David Tomas - transtornos perceptuais como experiências transculturais, e vice versa

Share Embed


Descrição do Produto

1 / 18 Transtornos perceptuais como experiências transculturais – e vice versa – em primeiros contatos e novas mídias – Uma entrevista com David Tomas. Há quase vinte anos atrás, a publicação de textos-chave das pesquisas dos Science Studies (Jamais fomos modernos e Vida em Laboratório) propiciou uma lufada de ar fresco para a pesquisa em comunicação no Brasil, que, em boa medida, se encontrava soterrada pelos escombros resultantes do persistente esforço de desconstrução dos fenômenos comunicativos e expressivos, a que as tendências pós-modernistas da filosofia conduziram a pesquisa artística e em comunicação social. Mesmo se pusermos entre parênteses a produção mais decididamente catastrofista, pode-se notar que as posições mais moderadas recomendavam um afastamento « pós-metafísico » (Habermas, 2002) dos grandes discursos universalistas da modernidade – mesmo que ao preço do eventual autocancelamento das próprias pretensões à consistência epistemológica da própria argumentação que assistia às operações de desconstrução desses discursos universalistas (Allen & Smith, 1997). A formulação de uma posição filosófica amoderna (ou não-moderna), que punha sob observação desapaixonada as pretensões à universalidade das dicotomias distintamente modernas (sujeito/objeto, natureza/cultura, fato/ficção, invenção/descoberta), embora não seja uma novidade no discurso filosófico ocidental (afinal, a epistemologia moderna está sob ataque pelo menos desde meados do século XIX, por exemplo, pelo niilismo nietscheano e pelo pragmaticismo peirceano), tornou-se pertinente ao devolver alguma perspectiva positiva sobre a ação humana. Além disso, a argumentação da « antropologia simétrica » (depois “teoria dos atores-rede”, TAR) era especialmente convincente por provir de evidências etnograficas, já historicamente esse campo de pesquisa empírica se constituiu acompanhado de um persistente empenho em em evitar ceder muito rapidamente às hipóteses generalizantes dos « grandes discursos » da modernidade. A atitude cética diante das abstrações da antropologia de gabinente, trazida por Boas para a pesquisa etnográfica estadunidense, logo se desdobrou na abordagem da sociedades modernas com a etnometodologia de Garfinkel e Cicourel. Essa vertente empírica (mas não empiricista) retornou ao mundo acadêmico europeu através da observação etnográfica da produção de fatos científicos em laboratórios de alta tecnologia. É sintomático que Latour situe em uma experiência pessoal de « choque cultural » o primeiro empuxo dessa inflexão da etnometodologia em direção à generalização da sua hipótese básica: há equivalência, em termos de reflexividade, entre teorizações de sociólogos e as dos « informantes » deles. Foi para escapar do serviço militar, que Latour, então recém-graduado, transfere-se para

2 / 18 Abidjan (velha conhecida dos apreciadores dos filmes de Jean Rouch). Em um projeto recente (Latour, 2012), rememora o trajeto do próprio pensamento dando destaque à situação transcultural: « Pode-se imaginar a lavagem cerebral que um professor secundário [agrégé] de filosofia de província, católico e burguês, vai sofrer ao se encontrar transportado – com mulher e filho – para o caldeirão da África neocolonial? Na Abidjan dos anos 19731975, eu descobria, ao mesmo tempo, as formas mais predatórias do capitalismo, os métodos da etnografia e os enigmas da antropologia. E, em particular, este que não iria mais me abandonar : porque se emprega a idéia de modernidade, de vanguarda de modernização, de contraste entre moderno e pré-moderno, antes mesmo de haver aplicado àqueles que se dizem os civilizadores os mesmos métodos de investigação que se aplica aos 'outros' – esses que nós pretendemos, senão civilizar mesmo, ao menos modernizar um pouco ? » 1 O desenvolvimento desta perspectiva simétrica sobre a produção dos fatos tem tido impacto na epistemologia das ciências (ditas) naturais, apoiadas na construção de fatos através da observação de resultados de experimentos, na medida em que os ardis da construção dos laboratórios e da argumentação que sustenta as evidências são apresentados como formas retóricas, enquanto que as retóricas (das ciências humanas, das práticas sociais, das cosmologias tradicionais) são aliviadas do preconceito histórico que as reduzia, sem mais, à demagogia, às ideologias, à inacurácia. Além de uma sensação geral de alívio por causa do efeito de encerramento do “luto” da posição hiper-cética do discurso pós-moderno, os desdobramentos da antropologia simétrica sobre a pesquisa em comunicação tem sido tímidos, talvez porque já houvesse várias vertentes que jamais aderiram à desconstrução, por exemplo, em pesquisas apoiadas na filosofia analítica e à semiótica pragmaticista. Porém, é intrigante a falta de interesse da pesquisa sobre jornalismo e sobre cinema – em especial, nas teorias sobre o cinema documentário 2, sobre o jornalismo e sobre a fotografia em explorar as possibilidades heuréticas da antropologia simétrica, especialmente quando deslocamos nosso olhar do plano intratextual ou conteudístico dos fenônmenos comunicativos, para o plano co-textual, 1 Latour comenta sobre o desfio da « marfinização dos quadros », que se lhe havia posto pela organização de pesquisa sobre desenvolvimento econômico das « províncias ultramarinas » que o haviam empregado. Teria sido diante desta situação que ele teria constatado que os esquemas cognitivos de oposição entre « nós » (racionais, eficazes, competentes, rentáveis) e « eles » (os nativos, despidos dessas qualidades), além de não explicar as diferenças de « mentalidade » e de não ajudar em nada a resolver o problema da formação de técnicos africanos, são conceitos de combate e conquista, que atualizam a violência racista da colonização. «Há uma assimetria flagrante : tudo bem para os brancos antropologizarem os negros, mas de serem antropologizados, eles se guardam». 2 Há uma referência conhecida à TAR nos estudos de cinema (WINSTON, 1993) que, espantosamente, se apropria da constatação do caráter retórico da produção da factualidade científica em chave desconstrutivista, quer dizer, segundo propósitos antípodas aos de Latour. Winston, não contente em usar os argumentos dos Science Studies « desconstruir » as pretensões epistêmicas do documentário, equivoca-se completamente no diagnóstico dos efeitos da digitalização da captação de imagens audiovisuais, prognosticando o fim próximo do documentário. Porém, a digitalização da captação e apreciação do audiovisual, junto com a telematização da sua difusão, tem assistido neste século, ao contrário, a uma exponenciação da produção audivosiual documentária, inclusive com a proliferação de retóricas documentárias híbridas.

