DE DORES E DE AMORES: TRANSFORMAÇÕES DA HOMOSSEXUALIDADE PAULISTANA NA VIRADA DO SÉCULO XX (Tese de Doutorado Antropologia / USP)
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DE DORES E DE AMORES: TRANSFORMAÇÕES DA HOMOSSEXUALIDADE PAULISTANA NA VIRADA DO SÉCULO XX Ronaldo Trindade
Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia Social, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Antropologia.
Orientador: Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva
São Paulo 2004
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DE DORES E DE AMORES: TRANSFORMAÇÕES DA HOMOSSEXUALIDADE PAULISTANA DA VIRADA DO SÉCULO XX
RONALDO TRINDADE
São Paulo 2004
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À minha avó Rosa Trindade À minha mãe Madalena Trindade A meu companheiro Júlio Pessoa.
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AGRADECIMENTOS De início, gostaria de lembrar de minha família, com quem primeiramente aprendi a estar no mundo, ou pelo menos ter uma noção do que isso significava naquele momento. Assim, sou deveras grato à minha avó, Rosa Trindade; à minha mãe, Madalena Trindade e a meu irmãos Túlio, Max, Ana Paula, Rosana Carla e Andreza Solana; meu porto seguro, ainda que eu pouco tenha estado com eles... muitos km separam São Paulo da minha amada e saudosa Belém. Nessa cidade deixei velhos amigos que são definitivamente parte de minha construção e lembro com falta de Eduardo Burlamaqui, Carlos Amorim, Paulo Favacho e a professora Edilza Fontes; anseio por vê-los de novo para lhes falar de como idéias que tiveram suas raízes em nossas conversas cotidianas alçaram vôo para além e se desdobraram nessa tese. Na Paulicéia, me servi fartamente do carinho dos amigos, fossem eles conterrâneos ou conquistas de meu “novo mundo”. Por isso, lembro aqui de Felipe Mubarac, Denise Frade, Ruy Barata – que sempre lembra de me ter chamado a atenção para assuntos importantes da pesquisa , Paulo Ferreira, Antônio Mauricio, Augusto Pampolha, Rogério e Rodrigo Vasques, Kivia Martins, Marina Cabral, Marcos Nascimento, Eduardo Lazarini, Dani Prado (que tão gentilmente revisou o trabalho), Simone Salles e Luciana Chiaradia. Vocês são realmente parte de minhas vitórias e sempre me apoiaram também não vitórias. No fim, sempre rimos de uma coisa ou de outra. Vitor Grunvald, meu sempre esperado hóspede em São Paulo e hospedeiro no Rio de Janeiro. Só ele sabe o quanto realmente sou grato por sua inteligência, seu companheirismo, suas palavras ternas e toda a confiança que me passa quando está comigo. Com ele, muitas das questões com que eu me debati durante a pesquisa, foram discutidas de forma aguçada e divertida. Na USP, contei com o apoio dos integrantes do NAU (Núcleo de Antropologia Urbana), que aqui, espero, possam perceber a influência de tão instigantes discussões, desde o momento em que esse projeto era ainda bastante embrionário até sua forma final. A eles agradeço as sugestões, as risadas e o crescimento. Na comissão editorial da revista Caderno de Campos, editada pelos alunos de pósgraduação do departamento de antropologia, fiz grandes amigos que, quero crer, serão para a vida toda como Francirosy, Janine, Chico, Ugo, Vânia, Carolina, Joana. Com eles, aprendi muito
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sobre meu ofício na maneira com as relações humanas devem se dar; sempre amparadas por carinho e respeito mútuo. No decorrer dessa empreitada, contei também com os generosos comentários de Lilia Schwarcz, José Guilherme Magnani e Sylvia Caiubi Novaes, professores que sempre leram com sofisticada inteligência e atenção os textos que lhes escrevi durante nossos cursos. Cedo percebi a clareza de suas palavras e a elas agradeço imensamente. Sou grato também aos funcionários do Departamento de Antropologia, principalmente a Ivanete e Rose, a quem sempre sobrecarreguei de pedidos e fui tão gentilmente atendido. A Peter Fry, pelas agradáveis interlocuções e pela riqueza de suas palavras. Aos membros da banca de qualificação, Júlio Simões e James N. Green (meu amigo, conselheiro e “anjo da guarda”), agradeço por sua postura crítica, a despeito da amizade que nos liga. A parte boa do que pode surgir nessas páginas definitivamente deve ser creditada, em grande parte, a eles. Ao meu orientador, amigo. Vagner Gonçalves da Silva não é responsável pelos possíveis equívocos que possam surgir de minhas palavras. Mas definitivamente o é pela confiança imediata de que essa pesquisa necessitava para ser um empreendimento possível. Esteve presente não só como conselheiro atento e perspicaz, mas como a agradável companhia que tornou menos sôfrega essa aventura. À Júlio Pessoa, meu companheiro, meu namorado, meu caso, meu amor, agradeço o apoio, a inteligência generosa, a dedicação de todas as horas e todo o aprendizado que estes oito anos na sua companhia me proporcionaram. Durante a pesquisa, contei com uma bolsa CAPES que tornou possível que ela chegasse ao fim. Mas meu maior agradecimento vai para a Universidade Pública, onde sempre estudei. Para pessoas que vieram de origem humilde, como eu, ela ainda é a grande esperança de mudança... se não de classe social, pelo menos de condições de acesso à educação de qualidade. Mil vivas para ela, na esperança de que continue sempre a existir. Por fim, agradeço a todas as pessoas de quem me aproximei durante a pesquisa. Muitas páginas seriam necessárias para citar uma a uma todas elas, portanto gostaria que se sentissem contempladas quando lhes digo que lhes sou muito grato por todo o exercício de desconstrução que me proporcionaram sempre que, de alguma forma, mostravam-me que não eram apenas “informantes”, mas valiosos interlocutores, donos de suas histórias e senhores de suas ações. Obrigado por me permitirem observá-los.
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De resto, falta dizer que todos as afirmações e informações presentes nesse texto são de minha total responsabilidade.
Ronaldo Trindade
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RESUMO
Essa pesquisa investiga algumas experiências de homossexualidade vividas em São Paulo nas últimas décadas do século XX. No decorrer desse período, uma série de transformações modificou antigas representações de homossexualidade e esse segmento social passa a ser significado de maneiras diversas, tanto internamente quanto externamente. A idéia de identidade homossexual se transformou e múltiplas classificações pautadas em estilos de vida diferenciados, se insinuaram no dia a dia dessas pessoas. Assim, é analisando o tipo de ocupação urbana que a homossexualidade promove, as relações com o mercado e com a mídia e ainda, pensando seus corpos e suas ações políticas que pretendo refletir sobre as configurações historicamente novas em que estão imersos os sujeitos que mantêm relações sexuais e afetivas com outros do mesmo sexo na cidade de São Paulo. Esse novo contexto fez da homossexualidade vivida em São Paulo nesse período um fenômeno historicamente novo e multifacetado.
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ABSTRACT
This research investigates some lived experiences of homosexuality in São Paulo in the last decades of 20th century. In elapsing of this period, a series of transformations modified old representations of homosexuality and this social segment passes to be meant in diverse ways, both internally and externally. The idea of homosexual identity was transformed and multiple classifications based on differentiated styles of life had insinuated into the everyday life of these people. Thus, it is analyzing the type of urban occupation that the homosexuality promotes, the relations with the market and the media and still, thinking its bodies and its politic actions that I intend to reflect about the historical new configurations where the citizens are immersed that keep sexual and affective relations with others of the same sex in the city of São Paulo. This new context made of the homosexuality lived in São Paulo in this period a new and multifaceted historical phenomenon.
PALAVRAS-CHAVE KEY WORDS: Homossexualidade – AIDS - sociabilidade homossexual - mercado homossexual - militância homossexual.
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SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................. 12 I - HOMOSSEXUALIDADE: AS DISPUTAS PELA REPRESENTAÇÃO.......21 1 – produzindo homossexualidades................................................................................. 21 2 - Os Estudos contemporâneos sobre homossexualidade em outros países 3 – A AIDS e a reafirmação da idéia de patologia.... 39
II – A “CIDADE COR DE ROSA”: APROPRIAÇÕES HOMOSSEXUAIS DA CIDADE DE SÃO PAULO ................................................................................. 49 1 – Os primeiros espaços ...................................................................................................50 2 – Estilos de vida e de homossexualidade....................................................................... 62 a) Os freqüentadores do centro............................................................................. 62 b) O povo dos Jardins ........................................................................................... 68 c) Os amantes da cena moderna......................................................................... 73 3 – Novos sujeitos na cena................................................................................................ 86 III – CONSUMINDO IDENTIDADES: MÍDIA E MERCADO HOMOSSEXUAL EM SÃO PAULO ...................................................................................................... 96 1 – O homossexual como consumidor........................................................................... 104 2 – Influências midiáticas ............................................................................................... 108 a) Homossexualidades escritas............................................................................ 108 b) A homossexualidade na televisão brasileira ............................................... 111 c) O mundo virtual .............................................................................................. 123 3 – O sexo gay e o mercado ............................................................................................. 127 a) a pegação tradicional ..................................................................................... 127 b) Novos espaços ................................................................................................ 135 c)A indústria pornográfica gay......................................................................... 143 d) O turismo GLS ............................................................................................. 147
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IV – PERFORMANCES CORPORAIS MODERNAS ............................. 152 1 – Reflexões sobre o corpo .......................................................................... 152 2 – Tipos e corpos .......................................................................................... 158 a) Barbie: masculinização e musculação ......................................... 158 b) No Mundo dos Ursos ..................................................................... 169 c) O Corpo Moderno .......................................................................... 156 3 - Quaquá: A virtualidade disciplinadora. .................................................. 185 V – APOTEOSE COLORIDA: A AVENTURA DA PARADA GAY PAULISTANA... ...........................................................................................................................192 1 – Homossexualidades públicas, direitos privados..................................................... 192 a) As lutas em torno da Parceria Civil Unificada.................................................. 193 b) Combate à homofobia: o assassinato de Edson Neris ....................................... 199 c) Os beijaços ............................................................................................................ 203 2 – A Parada do orgulho GLBT de São Paulo
.............................................. 207
3 – Significados da Parada Gay .....................................................................................220
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 225 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................. 230 ANEXOS......................................................................................................................... 241
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O típico gay a gente desaprendeu qual é. São tantos gays, tão atípicos, que o típico gay desapareceu e os gays ficaram só gays, para a sorte deles. Marcelo Pires Folha de São Paulo, 26 de dezembro de 1998.
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INTRODUÇÃO
Refletindo sobre as transformações experimentadas pela homossexualidade nos Estados Unidos, John D’Emilio, um acadêmico com longa história militante, diagnosticou: “Alguma coisa aconteceu na década de 1990, algo dramático e irreversível. Um grupo de pessoas por muito tempo considerado uma ameaça moral e assunto considerado previamente silenciado em discursos públicos foi transformado em matéria de direitos humanos, discutido em várias instituições da sociedade americana. Casamento, militarismo, parentalidade, mídia e arte, ódio, violência, política eleitoral, currículos escolares públicos, genética humana, religião: Nomear os assuntos e o papel dos gays e lésbicas passou a ser um assunto de debate. Durante a década de 1990, o mundo pareceu finalmente atentar para as reivindicações dos gays e lésbicas”. 1
Certamente, alguma coisa irreversível aconteceu. Vivemos um novo tempo no qual as práticas homossexuais subverteram a opacidade e se insinuaram no discurso público, dando sinais de sua existência nas mais diversas esferas do social. Ainda que a história da homossexualidade vivida nos Estados Unidos apresente elementos peculiares, o contexto de globalização das informações (em tempo real) lançou ecos dessa experiência também para outros países e as mudanças (irreversíveis), de que fala D’Emilio, podem ser observadas entre nós, brasileiros. A pesquisa aqui apresentada trata de algumas experiências vividas pelos homossexuais masculinos na cidade de São Paulo após o surgimento e a proliferação da AIDS. Esse recorte temporal e espacial permite observar algumas das contundentes transformações citadas acima, bem como refletir sobre os diálogos desses câmbios na produção de novas formas de identificação. O que me interessa mais diretamente é entender que significados foram produzidos pelos homens que se assumem e se assumiram publicamente homossexuais na metrópole paulista nesse período, que poderíamos classificar de modernidade tardia.2 Vale lembrar que o fato de ter restringido minha análise aos homossexuais masculinos têm a ver tanto com meu conhecimento mais profundo sobre esse universo como pela própria especificidade das lésbicas que, ao longo desse período, desenvolveram formas de sociabilidade
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D’EMILIO, 2002. Preface. P. ix. Tradução minha. Esse conceito será melhor discutido adiante.
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diferentes e se relacionaram com a sociedade de maneiras diversas, merecendo em si uma pesquisa mais densa do que o tempo me permitia. As modificações a que me reporto se refletem na (re)organização dos espaços de sociabilidade, ações políticas e acadêmicas, formas de consumo e também nas representações corporais, que fazem da homossexualidade vivida em São Paulo nesse período um fenômeno historicamente novo e multifacetado. Portanto, a sociedade paulistana no qual viveram os homossexuais aqui pesquisados pauta-se na mudança constante, rápida e permanente, resultando naquilo que Stuart (2002) chama de modernidade tardia. A chamada globalização propiciou um diálogo em tempo real com distintas experiências homoeróticas vividas em outros países e mostrou seus reflexos na diversificação das formas de classificações identitárias, modalidades sexuais e também nas diversas siglas que foram se constituindo internamente aos movimentos de militância. Aqui, uma primeira problemática da tese aparece: Se até algumas décadas atrás, os homossexuais foram apresentados pela bibliografia e percebido socialmente de forma quase que homogênea (os homossexuais) pretendo mostrar que a expressão “homossexualidade”, nos dias atuais, existe apenas como uma virtualidade, organizadora de um amplo grupo, mas que diz muito pouco sobre a multiplicidade de comportamentos e posturas observáveis internamente. Percebe-se, assim, uma
mudança na
maneira como a própria noção de identidade elaborada por artistas, acadêmicos e militantes até o início dos anos 80. Em momentos e lugares diferenciados, tento investigar tanto as transformações que levam de uma identidade única até a diversificação historicamente nova que se afirmou entre os homossexuais paulistanos das últimas décadas. Minhas palavras tratam de campos específico, mas que não estão separados no real. Ao contrário, eles só existem pelos efeitos múltiplos que causam um ao outro. Assim, quando me reporto às transformações trazidas pela AIDS, militância política, mercado ou mídia, intento mostrar que, nas transformações identitárias ocorridas em cada uma dessas esferas, residem algumas respostas para a pergunta principal dessa pesquisa: O que significa ser homossexual em São Paulo?
A Chegada ao Campo Pesquisar um segmento social e fazer parte dele não é, necessariamente, uma novidade na antropologia. Aliás, essa realidade parece ter se inserido no meio antropológico com intensidade
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a partir do processo de descolonização e da entrada em cena de novos sujeitos sociais. (Silva, 2000). Em torno da noção de identidade surgiram feministas, ativistas negros, índios e operários, reivindicando o direito de serem os responsáveis pela produção de representações sobre seu segmento social. Essa situação gerou debates instigantes no meio acadêmico pondo em cheque alguns cânones epistemológicos da disciplina antropológica e problematizaram a idéia do estranhamento como uma das chaves para uma boa leitura de um grupo social. Nos estados Unidos, essas questões geraram contundentes reflexões a respeito da autoridade etnográfica e sobre questões relativas à identidade, subjetividade e relevância do papel do antropólogo nesse processo. Os ecos dessa discussão foram ouvidos entre os homossexuais. No meio acadêmico, antropólogos gays e lésbicas passaram a escrever sobre sua inserção no campo e questionar em que medida suas orientações sexuais modificaram a relação com o grupo. A preocupação parece sempre tirar dos bastidores elementos importantes para a produção do texto etnográfico (Lewin & Leap, 1998). Posiciono-me a favor dessa premissa. Minha experiência como homossexual se deu previamente à minha vontade de investigar essa prática; aprendi a “falar a língua nativa” bem antes de tentar entendê-la. Todavia, mesmo sem pretensões, minha formação acadêmica foi modificando o meu modo de olhar para o mundo do qual eu era parte integrante. As divisões de classe, gênero e raça, os diferentes estilos de vida, as diferentes maneiras de ser homossexual eram coisas que eu observava, conhecia e comentava sobre elas com amigos, na maioria também homossexuais. Quando decidi escrever uma tese de doutorado sobre o assunto, foi primeiramente como uma forma de militância. Acreditava – e ainda hoje acredito de alguma forma – que devia fazer essa pesquisa e contribuir, de alguma forma, para desfazer a opacidade social ou as idéias distorcidas que eu cria existirem em relação à homossexualidade. Deixava-me descontente a existência de tão poucos trabalhos sobre o assunto quando, em uma cidade como São Paulo, a homossexualidade já era tão pública. Assim, me propus a investigar questões relativas a identidade homossexual através dos freqüentadores dos cinemas pornográficos – os cinemões – que existem na cidade, procurados por diversos tipos de homossexuais. Com esse projeto, fui aprovado no Programa de Doutorado em Antropologia Social da Universidade de São Paulo e iniciei minha pesquisa de campo.
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Contudo, as discussões realizadas com meu orientador e nas reuniões no NAU (Núcleo de Antropologia Urbana), do qual passei a fazer parte, levaram-me a ampliar minhas questões e meu espaço de observação. A pesquisa foi se dinamizando e exigindo um esforço maior de sistematização e entendimento do campo. O fato de fazer parte do grupo que eu estava pesquisando facilitou minha inserção em diversos espaços e me dei conta de que conhecia pessoas das mais diversas faixas etárias, raças, classes sociais e também de estilos de vida diversos. No entanto, nunca as havia olhado com o “imprescindível” estranhamento que eu procurei forjar, uma vez pesquisador. Acreditei que meus momentos com essas pessoas deviam se dividir entre quando eu estava sendo antropólogo e quando não. Certamente esse posicionamento me foi útil uma vez que, quando eu as informava que estavam sendo etnografadas – na gravação de uma entrevista ou numa inserção no campo –, elas assumiam seu papel no ritual e se comportavam como informantes, contribuindo inclusive com suas próprias reflexões sobre nosso grupo. Entretanto, eu continuava a etnografar meus interlocutores, meus amigos e outras pessoas mesmo na mesa de um bar em que não estava sendo antropólogo. Em alguns momentos eles também se tornaram informantes profissionais e faziam questão de me lembrar de coisas que eu, talvez, não tivesse percebido, mas que podiam ser úteis para minha tese. Dessa forma, me mantive sempre atento, por exemplo, a uma sauna nova ou a respeito de bares, boates e cinemas pornográficos que apareciam na cidade. Essa rede de informações se tornou vital, inclusive, para que a cidade fosse ganhando força dentro da pesquisa. Assim, torna-se impossível separar minha porção de homossexual, inserido em uma rede de relações sociais, do pesquisador que observa ou vive momentaneamente as experiências sociais de um segmento. O trabalho de campo não foi um esforço apenas meu e algumas das reflexões que ora apresento podem ter sido suscitadas em uma conversa com meus amigos, meus nativos. O que me diferenciava era apenas o fato de que eu havia apreendido um instrumental etnográfico que me orientaria na análise do que me foi possível observar. Desse ponto de vista, essas pessoas contribuíram não apenas para a elaboração do campo como também nas respostas às questões que eu vinha investigando. Em outras palavras, também são autores desse texto em alguma medida. Torna-se, portanto, imprescindível esclarecer que o fato de ser homossexual permitiu que eu tivesse mais fácil acesso a meu campo, que chegasse a diferentes interlocutores e que fosse sempre informado das mudanças e contradições vividas pelos homossexuais de São Paulo.
