De Corte a Capital Federal: o Rio de Janeiro na passagem do Império à República 1

June 7, 2017 | Autor: Angela Alonso | Categoria: História do Império Brasileiro, Primeira República, Cidade do Rio de Janeiro
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De Corte a Capital Federal: o Rio de Janeiro na passagem do Império à República1 Angela Alonso2

1. A natureza como paisagem Chegava-se pelo porto. Os navios a vapor aportavam cotidianos, regulares. Ligavam a capital do país às capitais regionais de beira-mar. O Congo tocava Bahia e Pernambuco, antes de rumar para Marselha e Gênova. O Gironde seguia a Lisboa e Bordéus, o Guariana para Nova York e o Tamar ancorava em Southampton e Antuérpia. Contínua azáfama marítima que conectava o Rio de Janeiro ao mundo.3 No desembarque, existia o cais, não a praia. A areia era um mundo malcheiroso de lixos, restos, dejetos humanos, que apenas se atravessava. Depois é que se descortinava a urbe, cerceada de um lado pelas águas, do outro pelo Pão de Açúcar e por um Corcovado sem cristo. A cidade se espremia entre mar e morro. Beleza que narcotizava o forasteiro e irritava o nativo. “Certo, a nossa baía é esplêndida”, admitia Machado de Assis, mas a paisagem ofuscava a sociedade. Uma manhã arrastou um estrangeiro morro do Castelo acima, para do alto lhe exibir antigas construções, “a igreja do Castelo e seus altares”, e narrar suas histórias. Subimos; eu, para dispor-lhe o espírito, ia-lhe pintando o tempo que por aquela mesma ladeira passavam os padres jesuítas, a cidade pequena, os costumes toscos, a devoção grande e sincera. Chegamos ao alto, a igreja estava aberta e entramos. Sei que não são ruínas de Atenas; mas cada um mostra o que possui. O viajante entrou, deu uma volta, saiu e foi postar-se junto à muralha, fitando o mar, o céu e as montanhas, e, ao cabo de cinco minutos: “Que natureza que vocês têm!” [...] A admiração do nosso hóspede excluía qualquer ideia da ação humana. Não me perguntou pela fundação das fortalezas, nem pelos nomes dos navios que estavam ancorados. Foi 4 só a natureza.

O Rio não tinha culpa de sua paisagem, prosseguia: “sempre se doeu desta adoração da natureza. [...] Pareceu-me sempre um modo de pisar o homem e suas obras. [...] Eu não fiz, nem mandei fazer o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei prontos, e não nego que sejam admiráveis; mas há outras coisas que ver.”5 A urbanização, nos meados do século 19, foi uma luta da cidade para sobrepujar seu ambiente, sempre a ofuscar a civilização. Os cortesãos, durante o reinado de Pedro II (1840-1889), faziam excursões bucólicas pelas ilhas do Governador e Paquetá, iam à lagoa Rodrigo de Freitas, à Bica da Rainha, no

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In Marc Ferrez. Rio. Gottingen: Steidl/Instituto Moreira Salles, 2015, pps.225-233

Professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e diretora científica do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). É autora de Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império (Paz & Terra/Anpocs, 2002) e de Joaquim Nabuco: os salões e as ruas (Companhia das Letras, 2007), entre outros. 3 Diário de Notícias, 08.06.1885. Também era possível entrar pela ferrovia, símbolo de modernidade, e assim fugir da insalubridade do verão, com seus miasmas, rumo à serra, em Petrópolis. 4 Machado de Assis, “A semana”, Gazeta de Notícias, 20.08.1893. 5 Ibidem. 2

