Da Queda do Estado-Providência

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Da Queda do Estado-Providência Teotónio J. P. Barroqueiro 8 de Fevereiro de 2014

Individuals have rights, and there are things no person or group may do to them (without violating their rights). So strong and far-reaching are these rights that they raise the question of what, if anything, the state and its officials may do. How much room do individual rights leave for the state? 1

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Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia, New York, Basic Books, 1974, p. ix.

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O debate não deve ficar cristalizado entre a hipérbole da estatização, cuja ineficiência a história provou, e o chamado Estado mínimo ou Estado de mínimos, cujos conceitos esta maioria política não partilha. O objectivo é construir um Estado melhor.2 Então, que Estado é este? Nem máximo, que a história provou ineficiente? Nem mínimo, que a actual maioria política (PPD/PSD – CDS–PP, na ciência política portuguesa: o centro-direita) não partilha? Melhor? Se a história prova a ineficiência da Estatização, considere-se então que a maximização da centralização dos poderes e funções sociais no Estado é ineficazmente factiva, e portanto sem interesse no âmbito deste estudo. E o Estado mínimo? Será igualmente ineficiente reduzir os poderes e funções sociais do Estado ao mínimo? A não afinidade ideológica da actual maioria política com o Estado mínimo não é razão firme para negligenciar o seu estudo. Assim, procurarei, ao longos destas linhas, defender um Estado mínimo, ou melhor, a queda do Estado-providência em Portugal. Mas o que é o Estado? Que entidade é esta de que se fala e cujas propriedades se procuram definir? Sem mergulhar no mar encantatório das análises conceptuais profundas, o Estado é a unidade política dotada de autoridade traduzida num consenso alargado em torno da soberania de um território e das funções a si imputadas, i.e.: uma forma de governo dotada de instituições 2

Governo da República Portuguesa, Um Estado Melhor, Lisboa, 2013, p. 43

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e meios para impor a sua Lei; um povo que aceita submeter-se a esse governo e com ele partilha determinados valores; e um território com fronteiras bem delimitadas. Sim, o Estado é uma ficção: um ser que alenta uma vontade própria, que «representa e incorpora a vontade colectiva dos cidadãos, criando e manuseando os mecanismos ativos que preservam os direitos e deveres de cada um».[6] A propriedade, deste ser, que enforma a vontade colectiva que preserva os direitos e deveres sociais de cada colectado designarei por «Estado-providência». Ou seja, no caso português, o Estado-providência consiste na realização concreta entre nós, legal e politicamente, de um conjunto de instituições que visam cumprir certas funções sociais de assistência, em geral a todos cidadãos, e em particular aos mais pobres e vulneráveis na doença, desemprego, reforma.[5] Que Estado-providência incorpora Portugal? Para além de uma visão, quanto a mim redutora da realidade, de que o Estadoprovidência em Portugal é uma versão pouco desenvolvida do modelo «corporativo»: protector segundo o estatuto profissional, com uma elevada protecção social dos funcionários públicos (típico de países como a França, a Alemanha e Benelux); existe uma outra visão, que vê num conjunto de características únicas a dificuldade em enquadrá-lo, linearmente, neste modelo: Portugal mostra um sistema de segurança social bismarckiano, a par de um sistema de saúde beveridgeano, numa sociedade-providência 3

com formas tradicionais de solidariedade a desempenharem um importante papel.[1] Este é o Estado-providência que existe actualmente em Portugal. Mas, como se chegou aqui? Com a principal preocupação do Estado em manter a ordem pública, o controlo de movimento de populações, e a gestão do mercado laboral, foi criado em 1835 o Conselho Geral de Beneficiência. Com o regicídio de 1908, e a consequente queda da Monarquia, o direito à igualdade social é firmado na Constituição de 1911, precipitando, em Portugal, o sistema público de assistência social: revolução iniciada em 1883 na Alemanha de Bismarck. O desenvolvimento das políticas sociais foi mediado pela instauração de um regime autoritário de direita e de natureza corporativa em 1926 (mais tarde chamado «Estado Novo»), predominando os seguros sociais obrigatórios como principal mecanismo de protecção social na eventualidade de velhice, invalidez e doença, até à Revolução de 1974. A industrialização tardia e a fragilidade de uma economia pequena, atrasada e periférica, sob o controlo apertado de um regime repressivo e avesso a qualquer modernização constituiu dificuldades acrescidas à utopia revolucionária de 1974. Iludido por um crescimento económico imparável, de outro modo inimaginável, Portugal consolidou as suas políticas públicas, naturalmente, rumo a um socialismo-democrático redistribuitivo, e que visava recuperar em poucos anos o atraso ancestral que tinha. O que aqui importa destacar é que, dadas as circunstâncias 4

