Da Música para a Arte: crianças e iniciação artística na EMIA

July 21, 2017 | Autor: Sandra Cunha | Categoria: Sociologia da Infância, Educação Musical, Ensino De Artes
Share Embed


Descrição do Produto

Da Música para a Arte: crianças e iniciação artística na EMIA

Sandra Mara da Cunha Faculdade de Educação – USP

1. Introdução Arte e infância habitam a EMIA, Escola Municipal de Iniciação Artística de São Paulo, espaço educativo não formal frequentado por crianças de cinco a doze anos de idade. Nesta escola pública, cujo acesso é feito mediante sorteio, crianças de classes sociais e culturas diferentes empreendem suas primeiras descobertas na música, no teatro, nas artes visuais e na dança. É do encontro entre as propostas lançadas por artistas-professores e a natureza investigativa, criadora e brincante das crianças que emergem trabalhos esteticamente ricos e interessantes, e que se dão como resultado da experimentação, da pesquisa e das escolhas que levam à aquisição do conhecimento em Arte. São essas apropriações de saberes pelas crianças que trago à tona neste ensaio, para extrair delas seus elementos essenciais que são a criação e o envolvimento das crianças nos processos do fazer artístico. Minha intenção com esta reflexão é ressaltar a importância destes elementos em todos os âmbitos de ensino e aprendizagem na EMIA, posto que eles colocamse como princípios artístico-pedagógicos norteadores do trabalho. Para tanto, é necessário que os professores sejam observadores e ouvintes atentos das crianças, com olhares e escutas feitas por meio de múltiplos canais perceptivos. Nesta empreitada, trago dados sobre as culturas infantis, tema de estudos do campo da Sociologia da Infância. Tais ideias podem jogar luz sobre os processos criativos que vivem no cotidiano da EMIA e propor que os avanços nas práticas docentes se deem de maneira cada vez mais respeitadora e próxima das crianças.

Esclareço que as ideias e pontos de vistas expressos neste texto são pessoais e decorrem da minha atuação enquanto professora de música nesta escola de 2007 a 2012 e, desde o início deste ano de 2014 na condição de assistente da direção, como coordenadora artístico-pedagógica. Esta experiência pode ser mais bem pensada e compreendida a partir dos estudos empreendidos nos últimos três anos sobre a Sociologia da Infância, como parte da minha pesquisa de doutorado.

2. A EMIA A EMIA-SP, Escola Municipal de Iniciação Artística de São Paulo pertencente à Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, está vinculada ao Departamento de Expansão Cultural – DEC. Foi fundada no ano de 1980 e está localizada no bairro do Jabaquara, ao lado da estação Conceição do metrô, distribuída por três casas sem muros e sem portão que ficam dentro do Parque Lina e Paulo Raia. No curso regular da EMIA, nos dois primeiros anos as crianças têm duas horas de aula por semana, com dois professores de linguagens artísticas diferentes, nas chamadas “Duplas”. Com sete e oito anos as aulas das crianças com as “Duplas” passam a ter a duração de três horas. Tais cursos, como são nomeadas essas aulas, são realizados com base na integração entre linguagens artísticas, que chega à potência máxima no “Quarteto” que é a próxima etapa de ensino. O “Quarteto” é o curso que tem a duração de dois anos, com aulas de três horas e meia por semana e quatro professores que trabalham com até trinta crianças de nove e dez anos de idade, cada um especialista em uma área artística. Nos dois últimos anos na EMIA, as crianças escolhem uma das modalidades oferecidas para empreenderem aprofundamentos em conteúdos específicos e são orientadas por um único professor em aulas que duram três horas. Em paralelo ao curso regular, a partir de sete anos de idade as crianças têm ainda a seu dispor cursos optativos em dança, teatro e artes visuais, em agrupamentos de mesma idade ou de idades misturadas. Em música, existe a possibilidade do estudo de um instrumento musical, em aulas individuais ou em grupos. Turmas de percussão, coral, orquestra infantojuvenil e oficinas em todas as áreas são também opções oferecidas a alunos e ex-alunos. Aos

