Das redes aos não-humanos: A ascensão dos novos sujeitos sociais

September 27, 2017 | Autor: Luciano Del Monaco | Categoria: Sociology, Philosophy, Actor Network Theory, Cybernetics, Bruno Latour
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Das redes aos não-humanos: A ascensão dos novos sujeitos sociais Luciano Del Monaco1 RESUMO: Este artigo expõe o referencial teórico da Teoria Ator-Rede, e seus conceitos centrais, como os de actante, intermediário e rede, em conjunção com outros aportes teóricos. O objetivo é empregar uma abordagem teórica distinta que identifique de maneira satisfatória novas contingências sociais, especialmente a simetria entre humanos e não-humanos (máquinas e instituições) e da emergência de novos sujeitos sociais (como as mídias sociais) - dentro de um contexto de inovações tecnológicas que não impactam a sociedade apenas em questões quantitativas ou de grau, mas implica em modificações qualitativas na sociedade. Dentro desse contexto o Direito encontra dificuldades, pois suas ferramentas não são mais aptas a operar em uma sociedade que passou por transformações que a diferenciam da sociedade existente à formação dessas ferramentas. Torna-se assim necessário reconstruir a própria noção de sociedade, partindo-se de premissas que permitam uma reconfiguração do sujeito (reobservação), pois dentro do referencial da Teoria Ator-Rede - que se afasta de concepções universalistas e de qualquer transcendência - os actantes (sujeitos) só existem, e só são observáveis como tais, no momento da ação, ou seja, não "são", mas "estão sendo.” A partir do momento que é possível lidar com a possibilidade de reconfiguração do sujeito, se torna possível compreender fenômenos aparentemente contraditórios, como o fato de humanos e não-humanos serem simétricos e, ao mesmo tempo, diferentes permitindo-se propor e reconstruir o arcabouço técnico e teórico do Direito para torná-lo apto a uma nova realidade que se avizinha.

Palavras-chave: Teoria Ator-Rede; sujeito; não-humanos; redes

ABSTRACT: The present paper shows the theoretical referential of the Actor-Network Theory, its central concepts, such as actant, intermediary and network, in combination with other theories, this paper objetive is to utilize a different theory that is able to identify in a satisfactory manner new social contingencies, especially the symmetry between humans and non-humans (machines and institutions) and the emergence of new social subjects (such as social medias) - inside a context of technologic innovations that does not only impact society in a quantitative degree, but implies in qualitative changes in society. Inside this context Law encounters difficulties, because its tools are not able to operate in a society that underwent transformations that distinguish this society from the society that existed during the formation of this tools. Thus becomes necessary to rebuild the own notion of society, starting from premises that enable the reconfiguration of subjects (re-observation), since in the Actor-Network Theory - that puts aside universalists conceptions and any transcendence - the actants (subjects) only exists, and are observable such as, at the moment of action, in others words, they not "are", but they are "being". From the moment that it is possible to deal with the possibility of subject reconfiguration it is possible to understand phenomena seemingly contradictory, like the fact that humans and non-humans are symmetric and, at the same time, different - enabling to propose and rebuild the theoretical and technical framework of Law to make it able for a new reality that lies ahead of us.

Key-words: Actor-Network Theory; subject; non-humans; networks

Introdução 1

Graduando em Direito pela Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); email: [email protected].

Em 1950 Alan Turing (TURING, 1950) realizou a seguinte indagação “uma máquina pode pensar?” para em seguida descartar essa possibilidade, redefinindo o problema, poderia uma máquina ser capaz de vencer um “jogo de imitação?" – a partir desse ponto constrói o que vem a ser conhecido como “Teste de Turing”, que seria uma forma de elaborar um teste no qual um ser humano deveria identificar se um terceiro é um humano ou uma máquina. Quando Turing propôs essa questão parecia altamente improvável que um computador seria capaz de passar pelo teste, embora o próprio autor concedesse que um aumento da capacidade de processamento dos computadores poderia alterar esse quadro e tornar o improvável em provável. No entanto, em 09.05.2014 foi noticiado que o primeiro computador havia passado no Teste de Turing, que consiste em uma conversa por mensagem de cinco minutos entre um computador e um ser humano, que não sabe que está se comunicando com um computador. A condição para que se considere que o computador passou no teste é que este seja capaz de enganar trinta por cento dos seres humanos e convencê-los que estão conversando com um ser humano. O programa de computador "Eugene Goostman" foi desenvolvido por Vladmir Veselov e Eugene Demchenko e os testes foram realizados pela Universidade de Reading (Reino Unido). Segundo os resultados anunciados ao público, pois o artigo definitivo ainda não foi publicado, o programa foi capaz de convencer trinta e três por cento dos jurados que se tratava de um garoto de treze anos de idade (GUARDIAN, 2014). Embora exista uma controvérsia sob o resultado, especialmente considerando-se que o artigo definitivo ainda não foi publicado, e que existe discordância na área sobre como interpretar o Teste de Turing e seus resultados, o fato é que, se ainda não se rompeu, estamos no liminar de romper um grande paradigma tecnológico, o que impacta de forma bastante direta a Filosofia e, consequentemente, o Direito. A questão a ser posta é como o Direito é impactado por essas mudanças, especialmente se considerarmos que se trata de um ramo do conhecimento bastante estável (diversos institutos oriundos do Direito Romano existem contemporaneamente, embora com variações, de forma que é possível identificar certa perenidade dos institutos jurídicos) e que pode resistir às mudanças, pois possui poder de controle social – por ser o detentor do monopólio do uso da força estatal.

