanto encartada no texto constitucional. Mais, considera estes delitos como de perigo abstrato, e critica outros doutrinadores que tratam como ilegítima esta construção típica.171 Além disso, Ricardo José observa, com relação a algumas modalidades, que, além da segurança pública ou coletiva, resguardam outros bens jurídicos, configurando modalidades pluriofensivas. Segundo ele, seria o caso dos incisos I, II e IV, parágrafo único, do artigo 16, do Estatuto. Os dois primeiros incisos protegeriam também a administração pública, enquanto que o último tutelaria ainda à proteção da criança e do adolescente.172 Entende-se, assim como Ricardo José, que o bem jurídico protegido pelas normas dos artigos 12, 14 e 16 do Estatuto do Desarmamento é a segurança pública ou coletiva, estampada no artigo 144 da Constituição Federal (“A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”). Erigida também como direito fundamental (artigo 5º, caput, da Constituição Federal).173 No tocante à estrutura delitiva, abarcamos a ideia de que trata-se de perigo abstrato, mas, com a ressalva da adoção da teoria da perigosidade ou 169

Previsão legal dos crimes e penas cominadas . In: DAON, Alexandre Jean (Org.). Estatuto do desarmamento: Comentários e reflexões – Lei 10.826/03. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 221, 225, 232. 170 Lei das armas de fogo. op. cit., p.49. 171 Legislação Criminal Especial. op. cit., p. 324-325. 172 Id. p. 368-367, 369-370, 375. 173 BRASIL, Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 23 de ago. 2014. 13:09:5.

51

periculosidade, sempre sendo necessária a constatação da ofensividade da conduta relativamente ao bem jurídico protegido, mesmo que em potencial.

52

7.

DO

EXAME

DA

(IN)CONSTITUCIONALIDADE

DE

ALGUMAS

MODALIDADES DO PORTE E DA POSSE DE ARMA DE FOGO, ACESSÓRIO OU MUNIÇÃO À LUZ DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DE DIREITO PENAL

7.1.

Considerações iniciais

Reforça-se que as modalidades analisadas não são inconstitucionais porque tratam de delitos de perigo abstrato, mas porque ferem princípios fundamentais de direito penal, quais sejam legalidade, ofensividade, necessidade, intervenção mínima,

proporcionalidade,

presunção

de

inocência,

fragmentariedade

e

subsidiariedade. Foi mencionado que os delitos de perigo abstrato, desde que adotada a periculosidade como elemento central do injusto, não são inconstitucionais, nem mitigam ou suprimem os princípios fundamentais de direito penal. No entanto, não restou esclarecido os motivos pelos quais estes se coadunam com tais delitos. Há posicionamentos na doutrina174 que não toleram as infrações penais abstratas, entendendo-as como intervenções penais ilegítimas, diminuidoras das garantias próprias de um Estado Democrático de Direito, pois afrontadoras dos princípios da legalidade, ofensividade, intervenção mínima, proporcionalidade, presunção de inocência, fragmentariedade e subsidiariedade. No entanto, a antecipação da tutela penal por meio do tipo abstrato se conectada à exigência de periculosidade da conduta, que, por sua vez, pressupõe a necessidade de afetação potencial do bem jurídico, não se confronta com os princípios penais fundamentais. A ação que macula, que está em desacordo com à norma penal é aquela que põe em risco potencial o bem jurídico, e daí porque os crimes de perigo abstrato atrelados à ideia de ofensividade se mostram perfeitamente ajustados ao contexto jurídico-penal. Assim, não é porque o legislador utilizou a técnica dos delitos de perigo abstrato que estas infrações estão em dissonância com os primados de direito 174

Em nossa doutrina: GOMES, Luiz Flávio. Acesso em 29 de ago. 2014. 20:00:09. Na doutrina estrangeira: HASSEMER, Winfried. Disponível em: Acesso em: 30 de ago. 2014. 15:23:27.

53

penal, mas porque o legífero em dissensão aflitiva a princípios basilares desta ciência sufragou injustos meramente administrativos através da mencionada técnica. A intransigência em relação aos tipos de perigo abstrato parece muito mais representar o descontentamento de alguns doutrinadores (em especial, Luiz Flávio Gomes e Winfried Hassemer) com o chamado “Direito Penal Moderno” e a chamada “sociedade de risco” em contraposição ao “Direito Penal Clássico”, e não com uma acurada análise de sua estrutura. Bernardo Feijoo Sanchez aponta que, diferentemente do que sustenta a escola de Frankfurt, na qual se inclui Hassemer: não tem sentido deslegitimar todas as normas penais que tenham a ver com as novas características sociais como uma desvirtuação do autêntico direito penal, mas denunciar as situações concretas em que se está fazendo um uso ilegítimo da pena. A referência sem mais a normas que não pertencem ao modelo ideal de direito penal clássico, mas ao moderno direito penal ou ao direito penal característico da sociedade do risco, não serve, por si só, 175 para identificar os processos de criminalização patológicos.

Seguindo esta diretriz, aliás, é possível afastar a prerrogativa do princípio da precaução como anteparo para os delitos de perigo abstrato. Não se pode recorrer ao referido princípio para esta finalidade, porque ele pressupõe a existência de incerteza científica e ausência de constatações estatísticas precisas acerca dos potenciais efeitos de determinada atividade.176 Também dessa maneira o direito penal apareceria com uma postura meramente “administrativizadora”, porque se projetaria a punir até mesmo aquelas condutas que não se sabe com segurança se são perigosas ou sequer se suspeita que poderão vir a ser.177 Dessa forma só se justificam as infrações abstratas se dizem com o chamado princípio da prevenção, que, segundo Pierpaolo Cruz Bottini “orienta medidas de restrição a atividades cuja periculosidade é constatada pela ciência, ou pela evidência estatística”178, mas que sobretudo deve conciliar a ideia de periculosidade.

175

SANCHEZ, Bernardo Feijoo. Sobre a “administrativização” do direito penal na “sociedade do risco”: Notas sobre a política criminal no início do século XXI. p. 40. Disponível em: Acesso em 22 de ago. 2014. 23:00:09 176 Crimes de perigo abstrato. op. cit., p. 49. 177 SANCHEZ, Bernardo Feijoo. op. cit., p. 50. 178 Crimes de perigo abstrato. op. cit., p. 49.

54

Pierpaolo Cruz Bottini inclusive considera que “a possibilidade do exercício punitivo será limitada ao terreno da prevenção, na qual estão as condutas cujos efeitos danosos são conhecidos pela ciência”.179 É sob o fundamento da prevenção, e não da precaução, que esta estrutura de delito também se mostra ajustável aos princípios fundamentais do direito penal. Finalmente, é preciso reforçar a importância dos princípios para o direito, em especial, o penal. Não é possível ao legislador prever todos os atos da vida que possuem consequências jurídicas por meios das regras180, assim a sua interpretação à luz de princípios, ou mesmo do embate regra-princípio é essencial. Daí porque se fala da importância de convivência dos princípios com as leis, possuindo aqueles também status de norma jurídica. Relevantes ainda porque são os princípios que proporcionam os limites e o conteúdo valorativo do ordenamento jurídico, bem como são capazes de excluir regras que sejam incompatíveis com eles.181 Considerando que os princípios, explícitos ou implícitos, irradiam da Constituição Federal, é necessário sempre perquirir se, à luz desta carta política, a regra é aplicável ou não.182 Como ensina Luciano Feldens: De mera folha de papel (Lassale), ou simples norma reguladora do funcionamento do poder político, a Constituição passa a concentrar as decisões fundamentais das relações jurídico-sociais, tendo sua normatividade densificada à base de princípios e diretrizes substanciais que dirigem a ação de todos os órgãos de Estado, tanto na criação como na 183 aplicação do direito.

Assim, do confronto das regras com os princípios é que se demonstrará a inconstitucionalidade das modalidades.

179

Id. p. 51. BRAGA, Valeschka e Silva. Princípio da proporcionalidade & da Razoabilidade. 2ª ed. Curitiba: Editora Juruá, 2001. p. 31. 181 Id. p. 32. 182 STRECK, Lênio. A hermenêutica diante da relação “regra-princípio” e o exemplo privilegiado do crime de porte de arma. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 20. n.º 98, p. 257, Set.-out, 2010. 183 Direitos fundamentais e Direito Penal, op. cit., p. 33. 180

55

7.2.