pais e à comunidade do entorno da EMIA também são ofertadas oficinas diversas ao longo do ano. As “Duplas” e os “Quartetos” buscam a integração entre linguagens, em ações conectadas com a arte contemporânea e seus desmanches de limites entre áreas. Os grupos são constituídos por formações múltiplas de professores, e suas diferentes concepções acerca da arte e seu ensino para crianças geram interpretações variadas e por vezes até mesmo conflitantes para o que seja a “integração de linguagens”. Chegar a um denominador comum acerca do termo e seus significados postos em prática na sala de aula, sem perder a riqueza que a pluralidade de ideias traz para a formação artística das crianças, constitui-se um grande desafio para o “Quarteto” que neste ano de 2014 completa vinte anos de existência. Os cursos optativos, por sua vez, propõem aprofundamentos em cada uma das linguagens artísticas e se afastam, portanto, da proposta da integração. Apesar disso, as conexões entre áreas continuam a acontecer nos trabalhos das crianças, porque elas seguem transitando entre uma e outra indistintamente, tal como é, segundo Schafer, a experiência sensível das crianças pequenas, mas que na EMIA vale para todas: “um fluido caleidoscópico e sinestésico” (SCHAFER, 1991, p. 290).

3- Da música para a arte: o caminho da EMIA A EMIA nasceu como uma escola de música, mas por ter sido criada para atender crianças, desde este início já estava posta a opção por um ensino que seria realizado de maneira integrada às outras áreas expressivas, porque se entendia que era assim que se manifestavam as crianças. Apesar da dança, do teatro e das artes visuais terem sido pensadas como uma só área de apoio à música, ao longo do tempo elas foram se firmando e se afirmando e conquistaram a independência até chegarem à sua configuração atual. Na EMIA trabalha-se com tempos mais diluídos, feitos do envolvimento das crianças com os processos de feitura artística. Os espaços também são outros, com salas livres de carteiras e chão de madeira que convida pés descalços e corpos ativos às ocupações variadas. Além disso, o lugar onde as crianças lancham e brincam na hora do recreio é o próprio parque público onde está localizada a escola, o que propicia o exercício da

autonomia e do

sentimento de pertencimento à cidade, e, com isso tudo, funda tempos e espaços outros, propícios à criação. Para preparar de modo mais adequado esses espaços para o trabalho artístico, primeiramente chegam os artistas-professores, que trazem consigo seus saberes, suas experiências no exercício da Arte e seus projetos de ensino para as crianças. No início de cada semestre e antes de iniciarem as aulas, eles se reúnem e preparam um plano de curso e de aulas que procura articular conteúdos específicos de cada área artística com os interesses de investigação das crianças e dos múltiplos caminhos de criação que se apresentam a partir daí. Tais planejamentos revelam logo de início a ligação entre a arte e a capacidade imaginativa das crianças por serem temas “grávidos” de possibilidades como, por exemplo, “Casas”, “Bichos que voam”, “Relógios”, “Céu, estrelas e planetas”. Ao adotarem nomes poéticos, esses planejamentos revelam aberturas às ideias e aos desejos das crianças. Segundo a educadora musical brasileira Brito, o músico e educador Hans-Joachim Koellreutter1 também acreditava que deveria estar sempre presente nas aulas a consideração pela cultura e pelo interesse dos aprendizes e que deveriam acontecer: [...] prioritariamente pela observação e pelo respeito ao universo cultural, aos conhecimentos prévios, às necessidades e aos interesses de seus alunos. A participação ativa, a criação, o debate, a elaboração de hipóteses, a análise crítica, o questionamento... sempre foram princípios básicos presentes em todas as situações de ensino-aprendizagem propostas e/ou coordenadas por ele, posturas derivadas de sua vivência, experiência e reflexão, de suas pesquisas, análises e críticas aos modelos tradicionais de ensino. (BRITO, 2001, p. 29)

Num primeiro momento esses planejamentos são propostas e eles ganham vida quando as crianças chegam para as aulas e trazem com elas suas experiências singulares de vida e de saberes, e o trabalho segue a partir desse plano inicial. Durante o seu desenvolvimento, as crianças se aproximam ou se afastam desse roteiro prévio e os artistasprofessores vão regulando e conduzindo esse processo, assim como nos contou Peric nas reflexões empreendidas sobre o seu trabalho ao longo de muitos anos na EMIA:

1

H. J. Koellreutter (1915-2005). Músico alemão que chegou ao Brasil em 1937. Foi o criador do movimento “Música Viva” e exerceu grande influência em uma geração de músicos do país. Criou cursos e desenvolveu uma abordagem de ensino de música que tinha no aspecto humano o seu principal objetivo (Koellreutter, 1994).

