DA REVISTA ÍNTIMA NOS ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS EM DIAS DE VISITA: UMA VIOLAÇÃO DIRETA A DIREITOS FUNDAMENTAIS

October 15, 2017 | Autor: Francine De Paula | Categoria: Criminal Law, Direito Penal, Execução Penal
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DA REVISTA ÍNTIMA NOS ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS EM DIAS DE VISITA: UMA VIOLAÇÃO DIRETA A DIREITOS FUNDAMENTAIS

Francine Machado de Paula1

RESUMO

Este trabalho analisa a forma como vêm sendo realizadas atualmente as revistas íntimas no sistema prisional brasileiro, de forma a demonstrar sua absoluta incompatibilidade com direitos e valores fundamentais protegidos em âmbito constitucional. Desse modo, busca-se analisar os procedimentos pelos quais os visitantes devem passar quando da realização da revista buscando, por fim, contrastar as reais justificativas para a manutenção da sua realização no ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave: revista íntima, legalidade substancial, intimidade, privacidade, dignidade da pessoa humana.

1 INTRODUÇÃO

A revista íntima realizada nos estabelecimentos prisionais nos dias de visitas permitidos aos presos, embora seja um procedimento habitual, não tem recebido dos estudiosos do Direito a importância necessária, não sofrendo a mesma questionamentos acerca da legitimidade ou não de sua realização. 1

Bacharel em Direito e Especialista em Ciências Penais pela PUC Minas. Mestranda e Doutoranda em Direito Penal pela UFMG.

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Normalmente, durante dias da semana previamente estabelecidos, familiares e amigos de pessoas que cumprem pena privativa de liberdade deslocam-se de suas residências para comparecerem aos estabelecimentos prisionais e assim manterem contato com aqueles que estão do lado de dentro das grades. Porém, antes do estabelecimento deste contato direto entre o preso e seu familiar, cônjuge ou amigo, certos procedimentos de segurança devem ser realizados, razão pela qual os mesmos, em regra, são submetidos à chamada revista íntima. A revista íntima consiste, basicamente, no desnudamento do visitante com o propósito de verificar se o mesmo porta algum tipo de objeto proibido, com vistas a garantir a segurança do estabelecimento prisional. O que nos interessa aqui é discutir a forma como tais revistas vem sendo realizadas, bem como se as mesmas tem possibilitado ou

não a redução da entrada de objetos

proibidos para dentro dos presídios. Será que tal procedimento está sendo eficaz nesse sentido? Ou seria o mesmo apenas uma forma a mais de manter um controle institucional sobre os visitantes dos presos de modo a esconder uma suposta corrupção existente dentro do próprio sistema? São questões como essa que buscaremos abordar neste trabalho.

2 REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA DA REVISTA ÍNTIMA

A revista íntima, como procedimento voltado para a realização de uma inspeção no corpo de visitantes de pessoas em cumprimento de penas privativas de liberdade, embora não muito divulgada e pesquisada no meio acadêmico e jurídico, foi regulamentada, em âmbito nacional, pela Resolução número 9 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), no ano de 2006, com vistas a fazer valer o artigo 41, inciso X, da nossa Lei de Execução Penal, que estabelece como direito do preso a visita do seu cônjuge ou da sua companheira, de parentes ou de amigos, em dias determinados. Tal Resolução disciplina os aspectos gerais acerca dos procedimentos a serem adotados em relação à revista de visitantes para a entrada em estabelecimentos prisionais, cabendo a cada Estado, ou até mesmo ao próprio estabelecimento penitenciário, disciplinar

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a matéria de forma mais específica, desde que não contrariem, é claro, as disposições gerais já determinadas pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. De acordo com o artigo 1º desta Resolução a revista íntima tem por finalidade promover a segurança dentro dos estabelecimentos prisionais. Isso se justificaria pelo fato de que caso não houvesse nenhum tipo de fiscalização das pessoas que adentram no sistema penitenciário em dias de visitas seria extremamente fácil a entrada de objetos proibidos como armas, drogas e afins para dentro destes estabelecimentos.2 Além disso, há previsão da possibilidade da revista ser realizada de forma manual ou através de algum aparelho eletrônico, dispondo a Resolução em seu art.2º, porém, que no caso da revista manual, essa só poderá ser realizada em caráter excepcional, ou seja, “quando houver fundada suspeita de que o revistando é portador de objeto ou substância proibidos legalmente e/ou que venham a por em risco a segurança do estabelecimento”. Dispõe, ainda, em seu parágrafo único, que a “fundada suspeita” exigida para realização da revista manual deve possuir um caráter objetivo, diante de fato identificado, com procedência reconhecida, devendo tudo ser registrado pela administração e assinado pelo revistado. Posteriormente, regula em seus artigos 3º e 4º que a revista deverá preservar a honra e dignidade do revistando, devendo ser realizada em local reservado, e por servidor habilitado, do mesmo sexo. Já no Estado de Minas Gerais, o ato normativo disciplinador de tal matéria é a Lei 12.492, de 1997, que também baseada no pressuposto da segurança para o estabelecimento prisional define quem é considerado “visitante” e quem pode assim ser submetido aos procedimentos da revista. Nesse sentido, estabelece que visitante seria toda e qualquer pessoa que adentra no estabelecimento prisional para manter um contato direto ou indireto com o preso, ou, ainda, para prestar serviços de administração ou manutenção do estabelecimento.

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Art.1º - A revista é a inspeção que se efetua, com fins de segurança, por meios eletrônicos e/ou manuais, em pessoas que, na qualidade de visitantes, servidores ou prestadores de serviço, ingressem nos estabelecimentos penais. §1º A revista abrange os veículos que conduzem os revistandos, bem como os objetos por eles portados. §2º A revista eletrônica deverá ser feita por detectores de metais, aparelhos de raio X, dentre outros equipamentos de segurança, capazes de identificar armas, explosivos, drogas e similares.

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Importante aqui ressaltar que tal Lei excepciona a realização da revista íntima, conceituando-a no parágrafo 1º do seu artigo 4º no seguinte sentido: “Considera-se revista íntima toda e qualquer inspeção das cavidades corporais vaginal e anal, das nádegas e dos seios, efetuada visual ou manualmente, com auxílio de instrumento ou objeto, ou de qualquer outra maneira”. Para realização da revista será necessário, ainda, autorização do Diretor do estabelecimento prisional, que deverá se basear em uma grave suspeita ou em um fato objetivo específico, que se faça acreditar que determinado visitante estaria conduzindo ou pretende conduzir arma ou droga em alguma parte do corpo. Tal revista deverá ser realizada por pessoa do mesmo sexo do visitante, que seja profissional da saúde, exigindo-se também que, antes da revista, o Diretor deverá fornecer ao visitante uma declaração escrita esclarecendo as razões de fato que justificaram sua realização.3 Na verdade, o que se propõe com esses atos normativos, como já dito, é a administração das instituições prisionais com vistas a impedir com tais procedimentos a entrada de objetos e drogas no sistema penitenciário. O que devemos analisar, contudo, é se a forma como tais revistas vem sendo realizadas é legítima e se as mesmas não violam nenhum direito fundamental do visitante, pois apesar de se buscar com elas a segurança e a repressão de delitos dentro do sistema prisional, estas não podem nem devem ser atingidas a todo e qualquer custo, violando direitos e garantias constitucionais elementares dos cidadãos. Existem limites para toda e qualquer forma de intervenção do Estado na esfera individual do cidadão, limites estes que visam garantir o indivíduo face o poder punitivo

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Art. 4º - O procedimento padronizado de revista, previsto no art. 2º, não inclui a realização de revista íntima, que será efetuada excepcionalmente, dentro dos limites fixados nesta lei. § 1º - Considera-se revista íntima toda e qualquer inspeção das cavidades corporais vaginal e anal, das nádegas e dos seios, efetuada visual ou manualmente, com auxílio de instrumento ou objeto, ou de qualquer outra maneira. § 2º - A revista íntima será realizada exclusivamente com expressa autorização do Diretor do estabelecimento prisional, baseada em grave suspeita ou em fato objetivo específico que indique que determinado visitante pretende conduzir ou já conduz algum tipo de arma ou droga em cavidade do corpo. § 3º - Previamente à realização da revista íntima, o Diretor do estabelecimento fornecerá ao visitante declaração escrita sobre os motivos e fatos objetivos que justifiquem o procedimento. § 4º - Quando não houver tempo suficiente para sua expedição prévia, o documento a que se refere o § 3º será fornecido até 24 (vinte e quatro) horas depois da revista íntima, sob pena de sanção administrativa. § 5º - A revista íntima será efetuada de forma a garantir a privacidade do visitante, por pessoa do mesmo sexo, com formação na área de saúde.