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Cosme Velho, ao Corcovado e armavam piqueniques na floresta da Tijuca, com sua Vista Chinesa, a predileta dos namorados. Mas preferiam, como Machado, a paisagem construída. Caso do Jardim Botânico, repositório de espécies do mundo todo, em ostensivo cosmopolitismo vegetal. Caso do Passeio Público, remodelado nos anos 1860 pelo paisagista francês AugusteFrançois-Marie Glaziou.6 A Corte almejava ser civilizada à maneira europeia e encampou o jardim geométrico dos franceses, seu método, sua ordem, sua previsibilidade, nas antípodas da exuberância desnorteada da folhagem nativa, que os romances naturalistas acusavam de induzir taras sexuais e loucura hereditária. A cidade temperava esses fumos de civilidade com pencas de mazelas. A natureza tropical reprimida se vingava com as epidemias. Entre 1869 e 1870, o Rio de Janeiro teve surtos de febre amarela, varíola e sarampo. Em 1872, foi o tifo. No ano seguinte, a febre amarela voltou para levar consigo 3.467 almas. Nesse mesmo ano, a varíola vitimou 1.629 pessoas, e ainda mais, 2.227, em 1878.7 O tráfego marítimo importava também cólera e peste bubônica, que a ausência de saneamento básico ajudava a distribuir democraticamente entre o povo pobre e a elite chique.

2. Uma cidade, duas histórias O Rio de Janeiro de fins de século 19 foi uma cidade de duas histórias. Uma é a história da Corte. Até 1889, foi sede da nata da sociedade imperial, que morava em palacetes forrados de papel de parede e abarrotados de móveis de jacarandá, entre os quais um indefectível piano para os saraus. Gente fina concentrada em Botafogo, Catete ou Flamengo, onde ficava a casa do duque de Caxias. Dali se podia ir de coche ou bonde – uma linha ligava Botafogo a Tijuca e Laranjeiras – ao centro político, onde ficava o Paço Imperial, ponto de despacho do imperador, e os prédios do senado vitalício e da câmara temporária, toda uma geografia do poder esparramada a pequena distância. Poder esse criticado nas redações de jornal. Os oposicionistas O País, A Gazeta da Tarde, Cidade do Rio e o tradicionalíssimo Jornal do Comércio reportavam os problemas brasileiros e os internacionais que chegavam por telégrafo. Vendiam-se na rua por meninos que gritavam as manchetes do dia. Os morros do Castelo, Santo Antônio, Conceição e São Bento cingiam esse centro, por sua vez travejado de ruelas escuras, que de dia se abarrotavam de sapateiros, funileiros, chapeleiros, vendedores de frutas, legumes, doces, pão, suprindo as necessidades do cotidiano. Eram, em maioria, escravos de ganho, postos por seus senhores nesse serviço de rua. É que a sociedade imperial se fundava na escravidão. E na precariedade: a iluminação a gás chegou em 1854, a rede de esgoto em 1862, a água encanada apenas em 1874.8 Adolfo Morales de los Rios Filho, O Rio de Janeiro imperial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000, pp. 366; 108; 113-114. Maria Luiza Marcílio, “Mortalidade e morbidade da cidade do Rio de Janeiro imperial”, Revista História, São Paulo, n. 127-128, ago-dez/92 a jan-jul/93, p. 67. 8 Glória Kok, Rio de Janeiro na época da Av. Central. São Paulo: Bei Comunicação, 2005, p. 14. 6 7