Da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido

(artigo 12)

O artigo 12 do Estatuto do Desarmamento é inconstitucional in totum, vez que não se vê periculosidade na conduta de quem possui no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, quando titular ou responsável legal do estabelecimento ou empresa, arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido. Esta conclusão se obtém facilmente a partir de um singela dedução. Se entender-se que a conduta de manter ou possuir estes instrumentos nos locais mencionados põe em risco à segurança da coletividade, devemos perguntar se este risco desapareceria pelo simples fato de o agente ter o registro da arma de fogo, por exemplo? Em sendo a resposta negativa, ou seja, se o risco ainda permanecesse mesmo diante do cumprimento da determinação regulamentar, então, tal norma seria uma aberração jurídico-penal, porque mesmo possuindo o registro ainda assim colocaria em risco o bem jurídico. Diante disso, é raso notar que não há risco nenhum ao bem jurídico na conduta tipificada no artigo 12, porque este risco não pode ser condicionado a uma simples determinação regulamentar.184 Tal conduta fere o princípio da ofensividade ou lesividade, tratando-se, em verdade, de mera infringência à norma administrativa (“ausência de registro”, “prazo de validade expirado do registro”, “acessórios em desacordo com a norma regulamentar”, “quantidade de munição em desacordo com a norma regulamentar”). Não se olvida dos requisitos que são necessários para obtenção do registro da arma de fogo, em especial, os dos artigos 4º, inciso III, da Lei 10.826/2003 185, e 12, inciso, VI, do Decreto 5.123/2004.186Mas compreende-se que malgrado a obtenção do registro condicione-se à exigência de comprovação de capacitação

184

Nesse sentido inclusive refere Lênio Streck: “Não é difícil chegar a conclusão que o simples fato de alguém “possuir arma de fogo pode significar – por si só - lesão a qualquer bem jurídico”. O bem jurídico e a Constituição, op. cit., p. 22. sem autorização” (tendo-a em casa ou a transportando no seu veículo, por exemplo) não 185 Cf. III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei. 186 Cf. VI - comprovar, em seu pedido de aquisição e em cada renovação do Certificado de Registro de Arma de Fogo, a capacidade técnica para o manuseio de arma de fogo.

56

técnica e psicológica, as hipóteses do artigo 12 não se mostram perigosas à segurança da coletividade. A aplicação de sanções administrativas como multas e o recolhimento das armas, munições e acessórios já bastariam para justificar a transgressão à norma regulamentar ou legal nas circunstâncias do artigo 12 do Estatuto. Afora isso é imprescindível dizer, e aqui parece o argumento mais contundente para a ausência de ofensividade na conduta, que a casa é asilo inviolável do indivíduo, conforme garante o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal. Logo, em seu interior, visa-se não somente a manutenção da privacidade, mas também da segurança individual.187 O artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948188, os inciso I e IX da Declaração Americana dos Direitos e deveres do Homem de 1948 189e os artigos7º e 11 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 – o Pacto de San José da Costa Rica190 resguardam os direitos à inviolabilidade do domicilio e à segurança pessoal que conjugados reforçam mais ainda a inofensividade da conduta da posse de arma de fogo, munição ou de acessório. O princípio da ofensividade pressupõe como conduta penalmente relevante, aquela que lesione ou ponha em risco o bem jurídico protegido. Este princípio cumpre a função de limitar o poder punitivo a partir do momento em que impede de serem consideradas típicas condutas inócuas a bens jurídicos, estes que são interesses individuais ou coletivos sempre atrelados à ideia de dignidade humana.191 Toda norma jurídica incriminadora surge por e para amparar algo e alguém, relação que sempre expressa um interesse.192 Assim, quando esta relação desaparece, quando a conduta é inofensiva ao bem jurídico, porque não se vê nela nenhum risco potencial à segurança pública ou

187

MENDES, Gilmar. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 326. 188 CORRÊA, Anelize Maxila. PAULSEN, Carolina Moreira. MOLIN, Lúcia Dal. Direitos Humanos: Documentos básico. Pelotas: Educat, 2005. p. 26. 189 Id. p. 160-161. 190 Id. p. 171-174. 191 Crimes de perigo abstrato, op. cit., p. 156. 192 Tradução livre. UBIETO, Emilio Octavio de Toledo y. Funcion y limites del principio de exclusiva proteccion de bienes jurídicos. Disponível em: http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/46367.pdf Acesso em 15 de ago. 2014. 12:55:32.

57

coletiva, repisa-se, que não pode provocar nenhuma afetação a esta segurança, não pode ser erigida à norma criminal. No caso dos crimes de perigo abstrato, a periculosidade dever ser o elemento nuclear da ação penalmente relevante. Daí porque Pierpaolo Cruz Bottini afirma: A construção do tipo penal, seja de perigo abstrato, seja de lesão, demanda um injusto material, que será o risco de dano ao bem protegido, mesmo sob uma perspectiva ex ante ou abstrata, de modo que a ausência deste risco afastará a lesividade e a incidência da normal penal não será adequada aos 193 preceitos de um direito racional e funcional.

O princípio da ofensividade decorre dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana e é, por isso, princípio fundamental de direito penal. Nesse sentido, defende inequivocamente Fábio Roberto D´Ávila: A proteção jurídico-constitucional do direito liberdade – como também da dignidade da pessoa humana que, por sua vez, veda a instrumentalização do homem em benefício de meros interesses administrativos – impede, por tudo isso, o alargamento da tutela penal para além dos casos em que o seu exercício implique ofensa a outros bens jurídicos em harmonia com a ordem constitucional. Por estas, entre muitas outras razões, é, por certo, a ofensividade uma inafastável exigência para a legitimidade do ilícito-típico 194 na ordem jurídico-penal brasileira, após a Constituição federal de 1988.

Sustentar a manutenção do dispositivo na lei é apoiar a “administrativização” do direito penal, entendendo o crime como mera violação de deveres impostos pelo Estado, que, dessa forma, se aproxima a um Estado tirano, nacional-social, e não a um Estado Democrático de Direito e Social. O direito administrativo diferentemente do direito penal visa organizar, de modo geral, setores de atividade (reforçar, mediante sanções, um determinado modelo setorial). Por isso, não se preocupa em seguir critérios de lesividade, haja vista que obedece juízos de oportunidade e conveniência, e não de legalidade.195 Ajusta-se, portanto, ao posicionamento de Teresa Aguado Correa que sustenta não serem idôneos os delitos de perigo abstrato para a proteção do bens

193

Crimes de perigo abstrato., op. cit., p. 157. Ofensividade em Direito Penal, op. cit., p. 71. 195 Tradução livre. SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. La expansióndelDerecho Penal: Aspectos de la política criminal em las sociedades postindustriales. 2ª ed. Madrid (Espanha): Civitas Ediciones, 2001. p. 125. 194

58

jurídicos quando

por meio

dos mesmos

se

incriminam meras

infrações

196

administrativas, que não põem nenhum risco ao respectivo bem jurídico.

Além do princípio da lesividade, o artigo 12 do Estatuto ofende o princípio da subsidiariedade, da fragmentariedade e da intervenção mínima ou ultima racio. As consequências do direito penal, sejam elas jurídicas, sociais, ou mesmo psíquicas, para aquele que descumprir suas normas, são indiscutivelmente mais gravosas do que todos os demais ramos do direito (civil, administrativo, tributário, empresarial, por exemplo), sendo assim ele deve ser o último recurso para promover o controle social. É subsidiário porque se outros mecanismos de controle se mostrarem bem sucedidos, não há de se coibir condutas por meio da reprimenda penal. Também possui natureza fragmentária, ou seja, não são todas as ações que atacam bens jurídicos que devem ser protegidas pelo direito penal, somente aquelas que forem mais graves.197 A legitimidade da atuação do aparelho repressivo penal vincula-se irretorquivelmente ao seu caráter subsidiário e fragmentário de tutelar os interesses mais relevantes voltados ao individuo. A utilização da privação da liberdade por meio da pena para outro fim, não se expressa razoável e adequada, devendo ser de pronto afastada, pois também deve-se levar em conta o princípio da necessidade da pena. Do princípio da legalidade decorrem os postulados supramencionados (fragmentariedade, subsidiariedade e intervenção mínima), e que se relacionam por força do intrínseco limite que da legalidade exsurge quanto à atuação estatal.198 Lênio Streck bem aponta que: É sabido que o direito penal não deve intervir quando há outros meios de proteger os bens em questão (aqui também não deve ser esquecido e nem subestimado o valor simbólico que representa o direito penal enquanto 196

Tradução livre. CORREA, Teresa Aguado. Principio de proporcionalidade en sentido amplio y delitos de peligro abstracto. p. 10. Disponível em: Acesso em: 23 de ago. 2014. 10:23:33. 197 CONDE, Francisco Muñoz, op. cit.,. p. 14-125. 198 CARDOSO, Danielle Martins. JÚNIOR, Salvador José Barbosa. O indispensável controle de constitucionalidade difuso nos crimes de porte de arma de fogo e munição. In: TOLEDO, Armando (Coord.). Direito Penal: Reinterpretação à luz da Constituição – Questões Polêmicas. Rio de Janeiro: Editora Elsevier Ltda, 2009. p. 33. Disponível parcialmente em: Acesso em: 26 de ago. 2014. 20:05:32.