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estatal e que, portanto, devem ser respeitados. Mas será que o procedimento da revista íntima obedece tais limites? É o que no momento passaremos a discutir.

2.1 Na prática a teoria é outra

Como já demonstrado anteriormente, tanto a Resolução número 9 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária como a Lei Estadual de Minas Gerais, colocam a realização da revista íntima como sendo uma exceção, ou seja, só pode ser realizada quando houver fundada suspeita de que o revistando é portador de objeto ou substâncias proibidas legalmente e/ou que venha a por em risco a segurança do estabelecimento. A regra, portanto, deveria ser a realização apenas de procedimentos superficiais, realizados por agentes penitenciários sobre a roupa do visitante, ou até mesmo com um mero detector de metais, já que a própria Resolução permite a utilização desses instrumentos. Contudo, o que assistimos na prática é a conversão de algo que deveria ser tido como uma exceção em regra. Ao colocar o visitante em condição automática de suspeito, o Estado passa a imiscuir em sua intimidade, fazendo com que a realização desse tipo de revista se torne uma afronta direta a direitos fundamentais. Não satisfeito em punir severamente e da pior forma possível aqueles que já foram condenados pela prática de um delito, o Estado agora se emerge para atingir também familiares e amigos do preso por meio de procedimentos altamente degradantes e vexatórios. Em relato realizado por familiar de uma pessoa que se encontra cumprindo pena privativa de liberdade, podemos verificar como as revistas vêm sendo realizadas: “Eu vou tentar contar um pouco da humilhação que passo nesse presídio. Chego às seis da manhã e só entro ao meio dia. Fico debaixo do sol ou da chuva, e após quatro horas de espera chega a humilhante revista. Depois de nos humilharmos bastante, de ficar nua, ter que agachar e levantar várias vezes e ainda sentar num banco sujo, porco, para abrimos o ânus a Agente Penitenciária nos diz: “Infelizmente, a senhora não poderá entrar”. Um dia a desculpa é porque não viu o canal vaginal, outro dia me mandaram fazer força e tossir até ficar roxa. Outra vez me mandaram limpar a bunda, a agente cheirou e mandou a outra cheirar. Ela

6 falou para a colega: “- Viu? Essa mulher passou lubrificante. E agora, a senhora continuará mentindo? Pode voltar para casa que hoje a senhora não entra. ”4

A revista meramente preventiva, é aquela superficial, que se realiza sobre a roupa do visitante, sem que provoque qualquer tipo de violação a seus direitos, por não ser invasiva. Já a revista que vem se tornando regra nos estabelecimentos penitenciários, como visto no fragmento acima, ao contrário disso, consiste no desnudamento do visitante que, colocado a frente de agentes penitenciários responsáveis por tais tipos de procedimentos, passa por uma averiguação totalmente vexatória. Tal procedimento, em regra, é realizado da seguinte forma: o visitante é chamado pelo responsável pela revista em uma sala reservada, onde é “convidado” a retirar toda sua vestimenta. Após isso, é levado a agachar e levantar três vezes, normalmente sobre um espelho, para que os agentes penitenciários possam verificar se os visitantes não trazem nenhum tipo de objeto proibido nas cavidades de seus corpos ou em seus órgãos genitais. No caso da visita ser do sexo masculino, pede-se que a mesma vire de costas para analisarem se não porta também nenhum desses objetos no ânus. Além disso, no caso das mulheres, ainda pedem para que as mesmas tussam, pois caso existam tais objetos escondidos, com este ato, os mesmos tenderiam a se desprender dos órgãos genitais. Não bastasse o constrangimento pelo qual o visitante tem que se submeter ao ter que se despir na frente de terceiros, desconhecidos, não raras vezes ainda ocorre a introdução do dedo do executor da revista no ânus ou na vagina do visitante para que a “fundada suspeita” seja totalmente sanada. 5 De acordo com Thais Lemos Duarte: “Essa revista é mais rigorosa nos visitantes de sexo feminino. Os homens apenas tiram as roupas em frente aos agentes penitenciários e as vestem novamente. Em algumas unidades prisionais, os homens somente passam por revistas manuais, não precisando ficar nus. As mulheres devem se despir, ficando nuas diante das agentes penitenciárias. Via de regra, elas devem abaixar e levantar três vezes, primeiro de frente e depois de costas. De acordo com o relatório "Procedimento de revista dos familiares das pessoas presas no estado do Rio Janeiro", divulgado 4

Fragmentos de carta encaminhada ao Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. LAMBERT, Andreza; MAGALI, Camila; MENEZES, Andreza; MATTOS, Virgílio de; OTONI, Pedro; RIBEIRO, Rafael. Campanha contra a revista vexatória. Cartilha distribuída pelo Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Tiragem: duas mil. Publicação: Julho de 2009. P.03. 5 LAMBERT, Andreza; MAGALI, Camila; MENEZES, Andreza; MATTOS, Virgílio de; OTONI, Pedro; RIBEIRO, Rafael. Campanha contra a revista vexatória. Cartilha distribuída pelo Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Tiragem: duas mil. Publicação: Julho de 2009. P.05.

7 pela Associação pela Reforma Prisional (ARP) da Universidade Cândido Mendes, em algumas penitenciárias as mulheres precisam ficar despidas, virar de costas, abaixar o tronco e olhar a agente entre as pernas. Em outros presídios, as mulheres precisam ficar com o tronco para baixo, abrir suas partes íntimas com as mãos e soprar uma garrafa plástica".6

A grande questão que se coloca a esse respeito é acerca de qual conduta essas pessoas praticaram para serem consideradas suspeitas? Qual o critério a ser adotado para submeter os visitantes a esse tipo de revista e considerá-los presumidamente suspeitos? Esse critério da “fundada suspeita” exigido pela lei é por demais subjetivo e pode levar às mais graves discriminações. Como sabemos, a maior parte da população carcerária, é formada por pobres e negros. Se tomamos isso como ponto de partida, teremos em regra, e por conseqüência, que os familiares dos presos também deverão se encaixar nesses perfis. Talvez aqui se encontre o maior problema que deve ser observado em relação à subjetividade do requisito da “fundada suspeita” exigido para a realização da revista, pois certamente ela recairá com muito mais freqüência sobre os familiares pobres e negros, que passam agora a ser duplamente estigmatizados pelo sistema, pois além de serem pobres e negros ainda são familiares ou amigos de algum criminoso. Passam a ser assim os alvos prediletos dos mais arbitrários procedimentos a favor da “segurança do estabelecimento prisional”. Como bem dispõe Augusto Thompson: “Noventa e cinco por cento dos presos pertencem à classe social mais baixa. Desse modo, a criminologia tradicional infere a conclusão de que a maioria dos criminosos é pobre e, logo, a pobreza se apresenta como um traço característico da criminalidade. Essa inferência “científica”, recebe-a com entusiasmo a burguesia, uma vez que se casa à perfeição com a ideologia por ela esposada, a qual se estrutura basilarmente na teoria do contrato social: todas as pessoas são iguais perante a lei; por conseqüência, a todas são propiciadas oportunidades idênticas na vida; vencem [...] as dotadas de melhores qualidade [...]; logo, as melhores estão nas classes altas, as piores nas classes inferiores; o crime é algo mau em si, resultado, pois, da ação de pessoas más; daí, nada mais lógico do que concluir que o crime é uma manifestação típica das classes baixas”.7

Em pesquisa realizada no Rio de Janeiro, foi constatado que policiais militares tendem a analisar como critérios de suspeição dados como idade, gênero, vestimenta cor e

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DUARTE, Thais Lemos. Análise dos procedimentos de revistas íntimas realizados no sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro. Revista sociologia jurídica, v. 1, 2010. P.15-16. 7 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos?. 2aed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p.32.