[...] não existe certo ou errado, pois não partíamos de um modelo estreito e rígido, e, sim, de um roteiro. Existem resultados que melhor se aproximam da proposta e aqueles que se afastam. Mesmo os que se afastam não podem ser vistos como um erro, e, sim, como uma outra possibilidade, inclusive trazendo, muitas vezes, benefícios, ideias novas para o projeto inicial. (PERIC, 2013, p. 200)

O desenvolvimento deste trabalho significa o envolvimento de adultos e de crianças em projetos compartilhados nos quais elas são parte essencial, e é aqui que vive e pulsa a escola e onde ela encontra sua razão de ser e de existir: a EMIA é a escola das crianças, verdadeiro espaço de resistência da infância. A participação das crianças é um dos princípios do trabalho na EMIA, porque na construção do conhecimento em arte é fundamental que os professores tenham em mente “a indispensabilidade de assegurar a participação das crianças nos processos que directamente digam respeito à tomada de decisões das suas vidas” (SOARES, 2005, s/p.). Ainda em consonância com Soares, acredito que: A defesa de um paradigma que associe direitos de protecção, provisão e participação de uma forma interdependente, ou seja, que atenda à indispensabilidade de considerar que a criança é um sujeito de direitos, que para além da protecção, necessita também de margens de acção e intervenção no seu quotidiano, é a defesa de um paradigma impulsionador de uma cultura de respeito pela criança cidadã: de respeito pelas suas vulnerabilidades, mas de respeito também pelas suas competências. (SOARES, 2005, s/p. )

Para fazer arte na EMIA, as crianças “botam a mão na massa”, ou, em outras palavras, elas usam os materiais que lhes são oferecidos para dar forma ao que imaginam. Primeiramente o próprio corpo, em suas múltiplas possibilidades de movimento, de deslocamentos e de ocupação do espaço; da fala e do canto, do exercício de gestos e intenções que levam à música, à dança e à criação dramática. Elas usam também objetos que lhes acenam com a possibilidade de terem seu uso cotidiano transformado pelo poder do imaginário, estimuladas por artistas-professores que também criam metáforas. Pedras, folhas, flores e gravetos; tecidos, caixas, fitas, embalagens; tintas, lápis e pinceis. Materiais garimpados após passeios pelo parque e outros que podem virar casas, carros, cidades, bichos, personagens conhecidas ou malucas e que vão compor os trabalhos das crianças em todas as áreas.

Já no campo da música, os “materiais” a serem movimentados pelas crianças partem do som e do silêncio, sua matéria primordial. Múltiplos instrumentos lhes são ofertados, desde os usuais a outros criados a partir de caixas, tubos, papéis e embalagens. Com esses instrumentos, as crianças exploram sons, investigam e burilam gestos que provocam nuanças sonoras diversificadas em um trabalho de escuta que é fundamental na música. E as escolhas que se dão a partir dessas investigações sonoras, da escuta, e das reflexões sobre esse fazer conduzem aos aprofundamentos que acontecem ao compreenderem os processos envolvidos na criação musical. Qual é o gesto que leva ao som que se quer produzir? Qual é o instrumento que faz mais sentido para criar-se um clima desejado ou para ilustrar uma história que as crianças querem contar? Como inventar músicas para um mundo imaginário, povoado por seres de um planeta distante e que se comunicam através delas? Que “cara” tem a música que as crianças inventam? Para Brito: Se as crianças têm a possibilidade de experienciar, de fazer/refletir, de explorar, de pesquisar, de criar e também sistematizar conhecimentos, emergem continuamente descobertas e reflexões, que nos informam sobre os modos de ser e estar das crianças; são pistas que nos permitem melhor conhecê-las, bem como fazer música com elas compartilhando seus processos de auto-organização e de transformação de experiências. (Brito, 2007, p.94)

