Da verdade como crença convincente

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DA VERDADE COMO CRENÇA CONVINCENTE por Waldísio Araújo

Historiador consagrado ao mundo clássico grecoromano, Paul Veyne sempre destacou-se no campo da Epistemologia da História, mas sua reconhecida competência em ambos os campos é suficiente para fundir e revolucionar ambos. Contudo, os hábitos acadêmicos, midiáticos e populares insistem em classificar obras em seções fechadas e intransponíveis, de modo que um de seus livros mais importantes foi particularmente ignorado nas livrarias e salas de aula, e mesmo em artigos sobre o autor tem sido pouco citado.

Ainda para muitos historiadores modernos, o mito de Teseu e o Minotauro teria como fundo de verdade o domínio minóico sobre a cidade de Atenas durante a era préhelênica.

O próprio título (Acreditavam os gregos em seus mitos?) parece condená-lo à invisibilidade frente aos olhos de epistemólogos que não se aventurem às prateleiras e ementas curriculares de História Antiga ou de Mitologia. Porém, o subtítulo nos aponta para uma problemática mais epistemológica: "Ensaio sobre a imaginação constituinte". E a Apresentação da edição brasileira (Editora Brasiliense, 1983) nos diz que a versão original da obra pertence à coleção Les Travaux, dirigida pelo próprio autor e por seu amigo, o filósofo Michel Foucault, um dos maiores pensadores do século XX.

O tema filosófico da obra é surpreendente: o exemplo grego aponta para a historização da própria noção de verdade: não existe "a" Verdade, mas apenas verdades, no plural, e estas são historicamente constituídas, não foram instituídas num Além e não são imutáveis nem eternas, são produtos das relações de poder, ou melhor, são elas próprias expressões das relações de poder que constituem o que chamamos "realidade". Em suma, o que chamamos "verdades" são, no fundo, modalidades de crença, ainda que nos achemos tão convincentes quando, em nosso cérebro, afirmamos umas e negamos outras. Mas o mais significativo é que ambas não são incompatíveis ao nosso cérebro, no qual cabem tanto as crenças afirmadas quanto as negadas. E tanto a história quanto a antropologia nos mostram que é frequente acreditarmos ao mesmo tempo em coisas contraditórias, já que acreditamos de formas diferentes sobre coisas semelhantes, e isso não nos transforma em seres patologicamente bipolares. Um exemplo, presente no livro de Veyne, resulta de estudos do antropólogo Evans-Pritchard em meio aos nuers da Etiópia. Para este povo africano que adotou uma forma meio cristianizada de religião e que vive do pastoreio, a pantera é um animal cristão que, como tal, jejua nos dias sagrados. Mas os nuers não deixam por isso de vigiar seu gado nos dias santos e protegê-lo contra a