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interdito, enquanto limite que separa a civilização da barbárie, questão bem assinalada na metáfora do contrato social em Hobbes e na figura do superego freudiano). A pena tem a missão de proteger subsidiariamente os 199 bens jurídicos.

A “administrativização” do direito penal está umbilicalmente relacionada a tentativa de suprimir os princípios aludidos. Nesse sentido, reforça-se, como bem ensina Bernardo Feijoo Sanchez: A sanção de uma conduta a realizar algo que, simplesmente, é estatisticamente perigoso, mas que, no caso concreto, não supõe uma organização defeituosa para outro âmbito de organização, apenas pode canalizar-se através do direito administrativo. Ou seja, quando se trata somente de manter a vigência formal de normas as quais, estatisticamente, se comprovam que são úteis para a prevenção de lesões de bens jurídicos, não cabe intervir com penas. A periculosidade estatística representa, sem dúvida, uma fundamentação suficiente para criar normas que desvalorem esse tipo de condutas, mas não serve para fundamentar a intervenção do direito penal com penas frente a cidadãos concretos. O injusto penal tem que ir além da mera desobediência administrativa e implicar um plus que 200 justifique a pena.

Assim, confrontada com os princípios informados a norma penal do artigo 12 do Estatuto do desarmamento é inconstitucional, uma vez que o âmbito administrativo já seria suficiente para objetivar o controle desta conduta.

7.3.

Do porte ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de uso permitido

(artigo 14)

Contrariamente ao dispositivo anterior, não se entende que o artigo 14 seja inconstitucional em sua totalidade, até porque o enunciado possui 13 verbos nucleares, que já foram examinados. No tocante ao verbo “portar” entende-se que é inconstitucional apenas em parte. A conduta de circular com arma de fogo pelas ruas ou no interior de um veículo, por exemplo, dispondo da mesma a qualquer momento, é conduta diferente daquela do artigo 12, restrita ao âmbito doméstico ou de trabalho. A periculosidade nesse caso pressupõe-se pelo fato de que pessoas diversas daquelas do artigo 6º do Estatuto do Desarmamento, que estão diretamente ligadas 199

STRECK, Lênio Luiz. Bem jurídico e Constituição, op. cit., p. 14. Sobre a “administrativização” do direito penal na “sociedade do risco”, op. cit., p. 40.

200

60

à manutenção e à defesa da segurança coletiva ou de sua própria segurança – nos casos em que a própria profissão produz um risco inerente – não podem portar estes instrumentos, já que se o fizerem estarão pondo em risco a segurança da coletividade. Esclareça-se que não é somente porque há uma norma vedando o porte da arma de fogo que a conduta é lesiva, mas porque trazer consigo o armamento fora das situações do artigo 12 por si só põe em risco a segurança pública. Não se pode permitir que qualquer pessoa, que não possua o devido treinamento, tampouco necessite de uma arma, possa portá-la livremente, justamente porque as armas de fogo são objetos intrinsicamente perigosos, principalmente, nas mãos de pessoas desabilitadas. No entanto, julga-se que o dispositivo só fere o bem segurança coletiva no caso de porte de arma de fogo devidamente municiada. A arma desmuniciada e sem munição ao pronto alcance do agente, ou o acessório e a munição isoladamente não põem em risco o bem tutelado, são inofensivos. Não põem em risco o bem jurídico, além das condutas já referidas, os simulacros de arma de fogo, as armas de pressão, independentemente se o calibre é inferior ou superior a seis milímetros, bem como aquelas que não apresentarem condições de funcionamento. A arma desmuniciada e sem munição ao alcance do agente é objeto inerte, sem potencial de ferir na forma a que se destina. Sem poder de “fogo”, não diferindo de um pedaço de madeira, ferro etc. No mesmo sentido entende Pierpaolo Cruz Bottini: A compreensão material do perigo abstrato impede a incidência do tipo em situações concretas de ausência de periculosidade, como ocorre no caso do indivíduo que porta arma irregularmente e, posteriormente, verifica-se que esta não tem condições de funcionamento. Na hipótese, o risco típico não se verifica nem por uma perspectiva ex ante, pois a conduta é incapaz de qualquer efeito lesivo previsto no âmbito de abrangência da norma. É justamente pela ausência de periculosidade material, também que nos parece acertado afastar a tipicidade do ato de portar munição de arma de fogo sem autorização, comportamento indicado no artigo 16 da Lei 10.826/2003 como penalmente reprovado, vez que a munição é mero acessório, sem capacidade de afetação de bens jurídicos se 201 desacompanhada do principal – arma de fogo.

201

Crimes de perigo abstrato. op. cit., p. 176.

61

Em relação às modalidades de “deter”, “transportar”, “manter sob sua guarda” e “receber” pelos mesmos motivos expostos quanto ao porte, não ofendem o bem jurídico, quando o objeto material for arma desmuniciada e sem munição ao alcance do agente, acessório ou munição isoladamente. Além disso, não se entende que a aquisição, o fornecimento, a cedência e o empréstimo, o depósito, o ocultamento e a remessa de arma de fogo, municiada ou não, de acessório, ou de munição, ponha em risco o bem jurídico segurança pública. A conduta que se considera compatível com a pena é aquela em que o agente dispõe da arma de fogo, entendida como aquela que tem potencial de ferir, na forma inerente à sua destinação, podendo com ela, nesta circunstância, por em risco a segurança da coletividade. Assim, o ato de “adquirir”, “fornecer”, “ceder”, “emprestar”, “ter em depósito”, “remeter” e “ocultar” visa por parte do legislador meramente inibir a circulação de armas de fogo, acessórios e munições, e deve ser rechaçada pela norma penal. Para o ensejo outras medidas mais efetivas do que a criminalização, que, por si só, nada resolve, poderiam ser adotadas. Canalizar a resolução de todo os embaraços da gestão executiva para a esfera penal é temerário e afronta o direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana. Em outras palavras, é tornar o direito penal instrumento mítico de resolução de conflitos sociais, transferindo para si todo o peso de ajustar o corpo social por meio de prescrições normativo-penais. Alternativa que parece preferir o legífero pátrio, principalmente diante de pressões internas e externas. Como já se viu a criminalidade no Brasil é premente, cada vez mais alarmante, inclusive por força das armas de fogo. Todavia, já se demonstrou por meio dos levantamentos estatísticos apresentados no início deste escrito, que o rigor no controle por meio da criminalização das referidas condutas não foi capaz de atenuar os altos índices de insegurança pública. Assim, dever-se-ia buscar outras medidas – como aquelas sugeridas quando da análise da posse – e também a tomada de iniciativas fiscalizatórias mais efetivas e periódicas por parte dos órgãos competentes. Para este último intento, os Decretos nº 5.123/2004 e nº 3.665/2000 trazem algumas diretrizes de fiscalização e cominação de multa, embora a multa fique adstrita a alcançar empresas.

62

As modalidades inofensivas, além de ferir o postulado da ofensividade, também

estão

em

descordo

com

os

princípios

da

subsidiariedade,

fragmentariedade, da intervenção mínima e da necessidade da pena. Por fim, o verbo “empregar” deve ser considerado típico plenamente, porém, desde que observadas as ressalvas feitas quando da delimitação desta conduta, bem como devendo considerar apenas os casos em que a arma está devidamente municiada. Assim, acessório ou munição isoladamente, e arma desmuniciada e sem munição ao alcance do agente não podem ser consideradas legítimas.

7.4.

Do porte e da posse ilegal de arma de fogo, munição ou acessório de

uso restrito ou proibido (artigo 16)

As armas de fogo de uso restrito ou proibido são de uso exclusivo das Forças Armadas nacionais, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército (art. 11 do Decreto 5.123/2004). Essa restrição se justifica evidentemente pelo alto poder lesivo destes artefatos, superior às armas de fogo de uso permitido. O artigo 16, caput, do Estatuto do Desarmamento ocupa-se a descrever os verbos atinentes aos artigos 12 e 14 do Estatuto do Desarmamento, diferenciandose, no entanto, no que diz com o objeto material, por se tratar aqui de instrumentos de uso restrito ou proibido. Diante disso, entende-se que deve ser estendido o mesmo posicionamento do artigo 14 do Estatuto para os casos do artigo 16, caput, do Estatuto do Desarmamento. Julga-se, inclusive, que também a posse destes instrumentos deve ser criminalizada. Isso porque não se pode permitir à população dispor livremente de armas de uso exclusivo dos órgãos de segurança pública e das Forças Armadas, e aqui o Direito Penal tende a ser mais efetivo do que a tutela administrativa. Todavia, assim como dito para os casos do artigo 14, aqui se deve considerar o porte e a posse de armas de fogo de uso restrito ou proibido como ofensivas ao bem jurídico somente se o agente dispor da arma de fogo municiada ou com munição ao seu alcance, e que tenha condições de funcionamento.