As questões técnicas são evidentemente trabalhadas na música assim como em todas as linguagens, mas elas acontecem muito mais como resultado do cuidado estético e do envolvimento com a feitura artística do que com uma perfeição buscada à exaustão. Colocar a ênfase exclusivamente neste aspecto seria mais pertinente para o ensino profissionalizante adulto e não para o trabalho com crianças, que ainda têm diante de si a possibilidade de experimentar caminhos. Nos cursos optativos que são oferecidos de modo paralelo ao curso regular, o conhecimento adquirido pelas crianças durante seus percursos na própria EMIA lhes permite um aprofundamento nas linguagens com as quais elas mais se identificam. Nestes cursos, o foco do trabalho se volta para as especificidades de conteúdos de aprendizagens pertinentes a cada uma das áreas artísticas.

De qualquer modo, é importante não nos esquecermos que ainda estamos tratando de crianças, e, especificamente falando sobre música, a intenção é que a abordagem de ensino leve em consideração a criação e a participação das crianças, como no caso específico dos instrumentos. A adoção de metodologias mais afinadas com as crianças e seu fazer artístico, nas quais suas improvisações e composições tenham lugar garantido, são mais bem vindas à EMIA do que o ensino musical tradicional, centrado no professor, no desenvolvimento de habilidades técnicas e na reprodução de músicas feitas por outros compositores. Como disse Delalande, o ensino de arte não pode se contentar somente “com a transmissão e a aceitação passiva de uma verdade ou de um ideal já elaborados: o belo, como a verdade, só tem valor quando são recriadas pelo sujeito que a conquista” (DELALANDE, 1989, p. 10, tradução minha)

5- As crianças vistas sob as lentes da Sociologia da Infância Tomar conhecimento de como a Sociologia da Infância pensa as crianças e a infância pode contribuir para o trabalho da EMIA porque ela traz um fundamento teórico que conversa diretamente com muito do que acontece na sua prática. Os diálogos entre esse campo de pesquisas e a Arte e seu ensino para crianças vai de encontro à “necessidade de intensificar a interdisciplinaridade nos estudos da infância” (PROUT, 2005, p. 145, tradução minha). Se a participação das crianças e adultos mais qualificados para trabalhar com elas são princípios propostos para o trabalho nessa escola, eles são também orientadores para a construção da documentação de suas aprendizagens. Nomeada “As Narrativas Poéticas da EMIA”, tal proposta de documentação artístico-pedagógica que lançamos nesse primeiro semestre de 2014 apoia-se grandemente na visão de infância proposta pela Sociologia da Infância. Esse campo de estudos tem como princípio estruturante a crença na competência infantil, ou, como afirma Sarmento: “todas as crianças são competentes no que fazem, considerando a sua experiência e as suas oportunidades de vida, sendo que as suas áreas de competência são distintas das áreas de competência adulta”. (SARMENTO, 2008, p. 21)

Ainda de acordo com o autor, “é da ordem da diferença e não da grandeza, incompletude e imperfeição, que a Sociologia da Infância trata quando estabelece a distinção das crianças face aos adultos.” (SARMENTO, op. cit., p. 21) Em outro texto de sua autoria Sarmento discorre um pouco mais sobre essa ideia: [...] a infância deve a sua diferença não à ausência de características (presumidamente) próprias do ser humano adulto, mas à presença de outras características distintivas que permitem que, para além de todas as distinções operadas pelo facto de pertencerem a diferentes classes sociais, ao gênero masculino ou feminino, seja qual for o espaço geográfico onde residem, à cultura de origem e etnia, todas as crianças do mundo tenham algo em comum. Assim sendo, a infância não é a idade da não-fala: todas as crianças, desde bebês, tem múltiplas linguagens (gestuais, corporais, plásticas e verbais) por que se expressam. A infância não é a idade da não-razão: para além da racionalidade técnico-instrumental, hegemônica na sociedade industrial, outras racionalidades se constroem, designadamente nas interacções de crianças, com a incorporação de afectos, da fantasia e da vinculação ao real. (SARMENTO, 2007, p. 35 e 36, grifo nosso).

