Da Musa à Ceifeira: A Mulher Como Inspiração em Pessoa

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Um sistema de filosofia criado pelo filósofo ateniense Epicuro de Samos que propunha uma vida de contínuo prazer e um enfoque na felicidade, onde o prazer e a felicidade são sinónimos com a ausência de dor e medo.
Um Sistema filosófico grego criado por Zenão de Cício que aconselhou a austeridade de sentimento para evitar dor.
O manuscrito 122 de Pessoa é no apêndice do estudo da métrica em Reis por Fernando Lemos (Lemos, 1993: 93-128). É consiste num trabalho quase obsessivo de mapear a incidência dos acentos intensivos de poemas clássicas para reproduzir ou adaptar tal incidência em português, ando muito mais longe de qualquer poeta neoclássico em Portugal.
The subjectivity of the enunciation é um termo de Anthony Easthope (Easthope, 1983)
Não significa que Nietzsche, Pessoa, ou Reis acreditarem ou seguirem um Deus cristão.
Referência ao poema O poeta é um fingidor por Pessoa-ortónimo.


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Da Musa à Ceifeira: A Mulher Como Inspiração em Pessoa
Geração de Orpheu – MELCI022


Estudante – Lorna Marie Kirkby
Docente – Pedro Eiras






Da Musa à Ceifeira: A Mulher Como Inspiração em Pessoa.
Desde a antiguidade a mulher é usada na poesia como uma concretização dos desejos do eu-lírico masculino. Assim, a mulher idealizada aparece como 'musa', ou fornecedor de inspiração, na voz do poeta masculino. O papel da musa mudou com as correntes de arte e literatura. Na antiguidade, as nove musas eram deusas que 'cantavam' inspiração aos poetas que traduziam as canções em palavras concretas na poesia lírica. No renascimento, a figura da musa sofre a concretização terrena na forma das mulheres amadas e desejadas – a Laura de Petrarca, a Beatriz de Dante, até mesmo a D. Maria de Camões – e é naquela época que começaram a aparecer as imagens idealizadas e eróticas da mulher. Na literatura romântica, os poetas mudaram outra vez a natureza da musa, e celebravam a mulher angélica, bucólica, e de certo modo inacessível na obra deles. A obra de Fernando Pessoa é bem conhecida pelas alusões intertextuais, incluindo os dois poemas que são o enfoque do meu estudo: Ela Canta, Pobre Ceifeira por Pessoa-ortónimo, e Vem sentar-te comigo, Lídia, à Beira do Rio pelo heterónimo Ricardo Reis. Ela Canta, Pobre Ceifeira, tendo fortes ligações com o poema The Solitary Reaper pelo poeta romântico inglês William Wordsworth, e Vem sentar-te comigo, por Ricardo Reis – o poeta neoclássico que quer recriar a poesia do poeta clássico Horácio – entram, portanto, em diálogo directo com uma tradição de poesia lírica em que a mulher fornece a inspiração. Neste ensaio vou analisar a maneira como Pessoa faz uso das mulheres no âmbito do modernismo português. Primeiro, vou considerar a posição dos poemas na tradição literária da musa (clássica e romântica) e as funções intertextuais dentro dos poemas. Depois, vou tratar das vozes e corpos das mulheres e a maneira em que os poemas escolhidos contradizem os papéis da musa-amante clássica e da musa romântica. Finalmente, vou investigar a mudança no fornecimento da inspiração no modernismo e tentar de entender as funções das mulheres nos poemas em que não aparentam possuir uma função de inspiração.