No presente artigo se procura expor a Teoria Ator-Rede, como arcabouço teórico apto a lidar e explicar com as alterações resultantes do desenvolvimento tecnológico contemporâneo e seus impactos sociais, sendo certo que por ora se está em meio um processo de transição entre o passado, já conhecido e agora não mais apto a explicar o presente, e um presente ainda pouco definido, que rompe com certos aspectos tradicionais e ao mesmo tempo mantém algumas de suas características. A incerteza que categoriza todo e qualquer período de transição se dá pelo fato de nele coexistirem o "novo" e o "velho", e - consequentemente - qualquer teoria que se proponha a utilizar deve ser capaz de lidar com essas duas facetas distintas. Ciente desses requisitos a serem cumpridos, será apresentado uma nova proposta de abordagem teórica, a Teoria AtorRede, que possui conceitos específicos e destes derivam consequências distintas de outras abordagens teóricas.

1. Pressupostos lógico-filosóficos fundantes

A princípio, poderia se imaginar que a Teoria Ator-Rede se volta à tecnologia como paradigma da compreensão da realidade, o que não é o caso. Embora a tecnologia, e, mais precisamente, as alterações promovidas pela evolução tecnológica nas relações intra e intersubjetiva, seja uma condição necessária do referencial teórico utilizado ela não esgota a realidade em si e muito menos a realidade se esgota nela. Brian Skyrms, em seu livro “Escolha e Acaso: Uma Introdução à Lógica Indutiva” (1971) propõe uma terminologia que distingue entre condições necessárias e condições suficientes. Opta-se por utilizar essa terminologia em substituição à de “causas e efeitos” por considera-la mais precisa (assim como o próprio Skyrms). Ao se falar em “causas e efeitos” se pressupõe uma relação estanque de casualidade entre elementos (se A então B) uma implicação direta que é inadequada ao ambiente sócio tecnológico que nos encontramos – sendo bastante difícil, quando não impossível, determinar a relação de causalidade entre A e B. Skyrms indica as implicações de sua terminologia nos seguintes termos (SKYRMS, 1971, p.116-117): Definição 10: A propriedade F é condição suficiente para a propriedade G se, e somente se, estando presente F, G também está presente.

Definição 11: A propriedade H é condição necessária para a propriedade I se, e somente se, estando I presente, H também está presente. (...) A partir das definições de condição necessária e de condição suficiente é possível deduzir várias consequências importantes. Das definições segue-se, imediatamente, que: 1. Se A é condição suficiente para B, então B é condição necessária para A. 2. Se C é condição necessária para D, então D é condição suficiente para C.

Necessário destacar que a terminologia permite a reconfiguração de abordagem de cada sujeito quando da ação (e análise do social), ou seja, sob a observação de dado sujeito, uma condição que parecia não relacionada é uma condição suficiente – ou uma condição aparentemente suficiente é na verdade apenas necessária, por exemplo. Em outras palavras, o pressuposto lógico trazido possibilita uma reorientação de abordagem de cada sujeito. Em outras palavras, afasta-se de qualquer postulado de universalidade ou unidade, cada sujeito está inserido dentro de sua “atmosfera semântica”, conceito complexo (que depende de outros conceitos), formulado por Pugliesi nos seguintes termos (PUGLIESI, 2009, p.157-159): O conflito é uma condição inerente ao ser humano e as diferenças decorrentes dos distintos estados de conhecimento dos sujeitos em comunicação mantêm um permanente estado conflitivo. Entende-se por estado de conhecimento: uma cosmovisão em um determinado instante da sucessão temporal constitutiva dos estados de um dado sujeito, isto é, um corte no quase-contínuo chamado sujeito que, sob o ponto de vista da posição gnoseológica orientadora deste trabalho, poderá ser representado por um conjunto de informações; dados desestruturados; ideologias; pulsões inconscientes, teorias assumidas e pressupostas; expectativas e temores; desejos formulados etc. ou, para se empregar uma metáfora: uma atmosfera semântica com sua respectiva poluição, também semântica. À medida que o tempo flui, o estado de conhecimento se modifica e, em consequência, o sujeito. Não se esquecendo que, por vezes, até

por questões metodológicas, o sujeito pode

constituir-se, para si mesmo, em alteridade. (grifos nossos)

Não se irá tratar de todas as implicações filosóficas do conceito de atmosfera semântica, mas apenas de um aspecto do conceito, a possibilidade de o sujeito constituir-se, para si mesmo, e em si mesmo, em alteridade – ou seja – a depender do estado de

conhecimento do sujeito (e do observador) ocorrerá uma reorientação de sua abordagem, o que alterará sua compreensão (ou até mesmo sua autocompreensão). Em outras palavras, ao entender o sujeito como a constituição de uma atmosfera semântica (que entra em contato com outras atmosferas semânticas, poluindo-se, misturando-se mutuamente) é possível compreender o motivo pelo qual as reconfigurações do sujeito ocorrem. Conjuga-se assim dois referenciais teóricos, por um lado a terminologia proposta por Skyrms permite uma compreensão, em termos lógicos, do caráter policêntrico da realidade contemporânea, e, consequentemente, do papel predominante que as reconfigurações do sujeito ocupam na compreensão de sua “capa de realidade”2 (assim entendida por ser uma visão sempre parcial do mundo, orientada pela atmosfera semântica do sujeito observador). Por outro lado o conceito de atmosfera semântica nos fornece sustentação filosófica para justificar a possibilidade da existência das reconfigurações, o que não seria possível dentro de um paradigma de sujeito de matiz universalista que reduzisse o sujeito a uma ou poucas características ontológicas e essenciais.