E é para nos ajudar a compreender melhor as linguagens das crianças e as razões da sensibilidade, da intuição, do olhar e da escuta cultivada que são exercitadas de modo compartilhado entre crianças e adultos na EMIA que estudar as culturas da infância ganha sentido. Se o controverso “talento” é uma noção à qual a escola não se afeiçoa, visto que ela é inclusiva por princípio ao não fazer seleção de alunos, mas trabalhar com as crianças do modo como elas são, é importante nos dedicarmos um pouco mais a este assunto.

6. Culturas infantis: a identidade das crianças A identidade da infância, aquilo que se coloca como mais característico e distintivo das crianças, dentro do quadro teórico da Sociologia da Infância, encontra-se em dois aspectos que as distinguem face aos adultos. O primeiro deles refere-se ao estatuto social das crianças. Elas são dependentes dos adultos no tocante aos seus direitos sociais, não possuem capacidade jurídica, são “menores”, não são responsáveis pelos seus atos e necessitam, portanto, da proteção e da guarda dos seus pais ou responsáveis legais. E quanto menores são as crianças, maior é a sua vulnerabilidade e dependência em relação aos adultos.

O segundo desses aspectos distintivos refere-se à sua identidade cultural. As crianças possuem a capacidade de constituir culturas que lhes são próprias e que não são reduções ou cópias das culturas dos adultos. É nas culturas infantis que encontramos a especificidade da infância, é onde reside a sua autonomia em relação aos adultos. É aqui que encontramos seus modos genuínos e autônomos de ser, seus processos de criar significados e de estabelecer vínculos com a realidade à sua volta, e é também onde moram as produções artísticas das crianças. As culturas da infância são apropriações e transformações que as crianças operam em relação às formas culturais produzidas pelos adultos e também àquelas que são produzidas para elas e por elas. Dentre essas formas culturais adultas, encontramos os produtos da indústria cultural voltados para o consumo infantil, como jogos, filmes, livros, brinquedos, a chamada “música infantil”, shows, espetáculos, peças teatrais e ainda todo um pacote de serviços especializados que inclui a organização de festas de aniversário, passeios, tempos livres e viagens. Faz-se importante enfatizar, e em sintonia com a Sociologia da Infância, que as crianças não são receptoras passivas desses produtos e serviços. Elas possuem a capacidade de fazer escolhas, elas são intérpretes das culturas adultas para a infância e para o seu uso: elas as transformam e produzem suas próprias formas culturais nas interações que estabelecem com outras crianças, e com os adultos à sua volta. É o que Corsaro nomeou como “reprodução interpretativa”: As crianças criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de informações do mundo adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações. O termo reprodução inclui a ideia de que as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudança culturais. O termo também sugere que crianças estão, por sua própria participação na sociedade, restritas pela estrutura social existente e pela reprodução social. Ou seja, a criança e sua infância são afetadas pelas sociedades e culturas que integram. Essas sociedades e culturas foram, por sua vez, moldadas e afetadas por processos de mudanças históricas. (CORSARO, 2011, p. 31 e 32, termos ressaltados em itálico pelo próprio autor).

As culturas da infância possuem, de acordo com Sarmento, quatro eixos de estruturação do sentido que lhes são características.