63

Desconsidera-se, também, a simples posse ou porte de acessório ou munição, bem assim de simulacro de arma de fogo, comportamentos que devem ser tidos apenas como infrações administrativas, nos moldes do que já foi debatido a pouco. No que diz respeito às modalidades do parágrafo único, do artigo 16, da Lei n.º 10.826/2003, há de se analisar pormenorizadamente cada conduta. As modalidades de supressão ou alteração de marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato (artigo 16, parágrafo único, inciso I) e de produção, reciclagem e adulteração de munição ou explosivo (artigo 16, parágrafo único, inciso VII) carecem também de periculosidade, visando, sobretudo, o controle administrativo das armas. Por outro lado, razoável a criminalização da modificação das características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz (artigo 16, parágrafo único, inciso II). A modificação se perfaz para tornar a arma mais perigosa ou para lograr a autoridade policial, o perito ou o juiz dissimulando a verdadeira classificação da arma de fogo, dificultando o próprio enquadramento típico. Outrossim, a posse, a detenção, a fabricação ou o emprego de artefato explosivo ou incendiário (artigo 16, parágrafo único, inciso III), bem assim a venda, a entrega e o fornecimento, ainda que gratuitamente, de arma de fogo, acessório, munição ou explosivo à criança ou ao adolescente (artigo 16, parágrafo único, inciso V),sob a ótica penal constituem práticas puníveis porque põem em risco o bem jurídico segurança coletiva e, no caso, do artigo 16, parágrafo único, inciso III, visam tutelar a criança e o adolescente. Por derradeiro, as modalidades de portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado (artigo 16, parágrafo único, inciso IV) não diferem, em nível de periculosidade ao bem jurídico, pelo fato de apresentar marca, numeração ou outro sinal de identificação da arma de fogo raspado, suprimido ou adulterado. Estimular posição diversa fere o princípio da proporcionalidade. A pena deve ser proporcional à gravidade da conduta praticada, tanto no tocante à hierarquia do

64

bem jurídico atacado, quanto à intensidade deste ataque. Há de se excluir penas iguais para condutas diferentes202, e vice-versa.

202

Tradução livre. RAMÍREZ, Juan Bustos. Principios fundamentales de um derecho penal democrático. Disponível em: Acesso em: 25 de ago. de 2014. 10:23:59.

65

8.

ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA PÁTRIA

Este capítulo se propõe a verificar alguns julgados do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul acerca do tema debatido. Esclareça-se que se optou pela análise apenas do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul para que não se estendesse demasiadamente este trabalho. Nos três Tribunais, foram realizadas quatro pesquisas, a primeira utilizando como expressões de busca “bem jurídico e estatuto do desarmamento”(11 acórdãos no STF; 99 no STJ; 705 no TJRS); a segunda “atipicidade e estatuto do desarmamento” (39 acórdãos no STF, 239 no STJ; 806 no TJRS); a terceira “munição e acessórios e estatuto do desarmamento” (4 acórdãos no STF, 36 no STJ; 175 no TJRS); e a quarta “munição ou acessório e atipicidade” (77 acórdãos no STF, 611 no STJ; 65 no TJRS); Pode-se afirmar previamente a partir do exame dos acórdãos a prevalência dos Tribunais pela classificação das modalidades estudadas como crimes de perigo abstrato, em seu conceito formal.

8.1.

Supremo Tribunal Federal (STF)

8.1.1. Arma desmuniciada –Habeas Corpus n.º 10.208-7

HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. (A)TIPICIDADE DA CONDUTA. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO E MODELO EXIGENTE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA PENAL. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO 203 PORTE DE ARMA DESMUNICIADA. ORDEM DENEGADA.

O julgamento deste habeas corpus entende-se ter sido um dos mais importantes acerca do tema, e constituiu, inequivocamente, novo parâmetro para a massificação de decisões semelhantes no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal 203

STF, HC n.10.208-7, 2ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 28/02/2012.

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de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao revés de decisões anteriores destes Tribunais e do próprio Supremo. Em razão disso, optou-se por uma sucinta análise individual do único voto divergente, proferido pelo Ministro Celso de Mello, e do voto do Ministro Gilmar Mendes, que sintetiza a tese vencedora.

8.1.1.1. Voto do Ministro Celso de Mello: O Ministro Celso de Mello deferiu o pedido de habeas corpus e determinou a extinção do processo criminal contra o réu. Para tanto, sustentou que “se revela destituída de potencialidade lesiva a conduta daquele que, além de portar arma de fogo totalmente desmuniciada, também não dispõe de acesso imediato à munição”. Registrou ainda que: Ambas as Turmas desta Corte, em composições anteriores, decidiam no sentido que ora exponho neste voto, reconhecendo a ausência de tipicidade penal na conduta daquele que porta arma desmuniciadae que, simultaneamente, não dispõe de acesso imediato à munição.

Finalizou o Ministro, inferindo que pugnar pela delituosidade da conduta é atentar contra o princípio da ofensividade e, mais, contra o próprio Direito Penal.

8.1.1.2. Voto do Ministro Gilmar Mendes:

O Ministro Gilmar Mendes discorreu inicialmente sobre a tese aventada em julgados anteriores acerca da inofensividade do porte de arma sem munição. Em seguida, reconheceu a importância do princípio da ofensividade, intrinsicamente ligado ao princípio da proporcionalidade, como limitador das atividades judiciais e legislativas. Na ocasião, ainda, analisou os três níveis de intensidade de controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as diretrizes elaboradas pela doutrina e jurisprudência constitucional alemã. Tratou os delitos de perigo abstrato como de mera conduta, referindo que “o legislador, dessa forma, formula uma presunção absoluta a respeito da

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periculosidade de determinada conduta em relação ao bem jurídico que pretende proteger”. Também consignou que: quando houver medidas mais eficazes para a proteção do bem jurídicopenal, porém menos gravosas para os direitos individuais em jogo, os crimes de perigo abstrato serão contrários aos princípios da subsidiariedade e da ofensividade e, dessa forma, ao princípio da proporcionalidade. Meros ilícitos que são objeto de responsabilização jurídica eficaz por meio do Direito Civil ou do Direito Administrativo tornam desnecessária a intervenção do Direito Penal, que deve operar apenas como ultima ratio.

Por fim, confrontando os 3 níveis de controle de constitucionalidade das leis penais abordados por ele (controles de evidência, sustentabilidade e material de intensidade) com a conduta do porte de arma desmuniciada concluiu pela legitimidade de sua criminalização, votando pelo indeferimento da ordem. A decisão do Ministro tangeu-se ao abrigo dos seguintes argumentos: 1º) A dinâmica dos fatos verificados no cotidiano tem demonstrado que a simples apreensão e a aplicação de sanção pecuniária não são bastantes para coibir o uso e o porte da arma de fogo e, por conseguinte, reduzir os índices de violência; 2º) A majoração das penas, mediante qualificação de determinadas condutas tipificadas, quando consumadas com o emprego de arma de fogo (art. 157, § 2º, I; art. 158, § 1º, CP), também, não se mostrou suficiente para coibir suas práticas; 3º) Há, no contexto empírico legitimador da veiculação da norma, aparente lesividade da conduta, porquanto se tutela a segurança pública(art. 6º e 144, CF) e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos (faca, vidro etc.), concessa venia, tem inerente à sua natureza a característica da lesividade. A danosidade é intrínseca ao objeto; 4º) O legislador, na verdade, antecipou-se aos possíveis e prováveis – isso me parece que deve ficar claro, pois é o ordinário –resultados lesivos. No caso, essa antecipação encontra sustentação no próprio objeto incriminado, pois ninguém se utiliza de arma com outra finalidade senão aquela para a qual foi concebida; 5º) E mesmo aqueles que dela se apossam para se defender, comprovam as estatísticas, têm cumprindo finalidade diversa, ora sendo objeto de acidentes domésticos, ora servindo para alimentar o comércio clandestino;

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6º) A questão de possíveis injustiças pontuais, de absoluta ausência de significado lesivo deve ser aferida concretamente e não em linha diretiva de ilegitimidade normativa.

8.1.2.