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classe social. Nesse sentido, Silvia Lemos e Leonarda Musumeci, alegam que a possibilidade de alguém ser abordado para uma revista pessoal, por exemplo, simplesmente por ser negro, é gigantesca. Tais autoras alegam nesse sentido que: “[...] a maioria da população da população considera as abordagens policiais, de modo geral, seletivas, ou mesmo abertamente discriminatórias: cerca de 60% acreditam que a polícia escolhe pela aparência física quem será abordado(a), incluindo aí cor da pele (40,1%) e modo de vestir (19,7%); na opinião de 80% dos cariocas, os jovens são mais parados que as pessoas mais velhas; para cerca de 60%, os negros são mais parados que os brancos e os pobres mais do que os ricos”. 8

Assim, a cor da pele, por si só, ocupa um lugar de destaque na hierarquia de todas aqueles dados utilizados para considerar certas pessoas mais suspeitas que outras, e quando da realização da revista íntima para entrada nos estabelecimentos prisionais, o marco de escolha não difere destas mesmas características. Não é novidade para ninguém que o Direito Penal faz recair suas sanções e sua força sobre o setor menos privilegiado da sociedade. Todo aquele que se enquadra numa esfera distinta de um modelo que foi imposto pelos grandes detentores do poder econômico passa a ser visto como uma ameaça, como um verdadeiro inimigo, razão pela qual suas condutas devem ser consideradas sempre suspeitas. Como potenciais criminosos, o sistema tem que adotar medidas de prevenção para que os mesmos não venham a delinqüir ou a comprometer a ordem interna de segurança. Para isso passa a se justificar qualquer tipo de intervenção, mesmo que esta contrarie direitos fundamentais do cidadão. Como bem dispõe Eugênio Raul Zaffaroni, existe em verdade, dois modelos de Direito Penal: um para aquelas pessoas que pertencem às camadas sociais mais beneficiadas, e outro para aqueles que dela não fazem parte.9 Para os primeiros há sempre um tratamento digno, para os segundos, há sempre o pior do pior. Isso posto, temos que “A escolha para a revista corporal é um verdadeiro exercício de adivinhação, vez que a imposição ao procedimento, sem qualquer fato ou diligência anterior, baseia-se na possibilidade de ocorrência de evento remoto, como se o responsável

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MUSEMECI, Leonarda; RAMOS, Silvia. Elemento Suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2005. P.209. 9 ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.101.

9 pelo procedimento de revista tivesse o poder de prever o futuro apenas ao olhar para o visitante, presumindo que o mesmo seja portador de materiais, objetos ou substâncias proibidas. O que é um absurdo!” 10

A lógica, portanto, é: se é pobre é tendencialmente criminoso, logo, teremos que prevenir a prática de delitos por parte do mesmo a qualquer custo. A máquina repressiva precisa se ajustar de modo a atacar os possíveis descumpridores da lei. É exatamente isso que temos com a revista íntima: ao menos teoricamente, a possibilidade de impedir que os “potenciais criminosos” transportem objetos proibidos para dentro das prisões. A violação a direitos elementares passa a ser justificada pela segurança. Tudo isso em nome da segurança. Só não sabemos ainda da segurança de quem.

2.2 Da transferência dos efeitos da pena para a pessoa do visitante

De acordo com o que prevê o art. 5º, inciso XLV da nossa Constituição, a pena não poderá ultrapassar a pessoa do condenado. Esse, ao menos em tese, seria um direito garantido a todo e qualquer cidadão para que o mesmo não tenha que suportar as conseqüências advindas de um fato delituoso praticado por outrem. Em tempos passados, ainda na época do Direito Penal Germânico antigo, admitiase a transferência da pena para familiares do criminoso que, de certa forma, eram elevados à condição de responsáveis pelos atos praticados pelos mesmos. Nesse sentido, Nilo Batista nos esclarece que nessa época: “[...] para além de não ser subjetiva (interessada pela representação, erros, vontade, motivação, finalidades, e outras situações anímicas do autor), a responsabilidade penal também não é pessoal (circunscrita à pessoa do autor). Desde logo, a ignorância sobre a identidade do autor estabelece a imputação do fato a todo o grupo ao qual pertence. A faida é uma situação de inimizade, e logo beligerância, entre estirpes, não entre indivíduos; a conduta desviante macula a totalidade indissolúvel da Sippe, e a vingança do sangue pode exercer-se contra qualquer de seus membros, tanto quanto [...] pode alcançar parentes do autor”.11 10

LAMBERT, Andreza; MAGALI, Camila; MENEZES, Andreza; MATTOS, Virgílio de; OTONI, Pedro; RIBEIRO, Rafael. Campanha contra a revista vexatória. Cartilha distribuída pelo Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Tiragem: duas mil. Publicação: Julho de 2009. P.06. 11 BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro, I. 2a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. P.41.

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Ainda de acordo com Nilo Batista, foi apenas com o Direito Penal Visigótico que se introduziu no sistema a garantia da responsabilidade individual, com a finalidade de possibilitar a redução da escravização dos familiares daqueles que cometiam homicídios, impedindo-se assim que “familiares, vizinhos, e mesmo herdeiros respondessem pelo fato alheio, pois o crime devia extinguir-se com quem o cometeu”12. Embora tal proibição já tenha sido proclamada em tempos remotos, ainda veio garantida expressamente, como já dito, em nossa Constituição. Ocorre, porém, que tal preceito, dentre outras situações que não nos cabe no momento apreciar, é diretamente violado quando em questão a realização da revista íntima. Dizemos isso porque, na prática, o que se afere é que o visitante do preso, por ser seu parente, amigo ou cônjuge, é automaticamente colocado na condição de suspeito simplesmente por possuir tais vínculos com o mesmo. Como possui com ele algum tipo de contato, é estigmatizado de forma a ser considerado como “suspeito” para a prática de atos delituosos, como no caso, possibilitar a entrada de objetos proibidos para dentro do estabelecimento prisional. Ora, o que temos com isso é uma restrição direta de direitos do visitante em razão da simples existência de um vínculo entre visitante e preso. Como o visitante é amigo ou parente de quem cometeu um delito, terá seus direitos restringidos ou violados por conta disso. Nesse sentido, como bem nos aponta Yuri Frederico Dutra: “Como se fosse um mal contagioso ser criminoso, a estigmatização e o preconceito são configurados como uma outra pena que é transferida do recluso para o seu familiar. Pretendendo levar uma vida normal, muitos familiares preferem não fazer comentários abertos com pessoas de seu convívio social ou com as quais possui vínculo empregatício, sobre a sua situação de familiar de recluso, para não sofrerem preconceitos desnecessários”.13

Portanto, o simples fato de manter uma relação, seja de parentesco, seja de amizade com um detento, já é suficiente para que os visitantes sejam vistos como potenciais criminosos, capazes de romper com a segurança do estabelecimento prisional. Para isso, direitos são violados, restringidos, passando o visitante a sofrer conseqüências diretas a seus direitos, a serem vistos também como criminosos, o que desrespeita um dos 12

BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro, I. 2a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. P.85. DUTRA, Yuri Frederico. Como se estivesse morrendo: a prisão e a revista íntima em familiares de reclusos em Florianópolis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P.82. 13

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mais elementares princípios consagrados em âmbito penal e constitucional, que é o da pessoalidade de pena.

3 DA VIOLAÇÃO DIRETA A DIREITOS FUNDAMENTAIS QUANDO DA REALIZAÇÃO DA REVISTA ÍNTIMA

O que vale-nos no momento discutir é se a revista íntima, tal como vem sendo realizada atualmente, é capaz ou não de violar direitos fundamentais previstos em âmbito constitucional. Para isso, iremos nos valer da análise de alguns conceitos e doutrinas, direcionados para a construção de um critério de legalidade voltado não apenas para o aspecto formal de produção, mas sobretudo, para um aspecto substancial, e para tal, tomaremos como ponto de partida teoria desenvolvida da por Luigi Ferrajoli. 14

3.1 Luigi Ferrajoli e a teoria geral do garantismo

A noção do garantismo, como um modelo baseado em parâmetros de racionalidade, justiça e ao mesmo tempo de limitação e minimização da intervenção do poder punitivo na esfera de liberdade individual do cidadão, nos é apresentada por Luigi Ferrajoli, o grande defensor e criador deste paradigma, que nasce como uma forma de busca pela defesa do Estado de direito e de um ordenamento jurídico democrático. 15 Tendo em vista a teoria defendida por aludido autor, a palavra garantismo pode ser analisada sob três acepções diversas. De acordo com uma primeira acepção, o garantismo se apresenta como um modelo normativo de direito, se caracterizando, desse modo, no âmbito epistemológico, como um sistema de poder mínimo. No plano político, 14

Vale destacar que não pretendemos aqui tecer a mínimos detalhes toda a teoria do garantismo criada por Luigi Ferrajoli, razão pela qual trabalharemos apenas os aspectos que no momento nos interessam para uma melhor compreensão do tema. 15 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal. Editorial Trotta: Madrid, 1995. P.851.