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Mesmo quando eu levantava e analisava a produção publicitária, não estava bem claro até onde aquilo era uma pesquisa ou o consumo de informações que sempre interessavam como nativo. Os constrangimentos que o fato de ser homossexual causaram à pesquisa também devem ser salientados. Inicialmente as pessoas falavam sempre com mais despojamento e poucas explicações, pois partiam do pressuposto que eu sabia exatamente a que se referiam. Eu nem sempre sabia e, mesmo quando achava que sim, me agarrei a muitos “por quês ?”. Independente se eu era ou não nativo, percepções sociais diferenciadas vieram à tona. Em cruzamentos sociológicos, passei a definir diferentes perfis para os meus interlocutores. Existem questões mais específicas como aquelas que se revelaram quando tentei dialogar com alguns interlocutores que, a princípio, viam também a possibilidade de uma paquera, ou que indiretamente sugeriram uma “troca”, fosse ela qual fosse. Alguns exigiam que eu tivesse um posicionamento político em meu texto, outros que eu ajudasse na organização de eventos, e outros ainda que os mantivesse informados sobre o que estava fazendo e me dispusesse a falar sobre o assunto em organizações políticas. Pareciam acreditar que eu era portador de uma maior sensibilidade por fazer parte do grupo que pesquisava. A pesquisa aqui apresentada deve ser, portanto, entendida a partir de uma sobreposição de identidades do pesquisador, que torna tênue a separação entre o homossexual, o militante e o antropólogo. A Pesquisa Minha busca se dividiu em algumas etapas. A primeira delas foi uma espécie de précampo, elaborado para a preparação do projeto e consistia na observação e interlocução com freqüentadores de cinemas pornográficos. Já nesse momento, falas discordantes em relação à homossexualidade foram percebidas. Quando o campo se amplia e passa a ter um recorte temporal e espacial maior, foi necessário reorganizar os métodos de coleta de informações e observação. Assim, para falar do passado, recorri à bibliografia existente, a fontes jornalísticas, ou disponíveis na Interent, e à memória de alguns interlocutores que viveram esses anos em São Paulo. Os critérios para a escolha dos homens que me falariam sobre a homossexualidade vivida em São Paulo no início dos anos 80 – acima de 40 anos - eram que fossem homossexuais, que tivessem experimentado socialmente essa homossexualidade ao longo desse período e oriundos de classes sociais diferenciadas. Através de minha própria rede social, elaborei inicialmente um
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grupo composto por oito interlocutores que me relataram suas experiências. Apesar de seguir um roteiro de perguntas, alguns deles falaram bem mais do que lhe foi perguntado; eles também achavam que algumas coisas deviam ser lembradas e discutidas, e sua disponibilidade em contar não deixava de ser um ato consciente e militante. Falando sobre a cidade e seus usos, sobre AIDS ou sobre seus corpos, meus interlocutores reliam suas experiências de forma crítica enquanto eu os ouvia. O mesmo modelo de abordagem foi mantido para refletir sobre outros momentos, mas, agora, as representações de homens mais jovens (rapazes de 16 a 40 anos) se somam aos dos mais velhos. Na comparação entre as conversas de homens moços e maduros, as transformações sociais ganham corpo, revelam mudanças nas percepções sociais e apontam seus mecanismos de produção. Assim, é possível perceber como esse novo contexto da homossexualidade se produziu no dia a dia dos sujeitos. Em outras palavras, as mudanças urbanas, mercadológicas e corporais foram, e ainda estão sendo, tecidas e experimentadas socialmente. Até os dois primeiros anos dessa pesquisa, muitas alterações de percurso ocorreram nas maneiras pelas quais eu buscaria respostas para as minhas questões, já que os passos de uma pesquisa não são tão lineares quanto achei que seriam. O campo insere novas questões a todos os dias que vão ganhando importância e se configurando como bons lugares de reflexão.(Silva, 2000) Muitas das entrevistas já haviam sido realizadas quando finalmente decidi onde me posicionaria e foi necessário voltar a meus interlocutores com outras questões e sair em busca de novas observações e entrevistas, facilitadas pela proximidade que eu mantinha com o grupo. No entanto, alguns novos elementos entravam na definição dos interlocutores, como seus tipos de corpos, seus estilos de vida e suas relações com as novas modalidades sexuais que foram surgindo com o passar do tempo. Entre esses interlocutores existem diversas intercessões e distanciamentos. Alguns são mais velhos, ursos, freqüentadores da região central e, também, militantes. Outros são mais jovens, malhados, freqüentadores dos Jardins e demais espaços fora do Centro. Vale lembrar que essas classificações não são estanques por que são experimentadas socialmente por indivíduos reais, que se movimentam no interior dessa trama. Minha tarefa foi observar essas intercessões e distanciamentos e perceber suas implicações para a constituição de formas de identificação. Ao longo de toda pesquisa, fiquei atento às leituras sociais da homossexualidade produzidas tanto por uma mídia interna ao grupo – publicações, filmes, sites, etc. – quanto por
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leituras de fora. Assim, pesquisei os arquivos jornalísticos do jornal Folha de São Paulo dos últimos vinte anos (e mais modestamente em outros periódicos) e sempre que me defrontava com uma notícia a respeito do meu tema em um jornal, revista ou telenovela, dedicava uma certa atenção. Isso me rendeu não apenas muitas horas de leitura e observação, como também de acúmulo de material impresso e virtual. Alguns desses recortes e “textos salvos”, insinuam-se ao longo da tese como referência, textual ou iconográfica. A produção de uma etnografia, ou pelo menos a que escolhi fazer, se baseia na interpretação de significados. Para tanto é preciso sempre fazer uma “leitura” pormenorizada das fontes colhidas no campo e da bibliografia sobre o tema. Mas essa passagem do campo ao texto encerra alguns problemas que devem ser salientados. O primeiro deles é a relação estabelecida com a história. Com base nas observações de Clifford (1998), percebi que a idéia de que o antropólogo consegue ler as experiências do grupo pesquisado é frágil, pois, para que isso seja possível essa realidade deve ser “congelada” e lida como um grande quadro, pleno de recorrências, sinais diacríticos, estilos de vida, contradições. Mas a historicidade trai essa leitura organizada da vida social, rica em câmbios que se produzem a cada momento e em todas as suas esferas. Minha formação de historiador parecia me lembrar disso sempre, deixando minhas aspirações antropológicas comprometidas. A fronteira entre a história e a antropologia ainda são bastante problemáticas e se tornaram um campo de contundentes discussões em ambas as disciplinas3. A saída que encontrei para esse problema foi tentar fazer uma leitura das mudanças históricas. Assim, tenho em mente que uma boate que abriu em algum momento se transformou na preferida dos homossexuais de determinado publico alvo porque passou a oferecer novos 3
Sobre esta discussão ver, dentre outras obras: BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. Lisboa. S.d.; BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico. Vol.I e II. Lisboa. 1983. CHARTIER, Roger. “Crítica textual e história cultural: o texto e a voz, séculos XVI-XVII”. Leitura: teoria e prática. Campinas: ALB; Porto Alegre: Mercado Aberto, n. 30, dez., 1997; CHARTIER, Roger. A História Cultural, entre práticas e representações. Rio de Janeiro/Lisboa: DIFEL/Bertrand, 1985; CHARTIER, Roger. O mundo como Representação. Estudos Avançados. São Paulo, v.11, nº5, p.173-91, 1991; DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette; mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986; GEERTZ, Clifford. Tras los hechos: dos países, cuatro décadas y un antropólogo. Barcelona: Paidós, 1996; LÉVI-STRAUSS, Claude. “Raça e História”. In: Raça e Ciência. Vol. 1, de Juan Comas et al. São Paulo, Editora Perspectiva, 1970; MARCUS, George & FISHER, Michael. Anthropology as cultural critique. Chicago: The University of Chicago Press, 1986; SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990; SAHLINS, Marshall. Other Times, Other Customs: The Anthropology of History. in: American Anthropologist, USA. 85, 1983.
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atrativos (música, shows, gogo boys, modalidades sexuais), mas que pode deixar se ser a melhor a qualquer momento. Pode acontecer também dessa casa ser a melhor alternativa naquele dia, ou naquela festa específica, mas que no dia seguinte a procura será por uma outra boate. A despeito de todas essas transformações, só possíveis de notar através da observação atenta, procurei perceber recorrências do tipo: as transformações no erotismo, no consumo dos espaços, nas visões que o grupo elabora sobre si, sobre seus corpos e sobre a sociedade à sua volta. Por fim, minha observação desse universo, como já mencionei, não possuía um momento específico. Eu observava na minha casa, na rua, na faculdade, na tv, no cinema, na Internet, nas saídas informais com meus amigos, nas idas programadas a alguns espaços. Portanto, a maioria das conclusões a que cheguei não se reduz a um tempo de campo e qualquer afirmação que apareça nesse texto resultou de uma tentativa de estranhamento, mas não de distanciamento. A tese está dividida em capítulos que procuram salientar os meios pelos quais a homossexualidade é gestada, se afirma e se ressignifica ao longo do século XX e, mais especificamente no período proposto. Dessa forma, no primeiro deles – “Homossexualidade: disputas pela representação” – reflito sobre a produção do conhecimento acerca da homossexualidade, mais especificamente sobre os saberes acadêmico e social, para demonstrar que as representações de homossexualidade possuem uma história que lhes dá sentido. Logo, podemos perceber como, a partir de meados do século XX, a homossexualidade passou a ser mais falada, discutida e vivida. Em outras palavras, ela se tornou uma questão mais possível de ser discutida em diversas esferas e experimentada socialmente do que fora outrora. No capítulo seguinte - “A cidade cor de rosa” - elaboro uma história da ocupação da cidade de São Paulo pelos homossexuais através dos seus diversos espaços de sociabilidade, salientando, porém, as experiências diferenciadas envolvidas com essa ocupação. Uma vez salientados os meandros dessa história de visibilidade, o capítulo “Consumindo identidades”, ressalta os novos elementos presentes na afirmação da homossexualidade na metrópole paulistana. É o momento em que aponto como o mercado se insere na afirmação da moderna cultura gay e na produção de formas de identificação diversas internamente ao grupo e as transformações históricas que influenciam (e são influenciadas) pelas diversas mídias e pelo consumo.
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No próximo capítulo, o corpo aparece como um dos produtos e produtores desse novo contexto da homossexualidade. Na análise de alguns tipos ideais (barbies, ursos, modernos e quaquás), observáveis no campo ressalto mudanças/construções corporais e classificações relevantes para a reflexão sobre identidade. Vale lembrar que não se trata de fazer uma espécie de “bestiário”, como fizeram os médicos e juristas do passado, mas problematizar esses modelos corporais a partir de um sistema classificatório encontrado no próprio campo. A tese se encerra com o capítulo sobre a Parada do Orgulho GLBT de São Paulo – “A apoteose colorida” – e minha intenção nesse momento será tanto elaborar um histórico das experiências que levaram à eclosão do maior movimento homossexual da história do país, realizado hoje na grande maioria das capitais brasileiras. Chamo a atenção para as lutas por direitos privados, o combate à homofobia e os movimentos que reivindicavam aceitação para a homossexualidade em lugares onde ela, até pouco tempo, não era permitida.
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Cap I
HOMOSSEXUALIDADE: As disputas pela representação 1 – Produzindo homossexualidades Entre o limiar do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a sexualidade se transformou num objeto privilegiado do olhar de cientistas, religiosos, psiquiatras, antropólogos, educadores, passando a se constituir, efetivamente, num “problema”. Assim, ela tem sido alvo de descrições, reflexões, explicações, assepsia e normatização, observada dos mais diversos pontos de vista. (LOURO, 2001). Como desdobramento do dispositivo “sexualidade”, a idéia de “homossexualidade” aparece então como uma classificação médica tão poderosamente institída que criaria socialmente sujeitos específicos (FOUCAULT, 1977). Uma alteridade. Mas, se no período citado, os discursos analíticos sobre o prazer se produziam principalmente pelo olhar medicalizante, novos saberes passariam a disputar as explicações sobre a sexualidade nas décadas futuras. Dessa forma na década de 50 do século passado, o sociólogo Fábio José Barbosa da Silva, ao concluir sua graduação, iniciou uma pesquisa que se transformaria em sua monografia de especialização sobre o “homossexualismo” na cidade de São Paulo. O trabalho foi realizado sob a orientação - e sugestão - de Florestan Fernandes. Como relatou Barbosa da Silva em nossa interlocução: “Quando eu propus de fazer a especialização, Florestan voltou a esse trabalho (um texto escrito sobre homossexualidade, ainda na graduação) e perguntou: Porque você não faz uma pesquisa real? Isso não existe; seria um ótimo trabalho de especialização. Quando ele me ofereceu essa oportunidade, eu resolvi aceitar.”4
Esse alvitre não era meramente especulativo. A proximidade entre Barbosa da Silva e Florestan Fernandes permitia que um conhecesse bem o mundo em que o outro estava inserido. Fernandes sabia que Barbosa da Silva possuía muitos amigos homossexuais e que seria um sujeito privilegiado para adentrar esse universo – do qual, em algum grau, já fazia parte – e traduzi-lo não mais pela ótica médica, jurídica ou psiquiátrica. Assim, através dessas pioneiras 4
Entrevista com Fábio Barbosa da Silva, 13 de junho de 2003.
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investigações, a homossexualidade foi, pela primeira vez, o tema principal de uma análise sociológica que a classificava como um grupo minoritário dentro da sociedade mais ampla. O interesse sociológico, na Faculdade de Filosofia, enveredava para uma sociologia moderna. Logo, exposto às influências dos cientistas sociais da Escola de Chicago, Fábio Barbosa da Silva testou em São Paulo, principalmente nas ruas centrais, os conceitos da sociologia urbana aplicados nos estudos norte-americanos: a pesquisa foi feita num esquema de “bola de neve”, no qual, teoricamente, se constrói uma tabela em que se distribui as perspectivas teóricas mais significantes como, por exemplo, política, economia, o meio social e a cultura. Especificava-se o número total de casos para a identificação e se construía uma diversidade suficiente para que todas as diferenças pudessem ser evidenciadas nessas categorias. Através de um indivíduo, pretendia chegar a mais três ou quatro outros.(BARBOSA DA SILVA, 1958) Seu trabalho não estava dirigido a um indivíduo, mas a uma comunidade social, idéia absorvida dos estudos de comunidades - realizados na época por intelectuais como Emilio Willens - e que eram pontos focais para a antropologia do período. Para tanto, se preocupou com a sociabilidade, organização, mobilidade, economia, educação, sexo e idade; categorias formais que comporiam uma comunidade. “Eu transferi tudo isso para uma comunidade potencial de homossexuais” 5, lembra Barbosa da Silva. No que se refere à escolha de seus interlocutores, o autor assinala que havia uma diversidade evidente no grupo, que ia dos homossexuais mais afeminados, e sempre passivos nas relações sexuais, até os prostitutos, tomados como homens heterossexuais e que cobravam das bichas por favores sexuais. “O meu interesse não foi me localizar nesses extremos. Existem na comunidade homossexual, como em outras comunidades, indivíduos marginais. Meu interesse foi me focalizar no meio termo”. 6 O ponto principal para encontros dos homossexuais - a confluência das avenidas Ipiranga e São João. Ali, verificou a existências de bares, cinemas, banheiros e praças em que se desenvolviam diversos tipos de sociabilidade entre homens que buscavam outros para interações afetivas e sexuais. Pelas suas descrições, não era difícil para alguém, minimamente informado sobre os códigos desse universo, encontrar interlocutores para uma pesquisa. Essa facilidade
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aumentava mais ainda quando se possuíam amigos homossexuais (de classe média) que, inicialmente, informariam sobre os espaços e os tipos de relações neles desenvolvidos. “No meio em que eu vivia, homossexualidade era uma coisa diferente, mas não completamente negativa. Era um ambiente de intelectuais, principalmente da Faculdade de Filosofia, artistas plásticos, músicos, principalmente instrumentais e gente da alta burguesia. São Paulo era uma cidade com uma elite relativamente pequena, com uma estrutura de classe piramidal. O gueto era muito pequeno e todo mundo se conhecia e, no meu círculo, também havia homossexuais. Havia uma liberdade maior para os homossexuais dessas classes”. 7
A existências de redes privadas de sociabilidade dos homossexuais das classes média e alta, principalmente ligados ao mundo artístico e acadêmico, funcionavam como redes de trocas de informações que facilitavam, a um sociólogo interessado, o acesso a esse mundo. Assim, ao contrário do que se poderia supor, a inserção no campo foi relativamente fácil. Em suas palavras: “Eu tive uma porcentagem de recusa muito pequena. A maioria dos meus sujeitos estava interessada em fazer alguma coisa mais sólida sobre a homossexualidade (...) então havia um interesse quase que pessoal para a participação. Mas havia um lado negativo porque, devido ao interesse em participar, as opiniões tendem a ser mais positivas”.8
Pelo que se percebe, as pessoas que se identificavam como homossexuais e que serviram de suporte para as reflexões de Barbosa da Silva acreditavam, de alguma forma, que elaborar uma pesquisa sobre seu modo de vida poderia vir de alguma maneira para tornar mais fáceis suas experiências. Oriundas da classe média paulistana, e tendo tido acesso a uma educação mais elaborada, viam com olhar positivado a intenção de uma pesquisa sociológica sobre o tema. Com a incorporação sociológica da homossexualidade, promovida por Barbosa da Silva, novos saberes passam a ser produzidos sobre os homossexuais. Contudo, como minoria, a idéia de uma “identidade” já pode ser vislumbrada: “Essa forma diferente do homossexual ver os objetos sociais para os quais há uma avaliação estandardizada pelo grupo majoritário pode ser caracterizada como uma ‘visão privada’ de cultura desenvolvida pela minoria. Nesses termos é claro que ela não pode ser compreendida meramente como uma desintegração ou desorganização da cultura, ela é organizada e consistente, podendo mesmo ser altamente sistemática. A situação, no entanto, provoca tensões emocionais no indivíduo (principalmente para os homossexuais dissimulados) porque nas relações formais que estabelece com a sociedade mais ampla ele pode concordar com os outros indivíduos com os quais interage no sentido das respostas a simples situações de vida, seguindo as normas padronizadas para as ações nesses contextos mas essa identidade de significados só existe até um certo ponto”. (BARBOSA DA SILVA, 1958. Grifo meu)
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Podemos perceber nessas palavras que o autor acredita que os homossexuais, em oposição à sociedade mais ampla, lêem o mundo à sua volta de forma diferenciada, e que isso lhes provocaria tensões emocionais. A noção de sujeito sociológico, que parece guiar Barbosa da Silva, tinha a ver com uma crescente complexidade (característica do mundo moderno) e a consciência de que e o “núcleo interior” (individualidade) do sujeito não era autônomo e autosuficiente, mas era formado na relação com a social (a sociedade mais ampla e se grupo) que, segundo Stuart Hall (2002, p.12), “mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos - a cultura - dos mundos que ele/ela habitava”. Mas é interessante notar que a palavra identidade aparece só no trecho acima citado do texto de Barbosa da Silva, e fala de uma “identidade de significados”. Assim, a identidade não era necessariamente uma questão chave para esse sociólogo naquele momento. Embora o termo identidade tenha sido popularizado na década de 50 por Erik Erickson (self)9, abordagens funcionalistas e estruturais desenvolvidas pelos cientistas sociais, na primeira metade do século XX, já aludiam a aspectos comuns que associavam, e davam sentidos, a grupos de pessoas em diferentes épocas e lugares. “De acordo com teorias marxistas, weberianas ou durkheimianas, definia-se a identidade de um grupo de acordo com o posicionamento de seus membros em relação ao antagonismo entre capital e trabalho, com a renda e status adquiridos, ou de acordo com representações coletivas socialmente consolidadas”. 10 Contudo, os conceitos tradicionais das ciências sociais falharam em explicar a pluralidade de movimentos sociais que eclodiram e os questionamentos que traziam no rastro de suas reivindicações. Assim, nos anos 60 a idéia de identidades coletivas ganhou o interesse de acadêmicos e militantes. “A partir da década de 60, uma série de estudos, entre os quais destaco os de Erving Goffman (1959), priorizou a investigação das interações ocorridas entre atores sociais na vida cotidiana e as construções resultantes destas interações. Desta nova perspectiva, passou-se a afirmar que indivíduos constroem suas identidades e que a manutenção destas identidades depende do processo resultante das interações mantidas por estes indivíduos no processo de compreensão de si próprios e de suas intervenções na realidade. Identidades coletivas passaram a ser compreendidas a partir não só de um agregado de interações sociais, mas também da razão político-estratégica de atores sociais. Nas últimas duas décadas, podemos considerar como sendo quase um senso comum a idéia de que identidades coletivas são construções políticas e sociais e que devem ser tratadas como tal. Afinal, se identidades são construídas, a que interesses elas servem e quem são aqueles excluídos do processo?”(SANTOS, 1998)
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Sobre esse autor ver Miller, P. Theories of Developmental Psychology. San Francisco: W.H. Freeman and Company, 1983 10 Ver SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. “Sobre a autonomia das novas identidades coletivas: alguns problemas teóricos”. Revista Brasileira de Ciências. Sociais., 1998, vol.13, no.38.
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A categoria identidade passou a ser adjetivada de acordo com as múltiplas apropriações dos movimentos sociais: identidade étnica, identidade de gênero, identidade juvenil, identidade do idoso, identidade social urbana, identidade de classe, etc. O processo de descolonização e as mudanças sociais ocorridas nos anos 60 também influenciaram diretamente na produção da idéia de identidade homossexual. Uma vez que, na tentativa de afirmarem-se socialmente, novos sujeitos sociais passaram a produzir representações próprias sobre suas experiências – e isso ter marcado a emergência dos movimentos raciais, operários e feministas – a homossexualidade também foi resgatada
por essa política de
visibilidade social e luta por direitos. Durante toda a década de 70 do século XX, vinham se desenrolando no meio artístico discussões e apresentações que colocavam em cheque a heterossexualidade normativa através da música, do teatro e das artes plásticas. Uma figura importante nesse contexto foi o cantor baiano Caetano Veloso que, ao lado de Gilberto Gil, mostrava performances atípicas para as rígidas definições de ser homem ou mulher, demasiado arraigadas na sociedade brasileira. “Ainda que repetisse explicitamente que não transava com homens, Caetano provocou furor quando, após voltar de Londres na década de 1970, subiu aos palcos brasileiros de bustiê e batom nos lábios, requebrando com trejeitos campy de Carmem Miranda.(...) Ainda mais provocador em seus shows posteriores – verdadeiros festivais de desmunhecação -, Caetano costumava beijar insistentemente na boca de cada um de seus músicos (e alguns deles eram muito atraentes!), diante do público que urrava de delírio. Seu cancioneiro, de extrema sensibilidade e poesia, chegou a manifestar indisfarçável fascínio erótico pela masculinidade”. (TREVISAN, 2002. p.286)
As atitudes de Caetano Veloso, mais do que militar em prol dos envolvimentos entre pessoas do mesmo sexo, revelavam a possibilidade de comportamentos que se situavam entre a polaridade macho/fêmea e suas insistentes afirmações de que não mantinha relações sexuais com homens pareciam incompatíveis com suas atitudes no palco. Verdadeira ou não sua afirmação – e isso não está em questão – o público consumia idéias questionadoras desse rígido binômio. Essa confrontação, quase que dúbia por não remeter a afirmações, foi explorada ao máximo pelo grupo teatral Dzi Croquetes. “Concomitante a esses gestos de contestação à esquerda e à direita, o princípio da década de 1970 viu surgir os Dzi Croquetes, um grupo teatral sui generis, que buscou embaralhar os padrões de gênero masculino e feminino, em suas apresentações. (...) Os Dzi Croquetes colocaram nos palcos brasileiros uma ambigüidade de virulência inédita entre nós.(...) Em seus espetáculos, homens de bigode e barba apresentavam-se com vestes femininas e cílios postiços, usando meias de futebol com sapatos de salto alto e sutiãs em peitos peludos. Assim, nem homens nem mulheres (ou exageradamente homens e mulheres), eles dançavam em cena e contavam piadas cheias de humor ambíguo, tentando
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furar o cerco repressivo desse período ditatorial em que a censura e a polícia mobilizavam-se ao menor movimento que destoassem dos parâmetros permitidos” (TREVISAN, 2002. p.287)
A exemplo de Caetano Veloso, o Dzi Croquetes minava a polaridade de gênero e mostrava que, pelo menos no plano das artes, ela era um maleável; seu humor e sua criatividade advinham dessa confusão entre os gêneros. Todavia, nem com Caetano nem com Dzi Croquetes tinha-se uma defesa aberta da homossexualidade, afinal esses artistas não se assumiam publicamente como tal. O primeiro artista sabidamente homossexual com grande destaque na mídia, e também bastante importante para as gravadoras devido a sua massiva vendagem, foi Ney Matogrosso, então vocalista do grupo Secos & Molhados – uma abreviação da sigla S&M- sado-masoquista. (Trevisan, 2002. p.289). Ney assumia-se homossexual em várias entrevistas e uma de suas músicas de maior sucesso fazia uma referência metafórica à vida de certos homossexuais que viviam nas grandes cidades; tratava-se da música “Vira”, que satirizava uma velha dança portuguesa com a letra: “vira, vira, vira homem, vira, vira, vira, vira lobisomem”: “O lobisomem, no caso, referia-se ironicamente a esses anônimos habitantes da grande cidade, que após a meia noite deixavam seu cansativo papel de abóboras para se transformar em atrevidas cinderelas; nas boates gueis, esse sentido ficou evidente: a canção se tornou quase um debochado hino dos homossexuais de então” (TREVISAN, 2002. p. 289)
Incorporado como ídolo dos homossexuais, principalmente os de classe média, com mais acesso ao “desbunde” que se observava no plano das artes, Ney Matogrosso dava mostras de certos comportamentos pouco normativos para um grande público. Mas apesar de seu carisma – que se repercutiu na massiva vendagem –, o cantor não deixou também de atrair manifestações de repúdio. “Desde Carmem Miranda, talvez, o Brasil não via surgir um ídolo de música popular tão fascinante e exótico. Atrevido como ninguém ousara antes dele, Ney teve que enfrentar muita agressão e insultos por onde andou”. (TREVISAN, 2002. p. 289) O teatro também era um local de vanguarda para questionamento de padrões morais; foi um espaço importante de escoamento de valores ligados à homossexualidade. Desde o universo marginal e da exploração da linguagem cotidiana e crua de Plínio Marcos – um bom exemplo disso é o personagem “Veludo”, o afeminado homossexual de “Navalha na Carne”- até uma peça que alcançou enorme sucesso e se manteve durante vários anos em cartaz - “Greta garbo, quem diria, acabou no Irajá”.
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Nessa peça, uma “bicha decadente”, se torna a protetora de um humilde rapaz, recém chegado do interior e o nome da peça se deve a mania da protagonista de pedir pra ser chamada de Greta Garbo durante o ato sexual. A construção da relação dos dois personagens é feita por uma linguagem recorrente na estereotipação da “bicha louca”, que festeja mesmo seus momentos mais doídos, subvertendo as angustias pelo riso.