Fernando Pessoa colocou-se dentro da tradição da poesia da musa no ensaio A Nova Poesia Portuguesa quando falou da criação dum 'supra-camões' gerado por um movimento literário que "delocará para segundo plano a figura, até agora primacial, de Camões" (Pessoa, 2005: 367). Isto é significante não só por causa da poesia da musa de Camões, mas também da afirmação de Camões de ser um tipo de Supra-Petrarca-Dante numa estrofe onde faz referência direita às musas italianas:
"(…) o qual toda a Toscana poesia,
que mais Febo restaura,
em Beatriz nem em Laura nunca via;" (Camões, 2012: 202/203)
Nesta estrofe, Camões promete de suplantar Petrarca e Dante com a poesia da musa. Um Supra-Camões deve ser, efectivamente, um Supra-supra-Petrarca. A relação entre Pessoa e Camões (e entre Camões e os poetas italianos) segue a teoria de Harold Bloom; 'a angústia de influência', onde os poetas contemporâneos devem ultrapassar os poetas passados numa luta edipiana a fim de se liberar dos seus pais literários e obter o próprio sucesso poético:
"Poets, confronting the imminence of death, work to subvert the immortality of their precursors, as though any one poet's afterlife could be metaphorically prolonged at the expense of another's" (Bloom, 1997: 151)
Segundo Bloom, a relação edipiana entre o poeta e os seus antepassados poéticos está sempre presente, contudo, é particularmente notável na poesia de Ricardo Reis e no poema Ela Canta, Pobre Ceifeira porque entram em diálogo directa com poetas específicos do passado.
Na criação de Reis, Pessoa modelou a poesia na poesia lírica do poeta romano Horácio, criando uma imagem dum poeta estritamente neoclássico com crenças fortes nos valores de epicurismo e estoicismo. O facto de Horácio ser o modelo das odes de Reis é sobretudo evidente nos aspectos formais que são muitas vezes a imitação perfeita da forma estrófica, lírica e métrica das odes de Horácio. Estudando as folhas do envelope 122 de Fernando Pessoa, vemos que Pessoa analisou minuciosamente a métrica quantitativa e os acentos intensivos da Ode I, 11 a Leucônoe de Horácio, e consegui dominar os métodos de aclimatação de medidas clássicas à língua portuguesa até poder efectuar uma simulação vernácula exacto do número e posição dos acentos intensivos do poema clássica no seu poema Vem sentar-te comigo, Lídia.
No entanto, a reprodução perfeita fica a um nível superficial de forma e é no conteúdo do poema que Pessoa-Reis se afasta do antepassado poético. Na poesia de Horácio podemos identificar duas inspiradoras: a sua própria musa-deusa principalmente interessada na poesia de amor, e a musa-amante, Lalange. A poesia de Horácio é, portanto, baseada no amor. Para Reis, contudo, isso é um ponto que não conseguiu replicar. Uma presumível razão por isso é o estoicismo e o facto de ele querer evitar fortes emoções, ao fim de evitar a dor, mas também uma base poética emocional não concorda com a sua definição da natureza essencial de poesia.
"Um poema é a projecção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras" (Pessoa, 2005: 143)
Na poesia de Reis, Pessoa replicou as odes horacianas na proporção da criação de três musas-amantes, no entanto, não há uma base emocional de amor para realmente validar a relação poeta-amante. Esta falta de emoção manifesta-se no poema Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio na quarta estrofe em que Pessoa-Reis exprime explicitamente a falta dum série de emoções evocadas pelo Horácio "Sem amores, nem ódios, nem paixões, que levantam a voz". Como explicado por Reis na sua definição da poesia, a emoção não é a base do poema, mas as ideias, e neste caso é a ideia de morte inevitável exprimida na mesma estrofe "… porque se os tivesse o rio sempre correria,/ E sempre iria ter ao mar", onde o rio significa a passagem da vida e o mar é a morte, a destinação inevitável do rio e da vida. Então, trata do mesmo tema da ode clássica de qual vem a frase Carpe Diem, mas em vez de aproveitar o dia, Reis limita as suas emoções num esforço de autopreservação estóica.