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O Rio de Janeiro encavalava capitais: capital política, pois era sede do governo; capital econômica, porque ali se entroncavam todos os negócios; capital cultural, onde ficava a corte do imperador, as faculdades de engenharia e medicina, os teatros, a biblioteca nacional e todos os edifícios do pequeno fausto monárquico. Uma cidade que vivia à volta do Estado: o censo de 1872 registrou 266.831 habitantes, 2.350 dos quais declararam viver do emprego público, ocupação a que aspiravam os 1.120 professores, homens de letras, advogados. Em contrapartida, em terra de tantas doenças tropicais, os médicos não passavam de 390.9 A rua do Ouvidor era o centro de tudo, genuíno passeio público, resumiu Joaquim Manuel de Macedo: “a mais passeada e concorrida, e a mais leviana; indiscreta, bisbilhoteira, esbanjadora, fútil, noveleira, poliglota, enciclopédica de todas as ruas da cidade do Rio de Janeiro, fala, ocupa-se de tudo”.10 As senhoras lá iam comprar novidades de Paris e os senhores para vê-las, falar de política e fechar negócios, lastreados em café e escravos. Com seus mocassins e botininhas europeias, cavalheiros e damas tropeçavam nos paralelepípedos da rua iluminada a gás. Eventualmente, pousavam para um retrato. Em 1870, a Corte tinha 38 fotógrafos estabelecidos.11 Marc Ferrez, especialista em “vistas do Brasil”, tinha seu depósito no número 59 da rua do Ouvidor.12 Por perto ficavam as confeitarias, o Castelões e a Carceler, com seus sorvetes caríssimos, e a livraria número um, de Baptiste Louis Garnier, também editor, que, por extorquir docemente direitos autorais, acabou apelidado “Bom Ladrão Garnier” . A cidade imperial tinha uma graça sisuda. Os homens trajavam casaca e bengala, vestuário incompatível ao clima, mas ao gosto de Paris. Rio de Janeiro aristocrático, gabando-se de ser única capital monárquica das Américas, e com vida operística agitada, de Carlos Gomes às grandes cantoras líricas, como a Ristori. Companhias dramáticas, sobretudo italianas, aportavam sempre. Sarah Bernhardt, a maior do tempo, apresentou-se no Teatro D. Pedro, na praça do Rossio, em 1886. Achou o Brasil “féerique”.13 Havia o Cassino Fluminense, para danças, e as associações de música de câmara, o clube Mozart, frequentado pela família imperial, e o Beethoven, na rua do Catete, onde ia Machado de Assis. Dom Pedro II era rei pouco animado para pompas e a princesa herdeira, embora tivesse um salão no Paço Isabel (hoje Palácio Guanabara), tampouco era inclinada à causerie, de modo que os cortesãos viviam de saraus, onde se jogava o voltarete. Havia bailes eventuais, como o de inauguração do cabo submarino, em 1874, e esperava-se com ansiedade um anual, quando o governo homenageava diplomatas. Sobre o de 1876, Machado de Assis zombou: “dizem-se maravilhas do baile da Secretaria de Estrangeiros. Um amigo meu recusa dançar há seis semanas, com o motivo plausível de que não quer gastar as pernas. Só fala em francês para Joaquim Manuel de Macedo, Memórias da rua do Ouvidor. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 9. 11 Ana Maria Mauad, “Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado”, in Luiz Felipe de Alencastro e Fernando A. Novais (org.), História da vida privada no Brasil – Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, p. 199. 12 Maria Ignez Turazzi, “Cronologia”, in Instituto Moreira Salles, O Brasil de Marc Ferrez. São Paulo: IMS, 2005, p. 307. 13 Machado de Assis, A semana, op. cit. 9