2. Teoria Ator-Rede: Existem dados suficientes para uma resposta significativa

Restando claro os pressupostos utilizados, passemos à exposição da Teoria Ator-Rede (ou “ANT” – Actor Network Theory – na terminologia inglesa), que será o referencial teórico empregado no presente trabalho. Antes, contudo, retome-se o conceito weberiano de sentido, que servirá de contraponto à abordagem utilizada. Em linhas gerais, Max Weber associa o sentido ao ser humano, de forma que só seria possível falar em sentido caso se estivesse pressupondo a existência de uma inteligência humana por trás de cada ação (WEBER, 2004, p. 05): Processos e objetos alheios ao sentido são levados em consideração por todas as ciências humanas ocupadas com a ação: como ocasião, resultado, estímulo ou obstáculo da ação humana. "Alheio ao sentido" não é idêntico a "inanimado" ou "não-humano". Todo artefato, uma máquina por exemplo, somente pode ser interpretado e compreendido a partir do sentido que a ação humana (com finalidades possivelmente muito diversas) proporcionou (ou pretendeu proporcionar) à sua produção e utilização; sem o recurso a esse sentido permanecerá inteiramente incompreensível. O compreensível nele é, portanto, sua referência à ação humana, 2

Nesse sentido ver o conceito de incomensurabilidade desenvolvido por Thomas Kuhn em a “Estrutura das Revoluções Científicas”.

seja como "meio" seja como "fim" concebido pelo agente ou pelos agentes e que orienta suas ações. Somente nessas categorias realiza-se a compreensão dessa classe de objetos. (grifos nossos)

A problemática do “sentido” é um dos diversos desdobramentos da premissa original: Existe um ser humano (sujeito) e todo um outro grupo de “não-humanos” (que vão de máquinas à instituições, por exemplo). A questão a ser colocada é se essa distinção entre humano e “não-humano” fez sentido em algum momento. É possível que na realidade contemporânea essa distinção seja insustentável. Nesse sentido observe-se o trecho de André Lemos (LEMOS, 2013, p.20): O leitor atento, aquele que não se deixou levar pela história do sujeito que domina o objeto, do sujeito senhor da situação e do objeto sempre passivo e subserviente, pode arguir que isso é assim desde sempre, que nossa relação com a técnica, esse modo de fazer coisas, e com artefatos, essas coisas feitas por nós, é sempre de trocas, de mediação, de delegação, de inscrição de tensão. Que ela é sempre comunicação. Certamente. Mas nem todo mundo pensa assim. Hoje, mas do que em outras eras da história da humanidade, essa comunicação é mais intensa. Cada vez mais não-humanos, agora "inteligentes, comunicativos, conectados e sensíveis ao ambiente" (smarts, no jargão técnico) nos fazem fazer coisas, alteram a nossa forma de pensar e de agir em todos os domínios da cultura (família, trabalho, escola, lazer...). (grifos nossos)

Um dos pressupostos da Teoria Ator-Rede é simetria entre humanos e não humanos (que também pode ser designado como princípio da ontologia plana), nesse sentido (LEMOS, 2013, p.52): É o pressuposto de que se deve dar a mesma importância a sujeitos e objetos, mais ainda, deve-se toma-los, propõe Serres, como "quase-sujeitos" e "quase-objetos". Assim, actantes humanos e não-humanos estão no mesmo plano. Esse princípio foi o que diferenciou a TAR [Teoria Ator-Rede] dos outros Estudos de Ciência e Tecnologia (Science and Technology Studies - STS) e lançou uma alternativa à sociologia estruturalista, fugindo dos grandes enquadramentos teóricos explicativos do social e identificando redes, mediadores e intermediários em movimento, atuando em uma determinada associação. (grifos nossos)

A evolução tecnológica é condição necessária a essa mudança de paradigma, o da simetria, e deriva do fato dos não-humanos, progressivamente, serem capazes de se comunicar de forma cada vez mais direta3 com os humanos, de forma que a quantidade de perda comunicacional é próxima a existente entre humanos - e a partir do momento em que 3

Que nunca será plenamente direta, sendo essa uma limitação de toda comunicação, inclusive as realizadas entre humanos, devido a fenômenos como o "ruído" e a "incomensurabilidade" - que basicamente implicam em perdas comunicacionais inevitáveis.

humanos e máquinas passam a ser indistinguíveis não faz mais sentido em designar a tecnologia como algo apartado do gênero humano.

3. Dos sujeitos aos actantes

Compreendendo-se o referencial teórico utilizado e os seus paradigmas convém delimitar de maneira mais clara como a Teoria Ator-Rede operacionaliza a simetria pressuposta entre humanos e não-humanos. Essa operacionalização se dá através da atualização do conceito de sujeito para o de actante, com o intuito de se afastar da problemática da consciência - que não é mais utilizada como critério de diferenciação entre humanos e não-humano. Como exposto por Turing, não é relevante saber se a máquina (não-humano) possui ou não consciência, mas sim se um ser humano acredita que o outro (humano ou não-humano) possui aquilo que ele designa como "consciência". Designa-se "actante", termo originário da semiótica greimasiana, tudo aquilo que gera uma ação, podendo ser tanto humano ou não-humano (uma substância química por exemplo, como a pólvora quando gera uma explosão). O termo "actante" esclarece de maneira definitiva a relação simétrica entre humanos e não-humanos, aspecto essencial para a construção teórica utilizada. Obviamente não se está pretendendo afirmar que as construções teóricas referentes ao sujeito, como o conceito de atmosfera semântica são inadequados a esse novo conceito, exatamente pelo contrário, por se tratar de uma atualização conceitual - que apenas pretende incorporar novas complexidades4 - lhe é útil e aplicável construções anteriores. Contudo, deve se pontuar que essas construções não devem possuir pretensões de universalidade, pois nesse caso invalidariam um dos aspectos mais caros ao conceito de actante, que é a possibilidade de reconfiguração de papel diante da situação fática. A essa altura deve se fazer a pergunta de como o conceito de actante pode nos auxiliar a compreender a realidade.

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E também, invariavelmente, deixar outras complexidades de fora de sua construção, devido ao caráter limitado e contingente de toda observação da realidade.