3 / 18 paratextual e pragmático, no qual temos que nos haver com extensas e complexas redes de agentes. Afinal, qualquer enunciação que seja “pública” pressupõe instaurar-se como uma semiose reticular, que atravessa e conecta contextos comunicativos e âmbitos sociais variados. O caráter metaléptico3 e frequentemente meta-ético dos fenômenos da comunicação social e da arte baseadas em imagens indiciais encontra-se corporificado nos artefatos e nos seus usos em expedientes práticos de enunciação pública. Os processos de enunciação envolvendo a captação de imagens indiciais sempre comportam a desnaturalização da percepção do ambiente circundante: o aqui-e-agora é irredutivelmente sobredeterminadas pelas expectativas da interpretação alhuresdepois. Essa desnaturalização é tão mais acentuada quanto mais vagas são as noções dos participantes da situação de captação sobre que processos de transdução estariam envolvidos; são tão mais perturbadores quanto mais imprevisíveis forem os efeitos das interpretações ulteriores. Nada disso é novidade em termos da fenomenologia da percepção tecnicamente mediatizada. No entanto, são raras as pesquisas em comunicação e artes que efetivamente articularam uma antropologia simétrica dos fenômenos comunicativo-expressivos ligados às imagens indiciais. Por isso, torna-se urgente apresentar ao público acadêmico brasileiro as contribuições teóricas do pesquisador e artista David Tomas, exatamente porque além de ter optar por um percurso que envolve tanto a produção de instalações performativas, onde os humanos tornam-se funcionalmente indistinguíveis dos não-humanos, esse já transcultural autor (que leciona na UqaM em francês do Québec mas escreve e publica no inglês do Quèbec) faz uma teoria antropológica “ciborgue” 4 que fornece insumos conceituais para compreendermos o que se passa “abaixo”, “além” ou “antes” do estabelecimento de quaisquer parâmetros comuns de respeito ou reconhecimento mútuos, processos a partir dos quais podem se establecer – ou não – parâmetros ético-discursivos socialmente compartilhados. Ao abordar eventos históricos de primeiros contatos com outros (tanto étnicos quanto logotécnicos), a abordagem que David Tomas faz sobre os artefatos comunicativo-expressivos propicia uma reflexão original sobre temas cruciais para as atuais teorias da comunicação e da arte, como, por exemplo: quais seriam as condições de possibilidade de uma ética comunicativa universal? Ou: como explicar tendência à indiferenciação entre os automatismos da percepção e da cognição humanas e os processos de transdução das máquinas de imagens (que são um tipo de máquinas de 3 Segundo o Dicionário de Teoria da Narrativa (Reis e Lopes, 1988) a metalepse (ou “transposição") seria um “movimento de índole metonímica que consiste em operar a passagem de elementos de um nível narrativo a outro nível narrativo, produzindo geralmente um efeito de extravagância, burlesco ou fantástico.” 4 Tomas é um dos autores contribuintes do intrigante “The Cyborg Handbook”, que inclui alguns autores conhecidos do público brasileiro, como Donna Haraway e Phillip K. Dick (Gray et alii, 1995).

4 / 18 pensar, cf. Neves, 2010a)?

Ou ainda: por que as inovações logotécnicas seguem padrões

estilísticos, próprios de cada época, que atravessam artefatos de funcionalidades díspares? O tema da desfamilirização radical diante do outro etnico ou logotécnico já aparece, por exemplo, no canônico “A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução”: O ator de cinema sente-se exilado. Exilado não somente do palco, mas de si mesmo. Com um obscuro mal-estar, ele sente o vazio inexplicável resultante do fato de que seu corpo perde a substância, volatiza-se, é privado de sua realidade, de sua vida, de sua voz, e até dos ruídos que ele produz ao deslocar-se, para transformar-se numa imagem muda que estremece na tela e depois desaparece em silêncio... A câmara representa com sua sombra diante do público, e ele próprio deve resignar-se a representar diante da câmara. 5

O extremo desconforto, nas situações de captação de imagens, ocorre quando os participantes não dispõem de quaisquer experiências homólogas anteriores, seja de contato com os aparatos de captação, seja com os proponentes da captação. A confrontação se configura então como uma absoluta

incongruência

entre

os

propósitos

comunicativo-expressivos.

Esse

paroxismo

corresponderia ao “cinema da crueldade”, no sentido dado por Stoller (1992), que com essa qualificação identifica boa parte da obra de Jean Rouch, na qual se busca precipitar situações de captação de imagens de extremo desencaixe perceptual e ético-discursivo. Nestes experimentos, as performances dos participantes

chegam a suplantam as estratégias cênico-dramatúrgicas dos

sujeitos individuais, culturalmente estabilizadas, levando-as ao colapso. Embora essas condições sejam excepcionais para boa parte da retórica cinematográficodocumentária, são recorrentes em situações de captação de “primeiros contatos” interculturais. Neles, as subjetivações individuais dos participantes da situação de tomada são abaladas em seus alicerces pré-reflexivos, acarretando alterações profundas nos juízos perceptuais que assistem à constituição das imagens-de-corpo6

individuais. Essas situações extremas, nas quais faltam

estruturas normativas reflexivas que assegurem aos participantes das situações de captação de imagens que eles dispõem de algum parâmetro ético-discursivo ou ao menos perceptual comum, embora sejam muito raras no cinema documentário e no telejornalismo, é muito recorrente no documentário etnográfico. Os sintomas típicos destas situações, como a insegurança na auto-apresentação diante do outro, o humor, a sensação de absurdo e a iminência da violência e a ocorrência de todo tipo de malentendido, ocorrem e são tematizados desde as primeiras experiências de produção de filme por 5 6

Pirandello apud Léon Pierre-Quint in BENJAMIN, 1985, p. 180. Conceito proposto por Lacan, em O Estádio do Espelho como instância formadora do eu (LACAN, 1966). O espelho seria, no sentido deste argumento, um arranjo retórico de recursão da relação sujeito-objeto equivalente a qualquer outra máquina de imagens.