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como uma técnica de tutela capaz de diminuir a violência e ampliar a liberdade. E, por fim, no plano jurídico, como um instrumento que vincula o poder punitivo do Estado de modo a garantir os direitos dos cidadãos. 16 Já numa segunda acepção, garantismo pode ser entendido como uma teoria de validade e de efetividade, relacionada diretamente com a idéia de vigência e existência das normas. Busca-se, nesse sentido, uma diferenciação entre validade e vigência, de forma a confrontar a possibilidade de existência de normas dentro do ordenamento jurídico que, embora vigentes, não podem ser consideradas válidas, principalmente, por sua não conformidade com valores constitucionais. Nesse sentido, dispõe Luigi Ferrajoli que: “Esta perspectiva crítica no es externa, política o metajurídica, sino interna, científica y jurídica, en el sentido de que asume como universo del discurso jurídico la totalidad del derecho positivo vigente, evidenciando sus antinomias en vez de ocultarlas y deslegitimando así, desde el punto de vista del derecho válido, los perfiles antiliberales y los momentos de arbitrio del derecho efectivo”. 17

Por fim, existe ainda uma última acepção, que apresenta o garantismo como uma filosofia política que requer uma separação entre direito e moral, entre a validade e a justiça, enfim, entre o “ser” e o “dever ser”. 18 Das três acepções apresentadas, capazes de dar vazão não apenas a uma teoria penal mas também geral do garantismo, as que nos interessam no momento são as duas primeiras, que ao delinearem a idéia do garantismo o elevam à categoria de instrumento capaz de garantir os direitos do cidadãos face à possibilidade de intervenção estatal. E nesse sentido, temos a necessidade de existência de um nexo irremediável de correspondência e obediência da legislação penal a determinados valores e direitos previstos na Constituição. Em verdade, o que Luigi Ferrajoli defende é que o Estado de direito, embora amplamente adotado como paradigma na maior parte dos ordenamentos do mundo, vem sofrendo algumas limitações, não funcionando assim da forma como deveria funcionar. Isso fez com que surgisse a necessidade de aperfeiçoamento deste modelo, devendo o mesmo se caracterizar, sobretudo, por uma dupla sujeição à qual deve estar subordinado formalmente e substancialmente o legislador. 16

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal. Editorial Trotta: Madrid, 1995. P.851. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal. Editorial Trotta: Madrid, 1995. P.853. 18 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal. Editorial Trotta: Madrid, 1995. P.853. 17

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Ao abordar a questão Luigi Ferrajoli nos esclarece que: “De aquí se desprende una innovación en la propia estructura de la legalidad, que es quizá la conquista más importante del derecho contemporáneo: la regulación jurídica del derecho positivo mismo, no sólo en cuanto a las formas de producción sino también por lo que se refiere a los contenidos producidos”. 19

O que Luigi Ferrajoli quer demonstrar com isso, é que quando do surgimento das modernas Constituições, o Estado de direito passou a ser interpretado como uma forma de legitimação apenas formal. Desde que se observassem critérios formais para criação das leis, estas se tornariam válidas, independentemente da exigência de observância de qualquer critério substancial, referente ao seu conteúdo. Ocorre, contudo, que isso pode dar lugar à criação de Estados totalitários, pois uma norma pode se revestir do caráter “legal”, desde que observados os procedimentos e as competências exigidas para sua criação, independentemente do conteúdo que a mesma apresente.20 Tomado nesse sentido, o Estado de direito, para Ferrajoli, deve designar: “[…] no simplemente un «estado legal» o «regulado por la ley», sino un modelo de estado nacido con las modernas Constituciones y caracterizado: a) en el plano formal, por el principio de legalidad, en virtud del cual todo poder público legislativo, judicial y administrativo- está subordinado a leyes generales y abstractas, que disciplinan sus formas de ejercicio y cuya observancia se halla sometida a control de legitimidad por parte de jueces separados del mismo e independientes (el Tribunal Constitucional para las leyes, los jueces ordinarios para las sentencias, los tribunales administrativos para las decisiones de ese carácter); b) en el plano sustancial, por la funcionalización de todos los poderes del estado al servicio de la garantía de los derechos fundamentales de los ciudadanos, mediante la incorporación limitativa en su Constitución de los deberes públicos correspondientes, es decir, de las prohibiciones de lesionar los derechos de libertad y de las obligaciones de dar satisfacción a los derechos sociales, así como de los correlativos poderes de los ciudadanos de activar la tutela judicial”.21

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FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. 4a ed. Editorial Trotta: Madrid, 2004. P.19. É nesse mesmo sentido a posição de Rodolfo Moreno Cruz, que ao abordar a questão nos diz que: “Interpreto a Ferrajoli de la siguiente forma: el Estado de derecho fue entendido como un Estado que sólo demanda la legitimación formal; es decir una legitimación que proviniera de un poder otorgado por leyes y que sólo conmina al cumplimiento de una forma legal. Ahí está el peligro pues hasta los gobiernos totalitarios pueden revestir una forma legal. Por el contrario, los estados constitucionales exigen una legitimación sustancial; legitimación que pende de un contenido estricto en la limitación de poderes”. CRUZ, Rodolfo Moreno. Democracia e derechos fundamentales en la obra de Luigi Ferrajoli. Universitas. Revista de Filosofía, Derecho e Política. Número 4. Madrid: Verano de 2006. P.08. 21 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal. Editorial Trotta: Madrid, 1995. P. 856857. 20

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O Estado de direito, assim, tomado por meio de uma visão garantista, como o próprio nome já diz, deve proteger o indivíduo, garantindo-lhe a não violação por meio do Estado daqueles direitos tidos como fundamentais. Os valores consagrados na Constituição devem servir como limites para o próprio legislador, não podendo o mesmo legislar de forma a violar direitos do cidadão previstos constitucionalmente, mesmo que isso seja necessário para garantir a segurança da maioria ou, ainda, a segurança de um estabelecimento prisional, que é o que no momento efetivamente nos interessa.

3.2 A nova estrutura da legalidade e sua incompatibilidade com os atos normativos que regulamentam a revista íntima

De acordo com o que o acima foi exposto temos que, em verdade, ao analisar os ordenamentos jurídicos, sejam eles de qualquer país, podemos verificar o grau de garantismo dos mesmos a partir do seu funcionamento. Quanto mais as leis penais atendam aos princípios constitucionais recepcionados por suas Constituições, maior será o seu grau de garantismo. Ao contrário, quanto menor for a observação a tais princípios, menos garantista o sistema será. 22 Diante disso, surge a necessidade de se reestruturar a própria noção de legalidade, no sentido de não vinculá-la apenas a um aspecto formal, surgindo, além disso, a obrigatoriedade de vinculá-la também a um conteúdo substancial como exigência do próprio paradigma do Estado de direito. Nesse sentido, Luigi Ferrajoli nos esclarece que: “Gracias a la rigidez de las constituciones la legalidad ha cambiado su naturaleza: no es más sólo condicionante y reguladora, sino que está ella misma condicionada y regulada por vínculos jurídicos no solamente formales sino también sustanciales; no es más simplemente un producto del legislador, sino que es también proyección jurídica de la legislación

Luigi Ferrajoli dispõe que: “Al tratarse de un modelo límite, será preciso hablar, más que de sistemas garantistas o antigarantistas tout court, de grados de garantismo; y además habrá que distinguir siempre entre el modelo constitucional y el funcionamiento efectivo del sistema. Así, diremos por ejemplo que el grado de garantismo del sistema penal italiano es decididamente alto si se atiende a sus principios constitucionales […]”.FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal. Editorial Trotta: Madrid, 1995. P.852. 22

15 misma, y por tanto límite y vínculo al legislador y por ello a las mayorías contingentes de las que es expresión”.23

A exigência agora passa a ter um caráter dúplice: que se obedeça não apenas a forma, mas também o conteúdo. Não basta para que uma lei ou qualquer outro ato normativo seja considerado constitucional, que os mesmos obedeçam simplesmente os procedimentos previstos constitucionalmente para sua produção. É necessário ainda que eles estejam em consonância com os valores e os princípios previstos constitucionalmente sob pena de se tornarem ilegítimos, inconstitucionais e até mesmo nulos. Essa é uma função de garantia que surge para o cidadão como forma de tutela dos próprios direitos fundamentais, e antes disso, até mesmo uma questão própria de hierarquia face ao posicionamento que a Constituição ocupa nos ordenamentos jurídicos diante de atos normativos inferiores a ela. Surge então a necessidade de observação não apenas das formas de produção mas sobretudo dos conteúdos produzidos, pois uma Constituição pode ser extremamente avançada no que diz respeito aos valores por ela consagrados, porém, pode não passar de um simples amontoado de papel se tais valores não forem garantidos contra o poder de intervenção do Estado na liberdade dos cidadãos. Queremos dizer com isso que não adianta em nada a previsão dos mais variados direitos fundamentais em âmbito constitucional se o legislador infraconstitucional, ao elaborar uma lei ou qualquer outro ato normativo pertinente, não se atenta para a observância desses valores de modo a não violá-los, pois “Esta divergencia entre la normatividad del modelo en el nivel constitucional y su ausencia de efectividad en los niveles inferiors comporta el riesgo de hacer de aquél una simple fachada, con meras funciones de mistificación ideológica del conjunto”24. E

é

exatamente

dentro

desta

problemática

que

devemos

analisar

a

constitucionalidade ou não dos atos normativos elaborados para regulamentar a revista íntima nos presídios e os procedimentos para tais fins previstos.