A melhor maneira é indicar que, diferentemente do que se poderia pressupor, a tecnologia não é neutra, mas construída em uma próxima imbricação entre humano e nãohumano, de forma que a interação mútua faz com que um delimite e construa o outro. Por exemplo, porque o tamanho de smartphones costumam ser muito parecidos? Não se trata de uma ontologia do aparelho, nem uma limitação tecnológica - mas simplesmente um fato que o assim é porque o usuário (humano) se acostumou com o tamanho, configuração e usabilidade do não-humano, e o humano se acostumou com esse estado de coisas pelo fato de que é possível que o não-humano pode ser como é. Em linhas gerais, tão ou mais relevante que observar o que está lá (na tecnologia) é se perguntar o que não está lá e os motivos que justificam essa ausência, que por vezes extrapolam muito a questão tecnológica, indo desde costumes irrefletidos a interesses econômicos. Não se demonstrou ainda como se dá a relação entre actantes, podemos contudo adiantar que é uma operação na qual a soma das partes é maior que o todo. Para exemplificar retorne-se a um exemplo trivial, a relação entre um homem e uma caneta, cada qual é diferente quando estão em interação, o homem passa da transmissão meramente verbal à fixação escrita do conteúdo, já a caneta, um objeto inerte e inútil (para que serviria uma caneta além de escrever?) passa a possuir utilidade e razão de existir, permitindo ao seu usuário a possibilidade de fixar por escrito, por meio de tinta, um conteúdo. Observando-se por uma ótica externa o que um homem e uma caneta juntos podem fazer é muito mais que separados, o homem não pode fixar sua mensagem em meio perene (devemos ter em conta que esse é o meio pelo qual muitos escritos da Antiguidade foram preservados até a invenção da prensa) e esta se perde, já por outro lado a caneta passa a possuir utilidade. Enfim, é possível admitir que a conjugação desses dois actantes pode ser compreendida como, no momento da ação (esse ponto será explicado adiante) como um actante unificado que reúne característica de ambos e, ao mesmo tempo, possui novas características (novas possibilidades) que só são possíveis pela mediação5 existente entre ambos. Podemos sintetizar o exposto até o momento, e indicando a posterior questão da ação, com a seguinte passagem (LEMOS, 2013, p.44-45):

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Emprega-se o termo "mediação" para destacar que na verdade não se está diante de uma relação entre "A" e "B", mas uma relação entre "A", infinitas coisas e "B" - de forma que "A" e "B" se mediam mutuamente, organizando como irão lidar com as "infinitas coisas" que os permeiam.

Cada actante é sempre resultado de outras medições e cada nova associação age também como um actante.

A diferença dessa abordagem em relação a outras

francamente construtivistas é, definitivamente, a de não colocar o humano em lugar de destaque, prestando atenção na circulação da agência. Actantes (humanos e nãohumanos) atuam sem hierarquias previamente determinadas e o objetivo é descrever e analisar o social a partir de seus rastros. (grifos nossos)

Ao se colocar ênfase na "ação", se permite observar que a depender de como essa ação for orientada se estará diante de uma reconfiguração do actante, no entanto isso ainda diz pouca coisa - pois se a categoria de actante é capaz de englobar todo e qualquer "sujeito", seja ele humano ou não humano, é possível levantar a objeção de que seria uma categoria inútil, pois incapaz de mostrar as distinções entre os actantes e a relevância das diferenças existentes.

4. Intermediação e reconfiguração

Em complementaridade ao conceito de actante está o conceito de intermediário, o qual permite - dentro do referencial teórico utilizado - observar as reconfigurações do "sujeito" dentro de um contexto. Antes de mais nada deve-se ter em mente que um mesmo "sujeito" transita entre actante e intermediário, e que isso se dá devido a característica específica do intermediário que é o de transportar coisas sem alterá-las. Veja abaixo a definição proposta por Lemos (LEMOS, 2013, p. 46): Intermediário é uma noção complementar a de actante. Ele não media, não produz diferença, apenas transporta sem modificar. Ele transporta (leva de um lugar a outro no espaço), mas não transforma, immutable mobile. Ele circula sem mexer nem no espaço, nem no tempo. Ele não é um actante, mas pode vir a ser. (grifos nossos)

O aspecto mais importante da definição é, além do caráter de complementaridade, a alteridade possível do "sujeito" (que irá depender do estado de conhecimento, da atmosfera semântica do sujeito, ou seja, do contexto), que enquanto intermediário não é um actante, mas poderá vir a sê-lo. Nesse ponto, para os objetivos desse artigo, que se realiza a conexão entre a Teoria Ator-Rede e o conceito de atmosfera semântica proposto por Pugliesi, fez-se essa aproximação para demonstrar que embora não utilizem a mesma terminologia ambas as abordagens possuem pontos de contato, que não devem ser ignorados.

Para ilustrar o conceito retome-se o exemplo trazido acima (mediação entre um homem e uma caneta) observado por outra ótica, ou seja, faça-se uma reconfiguração dos objetos - possuindo aqui outro objetivo. Na primeira vez que se trouxe o exemplo, o enfoque repousou sobre a questão das possibilidades, devendo ser entendida como o fato de que um ser humano (sem uma caneta) se limita a transmitir sua mensagem por meio oral, o que impossibilita que esta seja perene e sobreviva a sua morte, já a caneta (sem um humano) pode apenas existir enquanto um objeto físico, dentro desse estado de coisas que embasa a observação ambos (caneta e ser humano) são actantes que aumentam seu rol de possibilidades ao entrarem em uma mediação (interação mútua) quando da ação. No entanto, esse enquadramento não esgota a realidade, ao se reconfigurar a abordagem com enfoque à mensagem é possível identificar uma relação bastante diferente, nessa observação existe um actante (o ser humano) e um intermediário (a caneta), pois o ser humano elabora uma mensagem (ação), e a escreve (ação) por meio de um intermediário (a caneta) que não altera a mensagem elaborada pelo humano, nesse sentido a caneta simplesmente transporta a tinta (do reservatório ao papel) sem alterar o produto final6. Agora, para impor mais uma reconfiguração, imaginemos que a caneta quebra, ou a tinta acaba, nesse instante (que também é uma ação), a caneta passa a ser um actante, pois rompe a sua estabilidade inicial e demanda uma ação por parte do ser humano (que nesse caso, também um actante), que vai desde reparar a caneta, reconstruindo assim seu quadro de estabilidade inicial (fazendo-a voltar a ser um intermediário), a outras ações, como obter uma outra caneta, desistir de passar a mensagem, enfim, toda uma multiplicidade de decisões (ações) possíveis. Por fim, necessário esclarecer que um humano pode ser um intermediário, um exemplo típico do Direito é da vinculação do agente público à lei, quando um agente público identifica uma situação fática e aplica a consequência jurídica correspondente (nas hipóteses em que existe vinculação direta entre "causa e consequência") age como um intermediário, nesse caso a legislação é o actante e o agente público mero intermediário.