pantera. Logo, crenças contraditórias convivem no dia-a-dia da tribo, ou melhor, modalidades de crença convivem individual e socialmente: creem por tradição que a pantera é cristã; creem por experiência que panteras devoram ovelhas; creem por dedução que panteras jejuam... A escolha (consciente ou não) pela modalidade de crença a ser adotada depende das conveniências que resultam das relações de poder em jogo a cada momento, mais ou menos como nos convém às vezes dizermos a nossas crianças que Papai Noel lhes traz os presentes, e outras vezes que Papai Noel não existe. Da mesma forma, nossas causas mais sagradas são esquecidas quando convém que as abandonemos diante de certas situações cotidianas, mas se dificilmente o confessamos é porque as causas continuam lá, não precisamos livrarmo-nos delas para viver, até porque não somos racionais o tempo inteiro. Por isso somos grandes atores, e saltamos de uma configuração de verdade para outra sem o percebermos e saímos do bar para a igreja, desta para o trabalho e deste para o velório, sem precisarmos sequer ensaiarmos: em cada situação sabemos qual o critério de verdade a ser utilizado e condicionamos nossos comportamentos e opiniões a serem coerentes com ele. Os gregos mais cultos sabiam que os poetas mentiram ao criarem as histórias contadas nos mitos, mas nem por isso negavam a própria matéria mitológica. Eles não viam motivo para duvidar da tradição, mas sabiam por experiência que certas coisas não acontecem; por isso, procuravam purificar o mito, pretendiam "historicizá-lo" ao retirar de sua pretensa realidade seus acréscimos absurdos, como ainda o fazem muitos de nossos historiadores e antropólogos. Aristóteles dizia que Minos (e todo o ciclo mítico que o envolvia, como a luta de Teseu contra o Minotauro) devia ser um poderoso rei que dominava os mares e que impunha tributos aos atenienses; e é interessante constatarmos que, mesmo com o triunfo do Cristianismo e a negação de toda mitologia clássica, essa crença íntima na "verdade" das figuras míticas permaneceu: Santo Agostinho não negava a existência de Hércules, apenas achava que não passava de um rei contemporâneo dos reis bíblicos e cuja vida a tradição teria enfeitado com feitos maravilhosos. O que significa acreditar e não acreditar na tradição. O que nos permite saltar de uma modalidade de crença a outra (de uma verdade a outra) e pensarmos que só há uma verdade é o fato de que há uma analogia entre ambas. A própria verdade é que é plural e analógica, apenas existem programas heterogêneos de verdade segundo os quais estamos sempre ou num mundo “verdadeiro’ ou numa sua analogia, e isso de tal forma que um mundo não pode ser real ou fictício por si mesmo, mas apenas segundo algum programa de verdade, no qual se acredita ou não. Isso vale para mitos gregos, crenças cristãs ou formalizações científicas, e não é à toa que no século IV se pôde acreditar no Deus único cristão sem necessidade de provar-se a inexistência do deus Júpiter (o qual foi simplesmente esquecido à medida em que os cultos estatais e a educação iam deixando de falar deste). Por si mesmo o mito estava situado fora da alternativa verdadeiro-falso e da controvérsia (assim como nossos pesadelos, enquanto ainda dormimos). Para os antigos não era necessário acreditar sempre na existência histórica de Minos ou de Teseu, pois o mito não é reconstituição do passado, mas descrição do eterno, e não faria sentido a um grego discutir sobre a historicidade ou não de Narciso ou de Jesus. Só a transformação, relativamente tardia, do campo do saber pela emergência de novos poderes de afirmação é que fez surgir a pesquisa histórica e a Física especulativa, que colocavam explicitamente aquela alternativa entre o verdadeiro e o falso e a necessidade de ater-se

ao primeiro. O mito então passou a ser visto como alegoria de verdades filosóficas ou deformação de verdades históricas atribuídas a confusões de palavras que deveriam ocultar algo de verdadeiro. Não há indícios de tratar-se de crítica a uma ocultação ideológica pelo mito, justamente porque o conteúdo dos discursos cerimoniais não se propunha a ser verdadeiro nem falso e não se relacionava aos poderes políticos, mas à retórica: nas relações externas, os relatos míticos buscavam incitar os adversários a submeterem-se deliberadamente e por razões honoráveis, ao invés de ter de mostrarlhes a força; na política interna, faziam sentir ao indivíduo que, além de seus méritos, ele possuía a dignidade de ser cidadão. E, quando se tratava de defender interesses particulares ou de classe, nem mesmo se invocavam os mitos. Por ser a verdade, então, plural e analógica, transitamos sem o percebermos por programas diferentes que se referem a verdades e interesses diferentes, e o número e conteúdo desses programas não são sempre os mesmos, mas são criados imaginativamente através da história: a imaginação psicológica inventa e executa os programas e a imaginação constituinte os decreta como lícitos, razoáveis, sagrados ou verdadeiros. De qualquer modo, eles determinam nossa socialização e os limites de nosso conhecimento; em outras palavras: é impossível distinguir substancialmente o fictício do verdadeiro, o imaginário do real, sem recorrermos a algum programa de verdade dentro do qual a diferenciação faça sentido. Os critérios e modos de obtenção de idéias "verdadeiras", isto é, os programas de verdade ou modalidades de crença, variam sem o sabermos. No decorrer da história, a imaginação vai construindo palácios ou aquários fora dos quais nada existe nem atua. Claro que existem as "realidades materiais", mas elas só passam a existir para nós quando interferem e recebem forma num programa de verdade, como a pólvora outrora ainda não havia sido constituída como "fogo de artifício" nem "explosivo militar" ou como certos comportamentos incoerentes e infecções viróticas do sistema nervoso não haviam sido constituídos como "loucura". Em resumo, o exemplo da crença dos gregos em seus mitos e a constatação de que é possível acreditar em coisas contraditórias apontam para a pluralidade das modalidades de crença (crer na palavra dada, crer por expériência etc.) e para a conclusão de que as verdades são crenças constituídas imaginativamente, através da história, enquanto espécie de transcendentais históricos que constituem nosso mundo tal como ele nos aparece.

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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