Decisões posteriores ao Habeas Corpus n.º 10.208-7: As decisões do Supremo que se seguiram acerca da temática foram

semelhantes à fundamentação do HC n.º 10.208-7. Exemplificativamente, segue o seguinte julgado: HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE. CRIME DE MERA CONDUTA. ORDEM DENEGADA. 1. O tipo penal do art. 14, da Lei n 10.826/03, ao prever as condutas de portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar, contempla crime de mera conduta, sendo suficiente a ação de portar ilegalmente a munição. 2. Objetiva-se, assim, antecipar a punição de fatos que apresentam potencial lesivo à população, prevenindo 204 a prática de crimes. Precedentes. 3. Ordem denegada. (Grifei)

8.1.3. Decisões anteriores ao Habeas Corpus n.º 10.208-7:

A jurisprudência anterior do STF, embora fosse relativamente predominante ao atribuir a atipicidade das condutas de arma desmuniciada e de apreensão de munição ou acessório isoladamente, encontrava posições contrárias. Não havia, portanto, pleno consenso acerca da temática. Nesse sentido colaciona-se duas ementas acerca da atipicidade: Arma de fogo: porte consigo de arma de fogo, no entanto, desmuniciada e sem que o agente tivesse, nas circunstâncias, a pronta disponibilidade de munição: inteligência do art. 10 da L. 9437/97: atipicidade do fato: 1. Para a teoria moderna - que dá realce primacial aos princípios da necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso - o cuidar-se de crime de mera conduta - no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material exterior à ação - não implica admitir sua existência independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela incriminação da hipótese de fato. 2. É raciocínio que se funda em axiomas da moderna teoria geral do Direito Penal; para o seu acolhimento, convém frisar, não é necessário, de logo, acatar a tese mais radical que erige a exigência da ofensividade a limitação de raiz constitucional ao legislador, de forma a proscrever a legitimidade da criação por lei de crimes de perigo abstrato ou presumido: 204

STF, HC n.119.15-4, 2ª Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 26/11/2013.

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basta, por ora, aceitá-los como princípios gerais contemporâneos da interpretação da lei penal, que hão de prevalecer sempre que a regra incriminadora os comporte. 3. Na figura criminal cogitada, os princípios bastam, de logo, para elidir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do tipo. 4. Não importa que a arma verdadeira, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os comissíveis mediante ameaça - pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos - da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não constitui crime autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena. 5. No porte de arma de fogo desmuniciada, é preciso distinguir duas situações, à luz do princípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal - isto é, como artefato idôneo a produzir 205 disparo - e, por isso, não se realiza a figura típica.(Grifei) AÇÃO PENAL. Crime. Arma de fogo. Porte ilegal. Arma desmuniciada, sem disponibilidade imediata de munição. Fato atípico. Falta de ofensividade. Atipicidade reconhecida. Absolvição. HC concedido para esse fim. Inteligência do art. 10 da Lei n° 9.437/97. Voto vencido. Porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, sem que o portador tenha disponibilidade imediata de munição, não configura o tipo previsto no art. 10 206 da Lei n° 9.437/97. (Grifei)

8.2. Superior Tribunal de Justiça (STJ):

No STJ, percebe-se a adoção de posicionamento similar ao do STF acerca da classificação das modalidades analisadas, mormente, após a decisão proferida no HC n.º 10.208-7, firmando também, aquele órgão, que os crimes são de perigo abstrato, em seu conceito formal. Por força disso, são massivas às decisões que consideram típicas as condutas do porte e da posse de arma desmuniciada e também da posse e do porte de munição ou acessório isoladamente, conforme se vê a seguir: HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. DESCABIMENTO. POSSE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO RESTRITO. ART. 16 DA LEI 10.826/2003.ABSOLVIÇÃO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. INADMISSIBILIDADE. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. TIPICIDADE DA CONDUTA. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.- Este Superior Tribunal de Justiça, na esteira do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal, tem amoldado o 205

STF, RHC n.8.105-7, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 25/05/2004. STF, HC n. 9.944-9, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 25/08/2009.

206

70

cabimento do remédio heróico, adotando orientação no sentido de não mais admitir habeas corpus substitutivo de recurso ordinário/especial. Contudo, a luz dos princípios constitucionais, sobretudo o do devido processo legal e da ampla defesa, tem-se analisado as questões suscitadas na exordial a fim de se verificar a existência de constrangimento ilegal para, se for o caso, deferir-se a ordem de ofício.- Não tendo sido debatida nas instâncias ordinárias a tese acerca da atipicidade da conduta em razão da ausência de potencialidade lesiva da arma, fica inviabilizado o conhecimento da matéria nesta Corte, sob pena de incidir em indevida supressão de instância. Ademais, a jurisprudência desta Corte Superior é pacífica no sentido de que o crime descrito no art. 16 da Lei 10.826/2003 é de mera conduta e de perigo abstrato, cujo bem jurídico tutelado é a segurança pública e a paz social, sendo, portanto, irrelevante que a munição esteja desacompanhada da respectiva arma. Habeas corpus não conhecido. 207 (Grifei) PENAL. PORTE DE ARMA DE FOGO, ACESSÓRIO OU MUNIÇÃO DE USO PERMITIDO.POSSIBILIDADE DE LESÃO REAL. AFERIÇÃO. DESNECESSIDADE. CRIME DE PERIGO ABSTRATO.1 - Nos termos do entendimento majoritário das duas Turmas componentes da Terceira Seção, o crime previsto no tipo do art. 14 da Lei nº 10.826/2003 é de perigo abstrato, sendo desinfluente aferir se a arma de fogo, o acessório ou a munição de uso permitido sejam capazes de produzir lesão real a alguém. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. 208 Ressalva do ponto de vista da relatora.2 - Ordem denegada.(Grifei)

Pertinente a ressalva de entendimento da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, neste último acórdão, afirmando que: Não se caracteriza o crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido na hipótese em que a arma se encontra desmuniciada, tendo em vista que a exigência do municiamento ou mesmo da perícia para a comprovação dos tipos relativos ao porte de arma de fogo, quer seja autônomo, quer seja considerado como majorante, se afigura mais consentânea com um Direito Penal sintonizado com o princípio da 209 exclusiva tutela de bens jurídicos.(Grifei)

Algumas poucas decisões também destoam da jurisprudência pacífica. Nesse sentido: HABEAS CORPUS IMPETRADO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO PREVISTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. 1. NÃO CABIMENTO. MODIFICAÇÃO DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL. RESTRIÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. EXAME EXCEPCIONAL QUE VISA PRIVILEGIAR A AMPLA DEFESA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL. 2. ART. 12 DA LEI N. 10.826/2003. POSSE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO COM O REGISTRO VENCIDO. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL. PUNIÇÃO ADMINISTRATIVA QUE SE MOSTRA SUFICIENTE. 3. ORDEM NÃO CONHECIDA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO.1. A 207

STJ, HC n. 217.746, 6ª Turma, Rel. Min. Marilza Maynard, j. 11/03/2014. STJ, HC 150.564, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª turma, j. 28/08/2012. 209 Id. 208

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jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, buscando a racionalidade do ordenamento jurídico e a funcionalidade do sistema recursal, vinha se firmando, mais recentemente, no sentido de ser imperiosa a restrição do cabimento do remédio constitucional às hipóteses previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Nessa linha de evolução hermenêutica, o Supremo Tribunal Federal passou a não mais admitir habeas corpus que tenha por objetivo substituir o recurso ordinariamente cabível para a espécie. Precedentes. Contudo, devem ser analisadas as questões suscitadas na inicial no intuito de verificar a existência de constrangimento ilegal evidente - a ser sanado mediante a concessão de habeas corpus de ofício -, evitando-se prejuízos à ampla defesa e ao devido processo legal. 2. O trancamento de ação penal na via estreita do writ configura medida de exceção, somente cabível nas hipóteses em que se demonstrar, à luz da evidência, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou outras situações comprováveis de plano, suficientes ao prematuro encerramento da persecução penal. Na espécie, o paciente foi denunciado pela suposta prática da conduta descrita no art. 12 da Lei n. 10.826/2003, por possuir irregularmente um revólver marca Taurus, calibre 38, número QK 591720, além de dezoito cartuchos de munição do mesmo calibre. 3. Todavia, no caso, a questão não pode extrapolar a esfera administrativa, uma vez que ausente a imprescindível tipicidade material, pois, constatado que o paciente detinha o devido registro da arma de fogo de uso permitido encontrada em sua residência - de forma que o Poder Público tinha completo conhecimento da posse do artefato em questão, podendo rastreá-lo se necessário -, inexiste ofensividade na conduta. A mera inobservância da exigência de recadastramento periódico não pode conduzir à estigmatizadora e automática incriminação penal. Cabe ao Estado apreender a arma e aplicar a punição administrativa pertinente, não estando em consonância com o Direito Penal moderno deflagrar uma ação penal para a imposição de pena tão somente porque o indivíduo devidamente autorizado a possuir a arma pelo Poder Público, diga-se de passagem - deixou de ir de tempos em tempos efetuar o recadastramento do artefato. Portanto, até mesmo por questões de política criminal, não há como submeter o paciente às agruras de uma condenação penal por uma conduta que não apresentou nenhuma lesividade relevante aos bens jurídicos tutelados pela Lei n. 10.826/2003, não incrementou o risco e pode ser resolvida na via administrativa. 4. Ordem não conhecida. Habeas corpus concedido, de ofício, para extinguir a Ação Penal n. 0008206-42.2013.8.26.0068 movida 210 em desfavor do paciente, ante a evidente falta de justa causa.(Grifei) RECURSO ESPECIAL. PENAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. INAPTIDÃO DO INSTRUMENTO. LAUDO PERICIAL ATESTANDO O NÃO FUNCIONAMENTO DE UM DOS CANOS DA GARRUCHA. SEGUNDO CANO. DÚVIDAS QUANTO AO FUNCIONAMENTO.PERÍCIA ESTATAL NÃO CONCLUSIVA. INTERRUPÇÃO DE FABRICAÇÃO LÍCITA DE MUNIÇÃO E IMPOSSIBILIDADE DE TESTE DE TIRO. CONDUTA ATÍPICA.RECURSO IMPROVIDO.1. É típica a conduta de portar arma de fogo sem autorização ou em desconformidade com determinação legal ou regulamentar, por se tratar de delito de perigo abstrato, cujo bem jurídico protegido é a incolumidade pública, independentemente da existência de qualquer resultado naturalístico.2. A classificação do crime de porte ilegal de arma de fogo como de perigo abstrato traz, em seu arcabouço teórico, a presunção, pelo próprio tipo penal, da probabilidade de vir a ocorrer algum dano pelo mau uso da arma.3. Flagrado o recorrido portando um objeto eleito como arma de fogo, temos um fato provado - o porte do instrumento - e o nascimento de duas presunções, quais sejam, de que 210

