DANO MORAL EM FAVOR DO PRESO: PROGRESSÃO OU REGRESSÃO NA TUTELA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS?

July 22, 2017 | Autor: Vanice Regina | Categoria: Judicial review, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos
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DANO MORAL EM FAVOR DO PRESO: PROGRESSÃO OU REGRESSÃO NA TUTELA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS? Vanice Regina Lírio do Valle

Encontra-se em construção no Supremo Tribunal Federal, a decisão a ser proferida nos autos do Recurso Extraordinário nº 580252, com repercussão geral reconhecida pelo Plenário em 18/02/20111. Até o momento, tem-se já conhecido o voto do Ministro Relator, Teori Zavascki, acompanhado por Gilmar Mendes2, no sentido do provimento do recurso, para reconhecer o cabimento da pretensão de reparação de dano moral infligido ao preso que se vê recolhido em estabelecimento cujas condições gerais são incompatíveis com o que preceitua a Lei de Execuções Penais, e mesmo um senso comum do que seja consentâneo com a dignidade da pessoa. O feito encontra-se suspenso por força do pedido de vista articulado pelo Ministro Roberto Barroso, veiculado na própria sessão inicial de julgamento em 3/12/2014. O tema em si não é inovador, já tendo frequentado a jurisprudência inclusive do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, com decisão recente proferida em Embargos de Divergência nº EREsp 962934 / MS em 14/03/2012. Na ocasião, afastou aquela Corte a possibilidade da condenação por dano moral tendo em conta que: “a) não é aceitável a tese de que a indenização seria cabível em prol de sua função pedagógica; b) não é razoável - e ausente de lógica indenizar individualmente, pois isto ensejará a retirada de recursos para melhoria do sistema, o que agravará a situação do próprio detento; e c) a comparação com casos que envolveram a morte de detentos não é cabível.”. Na ocasião, figurando como Relator dos Embargos Infringentes o Min. Teori Zavascki, restou 

Visiting Fellow no Human Rigths Program – Harvard Law School. Pós-doutorado em administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (EBAPE/FGV-Rio); doutorado em direito pela Universidade Gama Filho (UGF); professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá (PPGD/Unesa); Procuradora do município do Rio de Janeiro. Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]. 1 À época, figurava como Relator do feito o então Min. Carlos Britto. 2 Consigne-se a curiosa circunstância de que a adesão pelo Min. Gilmar Mendes se tem por consignada na assentada in absentia, tendo havido dúvidas quanto a esse efetivo endosso, já que considerações várias foram oferecidas sem a pronúncia formal do apoio às conclusões do Relator. É de se ver, no prosseguimento do julgamento, se este estado de coisas se manterá na apuração dos votos.

vencido, já externando a linha de compreensão que veiculou agora e seu voto no Recurso Especial nº 580252, transferindo-se a relatoria para o Min. Humberto Martins que proferiu na ocasião, o voto vencedor. Dois registros merecem ser feitos neste momento em que a referida decisão – de tanta relevância sob diversos prismas – encontra-se em construção. O primeiro deles, diz respeito à estratégia de gestão de temas submetidos ao STF em recursos revestidos de repercussão geral – e portanto, aptos a gerar decisão com a força expansiva que a estes meios de impugnação se refere3. O segundo aspecto se relaciona ao potencial claramente regressivo que a decisão de que se cogita pode assumir no que toca ao objetivo último que ela mesma pretende tutelar, a saber, a proteção à dignidade da pessoa recolhida àqueles mesmos estabelecimentos. Uma pesquisa rápida no sítio “repercussão geral” do STF aponta, envolvendo aspectos vários dos efeitos jurídicos da precariedade de estabelecimentos penitenciários sobre a esfera de direitos individuais dos presos, além do Recurso Extraordinário nº 580252 (Tema 365), ainda os seguintes feitos: 1) Recurso Extraordinário nº 641320 (Tema 423), Relator o Min. Gilmar Mendes, onde se debate a possibilidade de “...cumprimento de pena em regime menos gravoso ante a falta de vagas em estabelecimento penitenciário adequado...”; e ainda Recurso Extraordinário nº 592.581 (Tema 220), Relator o Min. Ricardo Lewandowsky, onde se discute a “...competência do Poder Judiciário para determinar ao Poder Executivo a realização de obras em estabelecimentos prisionais com o objetivo de assegurar a observância de direitos fundamentais dos presos...”. Evidente a relação de interdependência entre os três temas, cada qual deles explorando diversas respostas judiciais possíveis para o mesmo fato. Assim, à existência de condições precárias nos estabelecimentos prisionais, se avalia a alternativa do abrandamento da pena até a identificação de estabelecimento carcerário em condições adequadas (Tema 423); a opção da condenação da Administração Pública a empreender às obras necessárias

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A assertiva de que o precedente fixado pelo STF na análise de recurso extraordinário revestido de repercussão geral se revista de força expansiva, dotada ainda de “...fórmulas procedimentais para tornar concreta e objetiva a sua aplicação aos casos pendentes de julgamento...”, foi lançada pelo Min. Teori Zavascky em seu voto na Reclamação 4335, julgada em 21/03/2014.