5 / 18 povos tradicionais (Worth e Adair, 1972). As imagens surgidas da eclosão de espaços précomunicativos transculturais, assim como a sua tematização, é um traço recorrente nos documentários que se empenham em construir etnografias compartilhadas, como o que vem sendo praticando no Brasil. Elas são explicitamente tematizadas como um importante desafio para a comunicação inter-etnica, em quase todos os “Vídeos nas Aldeias”. Em First Contact (Bob Connolly and Robin Anderson, 1983), a perturbação da situação de captação de imagens de primeiros contatos extremada no confronto inicial, percorre toda a Trilogia das Terras Altas 7, nos intermináveis mal-entendidos, brutalidades e absurdos da modernização de uma sociedade tradicional da Papua-Nova Guiné, que vai abordar. O desencaixe extremo das estruturas de percepção e comunicação é comentado em Level 5 (Chris Marker) nos quais a cinegrafia conduz o sujeito-da-objetiva a um constrangimento mortal. Jean Rouch (1973b) é hoje considerado muito radical ao abordar o fenômeno que ele donominou cine-transe, porque sustenta que, em geral, as situações de captação de imagens indiciais acarretam processos de dessubjetivação individual. A maioria dos estudiosos de cinema são bem mais moderados, identificando este fenômeno apenas nas situações de tomada de ritos possessórios — como nos célebres Os Mestres Loucos e Horendi —, e ainda assim, apenas para os sujeitos-daobjetiva. O estado de alteração dos sujeitos-da-ocular (cinegrafistas, realizadores), tende a ser admitido apenas metaforicamente. Na sua microssociologia da cenografia e dramaturgia sociais, Goffman sugere haver casos limite no que chama de “orgias metadramatúrgicas” 8. Mas ele evita extrair as conclusões últimas de hipóteses que ele próprio avança.9 Poderia inferir que enquanto os esforços cênico-dramatúrgicos resultam de reações defensivas dos indivíduos, ao longo do tempo, por simetria, a sedimentação de repetidas experiências de apresentação social moldariam “de volta” as subjetividades individuais. Ou seja: as subjetividades individuais parecem estáveis porque seriam, fatiches das situações de exposição pública — que, cada vez mais, são assimiladas às situações de tomada de imagens-câmera. Outra autora, teórica do cinema, – Vivien Sobchack de cuja fenomenologia do cinema deriva-se o conceito de imagem-câmara (Ramos, 2012) – é ainda mais prudente (Sobchack, 1992). Quando fundamenta a reversibilidade entre percepção e comunicação pela inserção do olhar num corpo e no mundo, evita sugerir que os estados de alma nos primeiros contatos com situações de tomada e imagens-câmera possam ter efeitos cumulativos sobre a individualidade. A autora sustenta que é 7

Ambientado nas terras altas de Papua-New Guinea e filmado ao longo de dez anos, a trilogia iniciada em First Contact (1983), é continuada em Joe Leahy's Neighbors (1989) e Black Harvest (1992).

8 GOFFMAN, 1986, p. 187-190.; p. 214. 9 Goffman, 1986, p. 230-233.

6 / 18 através da imagem-câmera que pela primeira vez o simbólico alcança o perceptual, ganhando corporeidade. Porém, não se compromete com a possível realidade da deriva das subjetividades no processo “reverso”: na transformação da imagem-de-corpo, através da experiência com situações de captação de imagens indiciais, de volta ao estado indeterminado de coisa. No entanto, partindo da argumentação de Tomas10, podemos supor que quando as imagens-de-corpo dos sujeitos envolvidos na enunciação cinematográfica são experimentadas como imagens-câmera, o sujeito individual, como sede das semioses perceptuais, seria imediatamente desindividuado, exteriorizado e dispersado. Ele passa a se perceber como posto em circulação pública como um aglomerado de quase-signos, como uma imagem indicial. Quando as subjetividades individuais encontram-se radicalmente indeterminadas – como nas situações de tomada de primeiros contatos interétnicos ou nas ocasionadas pelo primeiro uso de máquinas de imagens desconhecidas –, as personalidades podem se dissolver, ficar suspensas ou profundamente alteradas. Transtornadas, arrastam com elas todos os protocolos de apresentação social. O estado de vagueza das determinações deste tipo de situações de captação de imagens pode arrastar os indivíduos para um estado de desorientação que alcança a identificação do sujeito do olhar com seu corpo humano, que se torna mais um objeto dissolvido no ambiente. A contribuição de David Tomas, em termos da clarificação dessas condições é decisiva, na medida em que aponta para o fato de que, esses estados excepcionais, o sujeito que olha passaria a identificar-se ao ambiente circundante 11 ocorrem igualmente em primeiros contatos interculturais e logotécnicos. Portanto, enquanto Latour pretende sustar o martelo que rompe os fatiches, Tomas nos põe dentro deles, apontando para uma outra epistemologia cujo sujeito cognoscente passa a ser difuso, disperso, transitivo – mas não ausente. Há situações de tomada de imagens-câmera em que a catacrese da percepção com/como expressão que constitui a reversibilidade entre o eu-corpo-indivíduo e o olhar-desejo-objeto entra em crise e dá lugar a uma outra reversibilidade: o aqui-agora e o olhar-escutar passam a reverter-se um no outro. Jean Rouch (1973), ao mostrar as semelhanças entre as experiências de desestabilização da subjetividade individual propiciada por situações de tomada cinematográficas e aquelas de transes possessórios de religiões politeístas da África negra, chamava essas situações de tomada de “cinetranse”. E quando Stroller (1992) fala do cinema de Rouch como “Cinema da Crueldade”, visa sublinhar o propósito político comum a ambos: enunciar narrativas que “não relatam por si, mas presentificam uma coleção de imagens que buscam transformar política e psiquicamente a audiência.” (Stroller, 1992, p. 50). Ao ver desse crítico, Rouch teria viabilizado o projeto artaudiano 10 Especialmente nos capítulos “Technologies of Representation, Transcultural Space, and Transcultural Beings” e “Traumatic Photographs, Boundary Phenomena, and Transcultural Space” (Tomas, 1996). 11 TOMAS, 1995; Id. , 1996