STJ, HC n. 294078, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 5ª turma, j. 26/08/2014.

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o objeto é de fato arma de fogo, bem como tem potencial lesivo.4. Sendo a tese nuclear da defesa o fato de o objeto não se adequar ao conceito de arma, por estar quebrado e, consequentemente, inapto para realização de disparo, circunstância devidamente comprovada pela perícia técnica realizada, temos, indubitavelmente, o rompimento da ligação lógica entre o fato provado e as mencionadas presunções.5. No caso, o acórdão revela o porte de instrumento com um dos canos quebrado (sem engatilhar), condição que demandaria, para o seu efetivo uso, reparos de considerável complexidade, que exigiriam expertise do acusado e ferramentas específicas, não se podendo incluir o objeto, no seu estado atual, sequer no conceito técnico de arma de fogo.6. Pesam em favor da impropriedade do objeto três circunstâncias de grande relevância: a primeira consiste na total impropriedade do gatilho esquerdo, devidamente atestada na perícia de fl. 131; a segunda na inexistência de munição compatível com a garrucha, fato que indica, ao menos em tese, a imprestabilidade do objeto, pois o seu uso dependeria de produção artesanal ou de recarga de munição, práticas complexas, que não se revelam acessíveis a qualquer pessoa; e a terceira e última seria a impossibilidade de atribuir ao acusado as consequências da insuficiência parcial da prova técnica produzida pelo próprio Estado.7. A leitura dos elementos do processo à luz do princípio da presunção de inocência consubstanciado na máxima in dubio pro reo, segundo o qual, diante de duas conclusões lógicas, não é permitido ao julgador admitir justamente aquela contrária ao réu, porque a condenação deve ser fruto de prova induvidosa - recomenda a manutenção do acórdão que considerou atípica a conduta do recorrido.8. Recurso especial a que se nega provimento.(Grifei) 211

ESTATUTO DO DESARMAMENTO. TRANSPORTE DE MUNIÇÃO PARA SER USADA EM ESPINGARDA CALIBRE 12, DEVIDAMENTE LEGALIZADA E REGISTRADA NO SISTEMA DE ARMAS. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA.1. Esta Corte consolidou o entendimento de que para a caracterização do delito previsto no artigo 14 da Lei nº 10.826/03 é irrelevante se a munição possui ou não potencialidade lesiva, por se tratar de delito de perigo abstrato, pouco importando se estava acompanhada de arma de fogo para a sua efetiva utilização.2. O Direito Penal somente deve se preocupar com os bens jurídicos mais importantes e necessários à vida em sociedade, interferindo o menos possível na vida do cidadão. É a última entre todas as medidas protetoras a ser considerada, devendo ser as perturbações mais leves objeto de outros ramos do Direito.3. Na hipótese dos autos, verifico que a arma para a qual se destinava a munição era devidamente registrada em nome do recorrido no Sistema de Armas não sendo razoável punir o transporte da munição destinada ao seu uso.4. Recurso especial a que se nega 212 provimento. (Grifei)

Antes do HC n.º 10.208-7 do STF, o STJ dividia-se entre a consideração da tipicidade ou não de algumas das modalidades estudadas. No tocante à ausência de tipicidade, seguem decisões pertinentes. DIREITO PENAL. HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA. ART. 16, CAPUT, DA LEI 10.826/03. ARMA COM NUMERAÇÃO RASPADA. ARTEFATO DESMUNICIADO. BEM JURÍDICO TUTELADO. AFETAÇÃO. 211 212

STJ, HC 1387227, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 5ª turma, j. 17/09/2013. STJ, REsp 1228545/RS, Rel. Min. OG Fernandes, 6ª turma, j. 18/04/2013.

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AUSÊNCIA.1. Não sendo o paciente denunciado nem condenado pela figura do parágrafo único, inciso IV, do art. 16 do Estatuto do Desarmamento, não se deve sustentar a tipicidade, invocando-se a circunstância de se tratar de arma com numeração raspada, encontrando-se o artefato desmuniciado.2. Diante do princípio da ofensividade, não há falar em comportamento típico quando inexiste afetação do valor objeto de tutela. In casu, o paciente foi flagrado portanto arma de uso restrito sem munição, ausente, portanto, qualquer risco para a incolumidade pública.3. Ordem concedida para, revogando o trânsito em julgado, trancar a ação penal n. 630/05, da 6.ª Vara Criminal da Comarca de 213 Guaru. (Grifei) HABEAS CORPUS. ARMA DESMUNICIADA E DESMONTADA. ATIPICIDADE. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA.I. No caso em julgamento, o paciente trazia uma arma desmontada. É evidente que não havia potencialidade ofensiva, porquanto arma desmontada não é arma. O paciente portava apenas partes de uma arma, que não lhe serviriam sequer para defender-se de um repentino ataque de algum animal selvagem. II. Há expressões, como dignidade humana, igualdade, cidadania, privacidade, bem comum, interesse público, que veiculam direito e princípios fundamentais. O juiz, deparando-se com essas expressões, faz escolhas de caráter não apenas jurídico, mas ético-político, visando a um resultado justo. Na verdade, nos casos difíceis, que se encontram na penumbra, o juiz pode fazer uso de critérios outros e não estará agindo discricionariamente: limita-se a aplicar elementos estruturantes do sistema jurídico. III. Não cabe mais 214 o direito penal meramente formal. IV. Ordem concedida.(Grifei)

8.3.

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS): O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem considerado as modalidades

estudadas como crimes de perigo abstrato, de mera conduta, mesmo antes HC n.º 102087 do STF, era esta a posição que prevalecia. Assim,

exemplificativamente,

colaciona-se

duas

jurisprudências

que

sintetizam as decisões do Tribunal: APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO DEFENSIVO. POSSE ILEGAL DE MUNIÇÃO. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO POR ATIPICIDADE DA CONDUTA. 1. INCONTITUCIONALIDADE FORMAL DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO Matéria já decidida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n° 3.112/DF), modo que não há mais espaço para discussão a este respeito. Precedente da Câmara. 2. AUSÊNCIA DE AFETAÇÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO Alinhamento da orientação à jurisprudência firmada nas Cortes Superiores, para considerar típica a conduta de porte de munição, por se tratar de crime de mera conduta, que dispensa causação de perigo concreto. Apreensão de cinquenta e sete (57) cartuchos calibre 12 intactos e eficazes. ABOLITIO CRIMINIS Possibilidade de entrega voluntária de armas de fogo e de munições de uso permitido que 213 214

STJ, HC 109.170/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª turma, j. 16/12/2010. STJ, HC 101.638/MS, Rel. Min. OG Fernandes, 6ª Sexta turma, j. 02/09/2010.

74

perdurou até 31.12.2009, nos termos da Lei nº 11.922/2009. Situação não alterada pelo Decreto nº 7.473/2011, o qual apenas ampliou a presunção de boa-fé para os possuidores que, espontaneamente, entregarem tais artefatos. 4. APLICAÇÃO DA SÚMULA nº 337 DO STJ O tipo objeto da condenação comporta seja oferecida a suspensão condicional do processo, devendo-se oportunizar que seja feito antes da condenação. Sentença desconstituída de ofício, com prejuízo do exame do mérito recursal. 215 DISPOSIÇÃO DE OFÍCIO. MÉRITO PREJUDICADO.(Grifei) Ementa: LEI 10.826/03. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. ART. 14. CAPUT. EXISTÊNCIA DO FATO E AUTORIA. A existência do fato restou comprovada pelo auto de apreensão, auto de prisão em flagrante, exame pericial da arma, confissão do réu e prova testemunhal. Suficientes as provas contidas nos autos. ATIPICIDADE. O porte ilegal de arma de fogo constitui crime de perigo abstrato, sendo prescindível que a conduta do agente resulte na produção de um perigo concreto ao bem jurídico tutelado, que é a segurança coletiva. Irrelevante o fato da arma estar desmuniciada para fins de enquadramento típico. APELO MINISTERIAL 216 PROVIDO. POR MAIORIA.(Grifei)

8.4.

