Da Pena de Morte em Portugal

August 24, 2017 | Autor: Teotonio Barroqueiro | Categoria: History, Sociology, Political Science, Death Penalty
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Da Pena de Morte em Portugal Teotónio J. P. Barroqueiro 4 de Março de 2014

“[A]quele que não responda nem à acção das punições nem dos ensinamentos, esse, seja tido como incurável e banido da cidade ou condenado à morte.” 1

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Platão, Prótagoras, 325.

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O que este texto não é: um ensaio jurídico-filosófico sobre a moralidade da punição com a morte. O que este texto ambiciona ser: uma recensão crítica do discurso proferido por Guilherme Braga da Cruz na sessão solene promovida pela Academia das Ciências de Lisboa, em 1 de Julho de 1967, por ocasião da celebração do centenário da abolição da pena de morte em Portugal, e poucos meses depois publicado pela mesma Academia e a Editorial Império[2].

“Cerca das sete horas e quarenta e cinco minutos da manhã de 16 de Setembro de 1917 era executado, em Picantin, próximo de Laventie, o soldado chaufeur João Augusto Ferreira de Almeida.’’[3] João Augusto Ferreira de Almeida foi o último condenado à morte por um tribunal português. 50 anos volvidos da aprovação da carta de lei que pôs em vigor a Reforma Penal e das Prisões cujo artigo 1.º declara abolida a pena de morte para crimes civis[2], Ferreira de Almeida foi condenado à morte por um Tribunal de Guerra português. Ferreira de Almeida foi executado 59 anos antes da Constituição da República Portuguesa estatuir no artigo 25.º que “em caso algum haverá pena de morte” em Portugal. Ferreira de Almeida foi executado 71 anos passados da última execução de pena de morte por motivo de delitos civis. A abolição da pena de morte em Portugal viveu quatro momentos fundamentais, viz: a abolição para crimes políticos (18522 ), a abolição para crimes civis (18673 ), a abolição para crimes militares, e finalmente a abolição total 2 3

Pelo artigo 16.º do Acto Adicional à Carta Constitucional da Monarquia. Pelo artigo 1.º da Reforma Penal e das Prisões.

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(19764 ). De notar, porém, que a clemência régia, a prática dos tribunais do Reino, e a doutrina expressa pelos praxistas portugueses, cedo, fixaram uma longa lista de motivos para o adiamento ou mesmo o perdão da pena de morte. Por toda a Europa, com o renascimento do direito romano (séc. XII e XIII), a publicização do ius puniendi pôs cobro à vingança privada – predominante na alta idade média, e que não garantia a paz interna dos povos –, muitas vezes acompanhada de torturas, mutilações e outras atrocidades quejandas. De facto, o fortalecimento do poder real somente resolveu a expiação pessoal em geral, pois certos delitos, listados nas Ordenações, eram sentenciados por decisão unívoca e arbitrária do monarca, sem julgamento prévio, havendo azo para a vingança pessoal do soberano, ou de quem nele tivesse ascendência. Intimamente ligado ao pensamento iluminista do «século das luzes», o movimento humanitarista difunde o valor da dignidade do ser humano, sem apelo ao sobrenatural ou a alguma autoridade superior. Na sua obra Dei delitti e delle pene, publicada em Livorno (1764), o Marquês de Beccaria, César Bonesana, questiona, de modo inédito, a necessidade e a utilidade da pena de morte. Os dados estavam lançados! Bonesana, um idealista de ascendência nobre, educado e leitor dos enciclopedistas franceses e outros egrégios – tais como Hume, Montesquieu, Rosseau–, teve o mérito de ser o primeiro autor a concretizar e ordenar um conjunto de ideias utilitaristas e jusnaturalistas que pairava no ar, e a intuir que a demonstração da desnecessidade da sua aplicação era a única garantia de vitória para a luta contra a pena de 4

Pelo artigo 25.º da Constituição da República Portuguesa.

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morte. O Marquês de Beccaria inciou, assim, um movimento abolicionista, que por toda a Europa encontrou seguidores e obreiros; um movimento que defendia a substituição da pena de morte, sem aumentar a criminalidade; um movimento que defendia, sobretudo, a dignidade humana na punição. Beccaria agitou, mas não convenceu. A Toscana aboliu a pena de morte em 1786; a Áustria em 1787. A Toscana readmitiu a pena em 1790; a Áustria em 1795. A Europa vivia tempos de muita insegurança e temor. A França agitava-se política e socialmente com a Revolução. O Absolutismo resistia aos ideais liberais. O movimento abolicionista sentia grande oposição. A pena de morte revigorava.

