Das margens ao infinito – a trajetória poética de Afonso Henriques Neto

Share Embed


Descrição do Produto

Das margens ao infinito – a trajetória poética de Afonso Henriques Neto Andréa Catrópa da Silva Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP Av. Brig. Luís Antônio, 3183, ap. 12 A – 01401-001- São Paulo [email protected] Abstract.This paper examines the multiplicity of elements in the poetry of Afonso Henriques Neto . When this contemporary poet published his first book, his name was somehow connected to the term poesia marginal, which does not designate an articulated literary movement, but rather a heterogeneous phenomenon determined mainly by the physical making and dissemination of books. But soon his literature has shown its great complexity. The formal and thematic variety of the poetry of Afonso Henriques Neto makes it a literary work difficult to be labeled. Keywords.Contemporary Brazilian poetry; poesia marginal; the 70’s cultural production. Resumo.Este trabalho examina a multiplicidade de elementos na obra de Afonso Henriques Neto. Quando este poeta contemporâneo publicou seu primeiro livro, seu nome foi, de alguma forma, ligado ao termo “poesia marginal”. Este não designa um movimento literário articulado, mas antes um fenômeno heterogêneo determinado principalmente pelo envolvimento físico do autor na fabricação e distribuição dos livros. Porém logo sua literatura demonstrou grande complexidade. A variedade formal e temática da poesia de Afonso Henriques Neto faz dela uma obra literária difícil de ser rotulada. Keywords.Poesia contemporânea brasileira;” poesia marginal”; produção cultural dos anos 70.

À margem dos “marginais” O poeta contemporâneo Afonso Henriques Neto lançou seu primeiro livro, O misterioso ladrão de Tenerife, em 1972. Escrito em Brasília, onde morou desde finais dos anos 60, o livro foi lançado no Rio de Janeiro no momento em que ali começava a se desenhar o fenômeno literário que ficou conhecido como “poesia marginal”. E quando pensamos em "poesia marginal", não podemos nos esquecer de seu caráter plural, já que o fenômeno não constituiu um movimento literário no sentido tradicional em que o termo é usado em exemplos como o primeiro modernismo brasileiro ou ainda a poesia concreta. Nesses dois casos, havia um conteúdo programático guiando a produção dos artistas que aderiam a essas diretrizes, enquanto que na "poesia marginal" – justamente por seu caráter avesso à academia e à formalidade – não havia preocupação em transformar em teoria algumas características gerais encontradas na Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 592-597, 2005. [ 592 / 597 ]