“Talvez por ser a primeira a mostrar familiarmente esse ‘mundo exótico’, a encenação inicial de Greta Garbo ficou três anos ininterruptos em cartaz e depois voltou em várias montagens novas – até ser reencenada, em 1993, por Raul Cortez, que vinte anos antes já interpretara o protagonista homossexual”.(TREVISAN, 2002. p.293)
A homossexualidade ganhou destaque também no texto de Chico Buarque, “A Ópera do Malandro” na personagem da Travesti Geni, interpretada nos palcos pela também travesti Andréa di Maio, que mais tarde se tornaria proprietária da boate “Prohibidus”, na rua Amaral Gurgel. Localizada no centro da cidade, essa casa diferia das outras por proporcionar um espaço de sociabilidade para travestis e servia também de palcos para os shows de dublagem em que eram encenadas performances de transgêneros (travestis e transformistas) dublando conhecidas músicas de Vanusa a Glória Gaynor, cantoras cultuadas pelos homossexuais na época. Nas artes plásticas, a homossexualidade também começava a aparecer, principalmente com os trabalhos do pintor e retratista Darcy Penteado que, em 1973, realizou uma exposição em que, pela primeira vez, o nu masculino toma a cena e os meandros de seu erotismo são explorados. (TREVISAN 2002. p.293). Realizado por um homem, essas obras permitiam pensar a questão do erotismo de forma desprendida da questão de gênero e, nas mentes mais férteis, apontar a delineação de uma arte homoerótica. Atentos também á necessidade de divulgação de uma literatura homoerótica, alguns homossexuais se reuniram em 1977 n o apartamento de Darcy Penteado. Ali, fizeram uma reunião serviu de local de reunião para alguns intelectuais, jornalistas e artistas homossexuais paulistas e cariocas interessados em discutir a publicação de uma antologia de literatura homossexual latino-americana.11 Desde a década de 60, já era possível encontrar no Brasil publicações artesanais destinadas a um grupo de pessoas que se identificavam pelo desejo por pessoas do mesmo sexo. 11
Tratava-se, conforme Trevisa (2002), da obra Now the Volcano: A Anthology of Latin American Gay Fiction, organizada por Winston Leyland, fundador da Gay Sunshine Press, de São Francisco.
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Embora de restrita circulação, esses informativos ajudaram a produzir esse grupo, selecionando do repertório social elementos que sues criadores acreditavam ser constituinte do modo de vida dessas pessoas. Assim, corriqueiras fofocas e modestos eventos já apareciam ao lado de informações sobre concursos de miss, filmes indicados, dentre outros assuntos. Embora reflexo de experiências vividas, na medida em que selecionavam assuntos, os elaboradores desses “jornais” ajudavam a construir representações sobre os envolvimentos entre pessoas do mesmo sexo e um produziam um estilo de vida que seria então percebido como peculiar a esse grupo. Na medida em que escrevem, os sujeitos falantes organizam as notícias que relatam, já que os fatos não são entidades autônomas à espera de alguém que os revele. Mas, para além das modestas publicações dos anos anteriores, entre 1976 e 1979, passou a circular na capital paulista uma coluna diária cujos assuntos eram abertamente voltados para os homossexuais. Como lembra, Celso Curi, seu escritor: “Eu fui o primeiro jornalista da América Latina a ter uma coluna gay diária em um jornal de grande circulação. A coluna se chamava ‘Coluna do Meio’, durou três anos e era no jornal Ultima Hora, de São Paulo, criada por Samuel Wainer (...).”12 O universo que relatava em sua coluna tinha a ver diretamente com sua vida pessoal, pois desde a década de 1960, já freqüentava os espaços de sociabilidade de homossexuais em São Paulo. Segundo ele: “O nosso mundinho, naquela época, era menor ainda! (risos) Só existia a Galeria Metrópole, no centro de São Paulo, e era ali que tudo se passava. Eu estou falando do ano de 1966 ou 67, era completamente diferente do que é hoje, ninguém assumia absolutamente nada, todo mundo namorava menina e depois se encontrava”.13 A convivência nesses espaços e sua a circulação em meio a artistas e jornalistas o colocava como uma figura privilegiada para levar a homossexualidade para a grande imprensa. Os comentários em sua coluna evidenciavam um tipo de humor e certos comentários eram partes constitutivas dos espaços em que convivia, não necessariamente como observador. O próprio nome dessa coluna já era algo rico em significados e apontava para representações correntes no meio social a respeito dos envolvimentos entre pessoas do mesmo sexo. Era algo que estava em algum ponto entre as imagens de homem e de mulher conhecidas socialmente; figura ambígua, que não era nem uma coisa nem outra; estava no meio. Além disso,
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Entrevista concedida à revista G Magazine. Ano 6, edição 71. (pp44-46). São Paulo, Fractal edições. Entrevista concedida à revista G Magazine. Ano 6, edição 71. (pp44-46). São Paulo, Fractal edições.
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o título era também um trocadilho com uma atividade socialmente percebida como masculina – o futebol – pois, quando, na loteria esportiva, alguém se referia a um empate entre duas equipes, dizia-se que o resultado foi “coluna do meio”. A “Coluna do Meio” foi um espaço bastante audacioso para época, não apenas pelo seu pioneirismo em revelar para um grande público um estilo de vida homossexual, mas também porque o país vivia ainda os repressores anos de uma violenta ditadura militar. A despeito disso, a coluna de Curi era carregada de escracho, pontuada por frases cômicas recorrentes entre os homossexuais como “o melhor da festa é o garçom” e “não cuspa no prato que lhe comeu”. Além disso, o envolvimento sexual e afetivo entre homens era ressaltado tanto através do “correio elegante” – que possibilitava o encontro entre homens desejosos de um relacionamento – e o desejo homossexual era ainda explorado na seção “Colírio do Dia”, em que fotografias de homens atraentes – nacionais ou estrangeiros -, alguns pouco vestidos, aparecia sempre como um presente aos leitores. Mas a ousadia de Celso Curi não passaria incólume. O conteúdo de sua coluna, se por um lado fazia com que alguns homens que viviam em São Paulo se vissem refletidos naquelas linhas, a outros, ela causava repulsa e raiva. “Logo que a coluna saiu, começaram as ameaças. Recebi cartas escritas com sangue dizendo que eu seria assassinado, fui processado por atentado ao pudor e por promover a união de seres anormais, por causa da seção ‘Correio Elegante’. Apesar de tudo isso, só parei com a coluna porque eu estava cansado de receber tantas ameaças e processos e não ser ajudado nem pelo jornal em que eu trabalhava. O advogado que me defendeu nos processos era particular, para se ter uma idéia de como ninguém me apoiava. Mas foi uma iniciativa importante. Parei por cansaço, não por medo”.14
Se hoje, a indústria da “fofoca” conta com um corpo de advogados à espera de possíveis processos, não era essa a situação da “Coluna do Meio” e assumir os altos custos que uma derrota na justiça podia ocasionar era uma situação penosa. Além disso, as recorrentes ameaças, escritas com sangue, como ele faz questão de lembrar, podiam amedrontar qualquer pessoa, principalmente num período de nossa história em que pessoas desapareciam sem deixar pistas e nunca mais eram vistas, pelo menos com vida. Apesar do clima desconfortável que envolvia seu colunista, algumas pistas me levaram a crer que essa coluna era bastante lida. Embora eu não a tivesse em minhas memórias – pois não apenas não vivia em São Paulo nessa época, como também ainda não possuía idade para ser um 14
Texto online disponível no sitio http: //www2.uol.com.br/JC/_2000/0204/cc0204l.htm. Capturada em 21/10/2003.
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leitor de colunas jornalísticas – a coluna de Celso Curi foi lembrada na fala de vários de meus interlocutores que viveram aqueles anos em São Paulo. “Eu tinha um grupinho de amigos que se encontrava pelo menos umas duas vezes por semana. As vezes era na casa de um de nós, dos que moravam sozinhos, é claro, outras vezes era em algum bar ali no centro. A gente fazia de tudo, caçava, falava mal dos que na estavam ou comentava sobre algumas coisas engraçada. Lembro que a gente sempre lembrava de algo que o Celso escrevia; era muito engraçada a ‘coluna do meio’. No trabalho, a gente lia sempre com cuidado, tomando cuidado para que ninguém visse. Mas todo mundo lia” 15
Parece-me também que ela não estava circunscrita a uma classe social ou a um estilo de vida, pois, como parte de um jornal, poderia ser lida tanto por homossexuais assumidos – e estes sim poderiam transformar suas linhas em comentários entre seus grupos – como pelos “enrustidos”, que guardavam para si as informações ali encontradas. Vale lembrar também que, por meio do “correio elegante”, havia a possibilidade de que encontros secretos fossem realizados, antecipando um estilo de sociabilidade que surgiria futuramente através dos classificados das revistas eróticas, do class line ou da Internet. Os assuntos eram sempre carregados de um humor camp (GREEN, 2000) e, isso deve ter não apenas normatizado como também ampliado o imaginário social – afinal, era uma coluna aberta a qualquer leitor interessado – que ligava os homossexuais aos comportamentos cômicos que serão, no futuro, uma das representações desse segmento exploradas nos programas humorísticos e nas telenovelas. Alguns anos mais tarde, um grupo de intelectuais paulistanos e cariocas resolveu também abordar o assunto na imprensa, mas agora de forma mais comprometida. O objetivo dessa união era a criação de um jornal feito por homossexuais e, do ponto de vista da homossexualidade, discutir assuntos de temáticas diversas; que suas edições saíssem mensalmente e que conseguisse chegar às bancas de jornal de todas as capitais brasileiras. (TREVISAN, 2002. p338). Esse momento é particularmente importante pos, alguns acadêmicos que já haviam produzido ou que estavam elaborando pesquisas sobre a homossexualidade, juntam-se a artistas plásticos, cineastas e escritores com o objetivo de refletir sobre questões relativas à homossexualidade. Assim, fruto das idéias de personalidades como João Silvério Trevisan, Agnaldo Silva, Antônio Crisóstomo, Gasparino da Mata, João Antonio Mascarenhas, Francisco Bittencourt, Darcy Penteado e Jean Claude Bernardet, e com a colaboração de outros nomes 15
Texto online disponível no sitio http: //www2.uol.com.br/JC/_2000/0204/cc0204l.htm. Capturada em 21/10/2003.
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como Fernando Gabeira, James Green, Paulo Ottoni, Eduardo Dantas, Eduardo Mascarenhas, Edward McRae e Peter Fry, nascia em São Paulo o “Lampião de Esquina”. No ano de 1978, o jornal começou a circular em tamanho tablóide e impresso em preto e branco. Em suas páginas, podiam ser encontradas matérias e entrevistas com personalidades não necessariamente homossexuais, contos, críticas literárias, de teatro, cinema etc. Publicavam-se também as cartas dos leitores, evidenciando com elas o reconhecimento e a visibilidade por parte da comunidade. Em pequenas notas, o jornal denunciava atos preconceituosos da sociedade e, em muitas de suas edições, os editores atacavam diretamente as atitudes de discriminação e preconceito cometidas contra os homossexuais.16 Já no primeiro número, o jornal informava a que veio: “A idéia de publicar um jornal que, dentro da chamada imprensa alternativa, desse ênfase aos assuntos que esta considera ‘não-prioritários’ (...), mas um jornal homossexual, para quê? (...) nossa resposta é a seguinte: é preciso dizer não ao gueto e, em conseqüência, sair dele (...) e uma minoria, é elementar nos dias de hoje, precisa de voz (...) Para isso, estaremos mensalmente nas bancas do país, falando da atualidade e procurando esclarecer sobre a experiência homossexual em todos os campos da sociedade e da criatividade humana.” (LAMPIÃO, 1978:2)
A criação do Lampião de Esquina – que em seu segundo número foi abreviado apenas para Lampião – era uma tentativa clara de tornar visível a homossexualidade para além do grupo. Seus editores pareciam crer que havia um “ponto de vista” peculiar aos homossexuais a respeito de assuntos sociais. “(...) editado no Rio de Janeiro por jornalistas, intelectuais e artistas homossexuais que pretendiam originalmente lidar com a homossexualidade procurando forjar alianças com as demais ‘minorias’, ou seja, os negros, as feministas, os índios e o movimento ecológico. Embora este projeto de aliança não tenha tido o sucesso desejado, o jornal certamente foi de grande importância, na medida em que abordava sistematicamente, de forma positiva e não pejorativa, a questão homossexual nos seus aspectos políticos, existenciais e culturais”. (Fry; MacRae, 1983).
Embora a homossexualidade, como assunto corriqueiro, já tivesse espaço em um jornal de grande circulação17, não havia ainda um lugar para discussões mais sérias e que opinassem sobre questões de direitos e discriminações a que o segmento homossexual estava submetido. O
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Marcus Antônio Assis Lima. “Breve histórico da imprensa homossexual no Brasil”. Artigo capturado na URL http://bocc.ubi.pt/pag/lima-marcus-assis-IMPRENSA-HOMOSSEXUAL-BRASIL.html 17 O jornalista Celso Curi chegou a ser processado por escrever a coluna intitulada “Coluna do Meio” no jornal “A Ultima Hora”, que circulava em São Paulo. Nessa parte do jornal era possível encontrar fofocas e informações sobre o que acontecia no meio homossexual paulistano.
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“Lampião” tornou-se conhecido no meio intelectual Paulista e carioca e para ele escreveram figuras de destaque nesse cenário. Todavia, apesar de uma abertura política já apresentar seus primeiros sinais, os editores do jornal foram alvos de um inquérito policial, que os acusava de infringir a lei de imprensa e contrariar a moral e os bons costumes: “Apesar de estas ações policiais e judiciárias serem arquivadas depois de complicadíssimos trâmites legais, o fato é que tanto aquele jornalista quanto os editores do lampião passaram meses de intimidação e humilhação. Estes últimos foram salvos em parte pelo apoio do sindicato dos jornalistas, cujos advogados os defenderam. Seguramente era um sinal de que a homossexualidade deixava de ser um objeto apenas de escárnio, começando a ser reconhecida a legitimidade de suas reivindicações” (Fry ; MacRae, 1983).
Vendido nas bancas de muitas cidades brasileiras, esse jornal circulou até meados de 1980 vendendo, chegando a vender 15 mil exemplares, um número bastante alto quando comparado com os periódicos produzidos por outras “minorias”.
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Entre as questões diversas, referentes ao
cotidiano dos homossexuais, alguns artigos refletiam também sobre a necessidade de assumir-se socialmente como homossexual19, os eventos em que a homossexualidade era discutida20 e as movimentações políticas em que esse segmento se via envolvido.21 Além disso, alguns de seus editores e colaboradores eram críticos dos contornos que a homossexualidade assumia socialmente naqueles anos.22 A linguagem utilizada dependia muito do campo profissional a que estava ligado o editor ou colaborador, podendo adotar tanto perfis militante, jornalístico, sociológico ou psicanalítico. Mas parece que a febre que se formou entre os homossexuais após o lançamento do número zero do Lampião não o acompanhou ao longo de sua trajetória. Há de se lembrar que, nesse período, a homossexualidade ganhava espaços sociais até pouco inexistentes, tanto do ponto de vista espacial – através da diversificação dos espaços – como da mídia – o desbunde gay. Uma vez que deixou de ser novidade, as vendas foram caindo, reduzindo essa vendagem para 8 mil exemplares. E isso tinha implicações diretas na confecção e distribuição do jornal.
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Essas informações foram passadas pelo novelista Agnaldo Silva numa entrevista publicada no último número do Lampião. Viana, Francisco. “Morreu Lampião, o jornal das bichas”. 19 MASCARENHAS, João Antônio. “Assumir-se Por que?” 20 DANTAS, Eduardo. “Negros, mulheres, homossexuais e índios nos debates da USP: Felicidade também deve ser ampla e irrestrita” 21 TREVISAN, João Silvério. “Quem tem medo das ‘minorias’" e RIBONDI, Alexandre. “Pega pra capar em Brasília”. 22 BITTENCOURT, Fernando. “Deus nos livre do boom gay”
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Pode-se pensar também que, uma vez que esse periódico acabava sendo consumido, principalmente por homossexuais letrados, interessados em informar-se sobre assuntos caros à sua vida em sociedade, era difícil contar com uma vendagem massiva já que os letrados não eram os únicos e se quer a maioria desse segmento. Além disso, com o crescimento, o jornal também foi sendo alvo de disputas entre os editores do Rio e de São Paulo. Quando os editores desse jornal anunciaram, em seu último número, que o jornal chegava ao fim, o título do artigo foi “Morreu Lampião, o jornal das bichas”. “O jornal Lampião, a principal publicação gay do país, deixa de circular este mês. Morre após três anos de vida, por causa das divergências internas que separaram os colaboradores paulistas dos seus colegas cariocas e, por paradoxal que pareça, por falta de interesse dos próprios homossexuais que, nos últimos meses, não vinham comprando o jornal com a regularidade dos primeiros dois anos”.23
Os desentendimentos entre os editores foram explicados por Agnaldo Silva da seguinte forma: “As divergências internas têm ingredientes dos mais diversos: ciúmes, divergências pessoais, principalmente, discordâncias quanto à linha editorial do jornal. Seu idealizador, João Antônio Mascarenhas, estanceiro gaúcho, desligou-se do projeto logo nos primeiros números. Achava que o jornal devia ser só de artigos. (...) Esta discussão persistiu até o fim do jornal. O pessoal de São Paulo (Darcy Penteado, João Silvério Trevisan, Peter Fry) são basicamente articulistas. O João Silvestre, por exemplo, discordava do jornal por não considerá-lo de vanguarda. Achava que a única publicação de vanguarda que existe no país é um negócio chamado Barbárie, uma dissidência do jornal anarquista Inimigos do Rei, publicada na Bahia, que vende 500 exemplares. O Peter Fry deixou de colaborar com o jornal depois que publicamos pela primeira vez uma foto de homem nu (número 27).(...) Desde o número 30 que estávamos tentando botar a reportagem na dianteira dos articulistas. Fizemos trabalho sobre masturbação, prostituição, o carnaval e a repressão homossexual em Cuba... Foi a gota díágua. O pessoal de São Paulo discordou, quis sair e eu disse: “É melhor ninguém sair, a gente acaba o jornal. E assim Lampião morreu. Foi, na opinião de Aguinaldo, “uma experiência fascinante” 24
Outro grande ressentimento foi em relação ao público homossexual, que não teria atribuído a atenção necessária para a importância desse periódico:
O homossexual brasileiro é muito conservador, é uma mistura de burguês com monarquista. Ele quer casar e ter uma relação em casa do gênero a “mulher” faz a tarefa doméstica e o homem trabalha. Discrimina os próprios
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Ver: VIANA, Francisco. Morreu Lampião, o jornal das bichas. Texto capturado na URL http://www.webzip.com.br/planetagay/homo30.htm. 24 Ver: VIANA, Francisco. Morreu Lampião, o jornal das bichas. Texto capturado na URL http://www.webzip.com.br/planetagay/homo30.htm.
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homossexuais, preferindo transar com heterossexuais e, politicamente, ainda está muito desorganizado, dividindo-se e subdividindo-se em várias tendências, igualzinho aos partidos.” 25
Assim, Agnaldo Silva definia a o homossexual brasileiro; um ser ambíguo que, apesar dos esforços dos editores do Lampião em esclarecê-lo, continuava relutante a pensar-se como um homossexual moderno. Mas ao mesmo tempo em que criticava a postura de certos homossexuais – que insistiam em escolher para amantes homens heterossexuais – Agnaldo Silva dizia que o jornal era um porta voz das “bichas”, exatamente como eram chamados no passado aqueles homens que se entregavam às relações hierárquicas. Já na reta final, o novelista faz uma autocrítica que ajuda a entender que motivos influenciaram de forma definitiva no fim do Lampião. “O jornal mostrava a muitas bichas que elas não estavam sós. Nós temos aqui montes de cartas. No interior, o jornal era esperado com ansiedade. Infelizmente, com o tempo, o jornal começou a ser alvo de muitas críticas por parte dos próprios homossexuais, a não ter mais a penetração que tinha antes. Talvez porque nunca tenhamos conseguido fazer realmente um jornal popular e profissional. Com a crise econômica, todos os problemas se juntaram.”. 26
Em suas publicações, os editores do Lampião angariaram visibilidade e ajudaram a quebrar o silêncio social em relação à homossexualidade. Provendo seus leitores de auto-estima e informações relevantes para seu modo de vida, fortaleciam a idéia de alteridade. Foi pautado na crença da diferença que o primeiro grupo de militância homossexual se construiria na metrópole paulista. Comentando sobre o início do ativismo homossexual no Brasil, Louro afirma que: “O movimento de organização dos grupos homossexuais é, ainda, tímido; suas associações e reuniões suportam, quase sempre, a clandestinidade. Aos poucos, especialmente em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, um aparato cultural começa a surgir: revistas, artigos isolados em jornais, panfletos, teatro, arte. No Brasil, por essa época, a homossexualidade também começa a aparecer nas artes, na publicidade e no teatro. Alguns artistas apostam na ambigüidade sexual, tornando-a sua marca e, desta forma, perturbando, com suas performances, não apenas as platéias, mas toda a sociedade. A partir de 1975, emerge o Movimento de Libertação Homossexual no Brasil, do qual participam, entre outros, intelectuais exilados/as durante a ditadura militar e que traziam, de sua experiência no exterior, inquietações políticas feministas, sexuais, ecológicas e raciais que então circulavam internacionalmente.” (LOURO, 2001)
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Ver: VIANA, Francisco. Morreu Lampião, o jornal das bichas. Texto capturado na URL http://www.webzip.com.br/planetagay/homo30.htm. 26 Ver: VIANA, Francisco. Morreu Lampião, o jornal das bichas. Texto capturado na URL http://www.webzip.com.br/planetagay/homo30.htm.