Em 1815, António Ribeiro dos Santos publicava o primeiro ensaio do pensamento criminalístico português abolicionista da pena de morte.5 Ribeiro dos Santos, embora procure distinguir os mesmos aspectos que Beccaria, disserta de modo distinto e original, ao considerar condicionalmente lícita a aplicação da pena capital pelo Estado – assim como o ameaçado pode legitimamente colher a vida do seu agressor, se for esta a única solução para a sua sobrevivência, também o Estado, quando perigada a sua existência política ou a geral tranquilidade, pode causar a morte àqueles que o ameaçam: a morte não como pena, demais como defesa –; já na inutilidade e na desnecessidade da pena de morte, o canonista conimbrense copia a argumentação do aristocrata italiano. Com o triunfo do idealismo liberal e com a reforma do regime peniten5

Discurso sobre a pena de morte e reflexões sobre alguns crimes, publicado no Jornal de Coimbra, vol. VII, n. XXXIII, Parte II.

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ciário, o movimento abolicionista tomou novo vigor. Em 1848, a França aboliu a pena de morte para os crimes políticos. Em 1862, Carl Anton von Mittermaier condena a pena capital à morte, ao editar Die Todesstrafe nach den Ergebnissen der wissenschaftlichen Forschungen, der Fortschritte der Gesetzebung und der Erfahrungen (Heidelberg). Na sua obra sobre a pena de morte, o jurista germânico, fundado nos resultados de cinquenta anos de investigação da estatística e dos efeitos das inovações legislativas de vários países, defende convictamente a ineficácia e a desnecessidade da pena de morte.6 No entanto, em 1823, o emérito desembargador José Maria Pereira Forjaz de Sampaio publica, em Coimbra, um Extracto de Projecto de Codigo de delictos e penas, e da ordem do processo criminal 7 ; antecipando-se à conclusão do projecto para a qual a comissão que integrava fora incumbida, e alegando insuperável divergência de opinão em alguns pontos da doutrina e método dos outros nomeados. Neste Extracto, sumário e que serviria de base à elaboração do documento da Comissão, o jurisconsulto priscinde em absoluto da pena de morte no sistema represivo, repetindo a argumentação de Beccaria. Contudo, a voz de Forjaz Sampaio não foi ouvida no seio da Comissão, tão-pouco fora dela, ficando a pena de morte como a deixara o Príncipe Regente D. João em 1802.

A verdadeira razão para a abolição da pena de morte em Portugal não 6

Mittermaier terá sido um autor decisivo para a abolição da pena de morte em Portugal: foi citado no relatório da proposta de Barjona de Freitas (1867), bem como no parecer da «Comissão de legislação penal» da Câmara dos Deputados acerca desta proposta. 7 O jurisconsulto Forjaz Sampaio foi nomeado, em 1821 pelas Cortes Constituintes, para a Comissão encarregada de projectar os códigos de processo criminal e de delitos e penas.

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era teórica ou especulativa, demais um anseio do povo, a necessidade de fixar a abolição de facto: desde 1834, e 1846, que não se subia o patíbulo por crimes políticos, e civis (respectivamente). Aparentemente, faltava apenas reunirem-se as condições políticas adequadas para a legiferação da abolição da pena capital. Com o fim da guerra civil, em Portugal dominava um grande anseio de concórdia, de paz interna e de progresso material. A abolição da pena de morte para crimes políticos em França forçava a mesma medida no Reino mais ocidental da Europa. E assim aconteceu. A 23 de Janeiro de 1852, o Governo apresentou à Câmara dos Deputados a sua proposta do Acto Adicional à Carta Constitucional da Monarquia, todavia, nada alterava no que concerne à pena de morte. Durante a discussão, o deputado Mendes Leite submeteu à apreciação um aditamento à proposta do Governo: «É abolida a pena de morte nos crimes políticos.». O Governo perdera uma oportunidade dourada. A abolição da pena de morte era uma medida de grande consenso, e propô-la traria o apaziguamento e a confiança política e social tão preciosos para o Governo. Duas vozes se ouviram contra o aditamento, apesar de concordantes com a abolição, discordavam da oportunidade: a do catedrático Vicente Ferrer dissentia da sua inclusão no texto constitucional, e a do Ministro da Justiça, António Luís de Seabra, defendia que a abolição deveria extender-se aos crimes civis, o que então ainda não era oportuno. Foi Passos Manuel, o homem da Revolução de Setembro, que garantiu a discussão do aditamento, referindo-se-lhe no seu discurso de 10 de Março de 1852, e dando-lhe o seu apoio no mesmo dia em que fora apresentado. A discussão ocupou toda a sessão de 29 de Março, muitas foram as intervenções no 6

debate, contudo, no essencial, o acordo era unânime na abolição da pena de morte para crimes políticos, restava apenas deliberar da inclusão da medida no Acto Adicional. Por 18 votos a inclusão venceu, ficando a abolição da pena de morte para crimes políticos inscrita no Acto Adicional à Carta da Monarquia, numa iniciativa exclusiva da Câmara dos Deputados.