produção daqueles jovens poetas. Estas eram, segundo muitos dos textos críticos que posteriormente vêm a tratar do fenômeno - HOLLANDA (1997), PEREIRA (1981), SIMON e DANTAS (1985) e SUSSEKIND (1985) são só alguns exemplos disso - a linguagem coloquial, antiliterária, a temática cotidiana, a adoção de uma perspectiva claramente subjetiva e, em minha opinião, a característica mais abrangente: o envolvimento com a produção material do livro. Assim buscava-se uma democratização da difusão e publicação de textos por meio de alternativas como o livro independente e também de livrinhos e folhetos mimeografados. Abro aqui um parêntesis para comentar que recorrer à edição independente do livro sempre foi prática comum entre poetas, principalmente os estreantes. A diferença é que, na década de 70, essa ação carregava-se de um significado contestador, além de ter algo – para usar um termo da época – de “curtição”. Havia um cuidado artesanal na escolha do papel, da fonte, da programação visual, como podemos perceber nesta passagem da carta (CÉSAR, 1999) de Ana Cristina César para Heloísa Buarque de Hollanda : “(...) Comprei o catálogo letraset e passei as tardes brincando. E uma caneta Rotring porque sou eu que vou compor o livro a mão.(...)”. O misterioso ladrão de Tenerife é um exemplo desse envolvimento literalmente físico do escritor com a manufatura do livro e sua produção foi marcada por uma dose de aventura. Para poder custear a sua edição, Afonso Henriques Neto propôs uma parceria ao poeta Eudoro Augusto. Ambos os autores viram-se envolvidos, durante quase dois anos, em manobras heróicas para viabilizar a sua estréia editorial, incluindo aí viagens levando enormes bobinas de papel para uma gráfica em Goiânia e o transporte por ônibus de diversos pacotes do livro pronto para o Rio de Janeiro. O esforço, no entanto, foi recompensador, já que o livro colecionou comentários favoráveis no meio literário carioca, que o destacou não apenas pela qualidade dos textos, como também pela programação visual inovadora e edição bem cuidada, principalmente se comparada aos livrinhos mimeografados que circulavam na época. PEREIRA (1981) crê que a liberdade proporcionada por essas edições independentes também impulsionou o questionamento de algumas regras e valores do sistema literário, já que os “poetas marginais” buscavam aproximar-se da linguagem cotidiana e da camada média universitária. Nesse mesmo sentido, SUSSEKIND (1985) afirma: " (...) E, para obter esse efeito de reconhecimento imediato, essa resposta direta ao leitor, foi preciso que o texto poético começasse a dialogar cada vez mais com os media e menos com o próprio sistema literário, cada vez mais com o alinhavo emocional do diário, com o instantâneo, com o registro, em close, da própria geração. (...)”. A afirmação reforça o caráter aparentemente divertido, leve e descompromissado que se atribui à grande parte da "poesia marginal". É preciso, no entanto, cuidado para não haver a suposição de que esses traços apareçam de forma sistemática e homogênea em todos os poetas que, de alguma forma, tiveram seus nomes relacionados à produção literária dessa geração. No caso específico de Afonso Henriques Neto, as características normalmente associadas à “poesia marginal” adquirem um significado próprio. Assim o estilo antiliterário, em seus textos, não prescinde da elaboração formal, antes se manifesta como auto-ironia, como antídoto ao texto precioso. O tema do cotidiano surge ao lado de outras temáticas recorrentes em sua obra e, quando elementos do cotidiano são incorporados a seus poemas, não ocorre

Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 592-597, 2005. [ 593 / 597 ]

uma tentativa de transposição direta e mimética da realidade para a obra de arte. Esses elementos cotidianos são transformados pelo trabalho do poeta com a palavra e se revelam de forma sutil, como neste verso do poema Ser: “Cingido de pérolas atômicas”. Nele a referência à bomba atômica surge indiretamente, por meio do adjetivo que remete a um evento real sem resvalar na obviedade. Essa presença de algumas características associadas à “poesia marginal” na obra de Afonso Henriques Neto, mas de forma tão particular, pode levantar uma dúvida sobre a pertinência de crer que a sua trajetória poética tangencie o fenômeno. Porém os próprios depoimentos e entrevistas do autor, que faz comentários sobre alguns fatores que o aproximam e outros que o distanciam daquele fenômeno, bem como a inclusão de seus textos em antologias dos anos 70 e, também, em estudos críticos sobre aquela geração autorizam o pesquisador a relacioná-lo à “poesia marginal”. É interessante, porém, observar que em várias apreciações críticas dessa geração, que também ficou conhecida como “geração-mimeógrafo”, são formuladas listas de exceções. Estas consistem em relações de poetas considerados mais intelectualizados e que elaboram mais seus textos, como por exemplo, Ana Cristina César, Francisco Alvim e o próprio Afonso Henriques. Se considerarmos essas listas, elas são tantas e compostas por poetas tão variados, que talvez possamos agora considerar a “poesia marginal” sob uma nova ótica, já que o conceito adquiriu, em muitos casos, uma conotação pejorativa. Porém quase três décadas após a eclosão do fenômeno, contamos com a peneira do tempo para separar o joio do trigo. É justo ponderar que um pesquisador que tenha vivenciado o momento, que tenha lido os diversos livrinhos e folhetos mimeografados produzidos no período, tenha uma percepção diferente do fenômeno, já que ele apreendeu um vasto material. O pesquisador do século XXI, no entanto, tem acesso apenas àquilo que se fixou e que de alguma forma acabou se incorporando a seu horizonte de referências sobre a poesia contemporânea. Se justamente esses textos fixaram-se por sua maior qualidade quando comparados aos poemas que “desapareceram”, isso é assunto merecedor de uma longa discussão a qual não se propõe este trabalho.Porém faz-se necessário ressaltar que muitos dos apanhados críticos que se debruçaram sobre poetas identificados à “poesia marginal” deixaram de lado o aprofundamento em algumas características peculiares desses autores, ou seja, esses estudos panorâmicos não dão conta da riqueza da obra por eles produzida.