23

FERRAJOLI, Luigi. Sobre los Derechos Fundamentales. Cuestiones Constitucionales. Revista Mexicana de Derecho Constitucional. Número 15. Año 2006 – Julio/Diciembre. P.114. 24 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoria del garantismo penal. Editorial Trotta: Madrid, 1995. P.852.

16

Como já dito, o Conselho Nacional de Política Criminal criou a Resolução número 9, que é a que dita a possibilidade de realização da revista íntima, bem como as diretrizes que devem ser consideradas para sua realização, em âmbito nacional. Quanto à observância aos critérios formais, não vemos nenhum tipo de ilegitimidade em relação à criação de tal Resolução, tendo-se em vista que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão do Poder Executivo subordinado diretamente ao Ministério da Justiça, possui competência para legislar em qualquer matéria referente a questões prisionais. 25 Na verdade, o que tal Resolução fez, foi nada mais que regulamentar expressamente a possibilidade trazida pelo artigo 41, inciso X, da Lei de Execução Penal, que estabelece a visita como um direito do preso. Assim sendo, seria logicamente necessário a criação de tal Resolução para que fossem ditadas as diretrizes a serem tomadas em âmbito estadual, de forma a estabelecer uma uniformização em relação aos procedimentos a serem adotados quando da realização destas visitas. A Resolução dita as normas gerais, que devem ser obrigatoriamente observadas em âmbito estadual ou por atos normativos de cada estabelecimento prisional, e quanto a isso não existe problema ou vício de competência algum. Isto posto, nada há que se falar em relação aos requisitos formais de produção de tal Resolução, obedecendo a mesma ao princípio da legalidade formal. Contudo, o que dizer sobre seu conteúdo? Estaria ele de acordo com os princípios e valores constitucionais? Há neste ato normativo, emanado por órgão do Executivo, a observância ao aspecto substancial também exigido pelo princípio da legalidade? Ao trabalhar o tema do princípio da legalidade, Luigi Ferrajoli mais uma vez nos atenta para o fato de que: “Gracias a él, el derecho contemporáneo no programa solamente sus formas de producción através de normas de procedimiento sobre la formación de las leyes y demás disposiciones. Programa además sus contenidos sustanciales, vinculándolos normativamente a los principios y a los valores inscritos en sus constituciones, mediante técnicas de garantía cuya elaboración es tarea y responsabilidad de la cultura jurídica. Esto conlleva una alteración en diversos planos del modelo positivista clásico: a) en el plano de la teoría del derecho, De acordo com Yuri Frederico Dutra: “[…] mesmo sendo subordinado e hierarquicamente inferior ao Ministério da Justiça, é através do CNPCP, como órgão descentralizado, que o Estado atua nas políticas criminais e penitenciárias e tem o poder de emitir Resoluções. DUTRA, Yuri Frederico. Da inconstitucionalidade da revista íntima realizada em familiares de presos, a segurança prisional e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 13, número 2, 2008. P.96. 25

17 donde esta doble artificialidad supone una revisión de la teoría de la validez, basada en la disociación entre validez y vigencia y en una nueva relación entre forma y sustancia de las decisiones; b) en el plano de la teoría política, donde comporta una revisión de la concepción puramente procedimental de la democracia y el reconocimiento también de una dimension sustancial; c) en el plano de la teoría de la interpretación y de la aplicación de la ley, al que incorpora una redefinición del papel del juez y una revisión de las formas y las condiciones de su sujeción a la ley; d) por último, en el plano de la metateoría del derecho, y, por tanto, del papel de la ciencia jurídica, que resulta investida de una función no solamente descriptiva, sino crítica y proyectiva en relación con su objeto”.26

Uma vez isto posto, o que nos cabe no momento indagar portanto é: o procedimento da revista íntima, previsto pela Resolução número 9 do CNPC é constitucional? Ele obedece direitos fundamentais previstos para todo e qualquer cidadão? Seria ela uma norma não apenas vigente, mas sobretudo, válida? Como veremos a seguir, não há que se falar em observância aos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e, sobretudo, à dignidade da pessoa humana quando se permite a realização da revista íntima, por ser este procedimento algo extremamente vexatório. Embora prevista como exceção no artigo 2º da Resolução, o que vemos na prática é a realização da revista íntima como uma regra, e ato normativo do Executivo não pode ser criado para violar diretamente direitos fundamentais, mesmo quando isso se apresente como uma exceção. Assim, embora a norma que possibilita a realização da revista íntima nos visitantes do preso esteja vigente no nosso ordenamento, a mesma não é válida. E não é válida porque o princípio da legalidade substancial deve vincular o legislador impondo-lhe limites. Estes limites serão encontrados nos direitos e valores constitucionais, que devem ser respeitados quando da elaboração de qualquer ato normativo, mesmo que isso contraria a vontade da maioria, que justifica tal procedimento na busca por segurança. Nesse sentido, nos ensina Luigi Ferrajoli que: “Ninguna mayoría, ni siquiera por unanimidad, puede legítimamente decidir la violación de un derecho de libertad o no decider la satisfacción de un derecho social. Los derechos fundamentales, precisamente porque están igualmente garantizados para todos y sustraídos a la disponibilidad del mercado y de la política, forman la esfera de lo indecidible que y de lo indecidible que no; y

26

FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. 4a ed. Editorial Trotta: Madrid, 2004. P.20.

18 actúan como factores no sólo de legitimación sino también y, sobre todo, como factores de deslegitimación de las decisiones y de las no-decisiones”.27

Como veremos, já existem mecanismos eletrônicos capazes de detectar qualquer tipo de objeto dentro do corpo humano que se apresente como de entrada proibida dentro dos estabelecimentos prisionais. Se assim o é, por que realizar uma revista pessoal, extremamente invasiva à intimidade do visitante? O argumento da segurança do estabelecimento prisional e da prevenção de futuros delitos no seu interior não pode servir de manto para a violação direta de direitos fundamentais do cidadão, nem de forma excepcional, e muito menos, como regra, que é o que vemos assistindo hoje na realização desse tipo de revista. Como visto, os direitos fundamentais devem servir sempre como limite para o legislador, devendo vinculá-lo à sua não violação. É o direito regulando o próprio direito, e é esta a grande inovação trazida pela nova estrutura do princípio da legalidade sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. A possibilidade de se regular não apenas a forma, mas sobre o conteúdo das leis.

3.3 Do direito à dignidade da pessoa humana, à intimidade e à privacidade.

Como sabemos, nossa Constituição eleva como fundamento da República Federativa do Brasil, em seu artigo 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana. Esta, portanto, é tida como um valor supremo e que deve ser respeitado, sendo considerada, em verdade, um pressuposto para todos os outros direitos do cidadão. Uma vez tida como fundamento, todo o ordenamento jurídico deve nela se pautar, embora na prática isso muita vezes não ocorra. Apesar de ser extremamente difícil sua conceituação, Imanuel Kant foi um dos principais nomes que buscou no decorrer dos séculos dar um conteúdo para a idéia de dignidade da pessoa humana, uma vez que parte do pressuposto de que o homem não pode ser considerado como um objeto, ou como um meio para o alcance de um determinado fim. 27

FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. 4a ed. Editorial Trotta: Madrid, 2004. P.24.