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É preciso destacar o ponto de que o intermediário, no caso a caneta, não altera o produto final no sentido de que ele não possui ação sobre o conteúdo da mensagem transmitida, não possui meios de alterar a mensagem, embora deva se esclarecer que no exemplo citado existe distinção entre o código "fala" e o código "escrita".

Obviamente, assim como no exemplo da caneta, se o agente público romper essa situação de estabilidade irá agir como um actante (inclusive poderá cometer um crime, como o de prevaricação). Uma objeção que pode ser levantada é que no exemplo citado não é possível determinar se o agente público age por causa da legislação ou apesar dela. Contudo, como já se expôs acima, não é relevante dentro do referencial teórico a problemática da "vontade"7 do sujeito (seja humano ou não-humano), pelo fato de que sua condição como "actante" ou "intermediário" só ser visualizada no momento da ação e sob certo enquadramento, em síntese, se o agente público mantém a estabilidade e age como a legislação prescreve ele é, sob a ótica do Direito positivo, um "intermediário" que fez a ação prescrita pela legislação. Em síntese, demonstra-se que é totalmente irrelevante se estamos diante de um humano ou um não humano - sendo o referencial teórico apto a lidar com ambos da mesma maneira, embora ciente de que não são fenômenos equivalentes, apenas simétricos.

5. Conclusões parciais

A grande utilidade dos conceitos de actante e intermediário é tornar visível e premente algumas conclusões essenciais que serão particularmente úteis ao estudo do direito, e que podem ser sintetizadas da seguinte forma. 1) Inexistência de qualquer ontologia que diferencie humanos de não humanos, sendo estes simétricos entre si. 2) As categorias criadas (actante e intermediário) são categorias intercambiáveis, o enquadramento de um sujeito nas categorias depende do contexto no qual a análise se insere (mais precisamente o quadro de conhecimento possível ao sujeito que realiza a categorização e seus objetivos). 3) A compreensão de qualquer sujeito (se como sujeito ou actante) só pode ser realizada no momento da ação, ou seja, no tempo e no espaço.

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Que está ligada ao problema da "consciência", apenas para indicar esse paralelo entre "vontade" e "consciência".

6. Direito e redes: novas abordagens

O referencial construído até o momento nos permite compreender de maneira diferente a realidade, deixando de lado ontologias para observar a ação antes de enquadrá-la em uma categoria específica, na síntese de Lemos (LEMOS, 2013, p. 47): Essa perspectiva, [da Teoria Ator-Rede] que deixa de lado as noções de essência (estrutura ou agência próprias do objeto) como pensamento previamente explicativo da ação, nos permite seguir actantes e intermediários em sua condição atual (a rede) e observar a distribuição da ação antes de enquadrá-las em grandes "frames" como "razão", "poder", "sujeito", "objeto". (grifos nossos)

A questão que se põe é responder o que vem a ser a rede? Antes de dizer o que vem a ser a rede, convém explicitar o que ela não é - a rede não é a soma dos sujeitos sociais, não se trata de um conglomerado de coisas, não é a sociedade considerada como um ser monolítico, tampouco é um local por onde as coisas passam. Na verdade a rede se forma na relação (mediação) das coisas (actantes e intermediários), abrangendo tanto o espaço e o tempo - a ação constitui redes. Lemos coloca o conceito como um dos centrais à Teoria Ator-Rede (LEMOS, 2013, p.53): É o próprio "espaço-tempo". É, ou era até recentemente (LATOUR, 2012a 8) (grifos nossos), o conceito-chave que remete às formas de associações entre os actantes e intermediários definindo a relação (ou mediação, ou tradução ou inscrição) entre eles. A rede é o próprio movimento associativo que forma o social. Ela é circulação, a inscrição de influências de actantes sobre actantes, tradução, tradução, mediação até a sua estabilização como caixa-preta. A rede constitui o espaço e o tempo na mobilidade das traduções e na fixação das estabilizações e pontualizações. (grifos nossos)

Dentro dessa abordagem, o Direito constitui um fragmento das redes (como uma das muitas redes possíveis), mas, novamente, o Direito não existe enquanto objeto estático (assim como nada existe), existe apenas no momento da ação. para dar um exemplo específico, o Supremo Tribunal Federal só existe no momento em que age - rompe-se assim qualquer transcendência, as coisas (humanas e não humanas) não "são", mas sim "estão sendo". Seguindo no exemplo trazido, o Supremo Tribunal Federalnão é, per se, absolutamente nada9, 8

Ver a esse respeito o livro "Enquête sur les modes d’existence. Une anthropologie des Modernes" (título original) de Bruno Latour. 9 Convém esclarecer que observamos o STF sob a ótica de sua função típica, que é a tomada de decisões, não significa que a Corte deixa de existir quando não está exercendo sua competência, como objeto físico ela de fato existe (possui orçamento, pessoal, etc...) , no entanto não existe enquanto Corte.