Entre o tempo, a memória e a poesia Feitas essas breves considerações sobre “poesia marginal’, é possível avançar um pouco mais em alguns aspectos da obra de Afonso Henriques Neto. O lançamento de seu primeiro livro em 1972, em meio à efervescência da “poesia marginal” carioca, inseriu-o naquele jovem meio literário e oficializou seu ingresso na carreira de escritor. Desde então, o autor lançou outros dez livros e continua a produzir, já que no momento tem duas obras inéditas a serem lançadas. O contato com a poesia de Afonso Henriques Neto permite ao leitor identificar a diversidade temática e estilística de sua obra, enriquecida pelas experimentações do poeta com a distribuição das palavras no papel. Assim em um mesmo livro poemas em prosa podem estar ao lado daqueles compostos por versos curtos e rimados, ou ainda, longos poemas divididos em partes. Isso, junto ao seu estilo que oscila entre o sublime e Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 592-597, 2005. [ 594 / 597 ]

o prosaico, entre o transcendental e o cotidiano, demonstra que o caminho trilhado pelo autor não resvala na linearidade. No entanto, é interessante observar que ainda que haja uma diferença no tom dominante dos livros, essa diferença se atenua se observarmos como algumas temáticas são constantes na obra de Afonso Henriques, ainda que a importância que recaia sobre cada uma vá se alterando a cada livro. Para exemplificar essa afirmação, é possível comentar que O misterioso ladrão de Tenerife, escrito no momento mais crítico da ditadura militar, é um livro de atmosfera densa, com a insistente utilização de termos relacionados à violência e à escatologia, enquanto que um livro como Abismos com Violinos, escrito na década de 90, utiliza imagens relacionadas à música e privilegia as investigações sobre a temporalidade. Um mapeamento dos elementos centrais na poesia de Afonso Henriques Neto possibilita destacar três temas principais, que são o tempo, a memória, e a problematização do papel da literatura. Estes se articulam entre si, e também se relacionam com outros temas menos abrangentes, como a violência, a ecologia e o amor. Assim o tempo, na poesia de Afonso Henriques, muitas vezes surge com a função paradoxal de dar unidade ao que é descontínuo. Ele pode ser simultaneamente finitude e eternidade, esquecimento e lembrança, perpetuação e fim. A memória, por sua vez, é o que resta das vidas, das civilizações...Mas ela é oscilante e limitada se a deixarmos restrita ao universo humano, pois quem registrará aquilo que transcende o homem e, no entanto, existe? Aí entra o tema da problematização do papel da literatura, que em Afonso Henriques é de extrema importância. Será que a poesia e, em um plano mais abrangente, a literatura podem forjar uma memória? Será que, de fato, tem capacidade de fixar e transmitir alguma experiência que simultaneamente participe da esfera humana e, também, ultrapasse as meras preocupações cotidianas?

Incrustado no rochedo Há um poema publicado no livro Abismo com Violinos, de 1995, que possibilita levantar algumas hipóteses para as questões formuladas anteriormente e, também, demonstrar como se articulam os temas do tempo, da memória e da problematização do papel da literatura nos textos de Afonso Henriques Neto: Cósmico lá está o diamante incrustado no rochedo. civilizações zoam em torno abelhas na colméia. guerras se fazem desfazem caveira poeira deserto. os amores os ódios os comércios da paixão gerações faíscam à volta do rochedo portentoso inacessível indiferente familiar. homens buscam deus ardem em febre e política nomeiam o coração louco de galáxias.

Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 592-597, 2005. [ 595 / 597 ]

