\"DE BICHA MÁ À HERÓI GAY\": A singular trajetória de Félix na telenovela \"Amor à Vida\" em meio ao universo \"global\" de personagens homossexuais produzidos na teledramaturgia

June 8, 2017 | Autor: Pedro Vicente | Categoria: Gender Studies, Social Sciences, Queer Theory, Teoría Queer, Gênero E Sexualidade
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Universidade Federal da Bahia, 4 a 7 de setembro de 2015

SIMPÓSIO TEMÁTICO 75 – SERIALIZAÇÃO TELEVISIVA CONTEMPORÂNEA E REPRESENTAÇÕES GENÉRICO-SEXUAIS “DE BICHA MÁ À HERÓI GAY”: A SINGULAR TRAJETÓRIA DE FÉLIX NA TELENOVELA “AMOR À VIDA” EM MEIO AO UNIVERSO “GLOBAL” DE PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS PRODUZIDOS NA TELEDRAMATURGIA Pedro Vicente de Assis Neto1 Palavras-chave: representação, sexualidade, armário, abjeção, heteronormatividade. O presente estudo se debruça sobre o personagem Félix e se propõe a analisar a sua trajetória particular na telenovela “Amor à Vida”, que contou com a autoria de Walcyr Carrasco e foi exibida no horário das 21h, a partir do dia 20/05/2013, pelo canal “Rede Globo”. Ao empreender uma abordagem antropológica acerca do desempenho e desenvolvimento do personagem, o trabalho vale-se de arquivos extraídos do sítio virtual denominado “Memória Globo” e de uma bibliografia orientada pelos estudos da Teoria Queer. O seu intuito maior é fazer um esforço de compreensão no sentido de apontar quais elementos constituíram esse papel e por meio de que elaborações discursivas o fizeram se imiscuir ou ainda prescindir do universo de estereótipos (re) produzidos anteriormente por personagens gays em telenovelas globais. Com a sua genealogia da sexualidade, Foucault afirma que a constituição do homossexual enquanto uma “espécie” antes era associada apenas à prática criminal da sodomia, mas que depois se pôs a falar por si própria, a fim de legitimar a sua “naturalidade” através do vocabulário médico, com o qual era desqualificada enquanto distúrbio ou patologia (FOUCAULT, 2009). Tomando essa mesma reivindicação por princípio, é que os teóricos Queer2 assim se proclamam para se contrapor ao que consideram uma perspectiva hegemônica binária, que prima pela oposição biologizante 1

Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará – UFC, vinculado à linha de pesquisa “Diversidades culturais, estudos de gênero e processos identitários” e sob a orientação do Prof. Dr. Alexandre Fleming Câmara Vale. E-mail: [email protected]. 2 Expressão que designa algo “abjeto” ou “anormal”, avesso ao “straight”, que em inglês significa “normal” ou “hetero”, e vem a se configurar em uma teoria do conhecimento e um projeto político.

de gênero entre homens e mulheres (estendida à dicotomias como a que se verifica entre a homossexualidade e a heterossexualidade), mas também à “heteronormatividade”, termo cunhado por Michael Warner (1991), no tocante ao regime que reside em formar todos os indivíduos para se orientarem e/ou organizarem as suas vidas conforme o modelo “coerente”, “natural” e “superior” estabelecido pelos sujeitos heterossexuais. Interpretado pelo ator Mateus Solano, Félix é introduzido na narrativa como o primogênito da rica família Khoury e irmão antagonista de Paloma (Paola Oliveira), que fora adotada por César (Antonio Fagundes) e Pilar (Suzana Vieira). Logo no primeiro capítulo, o personagem casado que mantém uma relação extraconjugal com um jovem amante, inaugura suas vilanias quando “joga a filha recém-nascida de sua irmã, em uma caçamba de lixo, sem resquícios de piedade [...] isso após abandonar Paloma, desfalecida e à beira da morte, no chão de um bar” (MEMÓRIA GLOBO, 2015). No decorrer da telenovela, ainda que tenha transcorrido uma passagem de tempo, a “ficha criminal” de Félix aumenta à medida que este comete vários delitos: superfaturamento de contratos para desviar dinheiro do hospital que pertence à sua família, mandante em uma tentativa de homicídio, falsificação de um exame de DNA, cúmplice no sequestro de Paulinha (a filha julgada morta de Paloma), dentre outros. De acordo com uma dissertação (PERET, 2005) acerca da representação da homossexualidade na telenovela brasileira, o primeiro personagem gay veio nos anos 1970 com o banqueiro Conrad na 1º versão de O Rebu (1974) e a segunda aparição se deu na mesma década na 1º versão de O Astro (1977) com o cabeleireiro Henri. Além da proximidade temporal, entre as produções havia um paralelismo bem similar nos gays apresentados: a sua inclinação à criminalidade, que à época carregavam mais traços de motivação passional. Entretanto, as marcas de caráter negativo que, por vezes, impregnam essa representação teledramatúrgica gay possui suas raízes profundamente fincadas em um “sistema hierárquico de valores sexuais”, destacado por Rubin (1998), ao afirmar que as sociedades ocidentais tendem a avaliar comportamentos ou ocupações sexuais de indivíduos segundo a posição que ocupam nessa espécie de “pirâmide sexual moralista”. Com base na noção de uma “sexualidade ideal”, acima estariam grupos heterossexuais, higiênicos, monogâmicos e reprodutivos, por isso detentores de uma virtuosa sexualidade “boa, normal e natural”. Do mesmo modo, os vícios seriam relegados aos grupos tidos como não privilegiados, ou seja, aqueles possuidores de um sexo “mal, anormal ou não-natural”, que se localizam abaixo nos