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conversar com os diplomatas; estuda a questão do Oriente para dizer alguma coisa ao ministro de Inglaterra. [...] Não é um amigo, é um manual de conversação”.14 Poucas festas tinham envergadura. Em 1870, na celebração do fim da guerra contra o Paraguai no Campo de Santana, fotografada por Marc Ferrez, as senhoras exibiram vestidos longos, coque e sombrinha, e os senhores, paletó e chapéu baixo. Outra cerimônia pública, em 1872 – também registrada por Ferrez – foi o boas-vindas ao imperador, que acabava de voltar da Europa.15 Já o último grande festejo imperial, em 1889, consistiu num bota-fora. O baile em homenagem a oficiais do navio chileno Almirante Cochrane na Ilha Fiscal deu em forte ressaca: seis dias depois caiu o regime monárquico. Em 15 de novembro de 1889, o engenheiro André Rebouças pasmou-se ante o infausto para a coroa: “encontramos, ao chegar a Mauá, notícia de um Motim Militar na Praça da Aclamação”.16 Era o fim de século e meio de monarquia brasileira. Aí começou outra história do Rio de Janeiro, a da Capital Federal. Com o golpe republicano e o exílio da família imperial, a cidade deixou de ser referida como “a Corte”. Machado de Assis registrou a troca: “Eu digo Capital Federal, que é um simples modo de qualificar esta cidade, sem nome próprio, pela razão de ser a designação adotada constitucionalmente. Antes de 15 de novembro dizia-se Corte, não sendo verdadeiramente Corte, senão o paço do imperador e o respectivo pessoal; mas tinha o seu nome de Rio de Janeiro, que não é bonito nem exato, mas era um nome.”17 Os cariocas dormiram súditos no 14 de novembro e acordaram cidadãos no dia 15. Os Estados Unidos inspiraram novas instituições políticas, cujo sentido descentralizado – ao contrário da centralização monárquica – expressouse em nome novo para a própria nação: República dos Estados Unidos do Brasil. Já da França vieram símbolos para o regime recém-nascido.18 “Ordem e progresso”, lema do positivista Auguste Comte, inscreveu-se na bandeira nacional. O que era Império virou República. Assim foi com o Campo da Aclamação, demudado em Praça da República. A estrada de ferro D. Pedro II converteu-se em Central do Brasil. A cidade passou a ser chamada de "Capital Federal", título que Arthur Azevedo deu também a um romance (1897), no qual anotou a euforia da refundação. Os militares, onipresentes em postos governamentais, lançavam-se como novo poder moderador, decididos a colocar a pátria nos trilhos, enquanto mexidas na política econômica e jogadas na bolsa de valores geravam novos ricos. Foi um troca-troca de elites. Embora todos vivessem ainda do café, o ouro negro, saiu a aristocracia escravista do Vale do Paraíba, entraram os barões republicanos do Oeste Paulista. Uns ganharam o poder que os outros perdiam. O Estado também mudou de mãos e deixou de Machado de Assis, “História de quinze dias”, Ilustração Brasileira, 15.08.1876. Maria Ignez Turazzi, op. cit. p. 307. 16 Ignácio José Veríssimo e Ana Flora Veríssimo (org.), Diários e notas autobiográficas de André Rebouças. Rio de Janeiro: José Olympo, 1938, p. 351. 17 Machado de Assis, A semana, 24.06.1892. 18 Sobre a simbologia republicana, ver: José Murilo Carvalho, A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. 14 15

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dar benesses e empregos aos apadrinhados dos primeiros, para os dar aos afilhados dos segundos. Letrados como Olavo Bilac, Pardal Mallet, Raul Pompéia e Coelho Neto ingressaram em júbilo na República, devidamente recompensados por postos na burocracia estatal. E os que, na troca de regime, ficaram desapontados, mas calmos, puderam manter seus empregos públicos, caso do barão de Rio Branco e de nosso amigo Machado de Assis, que ainda assim resmungou contra a afluência de novos estratos sociais na cidade velha: “Alguns intrusos vingam-se em rir do que passou, datando o mundo em si [...]. Este Rio de Janeiro de hoje é tão outro do que era, que parece antes, salvo o número de pessoas, uma cidade de exposição universal. Cada dia espero que os adventícios saiam; mas eles aumentam, como se quisessem pôr fora os verdadeiros e antigos habitantes.” 19 É que os republicanos passavam a cidade a limpo. A Capital Federal virou terra de reformistas, ávidos por laicizar o estado, antes católico, e revogar etiquetas e hierarquias aristocráticas. O Rio sede da sociedade de corte virou pátria de “cidadãos”, termo com o qual os republicanos assinavam documentos oficiais, em rememoração tardia dos ritos da Revolução Francesa. Ao contrário de todos os prognósticos catastróficos dos desolados monarquistas, o fim da escravidão, sempre apregoado como base da economia nacional, não levou o país à breca. O café permaneceu forte e o Brasil inseriu-se também na economia da borracha. Cresceram o comércio, as estradas de ferro e mesmo incipientes indústrias. Na capital, avançou a infraestrutura urbana e, em 1892, inaugurou-se a primeira linha de bondes elétricos, a do Jardim Botânico.20 Expansão viária que estimulou a ocupação da cidade para norte e sul, em direção ao Engenho de Dentro, Engenho Novo e Piedade. Guerra contínua da engenharia contra a natureza, que, neste 1892, explodiu a rocha para estender trilhos até Copacabana.21 A política econômica do primeiro governo da República pôs combustível nessa fogueira, ao conceder direitos de emissão a bancos privados para que financiassem novas empresas. A medida produziu uma bolha econômica, com boom de novos empreendimentos, febre que enunciava uma doença. Era uma “sociedade de moedeiros falsos”,22 como resumiu Joaquim Nabuco, lastreada em ouro de tolo. Cedo veio abaixo. A crise econômica de 1891 derrubou de manhã as fortunas surgidas na madrugada. O aparente sucesso das empresas, açuladas pela política econômica governamental, incentivara a abertura de novas, que correram aos bancos em busca de crédito, que, por sua vez, emitiram papel moeda sem lastro. Uma corrida assemelhada à de cavalos, daí o nome que então se deu à crise resultante: Encilhamento.