Também numa relação edipiana, Pessoa-ortónimo evoca e entra em diálogo direto com The Solitary Reaper do poeta de romanticismo inglês, William Wordsworth. Nos poemas, ver e ouvir a ceifeira desencadeou uma reflexão sobre a subjectividade e a consciência do eu-lírico (o poeta). Não obstante, apesar das semelhanças óbvias entre os poemas de Pessoa e Wordsworth, não é uma imitação mas uma correcção que corresponde ao termo de Harold Bloom "Clinamen", uma das seis relações revolucionárias que Bloom usa para definir as maneiras em que os poetas posteriores agem em relação aos poetas precedentes:
"A poet swerves away from his precursor, by so reading his precursor's poem as to execute a clinamen in relation to it. This appears as a corrective movement in his own poem, which implies that the precursor poem went accurately up to a certain point, but then should have swerved, precisely in the direction that the new poem moves." (Bloom, 1997: 14)
Pessoa aumentou o choque apocalíptico de autoconsciência que se naturalizou em Wordsworth. O enfoque na autoconsciência é evidente na carta para Armando Côrtes-Rodrigues em que Pessoa cita como fonte de orgulho um excerto que destaca o papel de autoconsciência:
"Amo especialmente a última poesia, a da Ceifeira onde consegui dar a nota paúlica em linguagem simples. Amo-me por ter escrito
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso!..." (Pessoa, 1999: 146)
Assim como destacando o tema de autoconsciência, Pessoa absorve o tema e o aumento do tema no seu próprio movimento, o paulismo, pondo-o em competição com a autoconsciência de romantismo, portanto corrigindo e simbolicamente matando o seu precursor edipiano.
Na sua reescrita do poema de Wordsworth, Pessoa muda radicalmente a figura da musa romântica, e Ela canta, pobre ceifeira permite uma leitura baseada na mudança das relações de género para entender como a apresentação da mulher deixou para trás a musa romântica. Segundo Rachel Blau DuPlessis a relação entre a musa romântica, como em The Solitary Reaper, é baseada nos conceitos da voz lírica, e a subjectividade da enunciação. O uso da voz lírica determina o poder que o poeta masculino (o eu-lírico) tem sobre a musa feminina:
"(…) the intractable nature of humanist subjectivity – that "I" of the enunciation, who is also an "I" of the enounced, what one might call (…) the subjectivity of "powetry" (a neologismo indicating unquestioned poetry and unquestioned power relations). This double subjectivity corresponds to the construction of a silent, often female, figure in the enounced." (DuPlessis, 2006:106)
Então, no poema de Wordsworth, apesar de cantar, a única voz através da qual podemos ouvir e entender a ceifeira é o eu-lírico masculino, e no fim do poema a interiorização da voz feminina na voz masculina é evidente nos versos "The music in my heart I bore,/ Long after it was heard no more" (Gill, 2010: 254). Portanto, em possuindo a voz da ceifeira, o poeta coloniza-a, e exerce poder sobre ela. Pessoa, contudo, transforma a ceifeira em mais do que a silenciosa figura no enunciado como descrito por DuPlessis. Em Ela Canta, Pobre Ceifeira o poeta nunca consegue possuir a voz da ceifeira. Contrapomos os versos de Wordsworth em cima com os versos de Pessoa, "Perrama no meu coração/ A tua incerta voz ondeando!". Não há possessão ou colonização nenhuma, mas uma imploração do eu-lírico à ceifeira para deixar a voz entrar no coração do poeta enquanto a voz do Solitary Reaper já esta colonizada pelo coração do poeta. Esta imploração contínua até os últimos versos de Ela Canta, Pobre Ceifeira; "(…) Tornai/ Minha alma a vossa sombra leve!/ Depois levando-me, passai!".
Em Wordsworth não há apenas uma colonização da voz da ceifeira, mas também há uma colonização do corpo, ou de certa forma uma violação da ceifeira virgem (a palavra 'Maiden' no último estrofe afirma a virgindade). Jones liga o poema de Wordsworth com a poesia da 'pastourelle' na maneira como o eu-lírico erotiza a imagem da ceifeira e "comes across a lone woman in the fields and pauses to "satisfy" himself before moving on" (Jones, 1991: 270). Esta erotização é evidente nas insinuações sexuais e imagens presentes no poema assim como a violação simbólica no acto de 'colonizar' a voz da mulher – "And o'er the sickle bending", "as I mounted up the hill" – enquanto todo o pensamento e filosofia pertence ao poeta.