torna-se algo no momento em que exerce sua competência, quando decide o caso, quando age, como diz Lemos (2013, p.45): No entanto, a ação nunca é propriedade de um actante, mas de uma rede. A origem e direção da ação nunca são facilmente identificadas. Objetos (podendo ser actantes ou intermediários, já que tudo depende da ação) se deslocam no espaço levando uma rede estabilizada: um computador, um carro, um avião. Mas, de fato, eles são redes e não indivíduos técnicos; parecem estáveis - immutable - mas são redes de associações dinâmicas - mobile. O tempo e o espaço perdem dimensões de reservatório, de escala e de sucessão cronológica: não é possível identificar a fonte da ação ou sua direção de forma simples. Consequentemente a escala não ajuda, as dimensões de micro e de macro não ajudam, o indivíduo não ajuda, o coletivo não ajuda, a transcendência não ajuda... na localização e na identificação do sentido da ação. Ela é sempre distribuída, como um desvio. (grifos nossos)

Considerando que a ação é sempre propriedade de rede e não do agente, que as coisas não "são". Se não existe uma ontologia que define o ser como poderemos, retomando a questão do sentido, identificar qual vem a ser o sentido do Direito? Qual seria sua finalidade? Sobre esse ponto existe grande controvérsia. Uma leitura alinhada ao materialismo histórico (de raiz marxista) identificaria o Direito como uma ferramenta da superestrutura para a manutenção do sistema capitalista, já uma leitura de matiz positivista poderia dizer, com base na leitura de uma dada Constituição Federal, que compete ao Direito a guarda da Constituição e a concretização dos objetivos nela inscritos. Diga-se de passagem que essas são apenas duas abordagens diferentes, é possível diversos outras formas de conferir sentido ao Direito. Então, qual é o sentido do Direito? Pode-se dizer que todas as teorias estão simultaneamente certas e erradas ao mesmo tempo - porque o Direito (assim como todo fenômeno social complexo) não pode ser reduzido a apenas uma função e finalidade, porque cada actante irá tentar configurar o Direito para atender suas finalidades, ou seja, se a relação de poder entre os actantes se altera o próprio Direito (sua função e finalidade) se altera. Além disso, conforme se realiza esse enquadramento (do Direito como manutenção da superestrutura, ou como defesa dos direitos fundamentais) já se está diante de uma ação, e da rede por ela formada. Por exemplo, uma decisão judicial põe em marcha todo um plexo de consequências ( que impacta diferentes actantes e intermediários) e gera uma reação, que por sua vez irá gerar uma outra reação, em uma cadeia praticamente infinita de ações/reações. Em síntese, o Direito, compreendido como um caso particular de uma "sociologia da mobilidade", permite entrever a importância do fluxo de ações e da reconfiguração do Direito,

sendo essa tentativa de reconfiguração (ou rechaço a essa tentativa) o cerne das discussões judiciais. Essa é uma abordagem que permite uma nova compreensão de fenômenos aparentemente anômicos, como a interferência do judiciário em políticas públicas - ao mesmo tempo em que se afasta da busca de uma transcendência do Direito. Ao se pensar o Direito como uma mobilidade percebe-se que o referencial teórico tem capacidade de absorver e explicar aspectos muitas vezes controvertidos, como aspectos fáticos que influem diretamente na consecução do Direito, por exemplo, mesmo que uma das partes tenha razão se ela não possuir recursos suficientes para se manter na demanda judicial (ou, mais precisamente, para aguardar o tempo médio de um processo) será obrigada a desistir e negociar com a outra parte - cuja ação pode ser contrária ao Direito (ser contra a jurisprudência majoritária, por exemplo) e mesmo assim se viu beneficiada dentro do Direito. Enfim, normalmente esse tipo de situação seria tratada como uma deficiência do sistema, como uma práxis enviesada não adequada à transcendência do Direito (e dos valores jurídicos), enquanto a Teoria Ator-Rede compreende o fenômeno de outra forma, admitindo que na verdade o Direito esta sendo essa práxis enviesada, que inexiste qualquer transcendência e que, embora o Direito possa ser alterado (como qualquer outra "coisa"10), não existe um projeto a ser alcançado, dependerá apenas dos actantes, e dos intermediários, reconfigurar o Direito da maneira que quiserem - e que puderem. Nesse sentido, é bastante elucidativo o tratamento dado por Lemos à questão da mobilidade, mais precisamente da Teoria Ator-Rede como uma sociologia da mobilidade (LEMOS, 2013, p. 60): A TAR [Teoria Ator-Rede] é uma sociologia da mobilidade, do "spacing" e "timing". Vimos como todos os conceitos e pressupostos teóricos apresentados até aqui insistem nessa dimensão. Todos evidenciam, de uma forma ou de outra, ideias de fluxo, de movimento, de circulação, de eventos. Os atores (actantes humanos e não humanos) estão sempre se fazendo e se desfazendo como redes. Essas, como vimos, não são infraestruturas por onde passam as coisas, mas própria associação pela mediação ou tradução. A mobilidade está justamento nesse fazer outros fazerem algo, no negociar para impor vontades e ações, na tentativa de estabilização para alcançar os resultados pretendidos. A intermediação, mesmo sem modificar, transporta. É evidente e pode, a depender da ação, transformar-se em mediação (quando um intermediário vira um actante). A controvérsia é, em si mesma, movimento, magma constitutivo das redes, circulação da ação, da polêmica e de disputa. A teoria afasta-se de tudo o que é fixo: essências, estruturas, sistemas unificadores, paradigmas. A sua ontologia, como vimos no início, é a que define o ser não ser pela substância, mas pelos seus movimento de subsistência. (grifos nossos) 10

Seja um objeto físico, como uma pedra, à uma instituição social, para deixar claro que se pretende dar abrangência a essa afirmação.

Após todas as considerações realizadas até o momento, há de se perguntar o motivo pelo qual o Direito aceita esse enquadramento. Em síntese, se a realidade é muito complexa e cria novas situações que o Direito não está aparelhado para lidar por que não suprimir a complexidade social? Afinal de contas, o Direito possui o monopólio do poder estatal, poderia de maneira singela usar a força (física e ideológica) para impedir, ou no limite ordenar, o fluxo que perfaz o social, mantendo a estabilidade social e conceitual.