Carta de Machado de Assis a Salvador de Mendonça, 22 de setembro de 1895. Ver: Machado de Assim, Obra completa. V. 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 20 Brasil Gerson, História das ruas do Rio (e de suas lideranças na história política do Brasil). Rio de Janeiro: Lacerda, 2000, 269. 21 Glória Kok, op. cit., p. 23. 22 Carta de Joaquim Nabuco a André Rebouças, 28.01.1893, Acervo Fundaj. 19

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Os incautos, que não apearam logo, caíram do cavalo: hiperinflação, quebradeiras de empresas, bancos e contas públicas, ao que se somou a baixa do café no mercado internacional. Veio também a crise política, com suas próprias causas, as dificuldades de convivência entre civis e militares nos dois primeiros governos da República. O governo de Deodoro da Fonseca (1889-1891) chamou uma constituinte. Embora a Constituição resultante, de 1891, tivesse corte liberal, foi quase outorgada por um governo sem paciência para dissensos. As insatisfações com o comando da caserna sobre o país pioraram com Floriano Peixoto (18911894). Explodiram contestações: insubordinação popular no interior, a Guerra de Canudos; a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul; e nossa modesta guerra civil, a Revolta da Armada, rebelião monarquista que transformou a cidade do Rio de Janeiro em praça de combate. Floriano respondeu com estado de sítio, censura e ação armada com apoio norteamericano. Domou os contestadores e, em 1894, transmitiu o poder ao primeiro presidente civil da República, Prudente de Moraes. Governo fraco, sempre a perigo, criticado por todo lado, no curso do qual a Capital Federal seguiu com manifestações de protesto tanto de monarquistas quanto de republicanos radicais, ambos decepcionados com a república real, tão distante da onírica. Apenas quando em 1897 um atentado quase tirou sua vida e suscitou demonstrações de solidariedade em todos os pontos do espectro político é que Prudente conseguiu assumir as rédeas do governo. Transferiu-as, em seguida, para seu amigo Campos Sales (1898-1902). E assim a República consolidou-se, com a política dos governadores, um acordo pelo qual o governo federal não interferiria nos conflitos dos estados. A estabilidade política acalmou o Rio de Janeiro e facultaria ao próximo presidente, Rodrigues Alves, embrenhar-se em projetos mais audaciosos que o de pôr ordem na casa.

3. Dos escravos aos imigrantes A história de uma cidade é também a história de seu povo. Povo em movimento. O Rio de Janeiro passou, em cerca de meio século, de maior capital africana fora da África a metrópole meio portuguesa.23 Gente trazida a fórceps: os escravos, no Império, e os imigrantes, na República. Os dois regimes convergiram nessa inclinação, nunca satisfeitos com o povo que já tinham. Os escravos chegaram pelo porto, um tráfico pujante que durou cerca de três séculos, dos tempos da Colônia até a primeira década do Segundo Reinado, arrastando 5.848.265 de africanos para o país, cerca de 500 mil deles durante o reinado de dom Pedro II.24 Escravos para a produção agrícola, o serviço das famílias e os ofícios da cidade. A Corte estava coalhada

Luiz Felipe Alencastro, “Modelos da história e da historiografia imperial”, in Luiz Felipe de Alencastro e Fernando A. Novais (org.), op. cit., p. 30. 24 23