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Uma vez colocada como questão social, abria-se um espaço para que as questões relativas à homossexualidade alcançassem um status político, tanto quanto as lutas de outras minorias sociológicas que compunham o cenário social da época. Claro que essa discussão era tanto reivindicada quanto consumida pela classe média, porém não se deve menosprezar o papel desse grupo social como formador de opinião. Junto à movimentação que se dava no meio artístico e com a efervescente vida homossexual nos bares e boates, um “sujeito homossexual”, com um modo de vida e demandas peculiares começava a se constituir. Nos Estados Unidos – um dos lugares de referências para a homossexualidade vivida em São Paulo - e em alguns países da Europa, a precoce organização de grupos ativistas teve um papel decisivo na produção da identidade homossexual, pelo menos no sentido político da expressão. Uma vez que as ações militantes haviam se dimensionado nos pós-guerra, modificando tanto a percepção social da homossexualidade quanto a própria auto-estima daqueles que se consideravam homossexuais, um novo contexto foi urdido. Alguns ativistas eram também pessoas ligadas às universidades e responsáveis por pioneiras tentativas de resgate de uma história para os seus “iguais”. Ainda que esse novo campo não tenha sido, inicialmente, bem aceito – e isso parece acontecer com muitas linhas de pesquisa que propõem um repensar de sedimentadas epistemologias – uma paixão permeava esses novos estudos e encorajava alguns pesquisadores a apostar na idéia. Vale lembrar que o próprio contexto das ciências humanas do período evidenciava tensões epistemológicas importantes. Os estudos históricos, em meados da década de 70 passaram por mudanças intensas promovidas pelos historiadores sociais que se voltavam cada vez mais para a abordagem do cotidiano das pessoas simples – vale lembrar das pesquisas realizadas por historiadores como E P Thompson (1987) e Natalie Z Davis (1987) -, gerando novas interpretações do passado. Nessas novas abordagens, foram “resgatados” os sujeitos negligenciados por uma história factual, ou excessivamente economicista, como parece ter sido o caso dos operários, negros (escravos), mulheres, crianças e jovens. Mas nenhum outro segmento foi tão caro à história da homossexualidade quanto os trabalhos desenvolvidos por teóricas feministas que pretendiam deslocar o olhar “masculino” que havia produzido o passado.27
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Ver LAURETIS, Teresa de. "Eccentric Subjects: Feminist Theory and Historical Consciousness", in Feminist Studies, 16(1), Spring 1990
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As pesquisas sobre mulheres, tanto históricas quanto sociológicas, tocavam em pontos mais delicados da produção do conhecimento. Influenciadas pelos escritos de Michel Foucault, tais pesquisas saíram em busca dos discursos que produziam a exclusão vivida no cotidiano por quem escapava à heteronormatividade. Dessa forma, a identidade de gênero e a heterossexualidade normativa passam a ser questionadas e criticadas em sua “naturalidade” e os contextos de produção desse tipo de idéia foram, e ainda o são, explorados de forma mais enfática. Para os homossexuais, essa discussão sugeriu um vasto campo de possibilidades. Tais idéias eram consumidas no Brasil principalmente pelas pessoas ligadas à academia, notadamente quando se tratava de questões de gênero. Contudo, alguns desses acadêmicos levaram suas reflexões para além dos muros da universidade, e muitas das idéias que apareceram no Lampião estavam, de alguma forma, imbuídas de inovadoras reflexões teóricas. Paralelas às ações do “Lampião” ocorreram, no ano de 1978, as reuniões de alguns indivíduos interessados em levar as discussões sobre homossexualidade para um plano político militante. Esse grupo embrionário era composto por pessoas oriundas da academia – principalmente estudantes -, profissionais liberais e jovens atores. “(...) o grupo era pequeno, e assim permaneceu durante quase um ano, indo servir de matriz para todos os demais que viriam depois. De fato, a partir daí, o Movimento de Liberação Homossexual no Brasil teria como espinha dorsal grupos que aglutinavam militantes um pouco à maneira dos clubes fechados de viados e lésbicas. Evidentemente, cada grupo procurava acentuar diferenças para ai encontrar sua identidade – elementos que podem ser considerados como sistemas de defesa frente ao ambiente hostil.” (TREVISAN, 2002. p.339)
Das reuniões informais, o grupo foi crescendo e se afirmando como um importante espaço de discussão para as questões vividas no dia a dia dessas pessoas e era com base nessas experiências cotidianas que se pensava elaborar estratégias de lutas políticas. Na verdade, o modelo de militância que se estava implementando era, de certa forma, tributário dos movimentos ativistas por direitos homossexuais que se organizaram nos Estados Unidos da América. A importância simbólica de Stonewall foi sentida nas grandes cidades americanas notadamente em São Francisco e Nova York -, onde um número substantivo de gays e lésbicas passaram a integrar as fileiras da militância por direitos homossexuais, afirmando um movimento forte e organizado. Embora se deva relativizar o poder de circulação das idéias internacionais nesse período, um de seus fundadores, o escritor João Silvério Trevisan, havia entrado em contato com essas lutas durante seu auto-exílio. Em nossa interlocução, o escritor lembra um pouco de sua história:
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“A minha trajetória no movimento homossexual começou fora do Brasil. Eu morei fora do Brasil por quase três anos, entre 73 e 76. Sai do Brasil por um exílio voluntário, em função da ditadura e o meu objetivo era a cidade de Berkley, na Califórnia, Estados Unidos, que na época era muito famosa pelas lutas estudantis; eu queria ver a queda do império Americano, então eu fui lá. Eu pensava repetir, à minha maneira, o gesto do Rimbauld que tinha ido a Paris para ver a queda de Paris através da comuna e, na verdade, eu não vi a queda do Império Americano, mas sofri uma série de contatos fundamentais pra mim no período. Fiz meus primeiros contatos com o movimento homossexual, movimento feminista, movimento negro e movimento ecológico, que foram absolutamente fundamentais na minha vida. Eu não participei diretamente do movimento homossexual nos Estados Unidos, mas era impossível, em estando lá, não sentir o clima de solidariedade daquele início do movimento homossexual americano. Eu estava totalmente rodeado de homossexuais que era uma coisa que me interessava. Eu já era um homossexual assumido nesse período então eu tive contato com a linguagem, com os temas discutidos, com os tipos de abordagens e eu participei de festas, de encontros, de reuniões, da parada gay de São Francisco, de piqueniques Gays em Berkley, Califórnia, que era considerada a cidade de ponta das discussões sociais do período, isso era em 76.”28
Viver na Califórnia num período de grande efervescência política, quando diversos segmentos organizavam-se e reivindicavam direitos sociais, fez com que Trevisan, em sua volta para o Brasil, sonhasse com a criação de um movimento. “Eu comecei em 76 e o meu sonho era pensar alguma coisa aqui no Brasil em função de um problema que eu tinha e que eu sempre vivi, um problema muito simples e muito duro: eu me sentia extremamente solitário por que eu não achava que o gueto era uma alternativa suficiente para aquilo que eu necessitava; então eu pretendia ter um contato um pouco menos superficial e um pouco mais significativo, do ponto de vista de transformação da minha própria vida como homossexual e, em 77, agora eu não me lembro, mas acho que em 77, eu fiz a primeira tentativa de um Grupo (...)”.29
Como se pode perceber, a insatisfação do escritor não era apenas em relação à opressão social a que estava submetida a homossexualidade. Em sua concepção, um movimento organizado teria a possibilidade de conscientização social e de convergência de pessoas insatisfeitas com as maneiras como as relações de homossexualidade vinham sendo experimentadas no “gueto”. Longe de lutar contra o sistema capitalista e suas formas de opressão, que parecia ser o principal objetivo dos grupos de esquerda da época, era a “condição” de homossexual que movia Trevisan. Diferentemente das congregações políticas de esquerda, nas quais uma política mais institucional e formas de resistência ao poder instituído eram discutidas, o que relevava eram questões relacionadas ao desejo e suas implicações quando vivido socialmente.
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João Silvério Trevisan, entrevistado em 14/02/2001. João Silvério Trevisan, entrevistado em 14/02/2001.
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“Já em nossas primeiras reuniões no grupo, que ainda não tinha um nome fixo, despontaram estilos e preocupações não muito comuns nos encontros de jovens esquerdistas da época. Os temas procuravam concentrar-se sobre os indivíduos ali presentes e suas experiências cotidianas enquanto homossexuais, assim como dúvidas, problemas e projetos, visando dessa maneira a atuar sobre a realidade sem começar pelo outro mas por nós próprios” (TREVISAN, 2002. p.339)
Embora já se constituindo como um importante espaço de convergência para indivíduos interessados em pensar sua homossexualidade na relação com a sociedade, esse grupo ainda não possuía a unidade que um nome poderia representar. Um importante passo para isso foi o debate público, realizado na faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, em 8 de fevereiro de 1979, do qual alguns integrantes do grupo participaram. O debate se deu de forma tensa; estudantes e militantes de esquerda que acreditavam numa luta maior – contra o capitalismo e suas esferas de poder – classificavam a luta dos homossexuais como uma luta menor. Mas, em meio às discordâncias, diversos homens e mulheres que assistiam ao debate pediram a palavra para falar de experiências de discriminação por que haviam passado ao longo de suas vidas. “Ao final das três horas de debate, nossas camisas empapadas de suor davam a sensação de que o movimento homossexual brasileiro acabava de conquistar o espaço que lhe era devido. Nossa luta estava finalmente na rua. Emocionados e nos beijando em público, já não sentíamos nem um pudor ideológico. (...) O resultado mais concreto do debate na USP foi uma surpreendente afluência de participantes no grupo que, a partir dali, consagrou-se definitivamente como Somos” – nome ‘expressivo, afirmativo, palindrômico, rico em semiótica e sem contra indicações’, como dizia um documento por nós publicado na época.”(TREVISAN, 2002. p. 344)”.
Os debates da USP emitiram poderosos ruídos na medida em que pontuaram a importância do movimento homossexual como um de seus interlocutores para pensar questões sociais, o que já havia acontecido com os movimentos de operários, negros e de mulheres. A inflamada discussão entre a platéia e os militantes também ajudou na elaboração de uma autoidentificação entre os que acreditavam na luta por questões relativas à homossexualidade. Fry e MacRae (1983) chegam a afirmar que essa “experiência catártica” na medida em que aumentou a confiança de seus participantes, influenciou a criação de outros grupos similares em São Paulo e em outras cidades brasileiras. Rapidamente, o número de freqüentadores chegou a uma média de 100 pessoas, demandando uma reorganização estrutural. O grupo foi subdividido em bases moleculares - os chamados “grupos de identificação” - nos quais as idéias eram discutidas e compartilhadas de forma sistematizada. As reuniões informais foram determinantes para que alguém passasse a
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fazer parte do grupo, pois era ali que elas se conheciam e se informavam mutuamente sobre suas experiências. Na Semana Santa de 1980, os grupos que haviam se formado se concentraram na cidade de São Paulo para refletir sobre as questões relativas ao movimento, quais sejam a “identidade homossexual”, a relação do movimento com os partidos políticos e possíveis formas de atuação e organização. Desde a monografia escrita por Barbosa da Silva, em 1958, até esse momento, um mundo de diferenças já havia se instaurado. Nesse sentido, podemos observar “deslocamentos” identitários que diferenciam o contexto abordado por esse sociólogo das movimentações políticas e sociais da homossexualidade no final dos anos 70. Diversas contestações sociais do poder se insinuaram na sociedade das mais diversas formas e os questionamentos da heteronormatividade produzidos tanto no plano acadêmico como no mundo artístico e político, abriram espaço para que um ativismo homossexual se formasse em São Paulo e que uma identidade cultural fosse perseguida, assumida e promovida para e pelos homossexuais. “O fato de que projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’ contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíeis.” (HALL, 2002. pp12-13)
O “Grupo Somos de Afirmação Homossexual”, na medida em que estabeleceu para pessoas diferentes uma identidade (homossexual) inseriu a homossexualidade brasileira na política de identidades.
2 - A AIDS E A REAFIRMAÇÃO DA IDÉIA DE PATOLOGIA Em agosto de 1981, a Primeira Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras reuniu lideranças sindicais do país inteiro na tentativa de organizar o movimento sindical em âmbito nacional. Dois anos depois, era criada a CUT, que mesmo não tendo sido reconhecida oficialmente no início, representava um número considerável de trabalhadores. Essa organização
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só foi possível pelo clima de abertura política que se disseminava no país. Dois anos antes foi assinada a Lei da Anistia, que suspendia as penalidades impostas a todos que se opunham às arbitrariedades do período de ditadura. Nesse mesmo ano chegou ao fim o bipartidarismo e, no início da década de oitenta, vários grupos que reivindicavam direitos sociais e visibilidade tinham, mais do que nos últimos 20 anos, a possibilidade de se fazer ver e ouvir por um número maior de pessoas. Entre a multidão que reivindicava visibilidade e cidadania, estavam os grupos de militância homossexual, protestando contra a violência e o preconceito de que eram vítimas as pessoas que se envolviam sexualmente com outras do mesmo sexo.(MACRAE, 1990) O Movimento das Diretas levou um número muito grande de pessoas às ruas e as palavras de ordem falavam da necessidade de democracia, de liberdade e de justiça. O clima político e social era muito oportuno para os movimentos populares. O fortalecimento do Partido dos Trabalhadores foi um bom exemplo disso. Nascido das greves do ABC em 1979, esse partido foi crescendo e se constituindo na esperança de mudanças sociais profundas nas estruturas da sociedade. “Refletindo esta maior visibilidade, até alguns partidos políticos de oposição, como o PT e o PMDB, têm tomado posições favoráveis aos direitos humanos dos homossexuais. Durante a campanha eleitoral de 1982, o candidato a governador de São Paulo pelo PT, Lula, fez uma declaração explicitamente manifestando a posição de seu partido de que a homossexualidade não deve ser tratada nem como crime nem como doença. Alguns outros candidatos daqueles dois partidos chegaram a dar uma ênfase ainda maior ao tema, produzindo, por exemplo, panfletos essencialmente concebidos para serem distribuídos em lugares de freqüência marcadamente homossexual”. (FRY E MACRAE, 1983)
Mas, a despeito de todo esse clima de abertura social e política que trazia visibilidade para os homossexuais urbanos de São Paulo, uma tempestade começava a emitir seus primeiros trovões nos países do hemisfério norte. O aparecimento de uma doença nos Estados Unidos causou um verdadeiro terror na comunidade gay. Num contexto de dúvidas e de medo, iniciou-se para o mundo a era AIDS. O Center of Disease Control and prevention (CDC), dos Estados Unidos, publicou em junho de 1981 no Morbidity and Mortality Weekly Report um artigo relatando cinco casos de pneumocystis carini entre jovens identificados como homossexuais na cidade de Los Angeles, dos quais, dois já haviam falecido. O mito do Paciente Zero, o primeiro caso identificado, foi útil à produção das primeiras investigações sobre a etiologia da doença que fatalmente aliaram sua transmissão por via sexual entre homens que mantinham relações sexuais com outros homens.
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Assim, como os primeiros registros da doença, foram percebidos entre homossexuais masculinos, não tardou para que uma íntima associação entre essa nova moléstia e a homossexualidade fosse estabelecida. Uma vez rotulada de "peste gay", o estudo para o conhecimento dessa enfermidade foi realizado primeiramente entre os homens que se envolviam sexualmente com outros homens30. Vale lembrar que antes que fosse cunhada a sigla AIDS (Acquired Imunne Deficiency Syndrome) foi proposta a sigla GRID (Gay-Related Immune Deficiency)31. Isso causou conflitos sociais sérios para os homossexuais urbanos já que as informações, muitas vezes distorcidas, sobre essa nova síndrome, foram difundidas em massa pela mídia. A ciência, ao sugerir uma ligação umbilical entre a homossexualidade e uma doença, tão mortal quanto desconhecida, impulsionou julgamentos morais e religiosos, além de ressuscitar muito dos argumentos que ligavam a experiência dos homossexuais à patologia. Em certas cidades americanas, alguns órgãos públicos chegaram a intervir no cotidiano da vida gay, adotando medidas como o fechamento de saunas, boates e bares que supostamente seriam os espaços privilegiados de acometimento da doença. (ROTELLO, 1998). O cientificismo dos anos de 1980 trouxe dessa forma o clima de patologização da homossexualidade, criticando as abordagens culturais. Revia-se, através das palavras da medicina, as sugestões dos recentes teóricos da homossexualidade de que ela seria uma orientação elaborada ao longo da experiência social. Para os arautos da medicina, ela teria origem orgânica, possivelmente inscrita no código genético das pessoas. “Em 1991, um cientista chegou a localizar a homossexualidade no hipotálamo, enquanto, em 1993, outro pesquisador pretendeu isolar um pretenso cromossomo da homossexualidade e outros localizaram-na numa certa área desenvolvida no cérebro de homossexuais mortos por AIDS, ou ainda pela ação de determinadas enzimas ou hormônios.”32 Assim, ainda nos primeiros momentos da AIDS, o saber médico volta a conquistar importância social e legitimidade na produção do conhecimento sobre a homossexualidade
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Singer, M. “AIDS and the health crisis of the U.S. urban poor; the perspectival of the critical medical anthropolgy.” Social Science and Medicine, vol. 39, n.07, p.931-948, 1994. 31 Bastos, Galvão, Pedrosa e Parker . A AIDS no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará: 1994. 32 Francisco Carlos Teixeira da Silva. “Homossexualidade e revolta”. Texto capturado na URLhttp://www.ifcs.ufrj.br/tempo/dcpd21.html
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Contudo, tais teorias careciam de uma base empírica confiável e segundo a revista Science, eram uma espécie de reducionismo neurogenético. Assim, os genes ou disfunções hormonais explicariam tudo, desprezando a importância da cultura e retornando a uma biologização da vida humana.33 Foi nesse clima de “embate de saberes” que a AIDS chegou ao Brasil. Mas vale lembrar que, mesmo antes que os primeiros casos fossem confirmados aqui, a mídia já difundia informações sobre a estranha enfermidade que vinha matando homossexuais masculinos nos Estados Unidos.34 Um bom exemplo disso foi que, em março de 1981, o Jornal do Brasil publicou uma das primeiras matérias sobre AIDS em terras brasileiras sob o título de “Câncer Gay em homossexuais é pesquisado nos Estados Unidos”. (GALVÃO, 2002). Embora o espraiamento silente do vírus já viesse ocorrendo desde a década de 70, foi somente por volta de 1982 que os primeiros casos foram registrados no Brasil. Sabe-se hoje, pelo Boletim Epidemiológico AIDS de abril/junho de 2002, que o primeiro caso, e conseqüente óbito em virtude dessa síndrome, ocorreu no Brasil no ano de 1980. Todavia, esses números são constantemente revistos em virtude de novas descobertas. Como já havia ocorrido nos Estados Unidos, as primeiras vítimas eram homens que apresentavam comportamentos classificados como homossexuais; homens do Rio de Janeiro e de São Paulo que viajavam com freqüência para os Estados Unidos e outros países da Europa onde, segundo os jornalistas, teriam sido acometidos pela doença.35 Informados pelas afirmações médicas, os homossexuais que viviam seus desejos nas grandes cidades brasileiras se viram diante de uma pesada crítica a seus comportamentos. Como, pelo menos nos primeiros anos, sabia-se pouco sobre a etiologia da doença, os envolvimentos sexuais com vários parceiros e a freqüência a locais que propiciavam sexo fácil foram rigidamente criticados. Pelo menos no meio urbano, os homossexuais foram postos sob intensa vigilância. Uma vez descobertas as formas de infecção, os médicos indicavam que os homossexuais se tornassem monogâmicos (redução de parceiros), usassem preservativos nas suas relações sexuais que envolvessem penetração ou felação, além de masturbações, individuais ou mútuas. 33
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Francisco Carlos Teixeira da Silva. “Homossexualidade e revolta”. Texto capturado na URL http://www.ifcs.ufrj.br/tempo/dcpd21.html 34 DANIEL, Herbert e PARKER. AIDS, a terceira epidemia: Ensaio e tentativas. São Paulo, Iglu: 1990 e DANIEL, Herbert “A síndrome do preconceito” in Comunicações do ISER, 1985, vol. 4, pp. 48-56. 35 DANIEL, Herbert e PARKER. AIDS, a terceira epidemia: Ensaio e tentativas. São Paulo, Iglu: 1990
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As recomendações médicas se chocavam com a própria história da homossexualidade vivida em São Paulo, que, em sua afirmação social tinha na liberdade sexual como elemento muito importante. Durante a revolução sexual dos anos 60, e a maior liberdade sexual principalmente entre as mulheres, o amor foi deixando de ser fator primordial para o sexo. Entre os homossexuais, essa idéia impulsionou as caças nas ruas e parques, as idas às saunas, cinemas pornográficos e banheiros públicos, constituindo, nesse processo trocas culturais e apropriações urbanas que conduziriam às lutas pela identidade homossexual. A prática sexual, ainda que também se pensasse em uniões afetivas, eram não apenas reivindicadas no dia a dia como também incorporadas como bandeiras de luta pelos ativistas e acadêmicos. Com a AIDS, os homossexuais foram classificados pelos médicos como “grupo de risco”, assim como prostitutas e usuários de drogas injetáveis. O surgimento da AIDS levou a transformações nas estruturas sociais em várias instâncias. Para os primeiros casos, a situação de atendimento era bastante complicada. Além de pouco se saber como lidar com os acometidos, não havia ainda uma estrutura montada pra dar conta de uma doença como essa e suas demandas e isso se refletia na escassez de recursos e hospitais para a internação dos pacientes. O Estado não dispunha de leitos para internar o crescente número de doentes e, frente a essa realidade, os órgãos responsáveis pela saúde pública estabeleceram uma política de atendimento ambulatorial, que proporcionaria condições para que os pacientes fossem atendidos em casa, e acabem morrendo também em casa. (CAMARGO, 1994. p. 40) Com base nesse quadro, montaram-se ambulatórios de custos acessíveis e uma equipe qualificada para proporcionar aos pacientes um bom atendimento em suas necessidades físicas e psicológicas. Para os pacientes, além do pânico, do medo e da vergonha de conviver com a doença em seus primeiros anos, havia ainda a desconfortante realidade falta de infra-estrutura que lhes garantisse uma sobrevida mais digna. Uma outra esfera dessa batalha pode ser percebida nas ações de elementos da sociedade civil, que se movimentavam em prol de melhores condições de atendimento e serviços de apoio a pessoas acometidas pela AIDS. Em 1983, o grupo de militância homossexual Outra Coisa inicia, em São Paulo, um dos primeiros trabalhos comunitários, distribuindo preservativos e folhetos com informações sobre a doença e formas de prevenção em pontos de encontro dos homossexuais na cidade.