grupos homossexuais, promíscuos, extraconjugais, comerciais ou não-procriativos, que vem a rechear sobremaneira os discursos de julgamento sexual (RUBIN, 1998). Passado vários capítulos, ao ser exposto à família que Félix foi o responsável por atirar Paulinha (Klara Castanho) ainda bebê na lata de lixo é que enfim o público toma conhecimento das principais motivações para levá-lo a ter feito aquilo: o sentimento de ódio alimentado com relação à irmã decorrente da sua rejeição pelo pai, César, que possui uma clara predileção por Paloma. Em seguida, sua esposa Edith (Bárbara Paz) cansada de ser trocada pelo amante, revela a homossexualidade de Félix à todos os seus parentes, em outra sequência bastante emblemática da narrativa, cujas reações variam desde à aceitação da mãe até o agravamento de sua relação conflituosa com o pai. Esse momento-chave do “assumir-se”, comumente conhecido pela subjetividade gay como sair do “armário”, não seria mais do que um dispositivo de regulação que se traduz enquanto “a estrutura definidora da opressão gay no século XX” (SEDGWICK, 2007: p. 26). Não à toa que, nos anos 1990, predominam nas telenovelas as chamadas “narrativas de revelação”, ou seja, histórias de personagens gays contadas no interior das fronteiras heteronormativas, cujas negociações e suspeitas que pairam sobre o desejo entre homens apenas serão efetivadas próximo ou no final das tramas. Daí que, com a centralidade dramática sendo deslocada para a questão da “saída do armário”, tanto do sujeito homossexual quanto de seu possível relacionamento homoafetivo frente a seu contexto familiar, esses enredos se tornaram uma novidade teledramatúrgica, ainda que na virada do século seja um artifício bastante utilizado pelos autores. Após esses eventos é que ocorre o ponto de virada do personagem, a partir do momento em que Félix é expulso de casa por sua mãe, perdendo todos os seus bens e, dessa maneira, sendo acolhido por Márcia (Elizabeth Savalla), uma ex-chacrete que trabalhou na casa da família Khoury cuidando dele quando criança. Sem perder o humor que lhe é peculiar, Félix vai vender cachorro-quente na “Rua 25 de Março” usando uma camisa amarrada na cintura e uma flor vermelha no cabelo, pelo que o personagem se torna “sensação com o bordão “Olha o hot dog do Félix! Vem que tem!” [...] é obrigado a andar de ônibus e passar por humilhações na tentativa de conseguir um emprego a sua altura” (MEMÓRIA GLOBO, 2015). Por esse intermédio, o autor reescreve outra

característica bastante reforçada na representação de personagens gays: o estereótipo afetado, caricato e exagerado nos trejeitos. Todo o revés sofrido, fez com que Félix repensasse a sua vida, ao ajudar seu pai e irmã contra as armações de Aline (Vanessa Giácomo) e se aproximar cada vez mais de Niko (Thiago Fragoso), outro personagem

gay que está em crise com o seu companheiro, Eron (Marcello Anthony), por ter sido vítima de uma traição deste com sua amiga, Amarilys (Danielle Winits). Essa mudança significativa na postura de Félix, diante dos demais personagens, faz com que se remeta à categoria da “abjeção”, trazida por David Halperin, que implicaria diretamente em: uma espécie de engajamento no próprio processo de humilhação, proporcionando “ocasiões insuspeitas” capazes de empoderar os indivíduos inferiorizados, que se utilizam da própria substância da humilhação para transformar injúria, vergonha e ódio social em amor. Telegraficamente falando: medo feito desejo e humilhação como desafio (VALE, 2013: p. 311)