7 / 18 de “cutucar o inconsciente”, aproveitando brechas nesse mesmo arranjo produtivo gerados no momento em que ele sofre seu primeiro abalo, com o cinema direto. Através delas, Rouch confronta seus públicos, comerciais, acadêmicos e artísticos, lançando-lhes de volta seus pressupostos etnocêntricos. Eis que as situações de crueldade na tomada de imagens, em fotografias de primeiros contatos de exploradores ingleses com povos autóctones do oceano índico, são o objeto principal das investigações de Tomas12. Partindo de um primeiro contato do qual há abundantes relatos e algumas fotos, ele investigou a irrupção estados de suspensão da identificação do sujeito individual com seu corpo, em dois tipos de situações de “choque cultural” — que, segundo ele, são da mesma natureza: no confronto do sujeito com a sua incorporação em arranjos retóricos com abundância de máquinas lógicas e nas situações de encontros intersubjetivos/interobjetivos entre culturas anteriormente desconhecidas uma para a outra. Através da leitura do excêntrico Roger Caillois13, Tomas caracteriza esses eventos como ocorrências de um fenômeno denominado “psicastenia legendária” (ou “psicastenia por assimilação”). Ele reconhece nas formulações de Cailois as suas experiências pessoais de absorção corporal, durante sua participação como performer em instalações artísticas: Dependendo da intensidade da sua assimilação, a nova site-specificidade do corpo engendra uma existência crescentemente original, embora contraditória. A presença de suportes mecânicos, elementos maquínicos ou sistemas imagéticos pode salientar a sua distinção como uma entidade orgânica autônoma. Por outro lado, esse contexto pode reduzir o corpo ao estatuto de um componente, pois sua subjetividade é crescentemente infiltrada por uma aura objetal ou mecanizada, enquanto a mobilidade orgânica é constrangida pela integração mecânica e um regime de ações mecanóicas claramente definido. Assim, embora o corpo-como-objeto esteja ainda metabolicamente vivo, parece hibernar em sua casca representacional como se para camuflar sua subjetividade nos termos de sua objetualidade. Implosões miméticas desta ordem foram originalmente exploradas por Roger Caillois num artigo clássico, “Mimetismo e Psicastenia Legendária”. Uma versão da total integração mimética ou da fusão psicastênica de uma instalação performática constitui, segundo os termos descritivos de Caillois, uma “despersonalização por assimilação” a um modelo objetivo do espaço representacional do próprio corpo, o qual, por causa da sua incorporação de atributos objetuais, promove uma simultânea “generalização do espaço [físico/artefatual]” às expensas da autonomia subjetiva do corpo individual. Uma condição de fotostase é assim alcançada: uma “morte vivida” resultante da assimilação psicastênica do corpo ao ambiente artefatual imediato da instalação.

12 TOMAS, 1995. Id., 1996. 13

Cf. a tradução inglesa do texto (CAILLOIS, 1984). Na mesma edição da revista October, encontra-se também uma intrigante exploração da posição intelectual anti-vanguardista de Roger Caillois (cf. HOLLIER, 1984).

8 / 18 Tomas relata que Caillois havia descrito como a psicastenia poderia promover uma separação entre o corpo e a consciência como “o individual rompe o limite da sua pele e ocupa o outro lado dos seus sentidos. Para o quebequense, essa descrição do que significa ocupar “o outro lado dos sentidos de alguém” é iluminadora para a compreensão da “transformação bizarra” no momento em que a subjetivação ocorre “no avesso de uma pele humana” ao passar a residir em "um ambiente outro e estrangeiro”. Esse “avesso dos sentidos” permite-nos figurar o grau de indeterminação básica dos processos perceptuais. Segundo Caillois, o sujeito “tenta olhar pra si mesmo a partir de um ponto qualquer no espaço. Ele se sente transformar-se em espaço, espaço escuro onde as coisas não podem ser postas. Ele é similar, não similar a algo, mas apenas similar. (CAILLOIS, 1984, p. 30, apud TOMAS, 1995, p. 257-258) Embora provavelmente essas inferências sejam impostas pela singularidade do arranjo enunciativo de uma instalação performática (uma performance instalativa?) artístico-experimental, há motivos para acreditar que a situação de tomada de imagens-câmera submeta os sujeitos-objetiva em geral a constrangimentos homólogos: espremidos entre máquinas de imagens e a dupla coação de sustentar sua fachada diante de interlocutores presentes e diante de apreciadores remotos, hipotéticos, futuros, acessíveis apenas através das supostas intenções dos sujeitos-oculares, os enunciadores do filme. A maneira pela qual David Tomas aborda a “despersonalização por assimilação” nos contatos interculturais torna inevitável a comparação de seus relatos com as descrições de situações de “cinetranse”: Relatos escritos de primeiros contatos interculturais contêm evidências da formação transitória de peculiares zonas espaciais geradas entre culturas em confronto. Tais zonas frequentemente eclodem nas margens ou fronteiras culturais, especialmente em espaços geográficos disputados, através das ações de corpos humanos e mediadas por artefatos materiais. Navios, barcos, canoas, armas de fogo, roupas e pedaços de metal desempenharam importantes papéis, por exemplo, de definir os relacionamentos físicos, perceptuais e psicológicos entre corpos humanos em situações de primeiros contatos, ou contatos iniciais, entre representantes de culturas em confronto. Seus papéis estiveram associados ao modo pelo qual eles foram distendidos contra ou foram projetados para dentro dos territórios alienígenas (navios, praias, terras de outro povo, etc.), e o modo como os dois elementos e o território eram ejetados de seus respectivos quadros culturais. Os eventos subsequentes, cujos pontos de referência estavam previamente localizados em termos desses quadros, foram literalmente deslocalizados e foi montado um palco para o desencadeamento de deslocamentos semânticos nos quadros de referência cultural habituais. Em consequência disso, eles adquiriram um sentido de estranheza quando vistos da perspectiva de cada uma das culturas. É essa estranheza que frequentemente define o tom psicológico para o humor e violência, que são as duas das principais características destas zonas interculturais. Nessas condições, esses objetos funcionavam como agentes para a infusão do irreal, do desconhecido, no real e no conhecido. É esta infusão que criava fraturas nas histórias perceptuais, situações de atemporalidade momentânea e condições de desfamiliarização em relação aos modos