O primeiro deles é a “interatividade”, que é a capacidade de criar laços entre pessoas. As crianças são seres no mundo e seria problemático compreender as culturas da infância descoladas das interações delas com os adultos e também com as outras crianças, porque sua aprendizagem se dá essencialmente de maneira interativa. Em contato com várias pessoas, no ambiente familiar, escolar ou em outros contextos, as crianças vão aprendendo valores e estratégias que contribuem para a formação de suas identidades pessoais e sociais. É no estabelecimento de relações de proximidade com outras crianças nos espaços compartilhados que se constroem as chamadas “culturas de pares”. Na definição de Corsaro, o termo pode ser pensado como “um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e compartilham em interação com as demais.” (CORSARO, 2011, p. 128) O segundo eixo de estruturação de sentidos é a “ludicidade”, que se constitui como um traço fundamental das culturas infantis. Todavia, não é característico apenas das crianças, mas, em relação aos adultos, o brincar é o que as crianças fazem de mais sério. Aqui, o brincar e a brincadeira das crianças são vistos como ações sociais, como um ato no mundo, posto que não estão separadas do mundo real. Segundo a pesquisadora portuguesa Manuela Ferreira, O brincar é um dos meios de realizar e agir no mundo, não unicamente para as crianças se prepararem para ele, mas, usando-o como um recurso comunicativo, para participarem na vida quotidiana pelas versões da realidade que são feitas na interacção social, dando significado às acções. Brincar é parte integrante da vida social e é um processo interpretativo com uma textura complexa, onde fazer realidade requer negociações do significado, conduzidas pelo corpo e pela linguagem. (FERREIRA, 2004, p. 84)

O terceiro eixo de estruturação de sentidos das culturas infantis, denominado “fantasia do real” diz respeito ao pensamento das crianças e contrapõe-se ao pensamento dos adultos, lógico e dirigido à racionalidade, principalmente o pensamento do ser humano adulto que habita o lado ocidental do mundo. As crianças não são “ilógicas” se as compararmos com os adultos, mas elas possuem outra lógica em relação às noções de identidade (dos objetos) e de sequencialidade (em relação ao tempo). Por exemplo, nos seus jogos simbólicos, no “faz de conta”, as crianças

usam objetos que ganham novas funções, como caixas de papelão que viram casas, carros e até mesmo instrumentos musicais, mas elas não perdem a noção de que continuam sendo caixas de papelão. Os objetos continuam com sua identidade própria ao mesmo tempo em que são transformados em outras coisas pelo poder do imaginário infantil. Pode-se observar também que as crianças, apesar dessa capacidade imaginativa, mostram nos seus discursos que elas estão conscientes dessas transformações. As falas das crianças revelam também que elas habitam um mundo que é ao mesmo tempo real e imaginário, um mundo misturado, um entre mundos. Compreender o imaginário infantil a partir do que nos propõe a Sociologia da Infância coloca-se aqui como fundamental para entendermos ainda melhor as crianças e seu fazer artístico na EMIA. O imaginário é constituinte da identidade infantil, do modo de ser das crianças e da relação que estabelecem com o mundo: O imaginário infantil é inerente ao processo de formação e desenvolvimento da personalidade e racionalidade de cada criança concreta, mas isso acontece no contexto social e cultural que fornece as condições e as possibilidades desse processo. As condições sociais e culturais são heterogéneas, mas incidem perante uma condição infantil comum: a de uma geração desprovida de condições autónomas de sobrevivência e de crescimento e que está sob o controlo da geração adulta. A condição comum da infância tem a sua dimensão simbólica nas culturas da infância. (SARMENTO, 2003, p. 3)

O poder de imaginar e vivenciar o faz de conta, essa não literalidade, constitui-se como um elemento importante e que, segundo Sarmento, “está na base da constituição da especificidade dos mundos da criança, e é um elemento central na capacidade de resistência que as crianças possuem face às situações dolorosas ou ignominiosas da existência.” (SARMENTO, 2002, p. 16) A “reiteração”, o quarto eixo de estruturação de sentido das culturas da infância, refere-se à não linearidade ou não sequencialidade temporal. O tempo das crianças é um tempo recursivo, que prescinde de medições, um tempo que lhes permite o encontro entre o presente, o passado e o futuro. Um tempo que pode ser sempre reiniciado, repetido.