Em Ela Canta, Pobre Ceifeira, Pessoa dá à ceifeira conhecimento e uma tendência de filosofia igual do que o poeta. Por exemplo, a ceifeira pessoana não é a virgem vulnerável de Wordsworth, mas é "cheia/ De alegre e anónima viuvez"; portanto Pessoa está atribuindo um conhecimento de sexualidade e de morte á ceifeira que minimiza a sua vulnerabilidade em face ao poeta poderoso. A tendência de filosofia é evidente na terceira estrofe "canta como se tivesse/ Mais razão para cantar que a vida". Como o poema e os pensamentos metafísicos do poeta, a canção da musa transcende o domínio da vida real para atingir um outro plano de consciência, o oposto da ceifeira de Wordsworth que só existe como um objecto de desejo. Portanto, na sua correcção de Wordsworth, Pessoa negou a natureza da relação poeta-musa romântica para que o poeta não consiga possuir a voz nem o corpo.
A representação das mulheres em Reis é completamente diferente, mas também trata-se duma alteração radical do papel da musa. Enquanto a musa romântica fosse silenciosa e uma mera representação do bucólico, a musa clássica era a voz de inspiração. Horácio tinha a sua musa-deusa própria, e a sua musa-amante Lalange, que eram presente em voz assim como esteticamente na poesia do poeta clássico. A relação entre Reis e as suas presumíveis musas-amantes, contudo, foi completamente atípica.
Em quase toda a poesia de Reis as musas Lídia, Cloe e Neera não têm nenhuma voz, nem movimento, nem rosto. Há, na poesia de Reis, um sentimento que as musas-amantes deles não são mulheres, mas dispositivos retóricos para apoiar as reflexões epicuristas, estóicas e metafísicas do poeta. Por exemplo, em Vem sentar-te comigo, Lídia as referências á Lídia são sempre acompanhando as acções de Reis – "amemo-nos tranquilamente", "colhamos flores" – ou são descrições do efeito de Reis sobre a sua amante – "Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova". Reis está a usar Lídia como mero pretexto para falar do amor e validar o discurso de poeta clássico que Reis se pretende. As musas-amantes são, de facto, tão passageiras que um outro heterónimo pessoano, Álvaro de Campos, questiona a existência delas: "As figuras de amadas, que aliás não existem como figuras, nos versos de Ricardo Reis são abstracções às avessas, ou vistas do avesso." (Lopes, 1990: 417). Há muitos críticos que vêem esta observação da obra de Reis como uma insinuação sobre a sexualidade de Reis.
De facto, não há nenhuma evidência de nenhuma sexualidade na obra de Reis, simplesmente porque ao contrário dos seus precursores clássicas, o eu-lírico não entra em nenhum relacionamento sexual ou íntimo. Isto é explícito na quinta estrofe de Vem sentar-te comigo Lídia; "Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,/ Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,". O único contacto físico, que começa na primeira estrofe, – "(enlacemos as mãos)" – é marcado como sendo de pouca importância pelo uso de parêntesis, e também dura pouco tempo porque um estrofe mais tarde "Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos./ Quer gozemos quer não gozemos, passamos como o rio." Portanto, a evitação de relacionamentos sexuais ou de contacto físico é explicado pelo medo estóico, o oposto do Carpe diem horaciano, e Reis usa o breve contacto com Lídia apenas como pretexto para falar da natureza passageira da vida. Este atitude face ao amor lembra do conceito de amor moderno de Roland Barthes, onde linguagem e o ato de falar ou escrever de amor se trata dum afastamento do ato verdade de amar:
"Parler amoureusement, c'est dépenser sans terme, sans crise; c'est pratiquer un rapport sans orgasme. Il existe peut-être une forme littéraire de ce coïtus reservatus: c'est marivaudage" (Barthes, 1977: 87)
A ideia de praticar uma relação sem orgasmo e o termo coïtus reservatus são aptos para definir a abordagem de ambos Pessoa-Reis e de Pessoa-ortónimo. Tanto em Vem sentar-te comigo, Lídia como em Ela Canta, Pobre Ceifeira o sentimento e a possessão amorosa presentes na poesia dos precursores edipianos são eliminados. Se Camões era o maior poeta do amor na língua portuguesa, Fernando Pessoa, o Supra-Camões, seria o maior poeta do não-amor.