9 / 18 habituais de apreensão dos artefatos culturais e do corpo humano. Uma vez que elas existiam como zonas espaciais entre culturas, escolhi chamá-las espaços transculturais.14 Os espaços transculturais das situações de captação abalam, em algum grau, as subjetivações individuais. Não indeterminadas, são determinadas de maneira vaga, obscura, complicada, em semioses suspensas no estágio abdutivo. Os sujeitos são trazidos a situações nas quais seus hábitos cenográficos e da dramaturgicos são inaplicáveis, disruptivas das subjetivações individuais e geradoras do que Tomas chama de entes transculturais. Depois, a sedimentação de experiências ensina a estabelecer, desde o nível pré-reflexivo, as catacreses que nos permitem acomodar cognitivamente o efeito de percepção-como-comunicação, específico das imagens-câmera: a operação da câmara como um olhar, e o desempenho pessoal diante do aparato de captação como uma atuação para um público hipotético. Esses operações fundamentais carregam, porém, a semente da desestabilização das imagens-de-corpo individuais, porque partem de uma redução do olhar a um estágio anterior/subjacente à consolidação no inconsciente dos juízos perceptuais como operações pré-reflexivas e dos automatismos sensório-motores do olhar propositado. Barthes, por exemplo, se refere a sua experiência como uma “dissociação astuciosa da consciência de identidade” (BARTHES, 1984, p. 25), caracterização consistente com a que Tomas elabora acerca dos sujeitos enquadrados em situações de primeiros contatos interculturais ou em instalações performáticas. Embora os “espaços transculturais e seres transculturais” de Tomas irrompam como espaços de visibilidade cruel trazidos por situações limítrofes, cheias de violência e/ou humor, o mesmo efeito de não familiaridade ou estranheza (o unheimlich freudiano) da “psicastenia por assimilação” parece acompanhar, como ruído parasita, todas as situações de captação de imagens-câmera documentárias. Cabe, portanto, indagar, para todas as tomadas de imagens-câmera, como essa indeterminação das relações sujeito-objeto entre os participantes humanos e as ferramentas logotécnicas, essa vagueza que põe em suspensão os processos de subjetivação individual, se manifesta de modo concreto. Em documentários ciberativistas prefigurativos (Neves, 2010b, 2010c), por exemplo, não é raro haver exploração de estados alterados de consciência, associados a processos idiossincráticos de determinação de situações de tomada. Ambos são transpostos para a experiência de apreciação dos vídeos. Não é por acaso que construção de “corpos coletivos” é um traço recorrente das experiências de participação em manifestações coletivas ou intervenções performáticas no espaço urbano (JURIS, 2005, 2008). É a manobra retórica mais eficaz, que os “novos novos movimentos sociais” empregam, para desenvolver relações experimentais tanto com o espaço urbano, quanto na utilização poética das ferramentas de manipulação simbólica. 14 TOMAS, 2004, p.5-6

10 / 18 Esta entrevista com o prof. David Tomas, da Universidade de Québec em Montreal, foi realizada no gabinete dele, em janeiro de 2012. BBN : A primeira coisa que eu gostaria de lhe perguntar é por que os primeiros contatos interculturais poderiam ter efeitos tão parecidos com os gerados pelo uso de máquinas de imagens, novas e antigas. Porque esses efeitos são semelhantes ? DT : Enfim, pode-se tratar de sistemas imagéticos [systèmes d'imagerie] novos, quer dizer, eu tenho a tendência a tratar os sistemas imagéticos, como também todo artefato cultural como um gênero de domínio ideacional de ideias, de símbolos do saber, de maneira que não importa qual seja o objeto. Pode ser um objeto antigo ou novo, dependendo da nossa experiência, há uma tendência de criar um tipo de desfamiliarização que possui uma certa conexão com aquilo que eu encontrei no caso dos primeiros contatos ou, ao menos, nos primeiros contatos que eu estudei. Tem-se a tendência de negar o novo, os novos transtornos de percepção que se pode ter quando se está em contato com as coisas que são novas, as tecnologias que são novas, porque elas são muito fluidas e instáveis, ou seja, como elas são de curta duração, tem-se a tendência de os esquecer. No caso dos primeiros contatos, havia documentação bastante para que eu desenvolvesse um tipo de teoria apoiada nisso, porque eu também trabalho... quer dizer, eu passei pelo primeiro contato com as novas tecnologias através de um objeto, uma máquina de desenhar que se chama 'câmara clara', [experiência] que eu constatei porque eu coleciono essas máquinas, eu as utilizo em minhas performances, de modo que eu já dispunha de bastante experiência sobre as condições de consciência e de percepção que eram desencadeadas pelo uso dessa pequena máquina ótica. Então, porque eu fazia também pesquisas sobre a realidade virtual e eu me interesso pela realidade virtual de um ponto de vista técnico, eu constatei que os capacetes de realidade virtual, os capacetes «see-through», não fechados, nos quais a informação... há uma camada de informação sobre o sistema ótico entre nós e o ambiente real, [esses capacetes] havia sido concebidos da mesma maneira que a lente da câmara clara, que fazia com que que o capacete de realidade virtual fosse uma tecnologia verdadeiramente nova. Portanto, isso é uma das coisas políticas que mais me interessam, é que todas as nossas tecnologias tem um tipo de... de orígens ou de raízes no século 19. Essa [a câmara clara] era uma máquina bem simples, portátil, que havia sido inventada em 1807 e, quando eu constatei isso, eu vi – porque me interessa muito a foto, a relação entre a fotografia e as máquinas à vapor, os trens, porque isso tudo aparece exatamente no mesmo momento e, portanto, as consequências disso é que não se pode ter uma disciplina autônoma da história da fotografia sem levar em conta as outras tecnologias da época. Eu, então, baseei a minha prática artística nisso.