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deles. Exerciam as ocupações mais baixas, engraxates, quituteiras, cozinheiras, amas de leite, moleques de recado, motoristas, pajens, vendedores de rua. No censo de 1872, eram 8.659 as escravas no serviço doméstico e outras 4.824 eram criadas ou jornaleiras. Também elas operavam a produção manual de chapéus, roupas, calçados.25 A população carioca cresceu do Império à República: de 274.972 habitantes, registrados no censo de 1872, aos 522.651, atestados no recenseamento de 1890. Adensamento produzido pelo deslocamento interno de população, já que muitos ex-escravos que foram trocados por italianos nas fazendas de café procuravam arranjar-se na economia dinâmica da capital. A cidade recebeu então grande afluxo de imigração estrangeira. O Rio tinha 84.279 habitantes nascidos no exterior, em 1872; em 1890, esse número saltou para 124.119, sobretudo portugueses, que representavam 20,37% da população carioca.26 Os nacionais nem sempre lhes deram as boas-vindas. No centro, no mercado público, perto da confusão do cais Pharoux, os portugueses disputavam com ex-escravos ofícios similares e parcos salários. Numa foto de Marc Ferrez, de 1895, um ex-escravo cesteiro trabalha de sapato – pés no chão indicavam a condição escrava –, ao passo que os garrafeiros, prováveis imigrantes portugueses, estão descalços. Lusitanos que colonizaram o pequeno comércio, incontáveis caixeiros, cujas mulheres trabalhavam como criadas e amas de leite, desbancando as africanas. Uma onipresença que alcançou os negócios. Ferrez flagrou, em 1890, um carroceiro de costas, cujos dizeres impressos na traseira do carro delatavam o acento estrangeiro da carga: “cervejaria Camões”. A invasão do mercado de trabalho, durante o governo Floriano, gerou seguidos episódios de xenofobia, com piadas, preconceito e perseguições contra os compatriotas do autor d’Os lusíadas. Muitos deles somaram-se, nas ruas do Rio, aos ex-escravos, ambos sem lugar certo no processo produtivo, muitos vivendo de biscates, convertidos em vendedores de guardachuvas, vassouras, cebolas, amoladores de faca. Como as distinções são sempre tão importantes quanto necessárias, os portugueses apartavam-se dos ex-escravos não só pela cor, como por um símbolo. Os recém chegados ao piso da escala social se aproximavam de seu ápice, o presidente da República, cultivando os mesmos vastos bigodes.

4. Uma pequena Paris Na virada para o século 20, estabilidade política mais reequilíbrio financeiro facultaram a Rodrigues Alves (1902-1906) retomar planos e obras de envergadura para a cidade. O presidente empenhou-se em duas reformas modernizadoras.

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IBGE, A distribuição territorial dos estrangeiros no Brasil: estatística demográfica. Rio de Janeiro: IBGE, 1958, pp. 48-49.

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Uma foi contra as endemias, com vacina e saneamento, outra foi a reforma urbana, que mudou a cara do Rio de Janeiro. Aos dois homens à frente do esforço civilizador o presidente concedeu poderes discricionários. Ao médico Oswaldo Cruz para que invadisse as casas com seu exército de “mata-mosquitos” e vacinasse compulsoriamente os cariocas contra a varíola, mesmo contra resistências, que, em novembro de 1904, ganharam a forma de insurreição popular, a Revolta da Vacina.27 Para a outra reforma o presidente deu carta branca ao engenheiro Francisco Pereira Passos, empossado prefeito da cidade, para que transformasse o que fora a Corte numa pequena Paris. É que o regime político tinha mudado, mas o modelo de civilidade, não. Paris era a cidadeluz para os republicanos, como fora para os monarquistas, e à moda dela refizeram a Capital Federal, com grandes avenidas iluminadas e ajardinadas, cenário para sua própria belle époque. Pereira