inventam armas possantes como estrelas gangrenadas se esquecem de que carne é água pele é vento olhos mergulhados no fruto. e a montanha enorme grávida mas sem sinais transportando invisível o segredo enorme. onde a placenta do poema dorme lá está o diamante incrustado no rochedo. Uma palavra central neste poema é “rochedo”: em torno dele (ou seja, no âmbito externo) há um movimento frenético. Nos versos “civilizações zoam em torno / abelhas na colméia” há um paralelismo que aproxima a vida desses insetos da vida humana. Talvez a agitação, a necessidade e a busca sejam características comuns que, em alguma medida, aproximem todas as formas de vida animal. A palavra “rochedo” é utilizada três vezes no poema - em seu início, aproximadamente no meio e em seu fim – e tanto essa utilização, quanto o próprio sentido da palavra sugerem um ponto de equilíbrio, de solidez em meio à instabilidade daquilo que o cerca. No entanto, essa figura central não é o que mais se opõe ao movimento da vida, já que sua superfície está em contato com o exterior. Na verdade, apenas o diamante incrustado se mantém absolutamente intacto pela realidade externa ao “rochedo”. O tempo age diferentemente sobre os diamantes e sobre o homem; é uma escala temporal diferente da humana a que produz o diamante. E aquela pedra preciosa permaneceu como um feto dentro da montanha por séculos e séculos. Ela é marcada pela perenidade, existiu anônima enquanto civilizações nasceram e morreram. Esse diamante é o segredo que a montanha porta. Por isso, os adjetivos usados para caracterizar o “rochedo” vão do inacessível ao familiar, já que o homem pode ver sua superfície sem saber o que ele carrega. Aí onde habita esse mistério dorme o poema. A questão é será que ao ser “despertado” o poema traria consigo alguma memória, algum conhecimento desse mistério? O texto não nos dá essa resposta, pois chega ao seu final com o “poema” ainda “dormente”. Mas a despeito da solidez e da serenidade deste “rochedo” que Afonso Henriques apresenta ao leitor, há a insinuação de que a poesia se equilibra entre a incomunicabilidade e a possibilidade de encontrar um sentido para a vida. Se acreditarmos que o homem é o único animal que busca o significado das coisas, podemos supor, a partir deste texto, que ele está distante de encontrá-lo. O poema, que é uma criação humana, penetrou o mistério, mas dorme. Objetivamente não pode se comunicar, talvez a partir da linguagem do sonho possa formular algo, mas isso seria uma especulação provavelmente não autorizada pelo texto. E a agitação do homem o afasta mais e mais da verdade em quietude que é o diamante. Assim podemos propor que, na poética de Afonso Henriques Neto, a literatura não tem um papel redentor, porque talvez ela seja o que mais se aproxime de uma verdade que transcenda o individualismo do sujeito contemporâneo, sem, no entanto, conseguir dar para o homem a chave deste mistério. Essa conclusão afina-se com o tom crítico e reflexivo que perpassa toda a obra do poeta e que, juntamente com os elementos temáticos e formais aqui brevemente comentados, constrói uma voz poética que se destaca dentre as mais ricas e singulares de sua geração.

Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 592-597, 2005. [ 596 / 597 ]

Referências bibliográficas AUGUSTO, E. e HENRIQUES NETO, A. O misterioso ladrão de Tenerife.2a ed. Rio de Janeiro: Sette Letras,1997. CÉSAR, A. Correspondência incompleta. HOLLANDA, H. e FREITAS FILHO, A. (org.) Rio de Janeiro: Aeroplano,1999. HENRIQUES NETO, A. Ser infinitas palavras (poemas escolhidos & versos inéditos). Rio de Janeiro: Azougue Editorial,2001. _____Eles devem ter visto o caos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. _____Abismo com violinos. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1995. _____Piano Mudo. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1992. _____Avenida Eros. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1992. _____Tudo nenhum. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1985. _____Ossos do paraíso. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1981. _____Restos & Estrelas & Fraturas. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1975. HOLLANDA, H. Impressões de viagem - CPC, vanguarda e desbunde:1960/70. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1980. _____26 poetas hoje. 2ª ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998. _____ Observações: críticas ou nostálgicas? In Poesia Sempre. Rio de Janeiro, jun.1997.V, 8, p.343-347. MATTOSO, G. O que é poesia marginal? São Paulo: Brasiliense, Col. Primeiros Passos, 43,1981. PEREIRA, C. Retrato De Época: Poesia Marginal – anos 70.Rio de Janeiro: FUNARTE,1981. SIMON, I. e DANTAS, V. Poesia ruim, sociedade pior. In Revista Novos Estudos do CEBRAP. São Paulo, jun.1985.p.48-61. SUSSEKIND, F. Literatura e vida literária. Polêmicas, diários & retratos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 592-597, 2005. [ 597 / 597 ]

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.