O Código Penal de 1852, precipitadamente adoptado sem qualquer discussão prévia nos primeiros anos da Regeneração, manteve a pena de morte, porém definiu-a, no seu artigo 32.º, como a simples privação da vida, minimizando, assim, o sofrimento que ela implica. Um passo importante na demanda da valorização da dignidade humana, porém ainda insuficiente. A 6 de Junho de 1853, o Governo discontente com o Código Penal de 1852, e indo ao encontro das reclamações públicas, nomeou uma Comissão para proceder à sua revisão. Em 1861, a Comissão entregou ao Governo o seu projecto, acompanhado de um extenso relatório assinado por todos os membros, embora da exclusiva autoria de Levy Maria Jordão. O Código Penal de D. Pedro V (como ficou conhecido o projecto) foi apresentado às Cortes, enquanto proposta de lei do Governo, a 17 de Janeiro de 1862.[6]

O Código Penal de D. Pedro V demorava em ser convertido em lei. O movimento abolicionista precisava de mudar de táctica. A vitória não era longínqua. O Doutor Dom António Ayres de Gouveia liderou a nova via, ao proferir um arrebatado e patético discurso na Câmara dos Deputados, a 3 de Junho de 1863, por ocasião da discussão do Orçamento do Ministério da Justiça. Com toda a sua eloquência e poder verbal, ouvido com entusiasmo 7

por toda a Câmara, Ayres de Gouveia remata o seu discurso mandando para a mesa duas propostas de lei, viz: eliminar do orçamento o ofício e o salário de carrasco, e abolir a pena de morte. O Ministro da Justiça, Gaspar Pereira, concorda com as propostas e remete para as comissões, para estudo, baixando as propostas à comissão de legislação para dar o seu parecer com urgência.8 Por infortúnio enigmático o parecer não foi publicado no relato das sessões, nem o projecto foi submetido à apreciação da Câmara dos Deputados antes do encerramento da sessão legislativa a 30 de Junho de 1863. O movimento ganhou novo fôlego, porém, ainda não a glória de abolir uma pena, unanimamente, considerada desumana.

Perante as Cortes, no discurso da coroa a 2 de Janeiro de 1864, o rei D. Luís I anunciou que seriam submetidas à apreciação do poder legislativo propostas para a abolição e substituição da pena de morte no Reino. Volvida uma semana, o Ministro da Justiça, Gaspar Pereira apresentou à Câmara a proposta publicamente comunicada pelo monarca: pela inviolabilidade da vida humana, e pelo carácter irreparável do homicídio legal, deve abolir-se totalmente a pena capital em Portugal. Semelhante fado teve esta proposta. Ora por ausência do Ministro da Justiça, ora por repugnante indiferença e passiva resistência do Governo e da Câmara dos Deputados, não se discutiu a proposta penal, e mais uma sessão legislativa terminava – a última do Governo (1861–1864) –, caducando automaticamente todos os projectos em proposta de lei pendentes. Uma vez mais, o infortúnio foi enigmático, não 8

A comissão de legislação deu o seu parecer sobre a pena de morte duas semanas depois (17 de Junho), tendo sido marcada a discussão para 20 de Junho.

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explicando o Governo, claramente, a fonte das suas vacilações, tão-pouco da protelação indefinida da resolução da questão da abolição da pena de morte em Portugal. A especulação conjuntural permite dessumir que o pomo de discórdia eram os crimes militares (artigo 2.º da proposta de lei do Governo): o ministro da Guerra, Visconde de Sá da Bandeira, demitiu-se três dias depois da apresentação da porposta de lei do Governo; em 1867, aboliu-se a pena de morte para todos os crimes afora os militares; em 1875, o Código de Justiça Militar consagrou a pena de morte no seu âmbito.

Dom Nuno José de Moura Barreto, o Duque de Loulé, então, pela segunda vez, presidente do Conselho de Ministros (desde 1860) e líder dos Históricos, procurou coligar-se com os Regeneradores, o que desagradou a Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, o Marquês de Sá da Bandeira, e levou à queda do Governo do Duque de Loulé. Demitido, ainda assim deveras influente, Moura Barreto foi crucial na união nacional fora do esquema partidário, garantindo a Fusão no Ministério.