11 / 18 Eu comecei nos anos 1970, mas com um trabalho que girava em torno das máquinas a vapor usadas na física atômica e as máquinas a vapor desenvolvidas no início das pesquisas de “estudos nucleares”, enfim, da física. Então, eu comecei a deambular um pouco e passei a me interessar sobre isso no contexto da arte contemporânea. Eu estava começando justo na hora em que a arte conceitual... enfim, na época, eu era um pouco jovem para a arte conceitual, mas eu queria desenvolver uma crítica sobre ela. Eu então estava muito interessado em imagens que fossem novas e as fotos dos rastros nucleares eram imagens novas, algo que nunca havia sido visto antes, e que eu queria deslocar essas imagens para dentro do contexto da arte contemporânea, porque isso questiona o estatuto do saber que o espectador pode ter diante de uma obra. BBN : As câmaras de nuvens ? DT : Bem, as fotos das câmaras de nuvens. Foi assim que, partindo dessa ideia de novidade – já que sou formado em arte mediática, que na época era chamado de arte multimedia – eu constatei que não se pode mesmo utilizar essas... que muitos artistas importam ideias de outras disciplinas sem saber mesmo o que eles estão fazendo. Então, fiz um mestrado em história das ciências, sobre as relações entre estilo e função dos aparelhos de expansão na física nuclear. No mesmo momento, estava produzindo obras no contexto da arte para realmente desafiar o espectador, para levantar questões sobre as idéias recebidas na arte a respeito de novos sujeitos. Foi a partir daí que eu quis pesquisar a antropologia através da fotografia, do sistema simbólico da fotografia. Isso era um projeto muito ambicioso para mim, então me concentrei nas ilhas Andaman, porque nessas ilhas havia autóctones que eram, digamos, « puros », uma raça ainda desconhecida na baía de Bengala, enquanto, ao mesmo tempo os Ingleses estavam colonizando a região, enfiando lá na ilha uma prisão gigantesca, do tipo Panopticon, e havia um administrador Ingleses, como eles eram muito organizados, que ia colecionando fotografias e anotações sobre o povo autóctona. Os administradores ingleses mantinham contato com os autóctonas, os controlavam. Enfim, aí tem aquela coisa toda de tentar controlar que acabou destruindo a cultura dos indígenas, mas eu me interessei pela ilha porque havia uma documentação fotográfica que era muito desenvolvida e os administradores empreenderam o primeiro estudo antropológico sistemático do século 19, baseado em pequenos manuais de observação. Eles preenchiam tudo isso, os primeiros textos [etnográficos] que foram escritos foram sobre essas ilhas. A antropologia funcionalista britânica do século XX também é baseada nessas ilhas, já que Radcliffe-Brown foi lá para fazer suas pesquisas. Foi, portanto, desse jeito que comecei a fazer uma transposição entre as imagens que introduzem novos sujeitos na arte contemporânea, que são tipos de coisas jamais vistas antes, o que suscita toda uma questão sobre o que acrescentar à imagem para que ela se torne inteligível. No contexto de

12 / 18 gente que não entende nada de física nuclear ou de física atômica, isso vira uma algaravia, mas existem ligações com a natureza, mesmo que sejam conexões bastante complexas. A partir do contexto das ilhas Andaman, decidi não mais fazer meu doutorado sobre a fotografia, mas sim sobre a relação entre poder, observação e saber na antropologia britânica do século XIX a 1920, que é mais ou menos o mesmo período que havia estudado na pesquisa sobre história das ciências. Foi, portanto, ao fazer esses investigações que comecei a analisar os diários dos navegadores. Havia duas ou três ocasiões cujos relatos eram muito, muito claros, sobre os contatos no navio e o que se passava entre o navio e a ilha. Eu desenvolvi também uma teoria sobre um terceiro espaço entre as disciplinas, porque sou formado em arte e em história das ciências. Dei-me conta, até dei uma entrevista sobre isso em 1984, de que o povo da arte não entendia nada do que eu fazia e o povo da história das ciências não se interessava pelo que eu fazia, de modo que ficava entre os dois. Nessa hora, percebi que eu poderia fabricar obras e teorizar sobre o espaço em movimento entre as disciplinas. Eu não podia fazer coisas nem na arte nem na história das ciências, porque era rejeitado pelos dois lados. Esse tipo de rejeição é exatamente o mesmo que encontramos em espaços de contato um pouco diferentes, nos quais eram pessoas que estavam em contato, os Ingleses no seu pequeno navio e os indígenas nos seu grande navios [sua ilha], eles estavam em um espaço bem neutro. Os Ingleses não estavam no poder, porque só o tinham no seu navio, e os indígenas tinham o poder nas ilhas, empoderados com a ecologia. Entre os dois, havia uma possibilidade de violência – de fato morreu gente – mas também existia a possibilidade de piadas e coisas semelhantes que acontecem. Foi mais ou menos assim que desenvolvi uma teoria de “espaço transcultural”, que se superpõe sobre a teoria das disciplinas em movimento. Dei uma entrevista sobre isso. Constatei que é possível produzir obras, trazer questões artísticas para outras disciplinas como a história das ciências, pode-se empregar questões de estilo e de função que não eram abordadas antes para descrever instrumentos, mas na antropologia podemos começar a pensar em uma gênero de antropologia que não seja sobre um saber cultural fixo, mas sobre uma antropologia fluida dos espaços de contato, de violência e coisas assim. BBN : Um pouco como aqui, em Montreal... DT : Bem, há momentos em que as coisas são instáveis nas cidades. Uma vez, quando era bem novo, estava andando em Paris, de noite, e escutei um barulho na rua, uma garrafa quebrando ; senti que algo estava errado, tinha gente correndo, havia um espaço instável, aquilo era perigoso. Isso acontece nas cidades. No contexto dos instrumentos, podemos ter o mesmo tipo de estrutura, o

13 / 18 mesmo tipo de experiência. Foi a partir disso, da minha experiência com a câmara clara que comecei a produzir obras onde havia pequenos trens, fotos, máquinas de desenhar, e eu desenhava dentro da obra. Se eu desenhasse um quadrado preto, uma negação, era porque eu não me interessava pelo assunto, quer dizer, pelo conteúdo, eu queria bloquear aquilo, para que as pessoas ficassem numa instalação sem imagens, sem fotos, só sobrassem as pessoas na instalação. Quando a instalação é que era o sistema simbólico da foto, a fotografia torna-se uma obra, era como fazer uma cartografia do sistema simbólico, a partir de uma performance que às vezes durava três semanas. E eu ficava lá, desenhando, desenhos pretos que negam algo, e o desenho ficava preto. Se a gente faz uma foto do sol, isso cria uma imagem branca, de modo que não se pode que passemos para o passado através dela ficamos retidos, não tem nada, é como um espelho branco. Mas em todas as fotos que existem, passamos para um mundo imaginário, o passado... Eu, então, fazia instalações nas quais eu impedia isso, e as pessoas ficavam perturbadas de terem que dar conta de algo que era muito estranho, mas também muito estruturado como sistema. A certa altura, como isso havia ocorrido durante os mesmos trinta anos de descobertas, das máquinas a vapor, dos trens, das locomotivas a vapor, do telégrafo e da fotografia, eu acabei descobrindo esta pequena máquina de desenhar, a câmara clara, porque ela também foi descoberta na Inglaterra.[William Hyde] Wollaston, seu inventor, conhecia [Henry Fox] Talbott 15, eram amigos. Talbott estava tentando desenhar usando uma câmara escura, mas como não conseguia, tentou usar a câmara clara. Como com ela também não conseguiu com ela, resolveu iniciar suas pesquisas com a fotografia, o que significa que a câmara clara também faz parte das origens da fotografia, junto com o desenho, porque todos os primeiros fotógrafos que falavam sobre os daguerreótipos comentavam que « era como um desenho »... Voltando ao assunto, existe uma ponte entre os espaços de contato interculturais e os espaços que são gerados pelas máquinas, certos tipos de máquinas. BBN : É por isso que se interessou pelo trabalho de Michel Serres ? DT : Sim, exatamente. Também tem um ensaio sobre Turner, e a termodinámica, que é muito importante, e toda sua teoria sobre o parasitismo, sobre como o parasitismo engendra um novo tipo de comunicação. BBN : E Roger Caillois, como ele entrou nas discussões ? É uma leitura muito antiga... DT : Esqueço quando exatamente... 1988 ? Bom, o problema é que fazendo performances que duravam três semanas, cinco horas por semana, durante as quais eu fazia desenhos, desenhava linha 15 Um dos precursores da fotografia, que realizou os primeiros fotogramas a partir de folhas.