Se a inspiração não vem duma musa, donde veio a inspiração para Ela Canta, Pobre Ceifeira e Vem sentar-te comigo Lídia? A resposta está no poema de Álvaro de Campos sobre o poeta moderna, Os antigos invocavam as Musas: "Os antigos invocavam as Musas,/ Nós invocamo-nos a nós mesmos" (Pessoa, 1993: 73). Os poetas de antiguidade, então, representavam a voz de colectividade, trazendo a palavra das deusas até ao povo como um agente divino, mas o poeta moderno invoca-se a si mesmo, trazendo a sua poesia do interior do seu próprio 'eu'. A inspiração do poeta moderno é então fundamentalmente interior e não pode ser representado pelas figuras externas das musas nos poemas. Com a interioridade do poeta moderno a relação com o mundo é questionado, que lida a um questionamento também da relação poeta-musa.
Os antigos invocavam as Musas lê-se como uma lamentação da ausência da musa e a substituição dela com o corpo diminuído do poeta moderno, o que é evidente em Ela Canta, Pobre Ceifeira. No poema de Pessoa-ortónimo, o poeta não consegue entender a canção da ceifeira, que fica meramente o "som que ela tem a cantar". Há uma diferença entre o que ela canta – "canta como se tivesse/ Mais razões para cantar que a vida" – e o que o poeta entende da canção da ceifeira – "Ah canta, canta sem razão" – precisamente porque o conhecimento da canção da ceifeira e a relação com o exterior estão bloqueados pela autoconsciência e o eu-moderno do poeta. O poder de entender a mulher e fazê-la uma musa é eliminado pelo facto que a 'musa-moderna' é o poeta em si mesmo. Ela canta, pobre ceifeira, como Os antigos invocavam as Musas também lamenta a insuficiência da musa-moderna (o poeta) na forma da sua descrença na sua própria personalidade evidente nas últimas duas estrofes "Ah, poder ser tu, sendo eu!" e "Tornai/ Minha alma a vossa sombra leve".
Mas Ricardo Reis deve ser um poeta neoclássico, que precisa das musas para escrever as odes. Eu proponho, contudo, que Reis não é poeta neoclássico. Já sabemos que Reis é um heterónimo ou máscara de Fernando Pessoa, mas também nas suas divergências da poesia clássica, e a sua maneira superficial de replicar a forma da poesia clássica perfeitamente sem se dar completamente, corpo e alma, ao carpe diem, o neoclassicismo de Reis parece ser uma outra máscara. As musas de Reis são subterfúgio para a sustentação duma pose neoclássica dentro de qual há um poeta moderno, e isto estende também às emoções dele (as poucas que se-permite). Reis o poeta moderno é presente na descrição de Frederico Reis:
"A obra de Ricardo Reis, profundamente triste, é um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer." (Pessoa, 2005: 140)

Aqui o neoclassicismo de Reis é descrito como uma construção calculada – "um esforço lúcido e disciplinado" - em vez duma crença natural. O sofrimento de Reis, também não é propriamente neoclássico, como explicado no mesmo texto de Frederico Reis:
"(…) quanto à felicidade, não a pode ter quem está exilado da sua fé e do meio onde a sua alma devia viver; e quanto à calma, quem vive na angústia complexa de hoje, quem vive sempre à espera da morte, dificilmente pode fingir-se calmo" (Ibid.)