5. Para concluir

O conhecimento que a Sociologia da Infância nos traz sobre as crianças e sobre as culturas infantis ecoa na EMIA porque acredito que ela é um terreno fértil onde tais ideias podem germinar e dar bons frutos. Elas jogam luz sobre os processos do fazer artístico que permeiam a escola e mostram a pertinência de terem sido eleitas como embasamento para a proposta de visibilização das aprendizagens das crianças nas “Narrativas Poéticas da EMIA”. Contar sobre o conhecimento construído com as crianças em formato de textos, narrativas visuais, objetos que mostram processos vividos, histórias, visitas guiadas e outros tantos modos inventados por artistas-professores e que convidam à reflexão é um caminho que pode conduzir o corpo docente rumo aos aperfeiçoamentos no seu trabalho. A ideia das crianças como competentes e detentoras de saberes subjaz às práticas dos professores, e as reflexões provocadas pelo compartilhamento das “Narrativas” poderão vir a se configurar como um potente instrumento para refiná-las e para que este corpo docente alcance maior coesão ao se inspirarem uns nos outros e se fortalecerem enquanto equipe. Acredito que o caminho em direção aos avanços no trabalho oferecido pela EMIA não se encontra fora dela, mas ele reside nas próprias crianças porque são elas que nos fornecem as pistas para esse aperfeiçoamento das práticas, que para tanto devem ser realizadas mais em consonância com elas. Encontrar um equilíbrio entre concepções adultas sobre o ensino de Arte e de infância e o direito de participação das crianças na construção do seu próprio conhecimento nesse campo é o seu desafio. Para as crianças do “Quarteto”, ao ouvirem da coordenadora de dança que suas opiniões eram importantes para o estudo que ela vem empreendendo sobre esse curso e que por isso a EMIA quer ouvi-las, a resposta de uma delas veio rápida e certeira: “Acho justo!”

Referências BRITO, M. T. A. de. Por uma educação musical do pensamento: Novas estratégias de comunicação. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica)-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007.

BRITO, T. A. de. Koellreutter educador: O humano como objetivo da educação musical. São Paulo: Peirópolis, 2001.

CORSARO, William. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

DELALANDE, F. El rol de los dispositivos en una pedagogía de la creación musical infantil. François Delalande, Responsable de las investigaciones teóricas, INA-GRM, París Francia. Traducción: María Guadalupe Segalerba, 1989. Disponível em: http://www.francoisdelalande.fr/publications/classement-par-domaines/téléch-trad-inédites/. Acesso em: 03/07/2013.

FERREIRA, Manuela. Do “Avesso” do Brincar ou... as Relações entre Pares, as Rotinas da Cultura Infantil e a Construção da(s) Ordem(ens) Social(ais) Instituinte(s) das Crianças no Jardim-de-Infância. In SARMENTO, Manuel Jacinto & CERISARA, Ana Beatriz (orgs). Crianças e Miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Porto: Edições ASA, 2004, p. 55-104.

PERIC, Thereza. No Exercício da Arte: o professor criador. Diálogo entre o fazer artístico e a prática pedagógica. Pró-Posições. Faculdade de Educação, UNICAMP. Campinas, SP, Vol. 24 nº 2, Mai./Ago., 2013, p. 195-220. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010373072013000200013&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em 30/01/2014.

PROUT, A. The Future of Childhood: towards the interdisciplinary study of children. New York: Routledge Falmer, 2005.

SARMENTO, M. J. Sociologia da Infância: correntes e confluências. In: Sarmento, Manuel Jacinto & Gouvea, Maria Cristina Soares de (Orgs.), Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 17-39.

______. Visibilidade Social e Estudo da Infância. In: VASCONCELLOS, Vera Maria Ramos; SARMENTO, Manuel Jacinto. (org.) Infância (in) visível. Araraquara: Junqueira & Marin, 2007, p. 25-49.

______. Imaginário e Culturas da Infância. Cadernos de Educação, Revista da Fac. Educação da Univ. de Pelotas, Pelotas, ano 12, n. 21, 2003, p. 51-69.

______. As Culturas da Infância nas Encruzilhadas da 2ª Modernidade. CEDIC - Centro de Documentação e Informação Sobre a Criança. Centro de Estudos da Criança, Universidade do Minho, 2002. Disponível em: http://cedic.iec.uminho.pt/Textos_de_Trabalho/menu_base_text_trab.htm. Acesso em 27/09/2013.

SOARES, Natália Fernandes. Os Direitos das Crianças nas encruzilhadas da Protecção e da Participação. Florianópolis: UFSC, Zero-a-Seis. Nº 12, Julho/Dezembro de 2005.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.