A reafirmação da posição defendida a partir dos votos dicotômicos dos

Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello no HC n.º 10.208-7:

Sustenta-se, assim como o Ministro Celso de Mello, que a conduta de quem porta arma sem munição, e não tem imediato acesso a ela, não pode justificar a criminalização, porque destituída de potencialidade lesiva. Discorda-se, portanto, do posicionamento restritivo do Ministro Gilmar Mendes que considera os delitos estudados como de mera conduta, alinhando-se, desse modo, à corrente formal dos delitos de perigo abstrato. Embora respeitável o posicionamento do Ministro Gilmar Mendes também diverge-se de seus argumentos para defender a criminalização das condutas postas em xeque neste trabalho. As duas primeiras exposições do Ministro tratam da insuficiência das medidas de apreensão e aplicação de sanção pecuniária para redução dos índices de criminalidade e da majoração de penas de determinadas condutas tipificadas, quando consumadas com o emprego de arma de fogo, dando como exemplos o artigo 157, § 2º, I e artigo 158, § 1º, do Código Penal.

215

Tribunal de Justiça do RS, Apelação Crime n. 70053711891, 3ª Câmara Criminal, Rel. João Batista Marques Tovo, j. 19/12/2013. 216 Tribunal de Justiça do RS , Apelação Crime nº 70036713816, 3ª Câmara Criminal, Rel. Ivan Leomar Bruxel, j. 30/09/2010.

75

Harmoniza-se com o que diz o Ministro Gilmar Mendes, a legislação mais gravosa de armas não foi suficiente para abaixar os índices de criminalidade. No entanto, questiona-se, já que ela não bastou, a solução mais eficaz seria majorar as penas ainda mais, por exemplo, ou manter no ordenamento penal condutas inócuas como as que se apontou aqui, porque nem a tutela penal é capaz de diminuir a criminalidade trazida pelas armas de fogo? Evidentemente que a resposta deve ser negativa, já nas discussões do projeto de lei que originou o Estatuto do Desarmamento era apontada a ineficácia do novo diploma para conter a violência. À época um dos parlamentares disse: não se deve gerar uma falsa expectativa em torno do Estatuto do Desarmamento, porque, na verdade, se não equiparmos as Polícias, ele não surtirá efeito. (...)Muitas vezes se transmite para a população a imagem de que ao se criar uma lei ela vai resolver o problema da violência. É mentira. Quero dizer de forma bem clara: lei nenhuma resolve o problema da violência, se não dermos aos agentes de defesa da sociedade condições para impor o seu cumprimento. É responsabilidade do Governo dar as condições necessárias para a Polícia Federal combater a corrupção, o narcotráfico e o tráfico de armas. Do contrário, é conversa mole, é 217 cascata.

Ademais, semelhantemente acontece com os delitos relacionados às drogas, nem a cominação de penas elevadas foi suficiente para diminuir o comércio ilegal destas substâncias, tanto que cogita-se inclusive a descriminalização de algumas condutas. O estudo técnico promovido pela Confederação Nacional de Municípios apontou que a ineficiência da legislação de armas pode estar relacionada com a falta de políticas executivas no controle das armas ilegais: Todos esses e outros dispositivos previstos no Estatuto do Desarmamento buscaram proporcionar um maior controle do fluxo de fornecimento e acesso a armas legais no país, visando uma posterior diminuição de crimes. No entanto, no que se refere ao fluxo de comércio e de uso de armas ilegais, não se observa políticas públicas tão contundentes, nem mesmo uma tentativa expressiva de controle por parte dos governos. Como já mencionado acima, a proporção no uso de armas na prática de crimes aumenta a cada ano, demonstrando nitidamente a facilidade de acesso a 218 armas ilegais por parte da população civil.

217

Disponível em: Acesso em: 10 de set. 2014. 10:09:23. 218 Estudos técnicos: homicídios por armas de fogo no Brasil. Disponível em: http://portal.cnm.org.br/sites/9000/9070/Estudos/SegurancaPublica/EstudoArmasdeFogo-CNM.pdf Acesso em: 15 de set. 2014. 12:23:08.

76

Mais nitidamente se percebe que não é a criminalização de condutas meramente administrativas que vão conter a criminalidade, mas sim a adoção de políticas fiscalizatórias e de controle efetivas. O mapa da violência sobre jovens no Brasil219 informa que os homicídios praticados por meio das armas de fogo, logo após, a promulgação do Estatuto do Desarmamento e das campanhas e políticas pontuais em algumas unidades da federação, diminuíram significativamente. Contudo, após a redução de tais políticas os índices voltaram a crescer vertiginosamente. Ademais, não há uma imediata e comprovada relação entre o desarmamento civil e a redução da violência. Muitos países possuem ampla liberdade para portar e possuir armas de fogo, e mesmo assim os índices de criminalidade são baixos ou quase inexistentes (Suíça, Uruguai, Estados Unidos). De outra sorte, outros países após o endurecimento nas leis de restrição às armas sentiram efeitos significativos no aumento da criminalidade (por exemplo, a Inglaterra220). Outro argumento defendido pelo Ministro Gilmar Mendes é de que a arma de fogo possui danosidade intrínseca. Entende-se que esteja correto, todavia, só pode ser considerada arma de fogo aquele conceito que já esmiuçamos (arma municiada ou com munição à disposição imediata, e em condições de funcionamento), só nesses casos se vislumbrará a inerente lesividade do instrumento. Contrariamente ao que sustenta o Ministro Gilmar Mendes, crê-se que não se deve deslocar a aferição da ausência de significado lesivo da conduta apenas ao caso concreto, mas principalmente em linha diretiva de ilegitimidade normativa, pois somente assim se obsta a insegurança jurídica que advém das injustas prescrições normativo-penais investigadas. Diante de tudo isso, reafirma-se que a arma desmuniciada e sem munição ao pronto alcance do agente, ou o acessório e a munição isoladamente não põem em risco o bem tutelado, são inofensivos, assim como armas sem condições de funcionamento e simulacros de armas de fogo. 219

Mapa da Violência no Brasil 2014: Jovens do Brasil. Centro Brasileiro de Estudos LatinoAmericanos. Disponível em: Acesso em: 13 de set. 2014. 14:23:34. 220 Disponível em

77

O controle de armas não pode ser reservado à matéria penal quando apenas visa o controle administrativo, mas somente quando há ofensa ao bem jurídico tutelado objeto da norma. Por fim, firma-se que tais objetos ainda que possam ter poder intimidação não são armas de fogo propriamente ditas, porque sem poder de disparo. A criminalização deve levar em conta não a intimidação, mas a potencialidade de perigo de lesão ao bem jurídico.

78

9.

O CONTROLE JURISDICIONAL SOB NORMAS PENAIS INVÁLIDAS –

QUAL A SOLUÇÃO MAIS EFICAZ? A resposta para solver as inconstitucionalidades deveria partir do legislativo, mas não parece que isso ocorrerá tão brevemente. Consoante já foi dito, há dois projetos legislativos que tramitam no Congresso Nacional, sendo que apenas o projeto de lei n.º 3.722/2012 pode oferecer alguns avanços para as questões levantadas aqui, principalmente no que diz com a supressão do acessório e da munição como objeto material do porte e da posse ilegal de arma de fogo de uso permitido e restrito. No entanto, o sobredito projeto mantém a posse de arma de fogo como ilícito penal, e criminaliza condutas como a “ofensa com simulacro ou arma de brinquedo” e “omissão na comunicação da perda da posse”, por exemplo, comportamentos que não oferecem nenhuma ofensa ao bem jurídico segurança coletiva, e se amoldam no conceito de “administrativização” do direito penal. Resta, então, ao judiciário o encargo de solver os problemas existentes, expurgando do ordenamento as inconstitucionalidades. Malgrado o STF tenha se manifestado pela constitucionalidade formal da Lei n.º 10.826/2003 (ADI n.º 3112) e no HC n.º 10.208-7 tenha apontado para a legitimidade da criminalização do porte de arma desmuniciada, decisões importantes do Supremo Tribunal Federal já apontaram para a inconstitucionalidade de algumas condutas por ausência de ofensividade ao bem protegido e por ofensa a outros princípios fundamentais de direito penal. Nesse sentido cita-se a ADPF n.º 54, a qual declarou inconstitucional a interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo possa ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade e do direito à saúde

221

.