Passos,

que

vivera

em

Paris

durante

as

reformas

de

Georges-

Eugène Haussmann, trouxera o modelo na mala e começou feroz reformulação urbana. A cidade já tinha favelas penduradas nos morros e multiplicavam-se os cortiços – que não eram culpa apenas da República: já existiam 1.331 deles em 1888, ano da abolição da escravidão.28 O prefeito anterior tinha destruído o mais emblemático deles, o Cabeça de Porco, imortalizado no romance O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. Pereira Passos faria mais, sua reforma saneadora desalojaria milhares de pessoas, numa ação intensiva de banimento dos pobres do centro da cidade, comprando e demolindo suas moradias. Um gigante “bota-abaixo”. A sanha reformadora do prefeito abriu novo mercado municipal, asfaltou ruas, reformou as praças Quinze, Tiradentes, a da Glória, o Passeio Público e o porto, operação na qual sumiram praias e Flamengo e Botafogo viraram avenidas. Implicou com o comércio de rua, regulamentando a circulação dos alimentos perecíveis e acabou com o que restava de hortas e matadouros pelos cantos da cidade. Também expulsou das vistas mendigos e cachorros.29 Destruidor e criador, fez trocar as ruas estreitas da cidade velha por amplos bulevares. Seu emblema foi a avenida Central, obra que durou mais de um ano, com cerca de dois quilômetros – da Praia da Ajuda à Prainha –, e pôs abaixo três morros e perto de 600 edificações. Nos prédios que foram subindo na nova avenida, muito ferro, muito vidro, muita pompa. Ferrez os fotografou, um a um, e coligiu fotos e projetos arquitetônicos em seu Álbum da Avenida Central, de 1906. Na avenida Central residiria a justiça, com o Supremo Tribunal Federal; ali estaria a cultura, com a Biblioteca Nacional, o Teatro Municipal, a Escola Nacional de Belas Artes; para lá também se mudava a imprensa, O País, O Jornal do Brasil, O Jornal do Comércio, e migrariam os negócios, a moda e os lazeres. Marc Ferrez registrou o desfile de homens de Sobre a Revolta da Vacina, ver: Nicolau Sevcenko, A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1983. 28 Glória Kok, op. cit., p. 28. 29 Adolfo Morales de los Rios Filho, op. cit., p. 249. 27

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paletós de linho, de braço com senhoras em modelitos franceses, ambos de chapéu, a flanar pela avenida nova de pedras portuguesas iluminadas por luz elétrica, com lixeiras fixas, recobertas de anúncios, e ladeada por 358 mudas de jambeiro e 53 de pau-brasil.30 Por ali se passearia a pé ou de carruagem – sumiu o tílburi, mas sobreviveu a berlinda, pequeno coche de quatro rodas.31 Ou ainda de automóvel. O jornalista José do Patrocínio, um dos líderes do movimento abolicionista e da Revolta da Vacina, foi o primeiro a circular de carro pelo Rio, em 1903, com um Serpollet a vapor, importado, claro, de Paris. Causou espécie, conta outro boêmio como ele, João do Rio: E, subitamente, é a era do automóvel. O monstro transformador irrompeu, bufando, por entre os descombros da cidade velha [...]. O primeiro, de Patrocínio, quando chegou, foi motivo de escandalosa atenção. Gente de guarda-chuva debaixo do braço, parava estarrecida como se tivesse visto um bicho de Marte ou um aparelho de morte imediata. Oito dias depois, o jornalista e alguns amigos, acreditando voar com três quilômetros por hora, rebentavam a máquina de encontro às arvores da rua da Passagem.32