(Tema 220); e finalmente a medida substitutiva de reparação pecuniária por danos morais (Tema 365). Na perspectiva temporal, a própria numeração dos temas evidencia que a demanda veiculando como resposta a possibilidade de condenação da Administração Pública à realização de obras (Tema 220) é a mais antiga (23/10/2009). Por fas ou por nefas, tem-se a matéria da cominação de danos morais chegando ao Plenário para decisão de mérito antes dos demais temas correlatos4. Disso decorre uma priorização de uma das alternativas de resposta (aquela explorada no Tema 365) em detrimento das demais. Reduz a Corte, a rigor, suas alternativas de enfrentamento do mesmo problema, pela simples circunstância de que o Tema 365 encontra-se maduro para julgamento antes dos demais. A par disso, a submissão a Plenário tão-somente do Tema 365 (reparação por danos morais) cria a falsa sensação de que tal resposta deva ser prestigiada à míngua de outra – quando em verdade, a Corte dispõe de outras cogitações exploratórias em sua própria pauta de julgamento. Evidencia-se aqui a relevância – e o registro se faz como contribuição para o permanente repensar de suas práticas que o STF tem, saudavelmente, desenvolvido – de uma gestão estratégica do julgamento de feitos com Repercussão Geral, em que se tenha, como na hipótese, uma evidente relação de interconexão. Só o julgamento conjunto, in casu, dos três temas (220, 365 e 423) permitirá à Corte explorar todas as alternativas de resposta jurídica ao problema, evitando tornar-se refém de uma falsa sensação de inevitabilidade da resposta que chega primeiro à pauta. Segundo ponto a ser inequivocamente examinado diz respeito ao potencial inequivocamente regressivo da decisão nos termos em que foi proposta. A cogitação empreendida no voto já proferido – e secundado pelo Min. Gilmar Mendes – envolve uma hipótese clássica do que em trabalho anterior, denominei “mercantilização de direito fundamental”5, a saber, uma prática judicial 4

Em verdade, o Tema 423, embora quase contemporâneo ao Tema 365, não alcançou ainda a pauta do Plenário à conta da realização de audiência pública para o debate da matéria. Já o Tema 220, eis que diz respeito diretamente à Administração Pública, foi objeto de incontáveis pedidos de ingresso de amici curiae, o que contribui para a demora na sua aferição de mérito. 5 VALLE, Vanice Lírio do, Judicialization of Socioeconomic Rights in Brazil: Mercantilization of the Fundamental Rights as a Deviance in Rights Protection (January 18, 2014). Paper presented in the 3rd YCC Conference - American Society of Comparative law, at the Lewis & Clark University, Portland, Oregon, in April, 2014. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=2511648

que, diante da dificuldade em promover à garantia em si do direito em discussão, se vale do mecanismo substitutivo tradicional da reparação pecuniária. A leitura do relatório apresentado pelo Min. Teori Zavascky por ocasião da sessão dá notícia de que o preço da dignidade do Autor naquela demanda fora fixado, pelo Tribunal de origem, em R$ 2.000,00 (dois mil reais) – sem clarirficação se a cifra pargar-se-ia uma única vez, ou se haveria repetição desse mesmo pagamento.. Independentemente da análise da pertinência do valor sugerido nessa demanda específica, ou mesmo do exercício em tese de uma deliberação que precifica a dignidade (que é o pressuposto exclusivo da afirmação, in casu, do dever de indenizar), impõe-se uma aproximação ao tema a parti de outra perspectiva. É inequívoco que a resposta objeto de atenção no momento pela Corte, reveste-se de potencial regressivo6, eis que oferece alternativa de atuação à Administração Pública que se tem por igualmente compatível com os reclamos constitucionais; alternativa essa que muitas vezes é mais simples ou mesmo mais cômoda à do que o desenvolvimento em si da ação verdadeiramente corretiva da circunstância que se revela incompatível com a dignidade da pessoa, a saber, as condições degradadas do estabelecimento penitenciário. O risco portanto é a substituição definitiva, dos deveres de proteção associados à preservação da dignidade do preso, pela prestação pecuniária de que se cogita no julgamento. É certo que o argumento manejado no voto já proferido pelo Min. Teori Zavascky, é de que o objeto da demanda é a investigação de uma hipótese de responsabilidade civil do Estado, por conduta omissiva da Administração Pública no que toca à garantia da integridade do preso – no que se compreenderia, evidentemente, condições físicas compatíveis com a vida digna. Afirma-se que a demanda não discute em si o controle de política pública atinente à gestão dos estabelecimentos penitenciários – por isso, a adequação da solução reparatória7. O argumento parece, todavia, mais um esforço de justificativa da 6