Uma tendência ainda mais recente que vem se constando na representação teledramatúrgica de homossexuais é o fato de se retratar casais gays afetivamente bem-resolvidos desde o começo. Nesse caso específico, os personagens costumam apresentar um discurso identificado ao modelo heteronormativo, no instante em que “desaparecem por completo as afetações e vigora o desejo de casar e de adotar crianças, ou seja, os casais gays pouco ou nada diferem dos casais heterossexuais considerados ideais em nossa sociedade” (COLLING, 2007: p. 11). Eis o que acontece no triângulo amoroso criado a posteriori na telenovela entre os personagens Félix, Niko e Eron, na qual os três possuem certo poder aquisitivo, sendo um executivo, um empresário gourmet e um advogado, respectivamente. Com a ruptura do longo relacionamento entre os dois últimos, Félix e Niko podem enfim se envolver e morar com os filhos adotados. Portanto, o público telespectador se depara com esses personagens desejosos de ter seus direitos garantidos, espaços ocupados e identidades reconhecidas mesmo dentro dos limites da heteronorma, tendo que se enfatizar o fato de em sua maioria serem “bonitos, bem sucedidos financeiramente e, na maioria das vezes, sabem se vestir muito bem, apreciam a arte, boas comidas e bebidas” (COLLING, 2007: p. 13). Esse enquadramento estético se conforma ao conceito de “imitação prestigiosa”, no qual a construção social de corpos, atributos e comportamentos que obtiveram êxito (em detrimento de outros) logo mereceria um posto exemplar a ser seguido, imitado e escolhido (MAUSS, 1974), embora na ótica de sua vida privada praticamente inexista um partilhar erótico entre os sujeitos, na medida em que trocam-se carícias, com muita raridade beijam-se (quando a cena não é cortada) e em nenhum momento transam. No último capítulo, para surpresa geral, ocorre o beijo entre o casal Félix e Niko, que ficou marcado como o primeiro em uma telenovela do “horário nobre”, selando o “final feliz” dos personagens e consagrando Félix como o grande destaque de “Amor à Vida”, a ponto de ofuscar o casal hetero protagonista. Em meio à controversa sequência

do “beijo gay”, segundo coloca David Le Breton, este simples ato se perfaz em um atributo íntimo que se concede socialmente à determinados casais: A complacência de que beneficia o beijo na boca reunindo um homem e uma mulher não se estende aos casais de mulheres ou de homens, os quais suscitam um mal-estar tangível, expondo-os do escárnio, a muitos olhares espantados ou à galhofa afrontosa dos passantes. (LE BRETON, 2009: p. 86)

Ao longo de seu conturbado percurso, é notável que Félix condensou elementos que compuseram um universo histórico de personagens gays de diversas produções globais anteriores. Para além de se confundir com a própria trajetória discursiva e de performances teledramatúrgicas produzidas sobre homossexuais, Félix também pôde subverter a lógica narrativa inicialmente traçada. Ao sobrepujar a importância do núcleo central que havia se demarcado, onde se limitou ao papel de vilão ou “bicha má”, Félix tornou sua história tão relevante que ainda se redimiu como o “herói gay”: na cena final o personagem perdoa seu homofóbico pai, que termina cuidado pelo tão renegado filho. Bibliografia Básica COLLING, Leandro. Personagens homossexuais nas telenovelas da Rede Globo: criminosos, afetados e heterossexualizados. In: Revista Gênero, Niterói: EDUF, 2007. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 19ª Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2009. LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. PERET, Luiz Eduardo Neves. Do armário à tela global: a representação social dahomossexualidade na telenovela brasileira. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2005. PORTAL MEMÓRIA GLOBO, Amor à Vida. Disponível em: Acesso em 20 de abril de 2015. RUBIN, Gayle. Pensando o Sexo: Notas para uma Teoria Radical das Políticas da Sexualidade. Londres/Nova York: Routledge Ed., 1998. SEDGWICK, Eve Kosofsky. A Epistemologia do Armário. In: Cadernos Pagu, nº 28, Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, 2007. VALE, Alexandre Fleming Câmara. “Nosso pequeno segredo sujo”: notas sobre a abjeção. In: Revista Bagoas, nº 10, Natal: EDUFRN, 2013.

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