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Como já acontecia nas grandes capitais americanas, ações como essa inculcavam nos homossexuais urbanos a idéia de que sexo seguro era aquele feito única e exclusivamente com preservativos, fazendo com que esse acessório fosse cada vez mais sendo associado à vida sexual desses homens. Mais do que funcionar como simples discurso de prevenção, a incorporação da camisinha entre servia também para definir as pessoas moralmente. Tornou-se reprovável sair de casa sem um preservativo, e era esse acessório que diferenciava uma pessoa “consciente” de alguém que não o era. No ano 1985 foi fundada em São Paulo a primeira organização não governamental totalmente dedicada à AIDS. Trata-se do GAPA (Grupo de Apoio à Prevenção à AIDS), que foi também paulatinamente surgindo em outras cidades brasileiras. Hoje, existem 18 GAPAS no Brasil e sua importância residia no fato de serem não apenas interlocutores diretos entre o Estado e as vítimas da doença, quanto, no fato de que trabalhos de seus voluntários tinham entrada privilegiada entre os profissionais do sexo e os homossexuais, distribuindo gratuitamente preservativos e orientado as pessoas já doentes a procurar por atendimento público. Com o aumento desse tipo de organizações no país, que em suas fileiras contavam com homossexuais preocupados com o contínuo avanço da epidemia, produziu-se também uma rede de comunicação para pensar conjuntamente sobre a prevenção. Assim, em julho de 1989, ocorreu na cidade de Belo Horizonte (Minas Gerais) o primeiro encontro nacional de ONGs/AIDS, com o objetivo de discutir a situação da doença no país. No mesmo ano se realizou ainda um segundo encontro desse tipo, agora chamados de “Encontro da Rede Brasileira de Solidariedade”.36 Também em 1989, foi criado, no Rio de Janeiro o primeiro Grupo Pela VIDDA (Pela Valorização e Dignidade do Doente de AIDS), cuja preocupação principal era o estado de carência e abandono a que muitos doentes de AIDS estavam submetidos. Em menos de uma década desde o surgimento da AIDS, o país já contava com uma movimentação intensa da sociedade civil, que se refletiu na criação de diversas organizações não governamentais visando a prevenção, a conscientização e o auxílio aos doentes. Quando se inicia a década de 1990, essas organizações já haviam amadurecido, tanto em termos de idéias quanto em experiências de interlocução com o poder público. Dessa forma, em maio de 1992, um caso de violação dos direitos humanos das pessoas vivendo com AIDS 36
Até o ano de 2001, esse encontro já estava na sua décima edição e , ao longo desses dez anos, realizou-se, respectivamente, nas seguintes cidades: Belo Horizonte (MG), Santos (SP), São Paulo (SP), Fortaleza (CE), Vitória (ES), Salvador (BA), São Paulo (SP), Brasília (DF), Belo Horizonte (MG), Recife (PE),
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ocasionou uma série de discussões que ganharam o cenário nacional. Tratava-se do caso da pequena Sheila Cortopasi de Oliveira, de apenas cinco anos de idade, que teve sua matrícula recusada pelo Sindicato dos Donos de escolas Particulares do Estado de São Paulo. Os grupos reivindicavam a intervenção do poder público nessa questão e mobilizava a opinião pública para o direito dessas pessoas. Embora tenha sido o mote para que essa discussão fosse levada à frente, a pequena Sheila veio a falecer em Fevereiro de 1993. Além das organizações que se criaram em virtude dessa doença, havia ainda grupos ativistas homossexuais que viram suas lutas políticas se dimensionarem em virtude do acirramento do preconceito social à homossexualidade impulsionado pela AIDS. A ação de grupos como Outra Coisa e GGB na lutas contra a AIDS evidencia uma diversificação das atividades militantes da homossexualidade. É interessante perceber que a militância homossexual e as lutas no combate à AIDS já se confundem, o que, acredito, salienta novos deslocamentos identitários já que, mesmo a homossexualidade brasileira passa a ser pensada sobre o víeis de outros modelos de homossexualidade, servidos de observatórios para o pensamento médico. Os homossexuais de São Paulo da década de 80 já são pensados do ponto de vista de uma internacionalização da homossexualidade. A luta contra a AIDS também se deveu muito a experiências individuais. Em 1985 a travesti Brenda Lee transformou a casa que utilizava para atendimento aos seus clientes, o “Palácio das Princesas”, numa casa de apoio à gays ou travestis infectados e desamparados.37Atitudes como essas foram de grande importância principalmente num momento em que a rede de serviços de saúde pública não estava bem estruturada para atender aos diversos casos que se multiplicavam todos os dias. Além disso, o medo que a doença disseminou da sociedade produzia incertezas em relação a como agir com os doentes. Essa situação era mais grave no caso dos travestis e de homossexuais que haviam abandonado seus lares ou haviam sido expulsos de suas casas por insistir em viver da maneira que achavam correta. A movimentação desses elementos da sociedade civil foi essencial para que o Estado elaborasse políticas públicas de combate à AIDS e refinasse a assistência aos doentes. Assim, logo nos primeiros momentos da doença no Brasil, no ano de 1983, foi criado o primeiro programa de AIDS do país, ligado à Secretaria de Saúde do Estado. Dois anos depois, em. 1985, a portaria da saúde n. 236 de 02/05/1985 estabeleceu as diretrizes para o “Programa de Controle 37
Brenda Lee dedicou sua vida à essa causa até sua morte em 1996, vítima de assassinato.
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da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, SIDA ou AIDS”, sob a coordenação da Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária. Em abril de 1986, foi criada a Comissão de Assessoramento em AIDS38, que se transformaria na atual Comissão Nacional de AIDS – CNAIDS. (Galvão, 2001) A criação do Programa Nacional de AIDS, no âmbito do Ministério da Saúde, só se daria em 1988, mesmo ano em que o escritor e cartunista Henrique de Souza Filho, o Henfil, faleceu em decorrência da AIDS. Esse programa agia na elaboração de campanhas – a primeira delas foi a famosa “Quem vê cara não vê AIDS”, elaborada para os festejos carnavalescos do ano seguinte. Mais alguns anos de luta transcorreram e, em 1993, quando o boletim epidemiológico reportava 16.829 casos de AIDS e 10.820 óbitos, foi assinado o primeiro Acordo de Empréstimo com o Banco Mundial para o “Projeto de Controle da AIDS e DST”, que ficaria conhecido como “AIDS I”39 A Partir desse acordo, foi possível que se iniciasse a distribuição de medicamentos para pessoas com HIV/AIDS pelo sistema público de saúde. A lei que garantia essa distribuição – Lei n. 9.313 – foi assinada em 13 de novembro de 1996 e, nesse mesmo ano foi efetivada a distribuição dos ARVs na rede pública, bem como o AZT, ddI, ddC, 3TC, Saquinavir e Ritonavir – componentes do Coquetel.40 Nesse momento, o número de casos notificados já era de 22.943 e 10.090 óbitos. As ações estatais na luta contra a AIDS evidenciam ganhos significativos e, em 2000, com o investimento de 303 milhões de dólares em ARVs, 87.500 pessoas foram atendidas gratuitamente. O Valor dos investimentos no tratamento das pessoas infectadas aumentara no ano seguinte, quando o governo estimava gastar 422 milhões de dólares com ARVs, com previsão de atendimento de 105.000 pessoas no ano de 2001. Nesse momento, o número estimado de pessoas vivendo com AIDS no Brasil é estimado em 597 mil. No decorrer desse processo, em que as organizações não governamentais vinham cada vez mais a público e que o Estado também começava a dar respostas ao estado de gravidade que a 38
Essa comissão foi criada através da portaria n.199/GM, publicada no Diário Oficial da União de 28 de abril de 1986, seção I 39 Um segundo acordo de empréstimo com o Banco Mundial seria realizado em 1998 visando o Segundo Projeto de Controle da AIDS e DST, que ficaria conhecido como o projeto “AIDS II”. Ver Galvão (2000) 40 A grande maioria dos medicamentos ainda era importada de países do hemisfério norte. Somente em 1998 é que o Brasil começa a produzir o ddC e o d4T e, em 199, se inicia a produção nacional de 3TC e da combinação AZT+3TC (GALVÃO, 2002)
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epidemia da AIDS representava, o binômio AIDS/Homossexualidade foi aos poucos se desfazendo, ainda que persista em algum grau até os dias de hoje. Os motivos que conduziram a essa nova maneira de olhar para a AIDS certamente têm a ver com os incansáveis esforços das ONGs e dos grupos de militância que se esforçavam em desvencilhar a homossexualidade dessa moléstia. Por outro lado, o número de mulheres infectadas foi gradativamente aumentando. Em 1983, dos 39 casos de AIDS conhecidos, duas vítimas eram mulheres. Esse número subiu no ano seguinte. Dos 140 casos notificados em 1984, sete vítimas eram mulheres. Isso era apenas o começo. O aumento no número de casos e a aparição pública de mulheres soropositivas nos anos 90 iniciavam um processo de ampliação do imaginário social sobre a doença, que ia deixando, aos poucos de ser uma exclusividade de homossexuais, viciados e hemofílicos. Em 1993, a atriz Sandra Bréa, bastante conhecida do grande público por suas participações em diversos filmes e telenovelas, declarou publicamente ser portadora do vírus da AIDS. Sua atitude era decisiva, pois, embora os dados de infecção de mulheres pouco viessem a público, esse mesmo ano já registrava um total de 2255 mulheres, aproximando-se cada vez mais dos números de casos entre homens (homossexuais ou não), que era de 3713. (Galvão, 2002). Depois de onze anos de luta contra a doença, Sandra faleceu em maio de 2000 e sua morte mereceu a matéria de capa de uma importante revista de circulação nacional.41 Nesse ano, o Boletim Epidemiológico registrou além do óbito da atriz, o de mais 1049 mulheres em virtude dessa síndrome. (GALVÃO, 2002). Ao mesmo tempo em que acontecia uma internacionalização da homossexualidade através da AIDS - já que modelos de prevenção e discursos morais sobre os comportamentos homossexuais se difundiram em todo o ocidente – foi necessário incluir nesses saberes a idéia de que não eram apenas os homens homossexuais que mantinham relações homoeróticas. Nesse sentido, a identidade homossexual começa a ganhar novos contornos, pois, havia falhado em circunscrever os envolvimentos sexuais entre homens apenas para homossexuais.42 Parece estar se dando, ao longo da década de 80, um momento de mudança em que sujeitos que pareciam gozar de uma identidade previsível e unificada começam a se fragmentar, salientando diferentes identidades, por vezes contraditórias (homossexual, aidético, consciente, promíscuo) e não 41
Revista ISTO É. Ed.1597 – 10/05/2000 Vale ressaltar que, apesar da afirmação da política de identidade do final da década de 70, já havia desinteligências entre teóricos e militantes sobre como representar os homossexuais, e que tais contendas, em certa medida, levaram ao fim do Lampião e à conflitos internos do Grupo Somos. 42
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resolvidas. Stuart Hall percebe a importância dessa internacionalização para o processo de produção de identidade: “Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais "lá fora" e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as "necessidades" objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático". (HALL, 2002. p.13)
No capítulo seguinte, pretendo mostrar que as apropriações urbanas também refletiam, e de certa forma embasavam, as mudanças identitárias da homossexualidade na capital paulistana.
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CAP II “A CIDADE COR DE ROSA”: APROPRIAÇÕES HOMOSSEXUAIS DA CIDADE DE SÃO PAULO
Alguns estudos históricos sobre a presença da homossexualidade no meio urbano produzidos a partir dos anos 90 criticavam de forma rígida a disciplina histórica e seus produtores. Em Gay New York: Gender, Urban Culture and the making of the gay male world. 1890-1940 (CHAUNCEY, 1994), o autor salienta que havia uma intensa e visível vida gay em alguns bairros de Nova York. Segundo ele, o mundo gay que floresceu antes da Segunda Grande Guerra foi quase que exclusivamente esquecido tanto pela memória popular quanto pelos historiadores, mas que isso não significa que esse “mundo” não tenha existido. Seu livro se esforçou em resgatar os sentidos dessa experiência, organizando-a geograficamente e salientando suas políticas e práticas culturais.(CHAUNCEY, 1995. p. 01) Além de criticar o olhar negligenciador dos pesquisadores em relação ao esquecido “gay world” desse período, Chauncey argumenta que alguns mitos ajudam a manter na opacidade a história da homossexualidade e que, resgatando as experiências dos homossexuais que viveram aqueles anos, tais mitos podem ser revistos. A reflexão de Chauncey se pauta num trabalho exaustivo de pesquisas em arquivos e memórias, e consegue evidenciar a existência de toda uma rede de relações entre os homens que, não apenas se envolviam sexualmente e afetivamente com outros homens, mas que evidenciavam uma presença pública com traços culturais e estilos de vida específicos. No decorrer de sua análise, vai cada vez mais se desmontando a idéia de que a homossexualidade surge nos Estados Unidos apenas na segunda metade do século XX, no pósguerra ou pós Stonewall. No Brasil, a homossexualidade também seria resgatada historicamente por alguns autores que saíram em busca da presença e dos sentidos dessa ocupação. Acompanhemos um pouco dessas construções.
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1 – OS PRIMEIROS ESPAÇOS
Interessados em reconstituir os espaços ocupados pelos homossexuais e suas formas de sociabilidade na cidade de São Paulo, alguns autores elaboraram, no plano teórico, uma territorialidade para os envolvimentos sexuais entre homens. O primeiro trabalho sociológico moderno realizado no Brasil sobre homossexualidade, escrito por Barbosa da Silva, salientava que, para que os homossexuais se organizassem em um grupo social, um dos fatores determinantes foi a formação de uma base espacial. Mas essa afirmação, ainda que interessante, precisa ser problematizada. Para a produção teórica dessa territorialidade, Barbosa da Silva se baseava principalmente nas idéias produzidas por alguns teóricos da Escola de Chicago. O grupo de sociólogos que compunham essa “escola” , como é chamada entre os cientistas sociais, inaugurou uma reflexão inovadora ao tomar a cidade como objeto privilegiado de investigação. Para tanto, pensavam-na como uma variável isolada, o que fazia da sociologia urbana um campo de estudos específico, baseado na idéia de “ecologia humana”. Um dos mais influentes desses sociólogos - e também o que mais influenciou a pesquisa de Barbosa da Silva -, Parker, pressupunha uma analogia entre os mundos animal e vegetal, de um lado, e o mundo das ações humanas de outro. Utiliza os conceitos de competição, processos de dominação, e de sucessão, para denunciar essa similaridade e a cidade foi lida por meio de um referencial de análise baseado na ecologia animal. Os avanços teóricos para sociologia, proporcionados pela escola de Chicago, se refletem na suposição de que existiria um modo de vida urbano – ou uma “cultura urbana” – que transcende os limites espaciais da cidade; ou seja, um modo de vida especificamente urbano que permitiria pensar o urbanismo como um modo de vida. Graças a essa influência, Barbosa da Silva foi levado concordar que indivíduos que compartilham da mesma forma de excitamento – entenda-se desejo, no caso dos homossexuais – se encontrariam de tempos em tempos, nos mesmos lugares. Assumindo a idéia de “região moral”, também produzida pelos sociólogos da Escola de Chicago, o autor explicou a segregação e distribuição da população da cidade e identificou um território de ação para os homossexuais. Dessa forma, é em termos de uma auto-identificação pontuada pelo desejo que essa circunscrição teria sido definida.
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As circunscrições dessa análise, pelo menos na época, colocavam-se como um diferencial em relação às anteriores. Observe-se, por exemplo, a descrição oferecida por James Green, baseado em uma classificação anterior à de Barbosa da Silva.
“No período pós-Segunda Guerra, os territórios homossexuais e as formas de sociabilidade em São Paulo expandiram-se consideravelmente, assim como ocorreu no Rio de Janeiro. Durante o Estado Novo, o governador do Estado de São Paulo emitiu um decreto confinando a prostituição ao Bom Retiro, um bairro de comerciantes judeus e pequenas lojas próximo à estação ferroviária central. Esse ato foi parte de uma campanha mais ampla para limpar a área do centro e regrar o comportamento das mulheres da noite. Mais de 150 bordéis e 1400 mulheres foram amontoados numa pequena área daquele bairro, onde podiam ser monitorados pela polícia e pelas autoridades sanitárias. Como resultado de um maior controle da policia nas áreas do centro, os homossexuais, que dividiam boa parte desse espaço com as prostitutas nos anos 30, foram forçados a mudar suas áreas de interação do Vale do Anhangabaú para o Parque D. Pedro, no lado oposto do promontório que abrigava o centro histórico de São Paulo. Entretanto, esse confinamento teve uma vida relativamente curta e, 13 anos mais tarde, em 1953, um novo decreto eliminou o anterior, que restringia a prostituição a uma área específica da cidade. Os bordéis, os quartos alugados por hora e a prostituição de rua proliferaram mais uma vez em toda a área central. Como nas décadas anteriores, muitos dos locais utilizados pelas prostitutas se sobrepunham às novas áreas de encontros apropriadas pelos homossexuais.”(GREEN, 2000. p. 273).
Esse quadro dos espaços da cidade ocupado pelos homossexuais pouco esclarece sobre as experiências ali vividas e em quase nada diferencia a homossexualidade de certas formas de marginalidade como a prostituição. A circunscrição sociológica de Barbosa da Silva, que apontou a confluência das Avenidas Ipiranga e São João como a principal área de interação desses homens, permite uma observação mais matizada. “A região principal que tem sobrevivido durante muito tempo como ponto de encontro de grande parte do grupo homossexual de São Paulo, pode ser caracterizada por um grande T, formado pela confluência das avenidas São João e Ipiranga, e tendo pontos os cinemas Oásis, Art-Palácio, e inicio da rua São Luis. A vida de rua encontra alguns focos principais entre os quais podem ser mencionados: imediações do café Mocambo, (rua dos Timbiras), do bar do Jeca (esquina da Av. São João com a Av. Ipiranga), o passeio de todo o quarteirão formado pela Av. São João, Ipiranga, Praça da República, rua dos Timbiras, Av. São João desde a o cinema Oásis ate o Art-Palácio (lado ímpar), Praça D. José Gaspar (principalmente diante dos bares ai localizados), toda a Praça da República , Largo Paissandu, rua São Luis (principalmente diante dos bares), Praça da Sé, Praça Clóvis Beviláqua, Praça João Mendes, Praça Ramos de Azevedo (em frente à loja do Mappin Stores), a tarde rua Barão de Itapetininga, e os bares da República, Nick Bar, Pari Bar, Mocambo, Jeca, Cremairie, Brhama, Baiúca, os cinemas Art-palacio (principalmente segundas feiras), Cairo, Pedro II, Cinemundi, Santa Helena, banheiros públicos (principalmente os das ´praças da República, , Arouche, Paissandu, Ramos de Azevedo e dos cinemas e bares citados), estações de ônibus inter-municipais, estações de estrada de ferro e quartéis” (BARBOSA DA SILVA, 1958)
Partindo dessa circunscrição, procurarei refletir sobre as maneiras pelas quais essa sociabilidade foi construída entre os homossexuais que viviam em São Paulo na segunda metade do século XX.
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Ao contrário das anteriores, que apenas localizavam grosso modo os espaços freqüentados pelos homossexuais, a circunscrição sociológica de Barbosa da Silva possibilitava uma sistematização dos sentidos dessa ocupação e deixa perceber também outros traços recorrentes das experiências desse segmento naqueles anos. Em sua definição, o autor enumera não apenas os espaços, mas também os usos a que se destinavam. O “grande T” - formado pela Avenida São João com a Ipiranga – funcionava como ponto de encontro. Era um espaço conhecido de confluência que deve ter funcionado como conhecida atração para os grupos de amigos que marcavam encontros ou se cruzavam aleatoriamente. Tecia-se uma rede pública de conhecimento que servia para definir quem estava ali e que, portanto, compartilhava experiências aproximadas. Uma vez estando no “grande T”, poderiam se direcionar para alguns dos bares (Nick Bar, Pari Bar, Mocambo, Jeca, Cremairie, Brhama ou Baiúca) ou simplesmente praticar a caça43 nas ruas e praças públicas das imediações. Uma das experiências trazidas pelo conhecimento efetivo desse espaço era a utilização de certos locais para a “pegação44”, que acontecia nos banheiros públicos das praças, estações de ônibus e cinemas. Logo, os espaços de sociabilidade dos homens que se dedicavam às relações same sex, já com uma diversificação própria, ofereciam oportunidades diferenciadas e que, por vezes, se sobrepunham nos mesmos locais. Vale lembrar que o próprio recorte metodológico de Barbosa da Silva também já produz um recorte espacial. Atento a isso, Green (2000. p. 274) lembra que: “(...) Há problemas óbvios em utilizar os resultados da pesquisa de Barbosa da Silva para traçar conclusões definitivas sobre a configuração da subcultura homossexual paulista nos anos 50”. Tais problemas dizem respeito a uma amostra reduzida que se referia basicamente a homens de classe média e “discretos”, ou seja, indivíduos na faixa etária de 17 a 47 anos que não
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Caça é uma definição nativa utilizada para caracterizar o ato de procurar, seduzir ou conquistar alguém com fins sexuais. Embora como mais recorrência ela ocorra em espaços públicos – ruas, praças, banheiros – também é uma expressão usada para denotar paqueras em qualquer outro espaço. Embora a palavra seja utilizada ainda hoje, e com bastante recorrência, Barbosa da silva, numa espécie de glossário homossexual de sua época, a definiu como: “(verb.). Procurar por um parceiro sexual; usualmente se refere a procurar passeando e andando, enquanto procurando aproveitar todas as oportunidades em potenciais dos indivíduos que passam; também se refere àqueles que usam o automóvel para tal ação. Olhar sugestivamente a um parceiro sexual potencial com desejo; ou fazer sugestões a outra pessoa do interesse numa possível relação sexual”. (BARBOSA DA SILVA, 1958). 44 Pegação é uma categoria nativa utilizada para classificar os envolvimentos sexuais em locais públicos - como nos banheiros ou entre arbustos de um parque ou praça – o privativos, como no caso dos banheiros de cinema. Tais envolvimentos não remetem necessariamente à finalização do ato sexual, podendo ser interrompido a qualquer momento dependendo da situação ou do local em que ele se desenrole. Não encontrei referências no trabalho de Barbosa da Silva a essa expressão, todavia, ela aparece, ainda que não explicada, no texto de Perlongher (1987).
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fossem demasiado efeminados ou que estivessem no pólo oposto, para não incorrer nos riscos de produzir um tipo característico – a bicha ou o prostituto. Essa configuração, bem como as noções de “região moral”, acabaram sendo retomadas por pesquisas que, futuramente, intentaram elaborar uma territorialidade para as práticas da homossexualidade. Assim, quando Nestor Perlongher, já nos anos 80, investigou o universo da prostituição masculina, sua exposição sobre os ambientes de circulação dos homossexuais antes dos anos 60 se baseou na pesquisa de Barbosa da Silva, ainda que tenha sofisticado um pouco mais a discussão sobre os conceitos propostos pelos sociólogos da Escola de Chicago. Para resgatar a territorialidade produzida após esse período, Perlongher se aferra à memória de seus interlocutores e, nessas lembranças, o autor descobre não apenas novos espaços como também matiza aqueles já citados anteriormente. Nas recordações de Clóvis que, no início dos anos 60, vivia em Santos com a família, aparecem referências de como o centro de São Paulo atraia pessoas interessadas nos envolvimentos com o mesmo sexo. Havia uma sociabilidade visível conhecida por meio de informações conseguidas no boca a boca e que possibilitavam a um interessado acesso aos locais de encontro dos homossexuais. Esses espaços, pelo menos nas lembranças de Clovis, já apresentam recortes relevantes: “O Barba Azul era mais refinado, pessoas mais convencionais, de terno e gravata, e o Arpege era mais boteco, não tinha mesinhas como o Barba Azul, era um bar de balcão. Continuando pela rua São Luís, onde agora é a praça D. José Gaspar, ainda não tinha calçadão, mas já estavam outros dois bares gays: O Cremeirie (que ainda existe) e o Pari, que desapareceu por volta de 1983 A indumentária da época era terna e gravata, mesmo entre os gays. O Pari Bar era mais sofisticado. O Cremeirie era intermediário: também tinha mesas, mas era freqüentado por pessoas mais jovens e era permitido não usar terno e gravata. Continuando, do outro lado da rua, havia um bar, bem popular, chamado Turist – este tinha uma freqüência bem misturada entre gays e pessoal do teatro. Tinha um outro bar freqüentado pela classe teatral;o Nick Bar, com um piano, ficava ao lado do TBC, na Major Diogo. Fora desse circuito, nas imediações da Ipiranga e São João, já existia, nessa mesma esquina, o Jeca, muito freqüentado, e um café chamado Mocambo, muito sofisticado, detrás do cinema Metro, perto da Avenida São João. Também tinha o Brahma (São João esquina com a Ipiranga, frente ao Jeca), um local mais boêmio. Tinha casas de chá como o Vienense, que ainda existe, na Barão de Itapetininga, freqüentada por casos, no começo da noite, final da tarde. Havia também marginalia; São Paulo era uma cidade grande. O ponto dos michês era no cinema Itapira, do lado do Jeca, se estendendo pela Avenida São João até a galeria do cinema Lira”. 45
As informações que aparecem no texto de Barbosa da Silva e nas memórias de Clovis permitem traçar alguns rascunhos – ou roteiro – dos lugares freqüentados pelos homossexuais na década de 60. Nessa primeira análise, podemos dividir esses espaços entre os “tipos” que os
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Cf. PERLONGHER (1987. p. 74)
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freqüentavam: O Barba Azul e o Pari Bar eram mais sofisticados e a eles recorriam os homens que usavam terno e gravata. Outros ambientes desse nível eram o Nick Bar, um piano bar na rua Major Diogo, vizinho ao TBC, o Café Mocambo, próximo à Av. São João e o Bar Brahma, quase na confluência da Ipiranga com a São João, este um local para o público mais boêmio. Diferentemente desses, o Arpege parecia a Clovis um bar mais despojado, sem mesas – um boteco, como disse –, onde as pessoas se reuniam em torno de um balcão. Já o Cremeirie era intermediário, pois, apesar de também possuir mesas, diferenciava-se pela faixa etária de seus habituês – homens mais jovens que dispensavam o uso de roupas mais formais. Bares mais “populares” como o Turist também apresentavam uma diferença de público. Ainda segundo Clovis, esse estabelecimento era freqüentado tanto pelos gays – há poucas certezas, no entanto, de que esse termo já fosse utilizado de forma recorrente naquela época por essas pessoas – e pela classe teatral, uma espécie de vanguarda no sentido de reavaliação de valores sociais. As lembranças de Clóvis salientam também uma questão relevante: haviam já os locais freqüentados por “casos”46, o que deixa dúvida sobre se as relações entre homens nesse momento se pautavam sempre no modelo hierárquico apontado por Peter Fry – bicha/bofe – ou se assemelhavam ao modelo igualitário. Havia também o lugar da “marginalia”, termo que Clovis utiliza para se referir aos prostitutos e seus apreciadores, quando lembra que a prostituição viril já podia ser encontrada ao longo da avenida São João entre as galerias dos cinemas Itapira e Lira. Todas essas informações evidenciam que, mesmo nas décadas de 50 e 60, os homossexuais já experimentavam as diferenças de classe, geração e estilo de vida. A produção desse espaço público não deve ocultar, no entanto, a constituição de redes privadas de sociabilidade, o que também foi uma preocupação dos autores que investigaram o período. Tanto Barbosa da Silva (1959) quanto Perlongher (1987) e Green (2000), salientaram que grupos de amigos se reuniam em apartamentos, onde promoviam festas e encontros informais. Novamente partindo das lembranças de Clóvis do período compreendido entre os anos de 1965 e 1970, observamos que:
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Caso, embora seja um termo utilizado para além do grupo pesquisado, é utilizado de forma recorrente para classificar casais de homens que mantêm um relacionamento afetivo. Barbosa da Silva também traduz esse termo: caso (sub.) ; par de amantes; em geral vivendo maritalmente.