7. O Direito tenta agarrar as nuvens: A ascensão de novos e fluidos sujeitos sociais

O Direito, diferente de demais áreas do conhecimento, é bastante afeito a uma tradição, o que condiz com sua própria estrutura de conhecimento - especialmente se considerarmos que, dentro de uma tradição filosófica liberal (e jurídica) que preza pelos direitos individuais do cidadão, oponíveis contra o Estrado, o valor maior do Direito é a "segurança jurídica", ou seja, a manutenção das coisas como ela são11. Então, porque o Direito não tenta suprimir a complexidade social? A resposta mais simples é que ele é incapaz de fazer isso, pois o Direito é ferramenta que operacionaliza outras esferas da vida cotidiana (como a política e a economia) e estas mudam por meio das ações dos actantes (e das relações destes com os intermediários). Interessante observar como o Judiciário em geral, e Supremo Tribunal de Justiça em particular, têm aplicado, ou ao menos tentado aplicar, antigas soluções jurídicas para situações para as quais elas são inadequadas. Em março de 2010, o STJ julgou pela primeira vez um processo contra o Google (REsp 1117633/RO, 2ª Turma, Ministro Relator Herman Benjamin, julgado em 09/03/2010). Tratava-se então de ofensas a menores de idade em comunidades do Orkut. As tutelas jurisdicionais requeridas pelo Ministério Público de Rondônia de identificar as partes envolvidas e exigir a exclusão das referidas comunidades foram deferidas pela Justiça e cumpridas pelo Google. Mas imediatamente abriam-se novas comunidades com o mesmo conteúdo que a Justiça proibira. A nova realidade levou o Ministro Relator Herman Benjamin a classificar a imposição de medidas como “um jogo de Tom e Jerry, que em nada 11

Embora existam outros valores jurídicos, em outras tradições, e inclusive na tradição liberal, como a de diminuição de desigualdades sociais.

remedia, mas só prolonga, a situação de exposição, de angústia e de impotência das vítimas das ofensas”. Esse é um caso, e obviamente não foi o único, no qual o Judiciário foi incapaz de formatar a realidade a seus conceitos. Resta então saber o motivo pelo qual o Judiciário restou impotente. Uma maneira interessante de reconfigurar essa questão é através da constatação de que a evolução tecnológica alterou de maneira sensível o que se entende por propriedade, pois a rede é um espaço amétrico (DELEUZE, 2008), logo não pode ser dimensionado e consequentemente, não pode ter um "dono". Além disso, é necessário considerar de que o fato do espaço ser amétrico já cria diversos obstáculos com a territorialidade, pois é plenamente factível que uma ofensa seja realizada no Brasil, entre brasileiros, mas os dados relativos a essa ofensa se encontram em um servidor localizado no exterior, o que cria por si só dificuldades (e as vezes até limitações, a depender da legislação do outro país) à prestação jurisdicional. No entanto, mais do que uma questão prática, a emergência das redes e de novos sujeitos sociais (como as mídias sociais, a exemplo de Facebook e Twitter) altera conceitos muito bem consolidados, como a noção de propriedade, pois na rede "fática" (realidade objetiva) um objeto só pode ter um proprietário12, e só pode ser possuído, gozado e fruído por uma pessoa ao mesmo tempo, enquanto na rede "virtual" essa limitações não existem, um número praticamente infinito de pessoas pode ser proprietária e possuidor da mesma coisa ao mesmo tempo. De forma que dentro desse contexto o próprio conceito de "propriedade" se torna irrelevante, pois inexistem limitações que impõe a necessidade da existência de um proprietário (que pode ser até mesmo uma coletividade, como o Estado). O que são então esses novos sujeitos sociais e como eles afetam o Direito? Novamente, esses novos sujeitos sociais são "atualizações" de fenômenos já existentes. O que se tornou possível na sociedade contemporânea, graças à evolução tecnológica, é o aumento da escala de fenômenos já existentes. As mídias sociais são um caso típico de medições intersubjetivas já existentes. A diferença é que no passado os indivíduos só eram capazes de se comunicar (rapidamente) com um pequeno grupo e as inovações tecnológicas (em especial

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É possível a copropriedade, duas ou mais pessoas serem proprietárias de algo, no entanto sempre existe um dono (o Estado por exemplo, dono das "terras devolutas"), não existe nada, dentro da realidade humana, que não possua um dono.

a Internet) permitem a comunicação praticamente instantânea com o restante da humanidade13. A questão não é, no entanto, apenas de grau e de escala - essas mudanças quantitativas implicam em mudanças qualitativas. Ou seja, o fato de um ser humano que se comunicava apenas dentro de um pequeno grupo ter a capacidade de se comunicar com um grupo maior de pessoas (de actantes) implica em um aumento de possibilidades (como já abordado no exemplo da mediação entre um homem e uma caneta). Existem diversos exemplos possíveis, um deles é o fato de que ao poder se comunicar com um número maior de pessoas aumenta-se o rol de possibilidade de consumo, e demanda, por bens e serviços anteriormente desconhecidos e que passam a ser comuns e desejados. O fato é que, como no caso trazido, uma sentença judicial pode se tornar impossível, ou bastante difícil de ser cumprida, sem que ocorra qualquer alteração no Direito (mais precisamente, no Direito positivo), ou seja, a forma como sentenças judiciais são cumpridas pode passar de adequada à inadequada em decorrência de mudanças fáticas no contexto social (e também tecnológico, que na hipótese tratada é o aspecto mais importante). É sob esse aspecto que os novos sujeitos sociais dissolvem a consistência do Direito e impedem qualquer normalização ou supressão unilateral de complexidade. Até mesmo a solução máxima do Direito, que é criminalizar uma conduta, não irá suprimir o fenômeno14 - irá sem dúvida motivar sua transformação, mas não sua destruição. Um exemplo clássico é o consumo de drogas, como o álcool, e a experiência histórica da Lei Seca nos Estados Unidos (que proibiu a produção e consumo de álcool), que ao criminalizar a conduta não destruiu o fenômeno (consumo de álcool) e desencadeou diversas mudanças, muitas delas não esperadas, como a consolidação da Máfia - e quando ocorreu a descriminalização do álcool não se retornou ao estado anterior, a Máfia continuo consolidada, sendo necessária apenas uma mudança de ramos de atividades para possibilitar sua continuidade.