De modo análogo, aponta-se o Recurso Especial n.º 583.523, que firmou não ter sido recepcionado o artigo 25 da Lei de Contravenções Penais (posse de gazuas, chaves falsas ou alteradas ou instrumentos empregados usualmente na prática de crime de furto) pela Constituição Federal de 1988. No tocante a este último, no mérito, o STF destacou que: 221

Disponível em: Acesso em 10 de set. 2014. 20:45:56.

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o princípio da ofensividade deveria orientar a aplicação da lei penal, de modo a permitir a aferição do grau de potencial ou efetiva lesão ao bem jurídico protegido pela norma. Observou-se que, não obstante a contravenção impugnada ser de mera conduta, exigiria, para a sua configuração, que o agente tivesse sido condenado anteriormente por furto ou roubo; ou que estivesse em liberdade vigiada; ou que fosse conhecido como vadio ou mendigo. Assim, salientou-se que o legislador teria se antecipado a possíveis e prováveis resultados lesivos, o que caracterizaria a presente contravenção como uma infração de perigo abstrato. Frisou-se que a LCP fora concebida durante o regime ditatorial e, por isso, o anacronismo do tipo contravencional. Asseverou-se que a condição especial “ser conhecido como vadio ou mendigo”, atribuível ao sujeito ativo, criminalizaria, em verdade, qualidade pessoal e econômica do agente, e não fatos objetivos que causassem relevante lesão a bens jurídicos importantes ao meio social. Consignou-se, no ponto, a inadmissão, pelo sistema penal brasileiro, do direito penal do autor em detrimento do direito penal do fato. No que diz respeito à consideração da vida pregressa do agente como elementar do tipo, afirmou-se o não cabimento da presunção de que determinados sujeitos teriam maior potencialidade de cometer novas infrações penais. Por fim, registrou-se que, sob o enfoque do princípio da proporcionalidade, a norma em questão não se mostraria adequada e necessária, bem como afrontaria o subprincípio da 222 proporcionalidade em sentido estrito. Grifei

Conforme demonstrado na análise jurisprudencial vê-se involução na argumentação jurídica da Corte Constitucional no que tange às modalidades questionadas do Estatuto do Desarmamento, já que majoritariamente o STF tem patrocinado a legitimidade destas condutas. A necessidade de uma postura garantidora dos direitos fundamentais imersos na Constituição Federal é urgente. Consigna-se que não se está a falar de ativismo judicial, mas de uma certa ousadia desejável e, que, aliás, se espera de um tribunal constitucional, o qual carrega consigo o múnus de defender a Constituição Federal e os princípios a ela inerentes. O STF já ousou, como se viu nas decisões acima. Mas precisa fazer isso novamente, declarando a inconstitucionalidade nos casos de ausência de periculosidade ao bem jurídico, que configuram afronta ao princípio da ofensividade e aos dos demais princípios expostos, e não podem justificar, sob a perspectiva constitucional, uma afetação à liberdade individual.223 Propõe-se, pois, para sanar as inconstitucionalidades mencionadas, a apreciação do Supremo Tribunal Federal por meio da arguição de descumprimento 222

Informativo 722 do STF. Disponível em: Acesso em: 12 de set. 2014. 23:07:23. 223 FELDENS, Luciano. , op. cit., p. 67.

80

de preceito fundamental, prevista no artigo 102, § 1º, da Constituição Federal, e regulada pela lei n.º 9.882/1999224, cujo artigo primeiro refere que “terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”. Embora nem a lei, nem o STF tenham definido um conceito específico acerca do que seja preceito fundamental, a doutrina tem feito sugestões pertinentes. Luiz Roberto Barroso afirma que a expressão preceito fundamental “importa o reconhecimento de que a violação de determinadas normas – mais comumente princípios, mas eventualmente regras – traz consequências mais graves para o sistema jurídico como um todo”225. Na mesma senda aponta Dirley da Cunha Júnior: Nesse contexto, pode-se conceituar preceito fundamental como toda norma constitucional - norma-principio e norma-regra - que serve de fundamento básico de conformação e preservação da ordem jurídica e politica do Estado. São as normas que veiculam os valores supremos de uma sociedade, sem os quais a mesma tende a desagregar-se, por lhe faltarem os pressupostos jurídicos e políticos essenciais. Enfim, e aquilo de mais relevante numa Constituição, aferível pela nota de sua indispensabilidade. E o seu núcleo central, a sua alma, o seu espirito, um conjunto de elementos que lhe dão vida e identidade, sem o qual não ha falar em Constituição. E por essa razão que o constituinte deliberou por destinar aos preceitos fundamentais uma proteção especial, através de uma ação também 226 especial.

Assim, semelhantemente como decidiu na ADPF n.º 54 apontando os preceitos lesionados(dignidade da pessoa humana, legalidade, direito à saúde) frente à conduta analisada, entende-se que STF deve abordar as modalidades apontadas como inconstitucionais. Os legitimados para propor a referida ação são mesmos que estão aptos a ingressar com a ação direta de inconstitucionalidade (ADI ou Adin), conforme dispõe o artigo 2º da Lei n.º 9.882/1999, quais sejam o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; o Governador de Estado ou do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem

224

Disponível em: Acesso em: 12 de set. 2014. 20:43:09. 225 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1.380. 226 JÚNIOR, Dirley da Cunha. Controle de Constitucionalidade: Teoria e Prática. 4ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2010. p. 528.

81

dos Advogados do Brasil, o partido político com representação no Congresso Nacional e a confederação sindical ou a entidade de classe de âmbito nacional. Por fim, observa-se que não se olvida da subsidiariedade da mencionada ação constitucional, conforme previsão no artigo 4º, §1º, da Lei n.º 9.882/1999, mas entende-se que as normas aqui apontadas pela especialidade da violação dos preceitos fundamentais e, considerando que por meio da ADPF a irregularidade pode ser sanada de forma ampla geral e imediata, é a ação cabível inequivocamente.

82

10.

CONCLUSÃO O controle de armas de fogo é essencialmente necessário para a proteção da

segurança da coletividade, sobretudo, no Brasil, onde os índices de violência por forças dos mencionados instrumentos se alargam anualmente. As modalidades que foram minuciosamente investigadas até se chegar ao apontamento acerca daquelas consideradas inconstitucionais refletem o esforço do legislativo para efetivar essa missão. Criminalizando o porte e a posse de arma de fogo, acessório e munição por meio do risco abstrato e escolhendo como bem jurídico protegido para essas normas a segurança pública, ingenuamente, o legislador acreditou que iria conter a criminalidade no país. Falhou o legifero ao acreditar nessa promessa, assim como falhou ao desconsiderar os princípios fundamentais de direito penal na construção normativa das modalidades apontadas como inconstitucionais. Essa tendência, aliás, tem sido ferramenta recorrente do legislador pátrio em matéria penal, que busca direcionar para as normas penais a resolução de problemas da gestão pública, como se a ameaça punitiva por si só fosse o remédio para a patologia setorial. Dessa forma, ferindo letalmente o direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana. Acatar os princípios de direito penal é premissa básica para a construção de um injusto penal válido, digno de um Estado que prima pelas garantias asseguradas na Constituição Federal. Daí porque o combate preventivo por meio da norma penal em relação ao surgimento de novos riscos apenas como mero exercício formal do poder legiferante, mitigando ou mesmo suprimindo essas garantias, é grave e irremediável afronta aos primados de direito penal esculpidos ao longo do desenvolvimento do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, toda norma que ofender esses princípios deve ser prontamente rechaçada do ordenamento jurídico penal. Não se pode permitir a manutenção de condutas que devem ser reservadas para o controle do direito administrativo, consoante amplamente se demonstrou, e que visam inaugurar um modelo de direito penal nefasto, pois buscam a sua “administrativização”.

83

Expurgar urgentemente do ordenamento jurídico as inconstitucionalidades mencionadas é tarefa dirigida ao Poder Judiciário, em especial, ao Supremo Tribunal Federal, a quem cabe o controle da constitucionalidade das normas quando há flagrante afrontada a preceitos fundamentais. Assim, resta reafirmar a solução desenvolvida, qual seja o saneamento das inconstitucionalidades via ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental, já que somente por meio desta ação constitucional será possível definitivamente solucionar a problemática que aflige as modalidades impugnadas frente aos princípios penais fundamentais.

84

11. REFERÊNCIAS

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Penal Brasileiro. Disponível em: Acesso em: 06 de jun. 2014. 13:58:09. _____________.Código Penal de 1890. Disponível em: Acesso em: 29 de jun. 2014, 20:34:30. _______________.Constituição

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85

_______________.Decreto

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n.º 15.475/1922. Disponível em: Acesso em: 30 de jun. 2014, 21:23:05. _________________.Decreto

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n.º 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento). Disponível em:
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