O Doutor Barjona de Freitas, então ministro da Justiça, confiante levou até ao fim a proposta parlamentar para a abolição da pena de morte, sucedendo-lhe a prisão celular perpétua. Com o desígnio de reformar o Código Penal, firmado no Projecto de Levy Maria Jordão, o ministro da Justiça temperou a discórdia de outrora propondo uma lei independente expurgada do controverso preceito da abolição da pena capital para os crimes militares, que introduzisse as correcções mais prementes ao direito penal vigente. O pretexto foi a Reforma das Prisões: um movimento penitenciário, que ansi9

ava melhorar o estado deplorável das prisões do reino.

No verão de 1867, a proposta de Barjona de Freitas foi aprovada na Câmara dos Deputados, com noventa votos a favor, dois contra9 e duas abstenções. Ayres de Gouveia encerrou brilhantemente a discussão da aprovação da lei, propondo, contudo, uma emenda: banir a pena capital para todos e quaisquer crimes, civis ou militares. O ministro da Justiça, sagazmente, ladeou a dificuldade exposta por Ayres de Gouveia, alegando que se tratava de uma iniciativa unicamente sua, e que portanto não fora ouvido o ministro da Guerra. Duas dúvidas subsistiam: a aplicabilidade da abolição nas Províncias Ultramarinas, e a mesma qualidade no foro militar. Quanto à primeira, em 1869, a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar expediu uma portaria em nome do rei D. Luís I que afirmava que a pena de morte estava abolida em Portugal, vigorando no Ultramar.

No que refere aos crimes do foro militar, a pena de morte resistiu letra-morta10 até aos primeiros tempos do regime republicano. De facto, em 16 de Março de 1911, o Governo Provisório da República Portuguesa decretou a abolição em absoluto da pena de morte, revogando as disposições contrárias constantes dos Códigos de Justiça militares, todavia, a participação de Portugal na Grande Guerra impôs a alteração do texto constitucional, restaurando a pena de morte em caso de beligerância com país estrangeiro e 9

Os deputados Cunha Salgado e Belchior Garcez remeteram a abolição da pena de morte para a ética e condescendência dos povos, em detrimento da positivação da proibição da sua aplicação. 10 O assassinato do alferes Palma e Brito pelo soldado António Coelho, em 1874, gerou enorme controvérsia na opinião pública e a pena acabou por ser comutada.

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apenas no teatro de guerra.11 A 2 de Abril de 1976, dois anos decorridos do fim da ditadura do Estado Novo, Francisco da Costa Gomes, à data Presidente da República Portuguesa, assinou a Constituição da República, que vigora desde então, e que no seu artigo 25.º decreta que em caso algum haverá pena de morte.

O movimento abolicionista avançou revigorado no mais oportuno momento: a acalmia que os reinados de D. Pedro V e D. Luís I garantiram ao reino. O governo de fusão assegurou a concórdia, e o ministro da Justiça, em 1867, deu a estocada letal na mais cruel punição que o Homem alguma vez criou. A sucedânea pérpetua, pouco resistiu: a humanidade é o novo valor absoluto, expresso na Constituição Liberal, e que na Nova Reforma Penal – a de Sampaio e Melo –, em 1884, põe termo à prisão sem fim.

“A pena que paga o sangue com o sangue, que mata mas não corrige, que vinga mas não melhora, e que usurpando a Deus as prerogativas da vida e fechando a porta ao arrependimento, apaga do coração do condemnado toda a esperança de redempção, e oppõe á fallibilidade da justiça humana as trevas duma punição irreparavel.” 12

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Lei n.º 635, de 28 de Setemebro de 1916 Barjona de Freitas (1867), cfr. Diario de Lisboa, n. 49, p. 594, 2.ª coluna.

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Referências [1] Barreiros, José António. 1980. As instituições criminais em Portugal no século XIX: subsídios para a sua história. Em Análise Social, vol. XVI (3.º), n. 63. Lisboa. Instituto de Ciências Sociais. Universidade de Lisboa. pp. 587–612. [2] Cruz, Guilherme Braga da. 1967. O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte em Portugal: resenha histórica. Lisboa. Academia das Ciências, Editorial Império. [3] Gomes, Carlos de Matos e Aniceto Afonso. 2010. Portugal e a Grande Guerra. Vila do Conde. Verso da História. [4] Marques, A. H. de Oliveira. 1995. Breve História de Portugal, 4.ª ed. Lisboa. Editorial Presença. [5] Moura, Joana Chaves Álvares de. 2012. Reflexões sobre o instituto da prisão perpétua, Dissertação de Mestrado orientada pelo Professor Doutor Germano Marques da Silva. Lisboa. Universidade Católica Portuguesa. [6] Santos, Maria José Moutinho. 2002. Liberalismo, legislação criminal e codificação: o Código Penal de 1852. Cento e cinquenta anos da sua publicação. Em Revista da Faculdade de Letras: História, série III, vol. 03. Porto. Universidade do Porto. pp. 97–102.

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