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Desde que estes possuam acesso à tecnologia, e este acesso está intimamente ligado a questões socioeconômicas, ou seja, existem contingências importantes a serem observadas, por isso mesmo não há de se admitir qualquer neutralidade da tecnologia. 14 Nesse sentido seguimos a proposição de Durkheim, exposta na obra "As regras do método sociológico" que o crime é um fenômeno normal, no sentido de que serve para criar e controlar regras e comportamentos de toda as sociedade, só é possível falar na existência de um cidadão obediente às leis em contraposição ao criminoso (que age como referencial negativo da classificação).

Compreendendo o exemplo histórico trazido por meio do referencial teórico utilizado podemos colocar o problema nos seguintes termos: em dado momento o governo dos Estados Unidos (actante) proibiu a produção e consumo do álcool, e essa ação, localizada dentro de uma rede maior, implicou em ações/reações de outros actantes (e dos intermediários necessários), e essa mediação entre os actantes dentro dessa rede específica alterou a posição de um actante específico (a Máfia). Além disso, a partir do momento que uma mediação entre actantes é realizada, não é possível o retorno ao estado inicial, pelo fato de ser praticamente impossível determinar a "origem e sentido" de uma ação. Por não se adotar o referencial de causalidade (se "A" então "B"), se observa que embora a Lei Seca seja condição necessária à consolidação da Máfia nos Estados Unidos não é a única causa, sendo que sua remoção por si só é incapaz de reconstruir o contexto fático anterior. O intuito de se expor um exemplo histórico é demonstrar que a evolução tecnológica não é a única forma de desencadear mudanças sociais, entre elas a de diminuir a eficácia do Direito em sua tarefa de controle social, e por esse motivo, a Teoria Ator-Rede não se limita apenas ao aspecto tecnológico. Embora inegável que no presente se está em um contexto no qual o Direito ainda não possui instrumental teórico e prático para lidar de maneira eficaz com a tecnologia e os sujeitos sociais por ela possibilitados15.

Conclusão

Talvez mais do que se falar em conclusão, se poderia falar em um início, pois o referencial teórico da Teoria Ator-Rede abre novas possibilidades de compreensão da sociedade e, como caso especial, do Direito. O intuito do presente artigo foi expor os principais conceitos e consequências possíveis do referencial teórico empregado. Retornando à Alan Turing e seu famoso teste, a conclusão mais importante é que se existe uma distinção ontológica entre humanos e não-humanos essa barreira pode ser transporta. Pode se dizer com razoável segurança, que estamos no limiar de sua transposição - e caso essa distinção inexista, devemos, com maior necessidade, elaborar um instrumental 15

Não se fala em "criação", a tecnologia é uma ferramenta a ser utilizada pelo indivíduo de diversas formas, e enquanto impõe limitações e possibilidades ao agente este a utiliza (e a molda) para permitir o que esse desejar, lembrando sempre que o referencial teórico utilizado não se ocupa com a teleologia da ação ou qualquer transcendência, importa o que houve, e não o porque.

teórico que permita lidar com essa semelhança e - ao mesmo tempo - diferença entre humanos e não-humanos, do contrário, se não existisse qualquer diferença entre humanos e nãohumanos, não existiria razão em classificar cada qual como uma categoria específica. Em síntese, está-se diante de uma situação onde as coisas "são" e "não são" ao mesmo tempo, ou seja, enquanto humanos e não-humanos são simétricos eles não são iguais e equivalentes - e nesse ponto a Teoria Ator-Rede se mostra um referencial útil e interessante, pois pressupõe a possibilidade de reconfiguração do sujeito a depender do contexto no qual este está inserido (contexto esse que é a rede na qual o sujeito está inserido, que é a combinação do tempo e do espaço). Diante desse quadro de novos problemas e, consequentemente, de novas possibilidades, são necessários novos aportes teóricos - pois o Direito corre o risco de ficar a deriva, perdido em um ambiente social no qual suas soluções e ferramentas são ineficazes, pode não ser admirável, mas há um mundo novo de sujeitos sociais surgindo e alterando profundamente a sociedade - é necessário compreender e reconstruir a sociedade (o que é simultaneamente reconstruir a própria ideia de sociedade, ao se alterar uma se altera a outra) para que se possa criar um Direito cujos meios e fins são desejados, adequados, e, acima de tudo, factíveis.

Bibliografia

DELEUZE, Gilles. “Post scriptum sobre as sociedades de controle” In Conversações 1972-1990, p. 219 – 226, Tradução Peter Pál Pelbart, São Paulo: Editora 34, 2008. GUARDIAN, The. Computer simulating 13-year-old boy becomes first to pass Turing test. Disponível em http://www.theguardian.com/technology/2014/jun/08/super-computersimulates-13-year-old-boy-passes-turing-test . LEMOS, André. A comunicação das Coisas: Teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo: Editora AnnaBlume, 2013. PUGLIESI, Márcio. Teoria do Direito. São Paulo: Editora Saraiva, 2º Edição, 2009.

SKYRMS, Brian. Escolha e Acaso: Uma Introdução à Lógica Indutiva. São Paulo: Editora Cultrix, 1971. TURING, Alan (1950). Computing machinery and intelligence. Minds, volume 59, p.433460, 1950. WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da sociologia compreensiva, 1º Volume. São Paulo: Editora UnB, 2004.

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