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Dessa forma, o homem deve ser tratado como um fim em si mesmo, o que o diferenciaria dos objetos e dos animais. 28 Isso nos leva à conclusão de que o Estado existe em função de todas as pessoas, e não o contrário, passando a dignidade da pessoa humana a ser considerada uma garantia fundamental. Tendo-se por base uma conceituação genérica, já que como salientado, a noção de dignidade da pessoa humana é ainda algo muito discutido pela própria doutrina, podemos considerar como tal o respeito, o valor moral e espiritual do cidadão, um valor intrínseco do ser humano. Ingo Wolfgang Sarlet, ao conceituar tal princípio, estabelece que: “[...] tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.29

Se tomamos tal conceito por base, como podemos defender a revista íntima como um procedimento não atentatório à dignidade da pessoa humana? Não seria ela um ato degradante e desumano e, portanto, contrário a tal valor? Em relatos dados por um visitante submetido a tal procedimento na cadeia de da cidade de Rio do Sul, Santa Catarina, podemos verificar a forma como a revista é realizada e seu caráter extremamente vexatório: “[…] Na primeira vez que passei pela revista foi chato, fiquei meio envergonhado, não sabia como era. A minha mãe não gostou também de ser revistada. Ela reclamou com a gente. Ela não gostou de mostrar o corpo dela para outra pessoa. Ela só mostrava para o pai. A gente se sente humilhado ao fazer a revista, porque é uma coisa que a gente nunca faz. Acredito que se tivesse detector de metal ou se não tivesse que tirar a roupa toda e ficar se abaixando para os outros seria melhor. Acho que é necessário a revista, porque como eles dizem: Entra muita droga no presídio. Mas é ruim porque tem que se humilhar para eles. Poderia deixar cintas, bonés, mas não tirar as calças”.30 28

LEMOS, Rafael Diogo Diógenes. A dignidade da pessoa humana: conteúdo, limites e possibilidades. Revista Discurso Jurídico. Campo Mourão, v.4, n.2, ago/dez 2008. P.44. 29 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoal humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. Revista Brasileira de Direito Constitucional – RBDC n. 09 – jan./jun. 2007. P.383. 30 DUTRA, Yuri Frederico. Como se estivesse morrendo: a prisão e a revista íntima em familiares de reclusos em Florianópolis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P.105.

20

Temos, com tal relato, mais do que comprovado que a revista íntima hoje realizada pelos agentes penitenciários viola a dignidade da pessoa humana, pois submete o visitante a uma situação degradante, humilhant e até mesmo ofensiva à moral de visitantes mais velhos e mais conservadores que são obrigados a se despirem frente a pessoas desconhecidas, quando durante a vida inteira fizeram isso apenas perante seus maridos. Por outro lado, temos que nossa Constituição declarou ainda como invioláveis em seu artigo 5º, inciso X, a intimidade e a privacidade, que também são direitos fundamentais do cidadão. Existe uma discussão na doutrina a respeito de tais direitos, sendo que alguns doutrinadores os consideram como direitos distintos, diferenciando assim a intimidade da privacidade. Outros consideram a privacidade como um gênero que teria como espécie a intimidade e, por fim, ainda existe uma corrente minoritária que considera a vida privada como um dos elementos que integrariam para fins jurídicos o próprio conceito de intimidade.31 Embora não tenhamos aqui a intenção de aprofundar o tema, foi clara a opção adotada pela nossa Constituição de diferenciação destes direitos, visto que cita os mesmos de forma separada, não nos dando a entender que um deles seria gênero que abarcaria o outro como espécie. Diante disso, José Adércio Leite Sampaio, nos esclarece que: “No uso vulgar das expressões “intimidade” e “vida privada”, percebe-se em conteúdo muito próximo, senão equivalente, embora seja bem mais frequente o uso da primeira e de suas variantes. Quando dizemos, por exemplo, assunto íntimo, estamos a nos referir a algo reservado, exclusivo, privado. Se, no entanto, falarmos “ter intimidade”, impõe-se o terceiro como titular desse espaço de reserva; seria uma qualidade ou situação de que gozaríamos ou em que estaríamos perante o outro: ser dele próximo, confidente, ter liberdade para expressar-lhe certos sentimentos, emitir opiniões ou fazer algum tipo de pedido, sem formalidade. Assim também “invadir a intimidade” importa conhecer os segredos e assuntos pessoais do outro, ocupar um âmbito restrito a poucos ou a ninguém”.32

31

FREGADOLLI, Luciana. O direito à intimidade e a prova ilícita. Del Rey: Belo Horizonte, 1998. P.45. SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão jurídica da sexualidade, da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. P. 269. 32

21

Já em relação à vida privada, Tércio Sampaio Ferraz ainda esclarece que: “A privacidade, como direito, tem por conteúdo a faculdade de constranger os outros ao respeito e de resistir à violação do que lhe é próprio, isto é, das situações vitais que, por lhe dizerem a ele só respeito, deseja manter para si, ao abrigo de sua única e discricionária decisão. O objeto é o bem protegido, que pode ser uma rés (uma coisa, não necessariamente física, no caso de direitos reais) ou um interesse (no caso dos direitos pessoais). No direito à privacidade, o objeto é, sinteticamente, a integridade moral do sujeito”. 33

Podemos concluir com isso que a revista íntima viola também além da dignidade da pessoa, o direito à intimidade e à privacidade, uma vez que todos nós temos o direito de impedir que estranhos se insiram em nossa esfera particular. Ninguém é obrigado a abrir tal esfera para pessoas que nem sequer conhece, ainda mais de forma tão vexatória e humilhante, como ocorre na realização da revista íntima, que muitas vezes, além de obrigar a pessoa a se despir, já que esta é a condição para visitar o parente ou amigo preso. Como se não bastasse o só desnudamento, casos ainda existem em que agentes penitenciários ainda solicitam ao visitante que abram os seus órgãos sexuais para que seja realmente comprovado que não portam nada em seu interior. Relatos ainda existem no sentido de que até mesmo crianças são submetidas a estas revistas, o que é um absurdo ainda maior: “(Jocasta) -A pequena que eu tenho tem uns 5 anos. É irmã dele. Ela diz: -Mãe eu não vou. Vai ter que ficar tudo pelada. Ela chorava no dia em que veio pela primeira vez realizar a revista íntima. As moças falavam: - Eu não vou mais revistar, só colocar a mão no bolso. A minha filha só veio uma vez. Eu pensei que fosse dar um treco nela. (Mércia) - A minha filha era revistada também. Eu achava um absurdo abaixarem a calcinha de uma criança de 5 anos. Eu sempre pedia para ela ficar grudadinha na parede quando era vez de eles me olharem”. 34

Contando ainda como a revista é realizada na cadeia de Santo Amaro, Santa Catarina, umas das visitantes do estabelecimento declara: 33

FERRAZ, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Disponível em: . Acesso em: 24/11/2011. 34 DUTRA, Yuri Frederico. Como se estivesse morrendo: a prisão e a revista íntima em familiares de reclusos em Florianópolis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P.135.

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“- Lá em Santo Amaro eu passava por todas as revistas. Normal que é o padrão, né, norma da casa. Cada cadeia tem um padrão, mas é revista normal. E como é a revista em Santo Amaro? - Tu fica nua. Eles tiram (...), você tira a tua roupa e te revistam a roupa e te revista né. -E eles fazem você abrir os órgãos sexuais? Uns fazem outros não. Nem todos os policiais são iguais”.35

Se este tipo de procedimento não for considerado como capaz de violar a intimidade e a privacidade de alguém, não sabemos mais o que é capaz de fazê-lo. Portanto, a revista íntima, realizada por agentes penitenciários, através do desnudamento total do visitante e, além disso, de outras práticas absolutamente degradantes, é inconstitucional. Inconstitucional porque viola a dignidade da pessoa humana, a intimidade e a privacidade, direitos fundamentais do cidadão previstos expressamente em âmbito constitucional.

4 AINDA EXISTE JUSTIFICATIVA PLAUSÍVEL PARA A MANUTENÇÃO DO CONTROLE INSTITUCIONAL REALIZADO POR MEIO DAS REVISTAS ÍNTIMAS NA FORMA COMO VÊM SENDO REALIZADAS?

Como já visto, a justificativa que a própria Resolução número 9 do CNPCP nos apresenta para a realização da revista quando da entrada de visitantes nos presídios é que tal procedimento deve ser realizado para que se evite a entrada de objetos proibidos para dentro dos estabelecimentos prisionais, visando-se com isso prevenir a ocorrência de crimes e promover a segurança dentro destes estabelecimentos. Temos assim, de um lado, os direitos fundamentais do cidadão, e de outro, a segurança do estabelecimento prisional. Alguns poderiam até alegar que tal violação aos direitos dos visitantes se justificaria na medida em que deve haver, no caso, uma ponderação de valores. Não existiriam, assim, direitos absolutos, podendo os mesmos, em determinadas circunstâncias, serem limitados.