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“Na época, os grupos de bichas eram mais sólidos, não tão fracos quanto agora,. Freqüentava-se muito os apartamentos. De tanto em tanto dava-se uma saida à calçada, Avenida São Luis, Galeria Metrópole. Havia mais interação entre as pessoas, visitavam-se as casas, organizavam brincadeiras”.47
Apesar de não ficar claro se a constância desses encontros em ambientes privativos se dava por algum tipo de receio dessas manifestações em espaços públicos, as pessoas elaboravam, nessas reuniões, trocas (simbólicas) de experiências e fortaleciam redes de sociabilidades de grande importância para a formação de uma idéia de grupo. Na década de 1960, ocorreu uma expansão dos locais de convivência freqüentados pelos homossexuais, mas essa reconfiguração não extrapolaria os limites da região central. A abertura da Galeria Metrópole, parece ter contribuído diretamente para isso. Como lembra Bivar, outro interlocutor de Perlongher: “O ponto quente da vida gay (grifo do autor) paulistana era a Galeria Metrópole. Cheia de bares, boates, inferninhos, fliperamas, galerias, livrarias, escadas rolantes, etc., a Galeria misturava não só o mundo gay, mas também intelectuais, artistas, poetas, encucados, suicidas, prostitutas, gigolôs, cafetinas, músicos, e mais a bossa nova, o jazz, o rock, a tropicália, a psicodélia, o álcool, as drogas e, é claro, a polícia. Enfim, misturava tudo e todos, de Chico Buarque a Silvia Pinel, todo mundo deu, nem que em passant, uma geral pela galeria, onde o ‘Barroquinho’ de Zilco Ribeiro era o ponto chique”. 48
Essa descrição é preciosa no sentido de revelar a inovação e a complexificação engendrada às experiências da homossexualidade no período. Apesar de não ter sido construída com esse objetivo, sua localização próxima aos espaços ocupados pelos homossexuais ocasionou uma gradual migração e apropriação de suas dependências por esse segmento. Além disso, a movimentação de pessoas atraía homens “caçando” em automóveis nos arredores da galeria, notadamente no trecho que se estendia até as imediações do Teatro Municipal. Esse trajeto se tornou conhecido na época como Autorama 49 Quando as paqueras tinham resultados, e quando não dispunham de um lugar próprio para levar alguém, os casais de homossexuais procuravam por um hotel que permitisse a entrada de dois homens, o que não era uma coisa muito fácil na época. Mais uma vez, as palavras de Clovis nos esclarecem que:
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Cf. PERLONGHER (1987. p. 78) Cf. PERLONGHER (1987. p. 80) 49 Interessante notar que, com a extinção dessa prática nesse espaço, ela é restabelecida no amplo estacionamento do Parque do Ibirapuera. 48
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“Não havia hotéis específicos para gays (grifo do autor) como tem agora. Transava-se em hotéis improvisados, mas também freqüentado por homossexuais. Hotéis mais baratos sempre permitiam hospedar dois caras por uma noite, às vezes passava-se o final de semana. Na rua 7 de Abril, lembro, havia um hotelzinho chamado São Tião, a gente ia com muita discrição e ficava hospedado com um cara” 50
Sobre a utilização de hospedarias e hotéis pelos homossexuais para interações sexuais, Green (2000) sugere que, ainda na primeira metade do século XX, havia estabelecimentos desse tipo na região central de São Paulo. O processo de utilização de espaços como esse estava baseado na discrição. Em surdina, procurava-se por hotéis mais baratos, interessados em vender seus serviços e se sobrepondo às sanções sociais em prol disso. Tais estratégias foram importantes para a criação de uma rede de atendimentos que se tornava conhecida das pessoas que freqüentavam aquela região através de conversas informais; estar ali e dividir informações eram atitudes indispensáveis no sentido de elaborar um campo de ação para as experiências homossexuais. Pelo que se pode notar também, a apropriação das dependências do Galeria Metrópole pelos homens interessados em sexo com outros homens iniciou um confronto que culminou na ação policial, já que, estar ali e vivenciar as práticas de homossexualidade eram atitudes que se confundiam com comportamentos ilícitos ou contestatórios peculiares àqueles anos - rebeldia, embates políticos e o uso de entorpecentes. Atingindo seu apogeu, e também seu declínio no ano de 1968, o Galeria Metrópole trouxe definitivamente para a cena da homossexualidade a intervenção policial – o que não significa que antes ela não existia. Muitos homens foram presos quando a policia fechava todas as saídas da galeria e executava diversas detenções. Também pouco se sabe sobre as alegações utilizadas para elas. Ao contrário do que se pode pensar, a inovação moderna que a abertura do Galeria Metrópole promoveu para os homossexuais não eliminou os espaços de que falei anteriormente. O que aconteceu foi que transformações se operavam na própria percepção de homossexualidade, insinuando diferenças entre quem procurava por bofes e pelos homossexuais que, aos pouco, aderiam às relações igualitárias. Assim, a interferência policial, e também um sensível recorte de classe e de gostos, parecem ter contribuído crucialmente para a reorganização dos espaços de sociabilidade voltados para os homossexuais. Com o passar dos anos, novos estudos sobre a organização espacial da homossexualidade surgiram (GREEN, 2000; TREVISAN, 2002), trazendo novas informações e mesmo uma 50
Cf. PERLONGHER (1987. p. 79)
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ampliação da antiga “região moral”. Em sua pesquisa, Green ressalta que a Avenida São João e o Parque do Anhangabaú e a Praça da República, serviram de ponto de encontro, caça e sociabilidade para esses homens ainda na década de 1930. Além desses, Green afirma que:
“Do outro lado do centro histórico, o parque conhecido como Jardim da Luz, bem como o banheiro público da contígua Estação da Luz também atraíam um movimentado tráfego de homens buscando contatos sexuais com outros homens. Entre a multidão de passageiros chegando e partindo, alguns deles podiam desviar-se para dentro do Parque do outro lado da rua, de frente para a estação, sem atrair muito a atenção da policia. Os toaletes da estação ferroviária de São Paulo, assim como os da Estação Central do Rio de Janeiro constituíam um ambiente um tanto perigoso, e no entanto promissor, para identificar outros homens interessados em sexo.” (GREEN, 2000. p. 273)
Nesses escritos, é possível alargar a visão a respeito dos espaços ocupados pelos homossexuais paulistanos no que se refere às suas primeiras apropriações. Ainda que não tenha ultrapassado os limites do centro da cidade, Green já envereda por lugares além do “grande T” de Barbosa da Silva. O Parque da Luz e os banheiros da estação ferroviária, atrativos para encontros e interações sexuais, ampliavam a ocupação das ruas pelos homossexuais ainda na primeira metade do século XX. Mais ainda, o autor sugere que enquanto a rua oferecia oportunidades variadas para a aventura sexual e também para entretenimento social dos populares e que, estar por perto dessa vida intensa era a intenção de muitos homossexuais. Em suas palavras: “A moradia era um problema para os homens com recursos econômicos limitados, que se mantinham distantes de suas famílias, ou que simplesmente desejavam viver nas proximidades do Parque do Anhangabaú e outros pontos de encontros homoeróticos da cidade”.(GREEN, 2000). Essa situação vai se alterando quando as famílias abastadas foram se transportando para fora do centro e as amplas e antigas casas foram convertidas em pensões e cortiços a que recorreram muitos imigrantes recém chegados na cidade, além dos demais solteiros que já viviam na cidade. A despeito dessa sociabilidade toda, pairou sobre tais espaços uma opacidade, pelo menos no que se refere á homossexualidade, o que me faz lembrar da afirmação de George Chauncey de que havia um mundo perceptível, pouco considerado pelos historiadores que escreveram sobre a cidade de Nova York na primeira metade do século. Na década de 1970, algumas boates de estilo mais moderno, novidade para a época, começavam a surgir em outros pontos da cidade, para além da confluência da Ipiranga com a São João. Na rua Augusta, foi inaugurada a Saloon e, na Ladeira da Memória, a Nighting abriu suas portas. Esses locais não foram, de início, bem aceitos pela classe teatral, uma espécie de elite cultural interessada nos bares com música, onde podiam deleitar-se ao som do jazz e da bossa
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nova. Demasiado envolvida com os pressupostos de uma contracultura então em evidência, e com a decadência do Galeria Metrópole, a classe teatral e alguns homossexuais da classe média, voltaram-se para a rua Nestor Pestana, muito simpática aos movimentos hippie e underground. (PERLONGHER, 1987). Ali, a palavra de ordem parecia ser a diversidade; mas uma diversidade pautada em questionamentos de aferrados valores sociais que não apenas excluíam as práticas culturais da juventude como também uma série de liberdades individuais nas quais a homossexualidade estava inserida. Ainda que os comportamentos homossexuais não fossem alvos diretos das agressões policiais – pois não havia um teor político contestatório que ameaçasse os rumos da ditadura militar -, sua confusão com o confronto ao poder, esboçada pelos variados freqüentadores da Nestor Pestana, também os definiu como objetos de perseguição por parte do poder público. Assim, fugindo à repressão, muitos homens afastavam-se tanto do “grande T” – que acabou sendo cada vez mais relegado às classes mais populares – mas também dos riscos de detenção a que estavam expostos na rua Nestor Pestana. A essa altura, um outro espaço começava a ser ocupado pelos homossexuais; tratava-se do Largo do Arouche, da rua Rego Freitas e da rua Vieira de Carvalho, ainda hoje em pleno funcionamento. Foram abertas também boates mais próximas do ainda recente centro financeiro da Avenida Paulista, como a “Medieval” (Rua Augusta) e a “Nostro Mondo” (Consolação). Agora, farei uso das memórias de meus interlocutores para refletir um pouco sobre esses espaços e sua lógica de ocupação. Guilherme, 49 anos, maquilador, desempregado, natural de Garanhuns, Pernambuco, relembra um pouco de sua juventude em São Paulo em meados dos anos 70 e inicio dos 80: “São Paulo era uma cidade gostosa, não é como hoje não. Tinha menos violência; você saía às ruas numa boa, você caçava numa boa; as pessoas não tinham essa agressividade de hoje. Não tinha tantos michês. Existia, mas não era essa coisa. Você caçava por caçar, os caras tinham mais coragem de encarar essa coisa do desejo, sabendo que ia pra cama com um homem, sem ter que impor a coisa do dinheiro pra disfarçar”.
Quando meu interlocutor migrou para São Paulo e saiu em busca de aventuras, o cenário que encontrou já havia se reformulado em relação às décadas anteriores. Longe da violência policial e da prostituição, que se desenvolvia em outros pontos da região central, os espaços de sociabilidade pareciam seguros e ofereciam diversas oportunidades de paquera. Além disso, uma certa peculiaridade da cultura sexual brasileira, já explorada por alguns autores (FRY, 1982;
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PARKER, 1993), segundo a qual era totalmente possível para um homem entregar-se a uma relação sexual com outro homem sem que houvesse uma imediata identificação com a homossexualidade, parecia tornar a caça mais atraente. Uma vez que as relações sexuais se baseavam fartamente na questão dos papéis sexuais – o que sugeria uma diferente definição de papéis de gênero – os espaços ocupados por homossexuais podiam perfeitamente ser freqüentados também por bofes em busca de envolvimentos sexuais efêmeros e diversão. Quando chamo esses espaços de locais de sociabilidade homossexual, não quero afirmar que a assunção de uma identidade homossexual estava implícita em todos os seus freqüentadores, mas que, para quem se pensava dessa forma, tais espaços eram atraentes.Essa peculiaridade dinamizava o campo de ação para os homossexuais. Quando perguntei a Guilherme sobre os locais mais propícios para a caça, a resposta foi: (...) Em todo canto. Mais especificamente no Largo do Arouche, na avenida São Luís, uma parte da Consolação onde tinha a ‘Nostro Mundo’, uma parte da Augusta onde tinha a ‘Medieval’. Era tão engraçado a ‘Medieval’, teve um ano inclusive que colocaram a Wilza Carla montada em cima de um elefante; era uma coisa assim; era uma espécie de parada gay; as pessoas levavam a família pra ver, era uma coisa incrível. Tinha passarela pras bichas passarem e isso na rua. (...) isso era bem no começo dos anos 80.51
As lembranças de Guilherme revelam bastante sobre a expansão dos espaços de sociabilidade homossexuais ocorrida no final da década de 70 e inicio de 80. Pode-se notar que, para além do velho centro e suas cercanias (Largo do Arouche, Avenida São Luis), já era possível encontrar tais estabelecimentos em outros pontos da cidade. Seguindo pela rua Augusta, se chegaria à conhecida boate “Medieval”. No mesmo sentido, mas seguindo pela rua da Consolação, surgiria a boate “Nostro Mondo”, já após o cruzamento com a Avenida Paulista. A descentralização desses espaços foi pautada principalmente pela violência, que rondou os bares e boates do centro da cidade na década de 70 e meados da década seguinte. A homossexualidade expandiu suas fronteiras urbanas e insinuou-se no cotidiano da cidade. A comparação estabelecida por Guilherme com a Parada Gay, maior exemplo contemporâneo de visibilidade de massa dos homossexuais, demonstra que características do meio homossexual eram popularizadas e experimentadas publicamente, e eram assistidas pelas famílias que estavam lá para presenciar uma espécie de espetáculo promovido pelos homossexuais. Com a reorganização e apropriação de novos espaços, produzia-se uma visibilidade de contornos
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Entrevista: Guilherme, realizada em 09 de janeiro de 2002.
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próprios e uma definitiva separação entre a homossexualidade e a prostituição. Como Guilherme, o escritor João Silvério Trevisan também viveu esses anos de efervescência da homossexualidade na capital paulista. Além de lembrar das boates da época, o escritor se reporta também aos espaços onde era possível encontrar sexo na cidade. “Olha, a boate mais famosa era a boate ‘Medieval’ da Augusta, que eu freqüentei desde 73 e começou a entrar em decadência. Depois foram aparecendo outras, apareceu a ‘Homosapiens’ que era uma boate muito concorrida.(...) não havia restaurantes mas na boate ‘Medieval’ você tinha um jantar pra casais e ai começaram a aparecer como eu te disse as boates mais finas. Eu não me lembro agora dos nomes, mas em Moema, eram umas boates imensas; uma delas até recentemente ainda existia, ‘Mad Queen’, eu acho.52
As ruas mais usadas pelos homossexuais eram aquelas que já possuíam alguns equipamentos “apropriados” a uma atividade privativa, como era o caso da Vieira de Carvalho53 ou da rua Augusta onde, em meio aos diversos locais voltados para a prostituição de mulheres e travestis, estava a boate Medieval. As vias públicas eram também usadas para encontros casuais e intercursos sexuais em espaços privados (casas, hotéis etc.), isso quando não eram finalizadas no próprio espaço público. “Era impressionante, era paquera durante o dia e trepação direta à noite. Um dia, por exemplo, no Horto Florestal, era famosa a putaria no Horto Florestal, você se metia naquele mato adentro, e você só via gente trepando, você encontrava muito papel higiênico no chão, não tinha camisinha na época, era raro camisinha.” 54
Outro momento: “Bem, era muito gostoso, desse ponto de vista, não havia a vida... o gueto era pequeno, era muito pequeno, não havia essa quantidade de saunas, nem essa quantidade de bares, nem boates; quer dizer, havia uma ou duas boates, só havia algumas poucas saunas mas muito freqüentadas, não havia casas como a que a gente tem hoje ali em pinheiros ..a .. ‘Station’ , que é uma casa de transa direta, mas havia uma vida sexual intensíssima nos cinemas, muito, muito, muito intensa; sexo direto em qualquer horário e, sobretudo nas ruas. (...) São Paulo era uma paquera absolutamente desvairada, era uma coisa desvairada. 55
Ou neste outro: “Eu acho que as pessoas eram mais inocentes. Havia mais pureza, com toda a maldade que São Paulo pode ter, mas havia mais pureza . Uma vez eu segui um cara do centro da cidade até o Largo do Glicério, passei pela Sé, desci, até que o cara parou e me perguntou ‘o que que é?’. Eu falei o que que é e nós entramos num acordo. Tinha essas coisas. Eu por exemplo jamais seguiria um cara hoje, eu não saio à noite a não ser pra ir num butequinho aqui perto e voltar pra casa.” (Guilherme, 09/01/2002)
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Entrevista com o escritor João Silvério Trevisan, realizada em 14 de fevereiro de 2001. Localizada no centro da Cidade, essa rua já apresentava um número razoável de bares, em frente aos quais um grande número de homossexuais se concentrava ou cruzava essa via em toda a sua extensão. 54 Entrevista com o escritor João Silvério Trevisan, realizada em 14 de fevereiro de 2001. 55 Entrevista com o escritor João Silvério Trevisan, realizada em 14 de fevereiro de 2001, no seu apartamento. 53
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A rua era ressiginificada por essas práticas e, para além de simples locais de passagem ou concentração, foi incorporada como parte do equipamento urbano que atendia ao desejo e à caça. Pontuadas por esse prisma, não havia tanta separação entre as experiências de rua vividas no trajeto ao trabalho ou na busca por lazer. Ouvi algumas vezes, em conversas informais com alguns interlocutores, que, no início da década de 1980, a vida sexual nas ruas era tão intensa que era possível fazer sexo com algum desconhecido mais de uma vez, fosse dia ou noite, qualquer que fosse a intenção do percurso. A certeza de que essas coisas aconteciam nas ruas forneceu, inclusive, segurança para que Guilherme seguisse seu eleito até o Largo do Glicério. A partir da década de 80, as batidas policiais na região central se intensificaram e, juntamente com travestis, negros e prostitutas, os homossexuais se tornaram alvos preferenciais da operação de limpeza desencadeada pelo Delegado da Seccional Centro de São Paulo, José Wilson Richetti. Tornou-se freqüente, para quem freqüentava aquelas ruas, ouvir comentários, testemunhar ou mesmo ser vítima da ação policial que intimidava homossexuais nas ruas, bares e restaurantes, dando ordem de prisão a todos indiscriminadamente, portanto ou não documentos. As ruas em que os homossexuais se concentravam passaram a ser locais de perigo e muitos deixaram de freqüentá-las. Foi justamente nesse início de década que novos espaços, para além da Praça da República e do Largo do Arouche foram aparecendo. Vale lembrar que, nesse momento, São Paulo já contava com um grande número de homossexuais, que ocupavam o espaço público e que eram percebidos socialmente. Numa matéria publicada em 1977, o jornalista ressalta que:
“Em São Paulo, nos interiores da sauna Four Friends, durante o dia, na esquina das avenidas Ipiranga e São João, à noite, e no salão enfumaçado da boate Medieval, ao longo da madrugada, são devoradas as páginas do jornal mensal Entender - e, sobretudo, a prestigiada Coluna do Meio, que o jornalista Celso Curi assina ininterruptamente na Última Hora paulista há um ano e meio.” (revista "Veja", 24 de agosto de 1977)
Revela-se, nas palavras desse jornalista, a existência de uma estrutura que dava suporte às experiências dos homens que buscavam outros homens para encontros sexuais e afetivos. Tanto na busca por sociabilidade (social e sexual) quanto por informação a respeito do grupo em São Paulo, trocas simbólicas eram estabelecidas e afinidades de gostos e estilos de vida eram compartilhadas mesmo antes que um ativismo homossexual houvesse se forjado.
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A partir dos anos 80, a procura pelos lugares vai mais claramente se configurar como produto e reprodutora de um estilo de vida. Ou seja, a freqüência a determinados espaços vai estar informada por outras variáveis que não necessariamente a busca por parceiros sexuais. Nesse sentido, percebi a existência de três estilos de vida “ideais”, de que passo a falar agora.
2 – ESTILOS DE VIDA E DE HOMOSSEXUALIDADE a) Os Freqüentadores do Centro
Marcelo Neto tem 25 anos, negro, auxiliar administrativo e residente com uma irmã em uma casa de dois cômodos no bairro da Penha. Ambos nasceram em ribeirão Preto e migraram para São Paulo por terem sido aprovados em um concurso público para a profissão a que se dedicam atualmente. Esse interlocutor me informa que, enquanto vivia com os pais, no interior, levava uma vida “direitinha”, e que só aprontava em segredo, sem que ninguém ficasse sabendo, principalmente sua família. Mas que, uma vez em São Paulo, passou a freqüentar os bares, boates e cinemões do centro da cidade e que, em pouco tempo, se abriu com a irmã e conta hoje com o apoio dela. Enquanto conversamos, Marcelo procura por uma calça e uma camisa que mais lhe agrada, dá uma limpada no tênis, troca de brinco, arruma o cabelo várias vezes, modelando com gel e olha, vez ou outra, no relógio. Já são quase onze e meia da noite e, em pouco tempo, não haverá mais transporte público para nos levar até a Vieira de Carvalho, o local onde pretendia encontrar com os amigos, paquerar e se divertir. Sem delongas, saímos de casa em direção à estação de metrô. Lá, outros homossexuais também aguardavam pelo trem que os levaria até a estação República, bem próximo dos bares da Vieira de Carvalho. No caminho, Marcelo me comentava que fazia esse itinerário pelo menos uma vez por semana, pois, quando não pega nenhum bico pra fazer no dia seguinte, sempre sai de casa nas noites de sexta e de sábado. Muito raramente vai às boates e diz que prefere encontrar com os amigos, tomar cerveja e bater papo. Se a noite for boa, pode conhecer alguém interessante e, caso sinta vontade de algo mais quente, entra em um cinemão e lá permanece até que o metrô volte a funcionar e tenha, finalmente como voltar pra casa.