14 / 18 após linha após linha, em um dado momento... as performances eram estruturadas em volta de uma pequena estrada de ferro sobre o qual passava um trenzinho, e havia uma ponte no percurso. No momento em que o trem passava sobre ela, eu desenhava uma linha, mas em determinado momento a estrutura fazia com que eu não pudess mais enxergar a ponte, então coloquei um microfone embaixo para receber o som do trem quando passasse. Mas quando se começa a desenhar assim, há toda sorte de coisas perceptuais que são desencadeadas, começamos a pensar em outras coisas, começa-se lentamente a perder a consciência, vamos virando um tipo de automato. Daí, a experiência me levou a escrever um texto que se encontra num livro BBN : « The Cyborg Handbook » ? DT : Sim, esse mesmo. Escrevi textos sobre esses problemas todos. Não sei se foi através de Foucault, mas estava interessado por tudo que é efeito de condições de percepção anormais. Isto é uma primeira coisa. A segunda tem a ver com Caillois, que apoiou a sua teoria no mimetismo. Nos anos 70, eu estava muito interessado no mimetismo, fiz umas esculturas disfarçadas... bom, não exatamente desfarçadas ; elas tinham uma coloração disruptiva, era como quando os insetos cujo padrão de cores permite que eles se integrem ao ambiente sem serem vistos. Eu estava muito sensível às implicações desse mimetismo quando li esse texto [de Caillois] e o apliquei aos desenhos que estava fazendo na época, Peguei os desenhos, ampliei até chegar a um tamanho de 1,2 metro por 1,80 metro e aí percebi que existe um ponto a partir do qual os desenhos não podiam mais serem interpretados como desenhos, mas eram desenhos; também não podiam ser interpretados como fotografias, porque eram desenhos, e ficamos agarrados nesse espaço, que é um espaço de mimetismo. Aí, apliquei esta teoria aos espaços onde os media estão em um tipo de interface transparente. E descobri, enfim, a teoria que desenvolvi é que se a pessoa, vê um desenho, mas no papel fotográfico, sua percepção vai « quicando » entre desenho-foto-desenho-foto-desenho e acontece um espaço de desestabilização e daí se pode ver como eu urdi esta teoria e comecei a aplicá-la a outras coisas. Existe um tipo de triangulação: meu interesse pela história das ciências, pela arte e pela antropologia são interligados pela noção de originalidade ou de primeiro contato entre coisas que não conhecemos. Esses primeiros contatos existem na história das ciências, na história da arte também (por que é a história das vanguardas artísticas) e na antropologia também, porque ocorrem contatos entre culturas. BBN : Nesse mesmo registro das formulações sobre experiências que não podem ser muito bem estabilizadas, temos por exemplo o texto de *Artaud*, sobre o poder de imprecação do discurso que pode agir sobre alguém de uma maneira muito direta.

15 / 18 DT : Sim, sobre isso existem as várias teorias vanguardistas, teorias sobre a desfamiliarização, que é uma outra maneira de dar conta do poder de percepção, quando ela fica desestabilizada. BBN : Existe uma outra discussão, muito difundida no Brasil, não sei se é tão difundida aqui ou na francofonia em geral, mas é uma crítica do dispositivo cinematográfico. É um pouco semelhante à discussção sobre a origem das tecnologias de imagem, mas eu queria saber qual é sua avaliação dessa discussão, que começou com Jean-Louis Beaudry,

é retomada por Foucault com os

dispositivos de contrôle biopolítico e está hoje muito « na moda » nas críticas cinematográficas. Ao ler seus livros, fiquei me perguntando porque tem tão pouca discussão sobre o cinema... DT : Quais livros ? BBN : Bem, li muita coisa sobre Vertov, mas não sobre o documentário... DT : Sobre o cinema documentário ? BBN : Não, sobre o cinema moderno. DT : Bem, tem departamentos de cinema para falar sobre isso... (risadas) BBN : Mas o que você acha do “dispositivo” ? DT : Eu acho que teve um momento nos anos 60-70 durante o qual os artistas desconstruiram todas as estruturas cinematográficas, no sentido que eles trabalhavam sobre os projetores, as películas BBN : Como o Fluxus, por exemplo. DT : Sim, e todo o cinema experimental, ou a imagem experimental. Na Inglaterra tinha David Dyke, muita gente trabalhou com isso. Eu penso que hoje, se você for olhar o trabalho dos artistas, não acho que tenham mais tanto interesse em desconstruir o sistema, a estrutura, o « aparato cinemático » ; o que se tem mais são tentativas de desenvolver narrativas do tipo « etnodocumentário » façam alguma ligação com o mundo real, nas quais os artistas possam se posicionar com uma certa consciência social. BBN : Você é um pouco desconfiado com isso. DT : Bem, eu acho que isso tudo está embutido num modelo de cinema « topo de linha », com muitos recursos para produção, o que elimina completamente o ponto de vista leve, político e intervencionista dos anos 70. Embora tenhamos um conteúdo político, esse conteúdo é negado pelo sistema de projeção, de certa maneira. Por um lado, acho problemáticos os discursos demasiadamente acadêmicos, ligados às universidades, a teorias muito sofisticadas desenvolvidas nos anos 70, mas naquela época elas estavam em desenvolvimento, e agora são sistemas