históricas e sociopolíticas em que se iniciou o processo de construção do nosso Estado social, ele surgiu já em contraciclo com o que estava a ocorrer nos países europeus avançados. Com duas agravantes: não tínhamos nem uma cultura democrática consolidada nem um potencial económico e tecnológico que garantissem de facto um ciclo de crescimento que nos aproximasse desses países.[6] Trinta e sete anos volvidos do pedido de adesão à Comunidade Económica Europeia, dois terços dos portugueses concordam que somente os cidadãos que realmente precisam, e não todos, devem beneficiar dos apoios sociais do Estado (a saber: educação, saúde e segurança social); um terço e meio concorda que o Estado deve ser totalmente responsável por garantir emprego para todos que desejem trabalhar; e mais de dois terços concorda que o Estado deve ser totalmente responsável por garantir cuidados de saúde adequados aos doentes.3 Quererá isto dizer que estamos a perder a solidariedade que tanto nos caracteriza e distingue dos povos mais setentrionais da Europa? Talvez, não. Quase um em cada dois portugueses acredita que o país será incapaz de manter a qualidade dos serviços de saúde hoje prestados no sistema público. É ainda maior a sua incredulidade quanto à capacidade do país em manter o nível actual de pensões de reforma.4 Poderá isto indiciar que o Estado-providência está 3

Cfr. Inquérito O que pensam os portugueses sobre o Estado Social?, feito pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em abril de 2013. 4 Do mesmo Inquérito.

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condenado à morte? Talvez, sim. E se assim for, como será a vida para além da morte? Para além da objectável insustentabilidade demográfica, política, social e económica, outro fogo atormenta o actual Estadoprovidência: a sua intrínseca injustiça social. Com a valorização primordial do trabalho, o individualismo social ganha uma força quase indomável. Com a intolerância para com aqueles que não ganham o «seu pão», ou que valorizam o ócio em detrimento do trabalho (mesmo que adequado e com qualidade), cresce o fosso natural entre os que estão dentro e os que estão fora do mercado de trabalho. Um mercado dualizado e polarizado, que trata de modo desigual as suas duas metades constituintes: uma protegida, com emprego para a vida e com perspectivas de progressão nas respectivas carreiras; outra desprotegida, condenada a soluções intermitentes, precárias e sem perspectivas de futuro. Ora se a pertença a uma destas metades não depende do mérito individual, valor agredado ou qualificação obtida pelo cidadão, demais resulta da lotaria social e de outros factores exógenos ao indivíduo, a percepção de injustiça social cresce e firma-se na comunidade, com especial expressão e audível manifestação na metade desprotegida do mercado de trabalho. De entre outras consequências tão bem estudas na literatura disponível, a quebra do contrato social implícito por detrás do modelo de Estado-providência reveste-se de maior relevo para este 6

artigo, pois questiona a sobrevivência deste generoso e protector regime de direitos sociais. Que Estado sobreviverá no fim dos dias? Não negarei a necessidade de qualquer Estado, caindo na defesa de qualquer anarquismo, pois assumo, a partir de premissas morais, que a função protectora da propriedade de si mesmo, e apenas esta função, cabe ao Estado, enquanto garante da estabilidade necessária para resolver satisfatoriamente os conflitos entre os indivíduos, resultantes da expressão da sua liberdade individual, estabilidade essa que jamais existiria numa anarquia. Não defenderei, de igual modo, qualquer instrumentalização da liberdade, porquanto assumo, a partir de premissas igualmente morais, que o respeito pela liberdade individual é um imperativo moral deontológico, um bem em si e por si, não porque contribua para um bem maior, tal como, a eficiência económica de uma comunidade. Acompanho a argumentação sólida de Nozick[9] na defesa de um Estado mínimo ou mero «Estado guarda-nocturno», um Estado que cobra impostos apenas para financiar as despesas da produção do estritamente necessário para assegurar a protecção da propriedade de si mesmo, sem que a sua actividade tenha quaisquer consequências quanto à distribuição do rendimento dos cidadãos, e tão-pouco restrinja a sua liberdade individual.[8] Porque cobraria um Estado impostos para além do suficiente para financiar as suas despesas com a protecção da propriedade 7