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Por sua classe social, sua cor e os locais que freqüenta, esse interlocutor, aprioristicamente, está inserido dentro de um grupo determinado entre os homossexuais paulistanos: os “freqüentadores do centro”. Numa etnografia mais detalhada das ruas localizadas entre a Praça da República e o Largo do Arouche, tentemos apreender um pouco mais dos significados desse estilo de vida. Anteriormente, já tracei um pouco da história dessas ruas em sua relação com a homossexualidade. Contudo, atualmente, ela apresenta novas características. Localizada na região central da cidade, a Vieira de Carvalho é uma rua pequena, que funciona como via de ligação entre o Largo do Arouche e a Praça da República. Durante o dia, ela evidencia um comércio fluente, repleto de lojas de acessórios, roupas, bebidas e decoração além de agências bancárias, lanchonetes, doçarias, sorveterias, restaurantes, etc. Na verdade, para um turista que não conhece tão bem a cidade, poucos indícios existem do tipo de ocupação que essa rua recebe durante a noite, quando diversos bares abrem suas portas e um número intenso de homossexuais de diferentes gerações e tipos físicos, vindos dos mais diferentes bairros de São Paulo, estacionam em suas calçadas ou adentram no interior dos estabelecimentos. É somente com o cair da noite que a Vieira de Carvalho começa a fazer jus à sua imagem de “rua gay”.
Visão diurna da Rua Vieira de Carvalho56
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http://www.banstur.com.br/galeria/imagens/sp_centro.jpg
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Para quem começa a percorrê-la logo saindo da Avenida São João, surgem alguns bares como o Sai de Baixo57 - com cadeiras na calçada que, dependendo do dia da semana e da hora em que se chega, podem estar totalmente tomados, inclusive com pessoas aguardando por uma mesa. O horário de maior concorrência durante a semana é o início da noite e não se prolonga madrugada adentro. Já nos domingos, a procura começa ainda no início da tarde e se estende até o final da noite. Os bares que ficam nesse trecho da Vieira de Carvalho parecem ter algumas características comuns, tanto no que diz respeito ao público quanto à própria estrutura. Sempre é possível encontrar uma music box, mesas pequenas e arredondadas ladeadas por 3 ou 4 cadeiras, além de um espaço interno, cujo tamanho varia de um para outro. O banheiro do Sai de Baixo fica num piso superior e o do bar ao lado, nos fundos do estabelecimento. Em ambos os toiletes, percebe-se marcas indeléveis de seu público: nas paredes, diversos escritos feitos à caneta falam de casos desfeitos, intenções de encontros ou declarações de amor para possíveis habituês; tais mensagens são bastante recorrentes nos banheiros dos demais estabelecimentos daquela região. Nesse trecho da Vieira, o público é variado, do ponto de vista etário, e as trocas de carícias acontecem entre os homens em todas as dependências. Poucas mulheres são vistas por ali, dando uma cara quase que totalmente masculina para o lugar. A “fechação” e as estridentes risadas – o que Green (2000) chamaria de camp - são bastante recorrentes e os muitos carros estacionados em frente evidenciam que esses bares não são necessariamente locais voltados apenas para a classe baixa. Prosseguindo, chega-se à esquina com a rua Vitória, onde a boate Freedon, inaugurada pelo falecido ator Jorge Lafond, - onde antes funcionava o bar Rainha Vitória - é uma das poucas da região. A casa cobra entrada e oferece shows de drags, pista de dança, gogo boys e o dark room, sempre anunciados nos flyers. O preço cobrado equivale ao das outras boates das cercanias (entre 5 e 10 reais) e o público também parece ser muito parecido. O que acaba funcionado como o diferencial é a atração oferecida, como os shows de determinadas drags. Sivety Montilla parece ser uma das mais requisitadas e também uma garantia de público para o local, tendo dias e horários definidos para os bares e boates localizados na região central da cidade como a boate
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“Sai de Baixo” é também o nome de uma popular sitcom exibida pela rede globo nas noites de domingo durante alguns anos. Tratava-se das peripécias de personagens de uma família burguesa decadente que possuía um apartamento no velho Largo do Arouche, outrora uma região da cidade bastante valorizada.
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Blue Space, na Barra Funda ou Café Vermont, Queen , Freedon e Salvation58 nas cercanias da Vieira de Carvalho. Continuando na Vieira de Carvalho em direção à Praça da República, diversos outros bares aparecem, com um público freqüentador também diverso, além de uma rede de trabalhadores informais que aproveitam o intenso fluxo de pessoas para a venda de churrascos, sanduíches, pipoca e bebidas. Pode-se ver ainda uma pequena banca, onde uma mulher vestida de baiana, prepara na hora e vende acarajés, bastante prestigiados pelos homossexuais que freqüentam ou passam por ali. Poucos bares exigem consumação mínima, à exceção do Ícone, que cobra o equivalente a uma bebida – normalmente o preço de uma água mineral ou de um refrigerante – e o Queen, que em determinados dias da semana cobra até 5 reais de consumação obrigatória. As diferenças entre o público freqüentador de um ou outro bar têm a ver com questões financeiras e, de alguma forma, isso se reflete nas vestimentas e no tipo de sociabilidade que procuram. O Hábeas Copus, o Caneca de Prata e o Lord Byron são freqüentados principalmente por homossexuais mais velhos, grande parte deles com mais de 40 anos. Recentemente, um bar mais modesto, e que mais parece uma padaria, foi sendo aos poucos apropriado pelos freqüentadores da Vieira de Carvalho; trata-se da Padaria Nova Vieira, que, por estar praticamente ao lado do Caneca de Prata, foi batizado popularmente de Caneca de Lata. Uma característica peculiar desses bares – à exceção do Caneca de Lata - é a luz escura, o que faz com que, no interior desses bares, pouco se possa notar os sinais do tempo estampados na cara das pessoas. Porém, se isso pode sugerir uma forma de enganação, ou mesmo negação da idade, o reconhecimento social entre os homossexuais de que aqueles espaços são freqüentados principalmente por homens de mais idade desvanece essa impressão. Ao contrário, para quem quer sair em busca de envolvimentos afetivos ou sexuais com homens mais maduros, a certeza de que aqueles bares existem ajuda muito. Também não é verdade que todos os homossexuais com mais de 40 anos estarão necessariamente concentrados nesses bares. Muitos percorrem mais de um, ou nenhum deles, preferindo aventurar-se naqueles em que rapazes mais jovens se divertem. Vale lembrar também que eles são mais caros e que alguns só servem chop, o que afasta, de certa forma, a população mais jovem e menos estabilizada financeiramente.
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O Queen e a Salvation, embora muito próximos da Rua Vieira de carvalho, ficam em ruas que a cruzam, todavia, o público é geralmente o mesmo que freqüenta alguns de seus bares.
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Uma outra divisão que, embora não monolítica, pode ser verificada é a questão da cor. Alguns trechos da Vieira de Carvalho são bem mais ocupados por negros do que outros, como é o caso dos bares menores, ao lado do Hábeas Copus, onde se vende cervejas de 600ml, mais barata que nos demais. Os locais um pouco mais caros como o Café Vermont, o Queen e o antigo Rainha Vitória, acabam tendo um público de pele mais clara. Marcelo, meu interlocutor, conhece e freqüenta praticamente todos os bares dali. Suas escolhas geralmente se fazem pela rede de amigos que foi construindo ao longo de suas idas. Assim, dependendo dos locais em que encontre um conhecido, é ali que vai parar, tomar uma cerveja e conversar. O flyers distribuídos nessa região indicam sempre bares e boates também mais populares e para onde se pode deslocar com facilidade – não se deve esquecer que a maior parte dessas pessoas prefere gastar o menos possível em condução - como a Blue Space, localizada na rua Brigadeiro Galvão, no bairro vizinho da Barra Funda. Apesar de não estar tão perto, o trajeto da Vieira até essa boate, e depois de volta à Vieira, é feito muitas vezes a pé. Quando se passa na Brigadeiro Galvão, durante o dia, essa boate é apenas um grande galpão de cor azul, com poucas indicações de que é freqüentada por homossexuais. O que se vê em torno da rua estreita são casas familiares, alguns pequenos comércios, além de moradores e transeuntes ocupando as ruas. Nas noites de final de semana, esse trecho ganha novos ares, com vários homossexuais chegando para aproveitar a noite na boate. Uma vez por ano a boate abre suas portas e leva seu staf para a rua, promovendo um hilariante espetáculo para a comunidade. Trata-se de uma partida de futebol, realizada no mês de Março, quando a boate completa aniversário: “Como já é tradição na data, acontecerá em meio aos dois dias de festa, a hilariante partida de futebol com drag queens e transformistas, com participação de Silvetty Montila, Danny Cowlt, Fátima Fast Food, Grace Black, Greta Star, Jéssica Twister, Liza Bombom, Márcia Pantera, Marcinha, Michelle Summer, Miss Biá, Nata$ha Ra$ha, Pandora Boat, Rafaella, Stefanny de Bourbon, Talessa Top, Thália Bombinha e Yuri Mix”.59
Para assistir á divertida partida, a comunidade ocupa as calçadas e pessoas de diversas idades, homens e mulheres, homossexuais ou não, ficam conhecendo as drags queens, seu vocabulário e as peculiaridades de seu humor, além dos casais com pessoas do mesmo sexo de mãos dadas ou abraçadas.
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Ver: http://www.gaybrasil.com.br/news.asp?Categoria=Agenda&Codigo=102
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Sua proximidade com as estações de metrô Marechal Deodoro e Barra Funda permitem que homossexuais vindos de bairros afastados e também da região metropolitana possam freqüentar a casa mesmo sem possuir um meio de transporte particular. Bem em frente, há um concorrido estacionamento para quem chega de carro e a maioria das pessoas já vem munida de um flyer – adquirido em algum bar, do Centro ou dos Jardins - que possibilita um desconto na hora da entrada. O preço é bem mais acessível do que a de várias outras boates da cidade. Uma vez dentro da boate, o que se vê é um espaço amplo, com três andares: no primeiro, uma grande pista de dança com um palco no fundo, um banheiro e um dark room. No subsolo, também bastante amplo, há o bar, algumas poltronas, um banheiro e uma parede tomada por fotografias de gogo boys, drag queens, freqüentadores conhecidos da mídia – como a do apresentador de televisão Leão Lobo – em festas especiais ocorridas ali. Nas noites de sexta, sábado e domingo, a boate fica totalmente tomada e parece haver uma diferença no público de domingo em relação aos outros dias. No fechamento do final de semana, o público parece mais jovem e o número de homens fortes – as conhecidas barbies – é bem mais intenso. Vale lembrar que poucas boates abrem no domingo, o que faz com que o público de outras casas veja na Blue Space uma opção viável para aquele dia.
Fotos da Blue Space no domingo, um de seus dias mais cheios.60
Em praticamente todas as noites acontecem shows de drag queens, em que se apresentam tanto as mais caricatas – Tália Bombinha, Kate Black, Victória Principal, Pandora Boat, Cinthia Gregori - quanto das top drags – Léo Áquila, Verônica e Dimmy Kier. No domingo, quando a
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http://www.bluespace.com.br/img/bimg04.jpg e http://www.bluespace.com.br/img/bimg03.jpg
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casa encerra mais cedo suas atividades, por volta de 01 da madrugada, o momento do show já é um prenúncio do final da noite. Mas voltando à Vieira, existem em suas proximidades alguns cinemas pornográficos que se colocam como opção para quando o dinheiro se escasseia, ou quando se está com pouca paciência para investir numa paquera. Encontramos o Cine Studio, na rua Aurora, o República, na Ipiranga e o Cine Zen, na São João, todos funcionando 24 horas; mas os cinemões serão melhor explorados mais à frente. Assim, além de espaço de sociabilidade e paquera, os freqüentadores da Vieira contam também com equipamentos voltados para o sexo. Todas essas características parecem estar presentes na representação imaginária dos freqüentadores do centro, representações potencialmente capazes de elaborar um grupo a partir de uma territorialidade. Ao centro se aliou a pobreza, a idade avançada, a pegação e a maior concentração de pessoas com e pele mais escura, sendo tais definições reproduzidas nas trocas sociais através de conversas informais entre os homossexuais. Dessa forma, quando se usa a expressão “bicha do centro”, principalmente por homossexuais que se contrapõem a essa classificação, está se acionando uma série de representações que são vividas socialmente de formas diferenciadas: apreciadas pelos habitues e satirizadas pelos de fora.
b) O “Povo dos Jardins”
Já no final dos anos 70, os homossexuais que, antes, freqüentavam apenas a região central da cidade, começam a se deslocar em direção ao, cada vez mais importante centro financeiro de São Paulo, a Avenida Paulista, primeiramente com a boate Nostro Mondo, localizada na Consolação após sua confluência com aquela avenida, depois com a Medieval, localizada na Rua Augusta. Essa caminhada era o começo de uma história que ligaria umbilicalmente a homossexualidade paulistana à região classe média alta dos Jardins. Isso sem falar do valor simbólico que a ocupação da Paulista pelos homossexuais na Parada do Orgulho GLBT. Durante muitos anos, a Avenida Paulista foi uma área majoritariamente residencial, mas uma lei promulgada em 1952, pelo prefeito Armando de Arruda Pereira, permitiu a construção de edifícios hospitalares e educacionais, estendendo-se posteriormente essa permissão também para estabelecimentos comerciais, escritórios e etc. Mais tarde, ela foi alongada e passou a ter 48 metros de largura e seus casarões passaram a ser substituídos por edifícios. Logo, a Paulista
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passou a abrigar conjuntos comerciais e de serviços, galerias, lojas de departamentos e também o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o complexo viário. Suas antigas feições se modificaram e ela transformou-se em um centro comercial, residencial, cultural e de lazer, por onde passou a circular diariamente um grande número de pessoas.61 A partir da década de 1980, a região em torno da Avenida Paulista passou a abrigar várias casas, que abriram suas portas para receber o público homossexual. A concentração maior de bares e boates para essa clientela se realiza principalmente nas cercanias da rua da Consolação, já em direção aos Jardins, constituindo, em alguns dias da semana e em determinados horários, uma mancha visível no meio urbano. A pesquisa de Spagnol (1998) informava que o limite geográfico da região gay dos Jardins se estende por um quadrilátero que compreende o trecho da Avenida Paulista que vai da Consolação até a Brigadeiro Luís Antônio, encontrando seu limite com a rua Estados Unidos. Mas ressalta também que a rua mais ocupada pelos homossexuais é a Consolação e suas imediações. No decorrer dos últimos 10 anos, essa circunscrição foi um pouco mais dilatada, e a Brigadeiro, já mais próximo do centro, passou a abrigar o clube DIESEL/BASE, enquanto que novos bares e boates também passaram a funcionar no bairro de Pinheiros, aproveitando-se do mesmo público, ainda que, durante todo esse período, a Consolação tenha se mantido como principal referência. Uma etnografia realizada na noite de 31 de agosto de 2001, na região dos Jardins, pode auxiliar na definição desse espaço e de seu público:
Cheguei à Consolação por volta de dez e trinta. Apesar de ainda ser inverno, a noite está bem amena e as pessoas estão na rua com roupas mais leves. As vias ainda não estão completamente tomadas. Conheço essa região bem e sei que, nesse horário, o número de freqüentadores dos bares e casas noturnas da região, ainda não é muito alto. Os bares e boates dessa região são freqüentados por um público predominantemente jovem e aparentemente com mais dinheiro do que freqüentadores da região central da cidade. Pensando sobre isso me acomodei em uma das mesas de um bar chamado Gourmet, na Alameda Franca, quase esquina com a Consolação. Trata-se de um pub pequeno e, para entrar nele, é necessário passar por uma porta de vidro e subir 3 ou 4 degraus de uma pequena e estreita escada que conduz a um pequeno salão onde existem algumas mesas. Uma de suas características mais marcantes são as fotografias e pôsteres de filmes clássicos, espalhados por todos os lados e, para completar a referência ao cinema, uma pequena cadeira de “diretor de cinema” ajuda a compor a decoração. A música varia entre pop, rock, dancing, techno e músicas nacionais dos anos setenta e oitenta como Sídney Magal, Gretchen, Tim Maia e Jorge Bem. Tudo isso leva a crer que a decodificação dessa decoração requer um público culturalmente mais 61
Ver: http://www.educacional.com.br/reportagens/sp450/textovpsavpaulista.asp
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elaborado; que tanto entenda de cinema como consiga perceber o humor de se tocar Sídney Magal e Gretchen junto a um repertório mais cool. O bar possui apenas um banheiro para homens e mulheres, em frente ao qual há sempre uma pequena – ou grande, dependendo do horário - fila formada Não foi difícil conseguir uma mesa, pois, estando o bar ainda com poucos clientes, consegui um lugar que me permite observar tanto o bar em que estou como o outro que fica na esquina do lado oposto, onde normalmente se aglomera um público majoritariamente masculino, jovem e com roupas de grife. O bar em que estou também é conhecido por um público mais “moderno”, que utiliza roupas pouco convencionais e cabelos e adereços que acentuam essa diferença. Peço uma cerveja ao garçom. Rapidamente, tanto o bar em que estou como o da frente começam a ficar cheios de pessoas. Neste último, começa a formar-se um amontoado de homens e algumas poucas (bem poucas) mulheres. Não há cadeiras na frente do bar e todos ficam de pé. Passar ali, como tentei fazer em alguns momentos, chega a ser bastante difícil. No Gourmet, também um grupo se aglomera na frente, encostando-se nos carros estacionados ou em uma parede que existe ao lado desse estabelecimento. Chega um momento em que entrar no bar já é uma tarefa difícil. Depois de permanecer nesse bar por mais ou menos uma hora, paguei a conta – ele é bem mais caro que os bares do centro da cidade - e fui caminhar pela região. As ruas já estavam totalmente cheias e os carros se movimentavam lentamente. O bar da esquina estava muito cheio. Resolvi parar um pouco e observar. Os tipos, apesar de bem diferentes (negros, brancos, altos, baixos, gordos, modernos, discretos, quaquás, mulheres, barbies), eram constituídos basicamente por gays que acredito ter entre 17 e 40 anos e provenientes da classe média (alta ou baixa). Os trabalhadores do bar estão vestidos como se trabalhassem em uma padaria ou num restaurante mais popular. Usam uma bata amarela e, pelo menos dois com os quais mantive contato, eram nordestinos. Não me pareciam ser homossexuais. Em alguns momentos, chegavam mesmo a tirar brincadeiras um com o outro envolvendo suas sexualidades. A cerveja é bem mais barata que no Gourmet, mas nesse bar não há mesa ou mesmo música. Ou se toma a cerveja sentado em um banco em volta do balcão ou pega-se a cerveja, junto com alguns copos de plástico, e toma-se fora do bar, que é o que fazem a maioria das pessoas ali. Do lado de fora as pessoas se olham mais, examinam melhor tanto quem está parado ali como quem passa. As chances de uma paquera são muito maiores do que no bar em que eu estava anteriormente. Um ponto interessante a ressaltar é que o público do Gourmet por vezes sai e para ali no bar da esquina, mas nem todo mundo que está neste último se enquadra entre o público do primeiro. A diferença dos freqüentadores, talvez, se refira ao fato de que, estar parado ali no bar da esquina tem algumas funções: encontrar conhecidos, paquerar, conversar. Isso conduz a pensar que, devido a esses motivos, a freqüência desse bar é basicamente de homossexuais. No Gourmet, existem ainda pessoas que se identificam com determinados estilos de vida (moderno), com determinado tipo de música ou com o uso de algumas drogas. Não é necessário, portanto, que todos os freqüentadores sejam necessariamente homossexuais para estar ali. Mesmo alguns artistas conhecidos da mídia, que compartilham dessa visão “moderna”, freqüentam esse bar. Uma observação interessante ressaltada por um interlocutor, numa conversa informal, é que, no bar da esquina, a freqüência majoritária de homossexuais se dá, basicamente, nos dias mais movimentados (de quinta a domingo). Nos outros dias, ou mesmo em outros horários, esse bar é freqüentado por um público mais popular e não necessariamente homossexual, pois o bar oferece pratos feitos por preços mais acessíveis. É interessante notar também que, apesar da grande freqüência de homossexuais nos finais de semana, o bar não consta no guia gay de São
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Paulo divulgados nas revistas e sites voltados para os homossexuais. O fato de estar naquela região acaba explicando a ocupação por parte do público gay. Uma outra aglomeração de homens acontece também em um outro bar na rua da Consolação. Do bar da esquina, eu podia ver claramente o grande número de homens parados à porta desse estabelecimento, bem mais do que onde eu estava. O bar se chama Allegro e cobra uma taxa mínima de consumação. É realmente impressionante o número de pessoas que ficavam ali paradas e não era porque estavam esperando lugar ou mesmo porque não tinham dinheiro para adentrar. A consumação mínima exigida não é cara em comparação com o preço de bares e boates ali da região; era de R$ 5,00. A aglomeração é que, por si só atraia outros homens. O público que parava em frente ao Allegro não diferia muito do bar da esquina. Apenas algumas pessoas aparentavam ter um pouco mais de dinheiro, mas a maioria se vestia da mesma forma e comportava-se de forma parecida. Mesmo do outro lado da rua, em frente ao bar, concentram-se pequenos grupos de homossexuais que conversam ou que param sós, munidos de uma cerveja ou um cigarro e observam atentos tudo o que se passa e quem caminha por ali. Aproveitando essa aglomeração que se forma nessa região, existem muitos divulgadores das casas noturnas e bares gays, tanto daquela região como de outras. Enquanto eu observava os três bares relatados, recebi flyers de algumas casas noturnas (BASE. Massivo, E-male, Ultra Lounge, Joana Darc, SoGo, Station, e Muzic). Esses divulgadores, quase sempre, estão vestidos de forma diferenciada. Alguns de drag queens, outros com roupas mais “modernas”. Esses últimos são quase sempre rapazes bonitos, o que certamente ajuda na divulgação e são alvos de muita paqueras. Essa região permanece cheia até mais ou menos duas da manhã. Depois desse o horário, a maioria das pessoas se dirige a alguma boate, onde vão permanecer até o final da noite. Com base nessa breve etnografia, é possível perceber que os freqüentadores dessa região são majoritariamente jovens, investem bastante no vestuário, são de pele mais clara, com maior poder aquisitivo e, possivelmente, com bom acesso educação. Claro que essa definição não é monolítica e outros caracteres sociais podem vir a se somar aos acima descritos. Todavia em bem menor quantidade. Por aquelas ruas, um tipo ideal de homossexualidade foi se produzindo “público dos Jardins” – e, a ele, foi se aliando determinados gostos e estilo de vida. Esse tipo ideal acabou adentrando a mídia e passou a ser divulgado pela imprensa que, em algumas reportagens, chegava a positivar a homossexualidade e representar a homossexualidade a partir das características observáveis entre os homens que freqüentam os Jardins. No dia 12 de fevereiro de 2003, o site da Veja comentava sobre a grande visibilidade gay observada na região da Avenida Paulista. Uma foto em destaque da boate Ultralounge lotada aparece sobre a legenda: “Pista cheia no Ultralounge: espelhos, paredes vermelhas e noitadas que atraem até 500 pessoas”. A matéria prossegue mostrando como essa região foi sendo historicamente apropriada pelos homossexuais, lembrando que: Hoje, suas transversais continuam badaladas. Só que a freqüência mudou. E como mudou. Multiplicaram-se pela Rua da
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Consolação, Alameda Itu e Alameda Franca bares, restaurantes e clubes GLS.62 A mudança de público, de que fala o jornalista, se deu basicamente do lado dos Jardins, bairro que também abriga lojas caras, além dos condomínios e edifícios de luxo. A matéria segue lembrando que metade dos endereços com público predominantemente homossexual (os clubes serem descritos como GLS, sigla que será melhor explorada mais a frente) se concentraria nos arredores da Avenida Paulista. Pensados nessa matéria como pessoas com alto poder de compra, os homossexuais esses indivíduos seriam fundamentais para o sucesso de um restaurantes ou uma casa noturna. Todavia, a despeito dessa classificação imediata dos locais como gays ou GLS, alguns proprietários negam o rótulo, temendo uma definição de público somente entre os homossexuais:
Nem todos os estabelecimentos com freqüência GLS, no entanto, gostam de ser reconhecidos como tais. É o caso do Ritz, na Alameda Franca, uma das mais fervilhantes mesas dos Jardins. Vive lotado, seja no almoço, seja no jantar. No horário comercial, de segunda a sexta, circula por ali um público convencional. À noite, o ambiente esquenta. Há muita gente de coluna social, publicitários e garotas bonitas. Por volta da meia-noite, sua porta vira ponto de encontro gay. Mais badalado e maior, o Spot, na Ministro Rocha Azevedo, não tem uma rotina muito diferente. Mesmo assim seus proprietários preferem não vê-lo rotulado. "Não é preconceito, só não queremos ficar restritos a uma clientela gay", explica Sergio Kalil, sócio do Ritz e do Spot. O Mestiço, na Rua Fernando de Albuquerque, também adota a mesma postura. "Surpreendentemente, casas que há muito foram incorporadas pela comunidade não quiseram fazer parte do meu livro", diz Mário Viana, editor do Guia Gay.63
Na verdade, pouco importa de fato se os proprietários identificam sua casa como Gay ou GLS. Essa é uma briga que se trava mais entre eles e a imprensa do que necessariamente com seu público, que continua a usar as dependências desses estabelecimentos para sua sociabilidade, não poupando as brincadeiras ou mesmo as carícias, sem qualquer restrição. O poder de compra da “comunidade gay” é mais uma vez ressaltado quando o jornalista se refere a novas apropriações: A comunidade que antes só fazia a cena noturna passou a freqüentar shoppings, cinemas e academias das imediações. Na praça de alimentação do Shopping Paulista, aos domingos à tarde, acontece uma espécie de happy hour gay. No Top Center, homossexuais preferem a academia Runner, instalada na própria galeria. O Unibanco Arteplex, no Shopping Frei Caneca, também entra nessa rota, com pré-estréias que abordam a diversidade sexual. Há ainda marcas que conquistaram o bolso dessa turma, como A Mulher do Padre e a Slam, ambas na Galeria Ouro Fino, na Rua Augusta.64
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Ver: veja.abril.com.br/vejasp/240402/cidade.html Ver: veja.abril.com.br/vejasp/240402/cidade.html 64 Ver: veja.abril.com.br/vejasp/240402/cidade.html 63
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Por essas frases, somos levados a pensar que os homossexuais apenas recentemente passaram a freqüentar os shoppings, cinemas e academias da imediação, ou comprar em algumas lojas. É como se, antes de uma visibilidade pública, consolidada pelo grupo, os homossexuais não usufruíssem desses espaços. A leitura deve ser outra, agora calcada na idéia de que essa região foi visivelmente apropriada pelos homossexuais e que o conhecimento público disso os livrou da opacidade que marcava suas experiências. Vistos como consumidores específicos, como mostrarei no capítulo seguinte, se tornavam mais notórios. Os freqüentadores do Jardins, na medida em que se tornavam os representantes da “boa homossexualidade” foram se diferenciando no cotidiano dos freqüentadores do centro por características sociais que passaram a se impor como um tipo de fronteira imaginária. Para muitos dos habitues dessa região, não era de bom tom freqüentar os bares e boates do centro, o que significaria, em alguma escala ser uma bicha do centro.