Para mim, a combinação dos termos 'exilado da sua fé', 'do meio onde a sua alma devia viver' e 'na angústia complexa de hoje' revelam um sofrimento de natureza completamente moderno. Lembro-me da obra de Nietzsche, que descreveu a direcção do homem moderno: "God is dead! God remains dead! And we have killed him! How can we console ourselves, murderers of all murderers!" (Nietzsche, 2001: 120) A morte de Deus trata-se duma perda de fé (exílio de fé), a resultante falta de orientação moral (meio onde a sua alma devia viver) e a crise do homem moderno (angústia complexa de hoje). Nietzsche refere ao dever do homem moderno de encontrar uma outra bússola moral para dirigir as vidas e acções de humanidade.
Segundo Moysés "O sofrimento dito se fica como máscara do sofrimento não dito" (Moysés, 2001: 25) Então, para esconder a sua "angústia complexa de hoje" Pessoa-Reis construiu uma máscara de sofrimento. Escondendo-se dentro de estoicismo, Reis fica perturbado pelo momento presente sentindo-se desterrado, alienado, e desorientado. A relação com as musas que se desvia das normas clássicas e neoclássicas, onde a poesia de amor não se converte nem em acções nem em emoções, revela a natureza falsa da máscara neoclássica. Dentro do poema Vem sentar-te comigo, Lídia entre os versos sobre a preocupação e autopreservação estóicas, há um traço da crise do homem moderno "Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,/ pagãos inocentes da decadência". Neste verso, o eu-lírico está no presente, não está pensando no futuro ou na morte, nem na filosofia passada, nem no hipotético, mas está a lamentar a situação presente e a decadência duma humanidade sem fé. As suas ditas musas-amantes – sem vozes, sem rostos, e sem gestos – são, portanto, parte da máscara do poeta neoclássico que Reis usa para fugir da decadência e desterramento que encontra na sociedade moderna. Reis é um fingidor, e Lídia, em Vem sentar-te comigo, Lídia é puro fingimento para esconder Reis, a máscara do poeta modernista Pessoa, dentro da máscara do poeta neoclássico.
Como Pessoa-ortónimo em Ela Canta, Pobre Ceifeira Pessoa-Reis exprime uma inabilidade de amar ou estabelecer relações com outras. As mulheres de Pessoa, apesar de ocupar o lugar da musa romântica e da musa clássica, não são musas e não fornecem inspiração nenhuma. Pessoa usa as mulheres como parte dum diálogo com os seus precursores, assim negando o papel tradicional da mulher em poesia. A ceifeira não é uma musa romântica, que fornece inspiração no seu papel de objecto de desejo, e o eu-lírico não tem acesso á inspiração por causa da impossibilidade de possessão e colonização do corpo e a voz dela. Lídia também não pode ser lida como uma verdadeira musa clássica; a musa clássica canta inspiração ao poeta, mas Lídia é apenas uma máscara, parte dum subterfúgio do poeta fingidor que não tem palavras para cantar ou passar ao poeta. O fundo da impossibilidade de ter uma musa feminina na obra de Pessoa é a natureza do eu-moderno e o papel do poeta modernista. Não é possível tirar inspiração duma fonte exterior quando olha só dentro de si. Os dois poemas, Ela Canta, Pobre Ceifeira e Vem sentar-te comigo, Lídia são marcados pela angústia do poeta modernista – a extrema autoconsciência e falta de confiança do poeta no primeiro, e o uso das máscaras como projecção do eu-moderno fragmentado no segundo. É este modernismo baseado no olho interior e na incerteza que fundamentalmente prejudica a capacidade do poeta de formar uma voz de autoridade, como a subjectividade da enunciação, que é preciso no estabelecimento duma relação poeta-musa. Acabo com as palavras de Álvaro de Campos "Que Musa!"

Bibliografia
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