16 / 18 « congelados » que as pessoas aplicam em toda parte sem saber direito... enfim, temos uma inversão entre produção e teoria. Teve um momento em que teoria e produção estavam mais ou menos iguais e em diálogo para se desenvolver, mas agora temos uma inversão : a teoria domina a produção e toda produção é teórica ! Ou seja, a produção é controlada por teorias que são ideias recebidas, este é o problema. Do ponto de vista político, eu acho os espaços transculturais muito interessantes, porque eles se opõem a essa estrutura, eles são algo... BBN : Inapreensíveis? DT : Sim, mas isso torna-se problemático, porque eu vivo fazendo coisas que... BBN : Você se sente apanhado ! DT : Bem, a gente tenta segurar algo que não pode ser segurado, que é interessante, que tem implicações políticas e filosóficas, mas como se posicionar na arte contemporânea, que é uma arte que não tem nada a ver com a arte contemporânea dos anos 60-70 ? Os artistas hoje em dia são profissionais, « business people », quando você começa a vender suas obras por cem mil, duzentos mil dólares, você tem que ter um contador, e aí... BBN : É um campo de alta especulação financeira. DT : Sim, agora até a arte conceitual é um campo de especulação financeira. BBN : Você reconhece paralelos entre os transes (espaços?) interculturais e os « cine-transes » dos quais fala Jean Rouch ? DT : Não conheço muito bem Jean Rouch... BBN : Isso é o meu problema... DT : É que eu tenho muitos problemas com os etnólogos e antropólogos que vão para outras culturas, fiquei muito perturbado pelo que eu descobri no caso dos Ingleses. Até meu diretor de tese, que trabalhava na África com os Masai, tinha o mesmo tipo de estratégia : ele pegava um Masai, o botava dentro de um carro, o levava para algum lugar, o sentava lá e lhe fazia perguntas para obter informações. Eu fiz um pós-doc na Califórnia com pessoas que eram muito ligados à tradição francesa surrealista e eu era ligado ao construtivismo. Eu me perguntava porque todo mundo era tão interessado no surrealismo, no poético, e não ao construtivismo, à crítica social. E aí me dei conta de um outro problema : embora eles se interessassem às minhas ideias, não davam bola para as minhas obras de arte, achei interessante esse descompasso... Voltando ao assunto, tenho uma relação ambígua com as produções etnográficas, porque mesmo que aprendamos coisas sobre pessoas que não são como nós, esse contato sempre é feito dentro de

17 / 18 um sistema de poder que não é necessariamente... não há esse reconhecimento na estrutura cinematográfica e e quando há esse reconhecimento nesta estrutura, há sempre uma aposta de apresentação que faz com que ele fique ambíguo. Quer dizer, há um problem afundamental quando se está em contato com as pessoas, é que se está melhor equipado que elas e que se tem a intenção de apreender algo, de tomar informação e de a exportar para outro lugar. É sempre um problema. BBN : É sempre assimétrico. DT : Sim. O problema é ter que virar autóctone. « You have to go native ». A partir desse ponto, a informação não é mais confiável do ponto de vista da disciplina, porque nos tornamos subjetivos. Do ponto de vista da hard antropologia «hard», não se pode ter um ponto de vista subjetivo. Nos anos 70 e 80, os antropólogas começaram a pensar : “Ok, temos que levar o observador em conta”, “a posição do observador é subjetiva e política”. Mas no departamento onde eu estava, só tinha duas pessoas que se interessavam por isso, os outros faziam a antropologia clássica. Eu creio que o poder... é toda a estrutura de poder entre o ocidente e o resto do mundo, a gente viu no Afeganistão, a gente vê por toda parte, no caso da Palestina e tudo mais, a relação de poder entre a América do Norte e a América do Sul... Bom... Não é uma resposta sobre Jean Rouch, mas enfim... é o « princípio de Heisenberg » : você vai a algum lugar, você mexe. Não existe objetividade.

Referências ALLEN, Richard & SMITH, Murray. Film Theory and Philosophy. Oxford, Nova Iorque: Oxford University Press, 1997. Cap. “Introduction: film theory and philosophy”, p. 1-36. GRAY, Chris Hables; MENTOR, Steven; FIGUEROA-SARRIERA, Heidi. The Cyborg Handbook. Nova Iorque: Routledge, 1995. HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico – Escritos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2002. JURIS, Jeffrey S. "Violence Performed and Imagined: Militant Action, the Black Bloc, and the Mass Media in Genoa", In: Critique of Anthropology 25(4)= 413-432, 2005. . "Performing Politics: Image, Embodiment, and Affective Solidarity during anti-Corporate Globalization Protests", In: Ethnography 9(1)= 61-97, 2008.

18 / 18 NEVES, Bráulio De Britto. Imagens-câmera, máquinas lógicas e retóricas documentárias. Semeiosis - semiótica e transdisciplinaridade em revista, v. 1, p. 1-18, 2010[a]. . “Prefiguração de contrapúblicos em Brad Uma noite mais nas barricadas”. Galáxia, São Paulo, v. 10, p. 01, 2010[b]. . Máquinas retóricas livres do documentário ciberativista. Doc On-Line - Revista Digital de Cinema Documentário, v. 8, p. 70-113, 2010[c] RAMOS, Fernão. A Imagem-Câmera. Campinas: Papirus, 2012. REIS, C. & LOPES, A.C.M. Dicionário de Teoria Narrativa. São Paulo, Ática: 1988. ROUCH, Jean. “Sur les avatars de la personne du possédé, du magicien, du sorcier, du cinéaste et de l'ethnographe.” In: DIETERLEN, Germaine (dir.) Colloques Internationaux du CNRS n. 544 – La Notion de Personne em Afrique Noire. Paris: CNRS, 1973. p. 529-544. SOBCHACK, Vivian Carol. The Address of the Eye: a phenomenology of film experience. Princeton: Princeton University Press, 1992. TOMAS, David. Transcultural spaces and transcultural beings. Boulder: Wesview Press, 1996. . “Art, Psycastenic Assimilation, and the Cybernetic Automaton”. In: GRAY, Chris Hables; FIGUEROA-SARRIERA, Heidi J.; MENTOR, Steven (Eds.). The Cyborg Handbook. Nova Iorque, Abingdon: Routledge, 1995. p. 255-266. . Beyond the Image Machine: a history of visual technologies. Londres, Nova Iorque: Continuum, 2004. TOMAS, David; THÉRIAULT, Michèle. Duction. Montreal: Éditions Carapace, 2001. LATOUR (2012). « Biographie d'une enquête - à propos d'un livre sur les modes d'existence » in: Archives de philosophie, Vol. 75 n° 4 pp. 549-566 (2012) WINSTON, Brian. “The Documentary Film as Scientific Inscription”, In: RENOV, Michael (Editor) Theorizing Documentary, Nova Iorque, Londres: Roudtledge, 1993.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.