de si mesmo de cada cidadão? A resposta consensual tem sido: para distribuir justamente a riqueza. Justamente, como? E mais uma vez, a resposta consensual tem sido: mediante mecanismos de distribuição igualitária da riqueza gerada, ou seja, justiça e igualidade dois conceitos em estreita sincronia. Todavia, por generalização, nenhum princípio de justiça igualitária «pode de maneira contínua ser realizado sem interferência contínua na vida das pessoas»[9], pois o respeito por este padrão de justiça exige do indivíduo a não realização do que livremente deseja fazer, sempre que o seu desejo conflitue com o padrão igualitário. Como salvaguardar, então, a liberdade do indivíduo? Num processo muito semelhante ao conhecido princípio do fecho epistémico, Nozick mostra que «tudo aquilo, o que quer que seja, que nasça de uma situação justa e à qual se chega por etapas justas é em si mesmo justo.»[9] Mas, o que defende em particular Nozick? Nozick recupera uma ideia central em Locke: cada indivíduo é proprietário do seu corpo e da sua vida, bem como da liberdade para a usar e dos haveres materiais que, no uso dessa liberdade, possa acumular. Liberdade sem restrição, não implicará propriedade sem restrição? Aparentemente, sim. Então, que restringir? Os indivíduos têm direito ao que adquirem e que inicialmente não pertença a ninguém. Também têm direito ao que lhes é transferido voluntariamente no tempo, sendo o único limite a não invasão da esfera de propriedade do outro. Mas, nem sempre se cumprirão estes princípios de apropriação original e de 8

transferência. Quando assim é, como se repõe o justo título? Por via de rectificação judicial, e para isso servem os tribunais e aí se esgota a interferência do Estado na liberdade individual. Ao Estado caberá proteger a vida e a liberdade dos indivíduos, bem como vigiar o cumprimento dos contratos entre si. Serão, certamente, necessárias instituições de Estado mínimo (polícia, tribunais e prisões). Não mais do que estas, pois qualquer outra instituição estatal, que vise redistribuir a propriedade de modo coercivo e pela via fiscal, é contrária à liberdade individual, e, portanto, injusta. Assim, cairá o Estado-providência, salvaguardando-se a liberdade e a propriedade individual.

From each as they choose, to each as they are chosen.[9]

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Referências [1] Adão e Silva, P. 2002. O Modelo de Welfare da Europa do Sul. Sociologia, Problemas e Práticas, número 38, pp. 25–59. Lisboa. CIES – Centro de Investigação e Estudos de Sociologia. Editora Mundos Sociais. [2] Albuquerque, M. de. 2002. Um Percurso da Construção Ideológica do Estado. Lisboa. QUETZAL Editores. [3] Albuquerque, M. de. 2012. O Poder Político no Renascimento Português. Lisboa. BABEL. [4] Cardoso Rosas, J. 2012. Futuro Indefinido: Ensaios de Filosofia Política. Vila Nova de Famalicão. Edições HÚMUS. [5] Carreira da Silva, F. 2013. O Futuro do Estado Social. Lisboa. Fundação Francisco Manuel dos Santos. [6] Estanque, E. 2012. O Estado Social em Causa: instituições sociais, políticas sociais e movimentos sociolaborais. Finisterra – Revista de Reflexão e Crítica, número 73, pp. 39–80. Lisboa. Fundação José Fontana. [7] Fonseca, R. 2013. Libertarismo. in Manual de Filosofia Política, João Cardoso Rosas (org.), pp. 67–85. Coimbra. Almedina. [8] Saldanha Sanches, J. L. 2010. Justiça Fiscal. Lisboa. Fundação Francisco Manuel dos Santos. 10

[9] Nozick, R. 1974. Anarchy, State, and Utopia. New York. Basic Books.

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