Era um tempo de embelezamento e metamorfose. Aquele Rio de Janeiro do Império, enclausurado no entorno da rua do Ouvidor, deixou de existir. A própria rua símbolo do Segundo Reinado ganhou o nome de um herói da República, Moreira César, chefe da expedição militar que dizimou a Guerra de Canudos. O centro expandiu-se, arrogante. Em julho de 1904, quando o Brasil sediou a Terceira Conferência Panamericana, com delegados de 19 países, sob a presidência do embaixador brasileiro em Washington Joaquim Nabuco, o progresso local se ostentou no prédio-sede cujo projeto fora premiado na Exposição Internacional de Saint-Louis e que se localizava, naturalmente, na avenida Central. A avenida Central sediaria todos os gêneros de progresso, econômico, cultural e também tecnológico. Foi pioneira local no uso do elevador, instalado, em 1911, no Hotel Avenida. Outra tecnologia que deslumbrou o Rio foi o kinetoscópio, “a fotografia animada”, que “fará sem cessar reviver o passado tal como foi”. Em 1908, a cidade exibia filmes no Kosmos e no Parisiense33. Marc Ferrez, com o filho Júlio, assumiu então a representação da Pathé Frères, distribuidora e exibidora de filmes, e, em 1907, inauguraria o Cine Pathé, na Cinelândia. Chegava o cinema. Modernidades exibidas na inauguração do grande bulevar, no aniversário da República, em 1905. As festividades romperam às 9 da manhã, quando um vigário o batizou de avenida Central, e avançaram até as 6 da tarde, hora do lusco-fusco, quando a Light acendeu 500 lâmpadas elétricas coloridas, compondo o desenho de uma estrela. Enfeitaram-se os prédios com bandeiras e guirlandas, erigiram-se 41 mastros com nomes dos engenheiros empregados na

Brasil Gerson, op. cit., p. 182. Adolfo Morales de los Rios Filho, op. cit., pp. 139-140. 32 João do Rio, Vida vertiginosa. Rio de Janeiro: Garnier, 1911, p. 3. 33 A Notícia 23.12.1894. Brasil Gerson, op. cit., pp. 180-181. 30 31

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obra, e sete coretos, um deles em “forma de açafate de flores”.34 O presidente Rodrigues Alves desfilou orgulhoso num Landau, escoltado pela cavalaria.35 Desfilaram também o exército e a marinha. Executou-se o hino nacional. Nem a chuva afugentou as senhoras, que, “chapinhando na lama aristocrática da grande rua elegante, pareciam afirmar que esse documento de progresso valia bem o holocausto de um vestido”.36 Os cariocas rejubilavam-se. Um jornal ufanou-se: “Que era a cidade há dez anos atrás? Que é hoje? Houve uma transformação completa, um passe de mágica, uma maravilha. [...] Quem te viu e quem te vê! É a obra do dr. Passos, é a obra do governo do dr. Rodrigues Alves. (...) [Agora estamos] passeando [n]esta cidade de tão lindas ruas novas, percorrendo as avenidas, respirando um ar que não é o das antigas vielas infectas, habitando uma nova Cidade Maravilhosa”.37 O Rio de Janeiro, que já fora Corte e Capital federal, ganhava novo apelido. Machado de Assis viveu para ver a cidade resolvendo sua pendenga com a natureza. Batalha que o Jornal do Comércio decretou vencida com a inauguração da avenida Central:

O estrangeiro que visitar agora a nossa Capital já tem na Avenida um belo exemplo do progresso material que o Rio de Janeiro se sente resolvido a realizar. Está de vez morta a exclusividade de sedução que a naturaleza [sic], e só ela, exercia sobre quantos estranhos nos visitavam. Subsistirá sempre a sedução das baías, das árvores e dos morros, mas a Avenida já prova que estamos resolvidos a construir outras joias que nós mesmos fabriquemos sem nos limitarmos tão somente a exibir aquelas em que de modo algum trabalhamos. 38

Só não participaram da festa aqueles desalojados para dar lugar ao progresso. “O povo, divorciado por completo das festanças e pagodes oficiais, não teve uma aclamação, não teve um viva, para o presidente da República”. Ao contrário, seguia o Correio da Manhã, “uma enormidade de garotos” pobres tentava se achegar sem êxito do mandatário da nação. “Séquito incômodo”. Não sumiu o povo, o povo subiu o morro. Como não sumiu a natureza, que se vingou da Cidade Maravilhosa, neste dia, com “um aguaceiro impertinente e odioso, fino e pulverizado a começo, grosso e encharcante depois. O céu amanheceu turvo e turvo se conservou até a noite, como uma carranca de sebastianista impenitente”.39

Gazeta de Notícias, 15.11.1905. A Tribuna, 16.11.1905. 36 Jornal do Comércio, 16.11.1905. 37 A Notícia, 6-7.7.1909. 38 Jornal do Comércio, 16.11.1905. 39 Correio da Manhã, 16.11.1905. 34 35

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