35

DUTRA, Yuri Frederico. Como se estivesse morrendo: a prisão e a revista íntima em familiares de reclusos em Florianópolis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P.105.

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Porém, nos parece claro e óbvio, que não há como contrapormos o critério de “segurança do estabelecimento prisional” como justificativa para a violação de direitos fundamentais, ainda mais quando essa “segurança” pode ser garantida por meios não tão invasivos e nada vexatórios. Aqui não há como se falar em proporcionalidade, pelo menos quando a revista é realizada por meio do desnudamento e de práticas, como já demonstrado, altamente humilhantes para o visitante. Hoje, com a evolução dos meios tecnológicos, já existem máquinas capazes de detectar qualquer tipo de objeto dentro do corpo humano e suas cavidades. Scanners corporais, detectores de metais, enfim, todo este aparato tecnológico já existe e deveria ser utilizado pelo Estado nestes tipos de revistas. Se existem meios eletrônicos no mercado capazes de garantir a “segurança” desejada, e de forma muito mais eficaz, por que ainda realizar a revista íntima? E, além disso, realizá-la do modo mais desumano possível? Em vários aeroportos do mundo já existem scanners corporais pelos quais os viajantes devem passar com o intuito de também proibir a entrada de determinados objetos proibidos nestes locais e que não causam constrangimento para o cidadão, ao menos se comparado com a revista íntima. Não é necessário se despir, não é necessário ser tocado por ninguém e, diferentemente da revista, não há possibilidade de ninguém burlar o equipamento. Uma vez sendo submetido a tal averiguação, qualquer tipo de objeto será detectado. Ou seja, mais segurança e menos violação a direitos fundamentais. De acordo com a Administração de Segurança em Transporte (TSA) dos Estados Unidos, o chamado “full body scan” possui uma tecnologia avançada de imagem com capacidade de detectar qualquer tipo de objeto, metálico ou não, incluindo aqui armas, explosivos, drogas, ou qualquer outro objeto que o indivíduo traga sob a roupa. Ondas eletromagnéticas seriam emitidas por todo o corpo da pessoa, que será escaneada da cabeça aos pés. Após esse processo, é formada uma imagem de todo o corpo em que é possível verificar se a pessoa está portando algum tipo de objeto ou não.36 Tendo-se em vista informações divulgadas pela própria TSA, essa tecnologia de ondas milimétricas seria segura para todas as pessoas, incluindo crianças e mulheres 36

Todas as informações aqui referentes à forma de funcionamento deste novo tipo de tecnologia de imagem avançada podem ser obtidas atráves do próprio site da Administração de Segurança em Transporte dos Estados Unidos da América, disponíveis em: . Acesso em: 14/11/2011.

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grávidas, pois ela emite uma quantidade dez vezes menor de radiofreqüência que aquela emitida por um telefone celular. Assim sendo, não seria capaz de gerar nenhum tipo de doença, sendo a mais discutida o câncer, para a pessoa submetida a este tipo de equipamento.37 O “full body scan”, nada mais é do que uma cabine na qual entram as pessoas a serem verificadas, devendo estas permanecerem nela por alguns segundos, enquanto é formada a imagem das mesmas em tempo real. Se nada for detectado a pessoa é automaticamente liberada, devendo apenas pegar todos os seus pertences como celulares, cintos, chaves, carteira, jóias, que devem ser, é claro, retirados antes da sua submissão à máquina. De acordo com dados do TSA, todo o procedimento não duraria mais do que um minuto. 38 A Penitenciária Nelson Hungria, localizada em na cidade de Contagem, Minas Gerais, já vem utilizando tal equipamento desde o mês de setembro deste ano e, de acordo com a Secretaria de Defesa Social do Estado, a tecnologia adotada funciona da seguinte forma: “O aparelho é uma espécie de cabine, a qual permite enxergar dentro do corpo dos funcionários e visitantes. Em uma sala anexa, o operador da máquina visualiza a imagem gerada pelo equipamento como uma radiografia dos ossos, órgãos, objetos e contorno do corpo. O procedimento será usado sempre que o visitante ou funcionário for entrar na unidade prisional. A pessoa passa pelos trâmites normais de identificação biométrica e revista de alimentos, que é realizada pelos agentes, e em seguida é conduzida à cabine do Body Scan, onde permanece por cerca de 40 segundos. Conforme regulamentado pelo Procedimento Operacional Padrão (POP), em caso de identificação de algum objeto ilícito, o visitante é detido e a Polícia Militar é acionada para lavrar o Boletim de Ocorrência”. 39

Assim sendo, não há razões que justifiquem mais a realização da revista íntima nos presídios, tendo-se em vista o surgimento de tecnologias capazes de realizar tal tipo de verificação corporal sem trazer nenhum tipo de constrangimento para a pessoa a qual é

37

Transportation Security Administration. How it works: Advanced Imaging Technology. Disponível em: . Acesso em: 14/11/2011. 38 Transportation Security Administration. How it works: Advanced Imaging Technology. Disponível em: . Acesso em: 14/11/2011. 39 Secretaria de Estado de Defesa Social. Complexo Penitenciário Nelson Hungria realiza scanner corporal em visitantes e funcionários. Disponível em: . Acesso em: 14/11/2011.

25

submetida. Preserva-se com isso os direitos fundamentais do cidadão e alcança-se a tão famigerada “segurança” que ainda justifica a realização desse tipo de procedimento.

4.1 A constatação de objetos proibidos dentro dos estabelecimentos prisionais: quem verdadeiramente possibilita a entrada destes objetos e a quem interessa a manutenção da realização da revista?

O que nos vale no momento indagar, é se a revista íntima, como procedimento voltado a impedir a entrada de objetos proibidos nos estabelecimentos prisionais, tem se apresentado como um meio válido e eficaz para alcançar tal objetivo. Seriam os visitantes dos presos os verdadeiros responsáveis pela entrada destes tipos de objetos para dentro do sistema prisional? De acordo com notícias veiculadas no meio jornalístico, não são raras as vezes que agentes penitenciários são acusados de possibilitar a entrada de drogas, celulares ou armas para dentro dos presídios. Como já abordado, o processo da revista se volta de forma primordial para amigos e familiares do preso, porém, quem fiscaliza aqueles que trabalham dentro do estabelecimento prisional? Trata-se da forma mais humilhante possível os visitantes, enquanto a corrupção dentro do próprio sistema cresce cada dia mais. De acordo com Thais Lemos Duarte: “[…] segundo o relatório da ARP, entre dezembro de 2006 até abril de 2007, ocorreram três apreensões de objetos ilícitos e proibidos nas visitantes do Presídio Ary Franco, no Rio de Janeiro. Esse presídio recebe em média 2.100 visitantes ao mês e, dentro do referido período, teriam comparecido a essa unidade cerca de 10.500 visitantes. Portanto, as três apreensões efetuadas demonstram que menos de 1% das visitantes foi surpreendida portando objetos ilícitos ou de uso proibido nos presídios. Devem existir outros meios de entrada de objetos ilícitos e proibidos nos presídios, que não estão necessariamente relacionados às visitas”.40

40

DUARTE, Thais Lemos . Análise dos procedimentos de revistas íntimas realizados no sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro. Revista sociologia jurídica, v. 1, 2010. P.18.