O tema do potencial regressivo da decisão judicial substitutiva da ação administrativa sistêmica exigida para a preservação de direitos fundamentais é bem desenvolvido por LIEBENBERG, Sandra. Socioeconomic rights: adjudication under a transformative constitution. Claremont: Juta & Co. Ltd, 2010. 7 Curiosamente, não obstante a pretensão de dissociação entre a conclusão do voto proferido pelo Min. Teori Zavascky e a discussão sobre o controle de constitucionalidade de políticas públicas na matéria, fato é que argumento mais do que reiterado no mesmo voto foi da necessidade de ofertar-se uma resposta às desfuncionalidades de todo o sistema carcerário brasileiro. Se a causa da violação a direito é um permanente estado de inadequação dos

decisão, do que um equacionamento mais abrangente da causa geradora do suposto dever de indenizar. Cominar-se a responsabilidade civil (efeito) sem enfrentamento da causa real da violação sistemática à dignidade do preso parece uma solução mais orientada à pacificação dos corações, do que à solução permanente do problema. Afinal, a decisão em si não será apta a cessar nem mesmo a violação à dignidade do Autor – que não pode inverter os recursos decorrentes da condenação na melhoria do estabelecimento penitenciário, nem pode dele (por óbvio) evadir-se. É de se registrar que o pedido de vista do Min. Roberto Barroso – isto foi declinado pelo próprio Julgador na sessão – se deveu justamente à intenção de desenvolvimento de uma reflexão sistêmica, justamente pela previsível inaptidão da solução alvitrada para oportunizar a solução do problema. A emancipação da jurisdição constitucional para alcançar todos os domínios da vida objeto de atenção pela Carta Cidadã tem por resultado a proposição à Corte, de temas complexos como este – cujo equacionamento, data máxima venia, está a exigir uma análise na perspectiva da macro atuação, e não com o emprego das matrizes tradicionais de composição do conflito individual, que opõe Caio a Tício. Nesta matéria, pelo menos, a análise em conjunto dos Temas 220, 365 e 423 permitiria, inequivocamente, um equacionamento mais abrangente das alternativas de solução, construindo-se um provimento jurisdicional com maior aptidão para uma resposta estruturante – e não simplesmente pacificadora no que toca à judicial review. Observe-se que o ponto que aqui se sustenta não é o de uma posição necessariamente auto-contida por conta de riscos sistêmicos do impacto da decisão em cogitação. Ao contrário, o que se está apontando é uma ausência de análise sistêmica, pela Corte, das próprias provocações no tema específico a ela já submetidas, e os riscos inerentes ao enfrentamento do tema a partir de uma perspectiva claramente parcial. O quadro se agrava quando se tem já por superado o óbice atinente ao princípio da inércia – as demais alternativas de abordagem do mesmo problema (condições inadequadas dos estabelecimentos

estabelecimentos prisionais, não parece seja precisa a classificação da hipótese como de reparação de danos pura e simples – especialmente porque a ela não se tem associada qualquer medida de caráter mais permanente que possa fazer cessar o estado de coisas inconstitucional.

prisionais) já se puseram formalmente à Corte, todas elas no regime especial da repercussão geral. O caso em comento sugere portanto, duas pautas reflexivas relevantes para a Corte. Primeira delas é a necessidade de gestão estratégica dos recursos extraordinários com repercussão geral, de molde a que não se tenha a fragmentação de análise em Plenário, com os riscos de indevida limitação ao conhecimento pela Corte, e de possível superveniência de decisões despidas da desejável coerência sistêmicas. A segunda, diz respeito ao risco sempre presente de decisão judicial que se revele em concreto, regressiva – e não um contributo à efetividade do direito fundamental em discussão. Aqui, com maior razão, o exercício da juris prudentia se põe como mandatório.

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