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Tais dados, embora referentes apenas a um dos presídios do estado do Rio de Janeiro, são capazes de nos alertar para algo que acreditamos ser corrente no que se refere à entrada de objetos proibidos nos estabelecimentos prisionais. Cremos que, certamente, tais objetos não entram, ao menos em sua maioria, através dos visitantes dos presos, porém, por outros meios. Seja através das próprias pessoas que trabalham no interior de tais estabelecimentos, seja por pessoas que ficam do lado de fora, não visitantes, que adotam procedimentos tais capazes de lançar objetos para dentro do estabelecimento, se utilizando, por exemplo, para tal, do denominado “pombo correio”, onde os objetos são fixados no animal de forma a possibilitar sua entrada para dentro do sistema. No caso de armas, por exemplo, é algo praticamente impossível de se colocar dentro do órgão genital da mulher, pois de acordo com uma ginecologista de Santa Catarina: “Este órgão possui sete centímetros de comprimento longitudinal e pode esticar lateralmente de 6 cm à 10 cm. Não é qualquer mulher que é elástica; as mulheres que já tiveram filhos são mais elásticas. A vagina somente aceita objetos tubulares para dentro dela. Uma arma seria impossível de ser colocada dentro de uma vagina. A introdução de um celular na vagina dependeria do tamanho e da posição em que fosse colocado. Do seu ponto de vista científico, o agente prisional que revista só conseguiria verificar alguma coisa se o objeto fosse mal colocado, ou colocado em excesso, ultrapassando o tamanho da vagina. De outro lado, não é simples colocar objetos dentro da vagina sem que caia, ou cause algum incômodo”.41

Não existem dados divulgados acerca da quantidade exata de produtos proibidos apreendidos dentro dos estabelecimentos prisionais, porém, tendo-se em vista informações divulgadas pela Secretaria da Justiça e Cidadania, só no Estado do Ceará mais de 800 celulares já foram apreendidos durante este ano no sistema carcerário do estado. 42 Já no Estado de São Paulo, em matéria veiculada ainda no ano de 2008, o número de celulares apreendidos mensalmente na prisões paulistas era de 800 a 900 celulares por mês.43 No Rio Grande do Sul, durante o mês de novembro do ano de 2010, cerca de 160 celulares, armas,

41

DUTRA, Yuri Frederico. Como se estivesse morrendo: a prisão e a revista íntima em familiares de reclusos em Florianópolis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P.129-130. 42 NETO, Dantas. Ceará: 800 celulares já foram apreendidos em presídios. Matéria disponível em: .Acesso em15/11/2011. 43 Dados de matéria veiculada pelo Jornal “O Estado de São Paulo”. Todos os meses, 900 celulares são apreendidos em presídios de SP. Disponível em: . Acesso em: 15/11/2011.

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drogas, videogame, câmeras fotográficas, barras de ferros, dentre outros, foram apreendidos em três presídios do Estado.44 Por fim, de acordo com o Jornal Extra, em notícia veiculada em outubro deste ano, foi preso um agente penitenciário suspeito de entrar com um quilo e meio de maconha na Penitenciária Bangu II, no Rio de Janeiro. De acordo com a matéria: “Ele iria assumir o plantão da penitenciária, quando foi surpreendido durante revista de rotina tentando entrar com dois tabletes escondidos em sua bolsa e na calça. [...]De acordo com informações da secretaria, o agente relatou que o material seria entregue a três presos condenados por roubo e que receberia R$ 1.500,00 pela encomenda”.45

Como podemos observar, embora todos os procedimentos realizados com vistas a tentar impedir a entrada de objetos proibidos para o interior do sistema prisional se voltem para os visitantes dos presos, outros meios existem para possibilitar tal entrada, sendo que, a nosso ver, estes seriam os que efetivamente a possibilitam. Isso porque a revista a qual é submetida os familiares e os amigos dos presos é por demais severa e, como tal, tende a identificar em geral os objetos proibidos quando da sua realização. Contudo, mesmo com estas revistas, os objetos continuam entrando nos estabelecimentos, como visto em notícias tratadas acima. Ora, se tais objetos continuam entrando em um número elevado, isso se dá por outros meios, e não pela visitas. Como bem destaca Thais Lemos Duarte, “Na prática, as apreensões de objetos nos presídios são resultados de um trabalho de investigação e de monitoramento, ao invés de serem essencialmente produtos das revistas íntimas […]”46. Vale aqui destacar também informações trazidas por Yuri Frederico Dutra no sentido de que: “No Centro de Detenção Provisória (CDP) do Belém, zona leste da capital, um agente penitenciário admite que os celulares têm entrado nas unidades mais por

Apreendidos celulares e videogame em presídios no RS. Matéria veiculada pelo Jornal “O Estado de São Paulo”, disponível em: . Acesso em: 15/11/2011. 45 Agente penitenciário é preso suspeito de tentar entrar com drogas em Bangu II. Matéria disponível em: . Acesso em: 15/11/2011. 46 DUARTE, Thais Lemos . Análise dos procedimentos de revistas íntimas realizados no sistema penitenciário do estado do Rio de Janeiro. Revista sociologia jurídica, v. 1, 2010. P.18. 44

28 meio dos funcionários do que pelos parentes. As revistas têm sido mais rigorosas e os salários são baixos”. 47

Temos para nós que as razões existentes para a manutenção da realização das revistas íntimas nos presídios são, em primeiro lugar, a realização das mesmas como forma de tentar esconder uma corrupção existente dentro do próprio sistema, e em segundo lugar, a revista ainda é realizada para tentar afastar os visitantes do preso, de forma de desvinculálo de qualquer contato com o mundo exterior, tendo-se em vista que uma vez submetendo os visitantes a tal tipo de procedimento humilhante como é o da revista íntima, estes podem não mais comparecer nos dias de visita para não terem que passar por tal humilhação. Nesse sentido: “A “revista vexatória” é a forma pela qual o Estado massacra os familiares e amigos de encarcerados. Ao desistir de realizar a visita, o familiar e amigo abre a oportunidade para que o Estado, através de seus agentes penitenciários torture, humilhe e explore os presidiários. Interessa ao Estado, que os familiares não denunciem os abusos cometidos no interior dos presídios. Por isso realiza a revista vexatória, para pressionar os familiares a NÃO VOLTAREM MAIS!”.48

Estas seriam, portanto, as grandes razões pelas quais ainda hoje se permite a realização das revistas íntimas, e como já demonstrado, extremamente vexatórias, nos familiares e amigos daqueles que cumprem uma pena privativa de liberdade: tentar impedir a realização da visita para que assim não sejam denunciados os abusos recorrentes dentro dos sistemas prisionais, as condições precárias às quais os presos são submetidos em seu interior e, sobretudo, para camuflar uma corrupção existente dentro do próprio sistema, onde seus próprios funcionários se tornam os instrumentos de entrada dos objetos proibidos.

5 CONCLUSÃO

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DUTRA, Yuri Frederico. Como se estivesse morrendo: a prisão e a revista íntima em familiares de reclusos em Florianópolis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. P.128. 48 LAMBERT, Andreza; MAGALI, Camila; MENEZES, Andreza; MATTOS, Virgílio de; OTONI, Pedro; RIBEIRO, Rafael. Campanha contra a revista vexatória. Cartilha distribuída pelo Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade. Tiragem: duas mil. Publicação: Julho de 2009. P.08.

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Tendo em vista tudo o que até o momento foi exposto, acreditamos estar mais do que clara a inconstitucionalidade da revista íntima por meios dos procedimentos hoje adotados pelos agentes penitenciários dentro dos estabelecimentos prisionais, por estas violarem o princípio da legalidade substancial que deve pautar qualquer norma. Embora prevista como uma exceção, o que vemos na prática é a realização da revista íntima como uma regra, já que os visitantes dos presos são sempre vistos como potenciais criminosos e, com isso, como suspeitos automáticos para a realização de uma conduta criminosa ou proibida, razão pela qual se tornam sempre alvos destes tipos de procedimentos. É certo que a entrada de objetos proibidos para o interior dos estabelecimentos prisionais nunca será por completo abolida, porém, não podemos aceitar que a realização da revista íntima, extremamente vexatória, seja utilizada como um instrumento de segurança e de prevenção, quando o Estado pode se valer de meios não degradantes para a obtenção de tal fim, e com muito mais chances de obter resultados satisfatórios. Temos para nós que a manutenção deste tipo de procedimento só pode ter por fim o encobrimento daquelas pessoas que efetivamente possibilitam a entrada dos objetos proibidos. Possibilita-se que familiares, amigos e cônjuges dos presos passem por procedimentos que violam sua dignidade e sua intimidade, para com isso beneficiar uma possível corrupção existente dentro do próprio sistema. Isto posto, hoje não mais se justifica a manutenção da revista íntima, devendo ser considerados inconstitucionais quaisquer atos normativos que, apesar de vigentes, possibilitam sua realização por meio manual, pois ela da forma como vem sendo realizada, a revista atenta contra a dignidade, a privacidade e a intimidade de qualquer pessoa. Se já existem instrumentos tecnológicos capazes de garantir a segurança do estabelecimento prisional com muito mais eficácia e sem expor o visitante do preso a nenhum tipo de constrangimento, são estes instrumentos os que devem ser utilizados. Verba certamente os Estados possuem para investir nestes tipos de equipamentos, não podendo isso ser utilizado como desculpa para sua não implementação nos estabelecimentos prisionais. Basta agora, portanto, apenas a vontade.

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6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Agente penitenciário é preso suspeito de tentar entrar com drogas em Bangu II. Matéria disponível em: . Apreendidos celulares e videogame em presídios no RS. Matéria veiculada pelo Jornal “O Estado de São Paulo”, disponível em: .

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