c) Os amantes da cena moderna
No bairro da Bela Vista, região central de São Paulo, mais especificamente num velho casarão de número 873 da rua Conselheiro Ramalho, uma casa noturna de ares completamente inovadores, abrem suas portas em meados da década de 1980. Tratava-se do lendário Madame Satã que, entre 1984 e 1986, foi freqüentado por um público diverso, interessado nas inovações musicais e no estilo de moda que era visto por ali. Sempre vestidos de preto, os freqüentadores dessa casa ousaram não apenas nas roupas, consumo de músicas e drogas inovadoras e também nas atitudes pouco comprometidas com as divisões de gênero que marcavam a sociedade paulistana nesse momento.
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No Satã estavam os punks, os roqueiros, pessoas ligadas ao mundo da moda e demais boêmios que apostavam na noite, sem que uma divisão separasse efetivamente homossexuais de heterossexuais. Aliás, a negação dessa divisão parecia ser uma das atitudes de contestação a que se prendiam os habitues dessa boate. Definitivamente, o Madame Satã entrou para a história como o berço da cena moderna de São Paulo. (PALOMINO, 1999) Enquanto o país voltava timidamente a conviver com a democracia, arrancada a força durante duas décadas de ditadura, uma leva de jovens, tributários dos movimentos de contracultura, tinham mais espaço para viver o hedonismo que tomavam por filosofia. Se não se pode afirmar que os freqüentadores do Madame Satã, propunham algum tipo de afirmação política engajada, pode-se ao menos supor que aquelas pessoas tinham consciência de que estavam quebrando tabus, inovando, sendo modernos. A casa abria todos os dias, a exceção dos domingos e, em todos eles, contava com um numero fixo de apreciadores. Os rumores sobre a existência de um local freqüentado por pessoas exóticas, sempre vestidas de preto, muitos deles homossexuais oriundos dos meios artísticos e jornalísticos se espalharam pela cidade, atraindo tanto os curiosos, que com o passar do tempo também se tornariam eles mesmo habitues. Havia também aqueles que não viam com bons olhos
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a liberalização que o Madame Satã proporcionava, caso dos skinheads, que voltam sua ira contra homossexuais, drogados e outros segmentos “marginais” e que vez ou outra apareciam para tentar moralizar o ambiente.(PALOMINO, 1999). Aprovados ou não, aquelas pessoas e aquele comportamento eram diferentes. Sobre as músicas, parece iniciar-se ali algo que se colocaria como um dos principais fenômenos da noite moderna paulistana, o poder dos DJs. O DJ é o responsável pelos estilos musicais consumidos num bar ou numa casa noturna. Todavia, no passado, as músicas não pareciam ser tão determinantes na escolha de um espaço ou o responsável por elas não era um profissional cujo nome se sabia, capaz de definir um público. Os estilos musicais tinham mais relação com a moda das pistas e qualquer um podia tocar Donna Summer, Diana Ross ou Glória Gaynor e as pessoas ficariam satisfeitas. Eram as músicas da moda. Os responsáveis pela música do Madame Satã eram os Djs Magal e Marquinhos MS (as iniciais da casa) e, em torno deles, se formou uma legião de fãs que, segundo Palomino (1999), ficaram órfãos quando a casa deixa de funcionar. Alguns dos estilos musicais explorados hoje na cena moderna paulistana ensaiavam, pelas mãos desses djs, e no Madame Satã, seus primeiros passos. Do rock alternativo, se chegou ao house music, que já vinha sendo executado em outros países. Para divulgar esse estilo musical em terras brasileiras, o DJ Marquinhos MS recorreu a programas de rádio dedicados à dance music e fez da pista do Satã um espaço de experimentação musical. O Madame Satã chega ao fim oficialmente em 1992, mas bem antes disso, já havia deixado de ser freqüentado por muitos de seus apaixonados seguidores. Alguns dos “órfãos” dessa casa noturna como Paulo Santana, Eloy W., Daniel Almeida, marquinhos, César santos e o DJ Ulisses Cavassana ainda tentaram reviver o clima de liberdade e hedonismo que haviam experimentado na pista do Satã. Tratava-se do “clubinho” Dandy’s Club, localizado na rua Brigadeiro Luis Antônio, onde 150 pessoas – a maioria delas amigos e conhecidos – se dividiam nos dois (apertados) andares da casa. O clube durou apenas seis meses e entrou para a galeria de mitos, pois, lá, alguns personagens da noite se reuniam informalmente para dar início àquela que seria outro marco da noite moderna de paulistana: a Nation. Um nome chave para essa história é o de José Francisco Tenório de Albuquerque (Chiquinho), dono das boates Val Show, na Frederico Steidel e Val Improviso (Valzinho), na Marques de Itu – ambas localizadas no centro da cidade e especializadas na apresentação de
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shows de travestis.65 Pouco tempo depois que a Dandy’s chegou ao fim, Chiquinho se teria se unido a Eloy W e Paulo Santana e também aos DJs Renato Lopes e Mauro Borges para fundar uma casa noturna que daria prosseguimento ao clima de modernidade trazido pelo Madame Satã, acolhendo seus “órfãos”. O Nome da casa foi retirado da música Nation, da banda Colorbox, escolhido também pela possibilidade de traduzir o sentimento de grupo que enredava aquelas pessoas; elas realmente acreditavam fazer parte de uma nação jovem, moderna, diferente e antenada com o que de mais inovador acontecia em termos musicais em outras cidades do mundo como Londres e Nova York. Assim, a Nation Club66 nasce tanto de um gosto musical cosmopolita – por ser estilista, Walter Rodrigues viajava com bastante freqüência para a Europa, trazendo de suas viagens vários discos e informações sobre novos estilos de vida da juventude - quanto pela ação de pessoas que freqüentavam o “submundo” homossexual no final da década de 1980, no caso, a histórica boate Nostromondo. O mainstream e o underground, pelo menos nesse período, pareciam manter um certo diálogo. A decoração da Nation valorizava o exótico e o psicodélico. Como o Satã, esse clube também abria várias vezes durante a semana, mas pontuava um diferencial em relação às outras casas: buscavam sempre inovar nas quintas-feiras, fosse nos convites, nos brindes ou na decoração. No interior da boate, via-se jovens inovando nos passos de dança ao som de músicas internacionais pouco executadas no país, dando mostras públicas de sua “insanidade” momentânea. Havia uma ante-sala reservada, localizada atrás da cabine, onde entravam apenas os amigos mais íntimos, onde rolava de sexo a drogas. Para quem não fazia parte desse círculo, as pias de mármore do banheiro surgiam como bons espaços para cheirar cocaína, a droga mais consumida do clube. (PALOMINO, 1999) Os freqüentadores da Nation parecem, desde cedo, ter chamado a atenção da polícia. A concentração de pessoas vestidas de maneiras pouco convencionais, enfileirando-se na entrada da galeria, de cabelos espalhafatosos e maquiagens vampirescas não deve ter passado despercebida. 65
Mesmo antes da criação dos after-hours, que só se iniciariam oficialmente com o Hells Club, em 1994, essas duas casas noturnas já adentravam o dia, funcionando até 11 da manhã. Vale lembrar que, como recebiam um grande número de travestis – apresentando os shows ou assistindo a eles -, a casa enchia mesmo quando o horário de trabalho (prostituição) já estava acabando, podendo então essas pessoas se dedicar a sua própria diversão, namoros, etc. Dessa forma, as boates voltadas para travestis acabavam permanecendo em funcionamento mesmo após o nascer do sol. Palomino (1999) lembra que essas boates eram emblemas do underground paulistano, pelas quais até o cantor Caetano Veloso já havia passado.
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Uma etnografia dessa casa noturna pode ser encontrada no texto de Maria Inês Calil em Magnani e Torres (1992).
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Mais, os freqüentadores, cientes da imagem que causavam na polícia já haviam desenvolvido estratégias de como se comportar em batidas policiais, livrando-se das drogas ao menor sinal de perigo. No que se refere ainda ao uso de drogas, foi provavelmente na Nation que uma droga inédita, chama ectasy, começou a ser apreciado no Brasil. Segundo Palomino (1999) foi numa noite de 1991 que apareceu alguém vendendo o curioso comprimido com o qual alguns já haviam tido contato durante suas viagens ou apenas ouvido falar. Nessa noite, mais ou menos trinta pessoas tomaram a droga, ainda sem saber de seus efeitos. Apenas uma coisa se sabia sobre ela: era uma substância moderna, que os faria mais modernos. A presença de homossexuais, que desde o Madame Satã já se confundia com o estilo moderno, era intensa. Vale ressaltar que o descomprometimento de alguns homossexuais com a heteronormatividade combinava com a quebra de tabus que os ambientes modernos pretendiam esboçar. A despeito disso, as pessoas pareciam estar bem mais preocupadas em viver sua loucura, ou seja, dançar alucinadamente, usar drogas, beber e aparecer. Não ter problemas com a orientação sexual do outro era um valor para os freqüentadores. A Nation iniciou um processo de profissionalização de alguns estilos musicais no Brasil, notadamente o house music e o techno. Em entrevista concedida à Érika Palomino, o dj Renato Lopes afirma que: “O momento influenciava as pessoas. No Nation, meu som ainda tinha resquícios do que eu tocava no Satã. Sobrou o eletrônico, o sincopado. O acústico foi limpando – daí foi entrando o novo, tudo que era esquisito eu gostava”. (PALOMINO, 1999). A herança legada pelo Madame Satã parecia se traduzir na busca pelo som pouco comercial, pouco divulgado e isso foi se tornando um estilo que começava a ser reconhecido pelos freqüentadores da Nation. Vale ressaltar que, nesse momento, a moderna noite paulistana não convivia ainda com uma rígida separação dos estilos musicais, que foi progressivamente distanciando e criando nichos para os diferentes estilos jovens como o pop - uma parte desse repertório vem sendo chamado hoje de drag hits – e a musica eletrônica. Na mesma noite e na mesma pista, públicos diferentes se revezavam; uns dançavam ao som experimental de Renato Lopes enquanto outros se entregavam aos pops de forte apelo gay das músicas de Mauro Borges, incondicional apreciador de Madonna, um dos maiores ícones gays da última década. De uma certa forma, Mauro Borges teve grande importância na associação da cena moderna com os comportamentos homossexuais, privilegiando em seu repertório musical
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diversos símbolos da cultura gay. Lembro que nesse período, quando comecei a freqüentar as primeiras boates gays, ainda em Belém do Pará, as músicas de Madonna eram coreografadas em shows de dublagens, sendo também intensamente vividas nas pistas, com todas as caras e bocas a que tinha direito. Na Nation quem sabia toda a coreografia, virava o centro das atenções, fosse para elogios ou para deboches. A profissionalização da noite moderna passou também pela criação de personagens que compunham um staf, hoje já recorrente nas casas noturnas desse tipo. Na Nation, havia sempre alguém responsável por receber as pessoas na entrada da boate. Lá, Eloy W. – uma das primeiras aparições de um door, ou hostess, na noite paulistana - recepcionava os convidados, sentado no balcão, mesmo de pé, ao lado. Bebet Indarte, a gaúcha de cabelos pretos e modos engraçados, lendária personagem desses anos e funcionária da Nation, lembra... “(...) a figura mais importante não eram os DJs nem eu. E sim ele, que era muito mais carismático (...). Ele brilhava mesmo sem estar com roupa de paetês, usava modelões na época só ele conseguia usar. Ele tinha uma mente muito fantasiosa, muitas idéias boas. Conversávamos muito, ficamos bem amigos, trabalhávamos lá em, cima, na galeria, tínhamos muita coisa em comum, eu gostava muito dele, falávamos muita futilidade, marca de maquiagem, roupas... Lembro que quando Malcolm McLaren lançou Deep in Vogue ficamos tentando dançar o vogue sem saber, fazendo muito carão. O single flop do Jean Paul Gautier, House couture, era nosso hino, apesar da música ser bem ruinzinha...” (Entrevista concedida a Palomino, 1999).
O que começou de brincadeira acabou se tornando uma das condições para as casas noturnas que surgiriam no futuro, criando inclusive normas para isso. Um(a) hostess deveria sempre se destacar no visual e ter uma personalidade extravagante. Futuramente, algumas casas chegarão, inclusive, a destacar o nome desses personagens nos flyers. As brincadeiras de Eloy W. e Bebete Indarte na entrada da boate anunciavam que, ali dentro, os homossexuais poderiam ficar a vontade para arriscar as coreografias do vogue – ou qualquer outra – e com a certeza de que isso era moderno, como tudo que acontecia na Nation, das músicas aos modelões. Depois de algum tempo, a Nation se torna conhecida nacionalmente em virtude do sucesso de um grupo musical que nasceu ali dentro. Mauro Borges e Bebet Indarte criaram o grupo Que Fim Levou Robin – uma escrachada brincadeira com as “suspeitas homoeróticas” sobre o envolvimento dos super-heróis Batman e Robin, clássico das revistas em quadrinhos – chegando a aparecer bastante na mídia e se apresentando em vários programas de tv de grande
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audiência. Nas suas aparições, sempre deixavam claro que era um grupo composto pelo staf da Nation, a mais moderna boate de São Paulo na época. Algumas das músicas – Tia, um dia você vai ser e Aqui não tem chanel – brincavam com um linguajar recorrente no interior da boate e também deveras conhecido dos demais bares e boates gays da cidade e falavam da “confusão” sexual ali experimentada.
“O que eu olho não é o que eu vejo Aparência é pura ilusão Rosana pode ser Roberto Ou Roberto será Rosana ou não Garotos não são mais garotos Garotas não são o que são Você vive sozinho Pronto pra ser tia de alguém Tia de todos os seus sobrinhos Tia de você também” (Trecho de Tia, um dia você vai ser)
A afirmação de uma cultura gay vinha de forma discreta, hilária e pouco política, no sentido estrito do termo. Todavia, acredito que uma vez que essas imagens da homossexualidade, até então restrita ao submundo ou aos “guetos”, aparece nacionalmente positivada pelos emblemas da modernidade, uma associação cada vez mais popular entre a ela e a cena moderna vai se instaurando no imaginário paulistano e também nacional. Uma imagem divertida, que ria de si mesmo e dos outros, e que vendia. O final da Nation Disco Club coincidiu com o final do grupo Que fim levou Robin e também com os avanços da AIDS no Brasil. O sucesso alcançado pelo grupo musical trouxe para o território moderno dessa casa freqüentadores diversos, transformando a elitizada cena moderna num espaço popularizado a que recorreram os curiosos. De exceção, passaram a centro das atenções. Além disso, o sucesso havia gerado também desentendimentos entre o núcleo de amigos que mantinham abertas as portas da Nation. Nesse mesmo período, Paulo Santana e Eloy W. descobrem-se portadores do vírus da AIDS. Num período de medos e dúvidas, as pessoas davam respostas diferentes às experiências da soropositividade. Alguns procuraram não tombar diante dos sintomas, como fez Paulo Santana enquanto outros, como Eloy W., se retiraram da cena e encararam a AIDS como uma sentença de morte. Depois de completar três anos, em maio de 1991, O Nation já vivia seus últimos meses de
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existência. Mas legou para o futuro um estilo de noite – e de vida – que seria lembrado e perseguido no futuro. O underground, e muitos dos seus elementos como o escracho homossexual, as roupas extravagantes, as drogas, o techno, o house e a linguagem dos guetos gays, havia virado mainstream. Com o final da Nation, outras casas surgiram na cena moderna e afirmaram-se como o que de mais sofisticado havia para a juventude que pretendia ainda respirar os ares de modernidade trazidos pelo histórico clube. Enquanto Eloy W., Paulo Santana e o DJ Renato Lopes iniciam um projeto das noites de terças no clube Columbia (rua Estados Unidos), inaugurado em 1991, o Dj Mauro Borges e Bebete Indarte associam-se aos irmãos Paulo e Walmir Santos para fundar no numero 1548 da Alameda Itu (Jardins), onde funcionava uma casa noturna chamada Vênus de Milus, o Massivo. A nova casa, uma vez sob a direção de Bebete Indarte e Mauro Borges não apenas reviveriam certos elementos presentes na Nation como também afirmaria o estilo musical a que esse DJ se dedicava, valorizando a cultura gay, ainda que sua proposta não seja exatamente a de criar uma casa de freqüência exclusiva de homossexuais. A inauguração do Massivo, que se daria no dia sete de novembro de 1991. “Pela primeira vez se apresenta ao público alguns fundamentos da cultura club, como o culto ao DJ e a preocupação com a atmosfera do lugar, num tempo em que os templos dançantes eram, herança dos anos 80, espaços milionários onde o importante (para o público e para a mídia) era quanto se gastava com a decoração e com a reforma – e quanto se pagava pelo uísque. O Massivo não gasta quase nada com as reformas. As paredes continuam com os revestimentos cafonas de veludo que estava lá; apenas a pista é quebrada, recebendo o piso quadriculado em preto e branco, que se tornaria uma das marcas da casa. A (depois) famosa gaiola pendurada sobre a pista já existia, junto a escada para o mezanino”.(PALOMINO, 1999)
Freqüentei o Massivo a partir de 1996, ano em que me transferi para São Paulo e essa boate ainda conservava muito dessa descrição. Eu acrescentaria apenas que o espaço era pequeno e fazia com que, mesmo com um número não tão grande de pessoas, a casa estivesse intransitável. E essa lotação era uma das atrações. Nas gaiolas, sempre se via várias pessoas, que não eram funcionárias da casa, dançando freneticamente ou misturando seus corpos em coreografias sensuais, sem dúvida uma das principais marcas do local. Ouvia-se fartamente as músicas de Madona, Kylie Minogue e vários sucessos da era disco.
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Bar do Massivo67
Pista do Massivo68
Pista do Massivo69
As festas ocorriam nas quintas, sextas e sábados, sendo que na quinta a casa era freqüentado principalmente pelos amigos (insiders, como quer Palomino), pessoas de classe média que podiam se dar ao luxo de “fazer balada” durante a semana, nas sextas recebia os amantes de rits da década de 70 – Donna Summer, etc. – enquanto que nas noites de sábado, Mauro Borges fazia um mix das músicas executadas nas noites anteriores. Em sues estudos sobre o fenômeno da bissexualidade, Marjorie Garber (1995) afirma que, entre os jovens, a década de 80 finaliza com a consagração da experimentação e da variação entre parceiros de sexos diferentes, proporcionados por ícones da cultura pop como Mick Jaeger e Anie Lennox. Os ecos dessa explosão parecem ter chegado ao Brasil e foram notoriamente
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http://images.guiasp.com.br/fotos/interna/n-massivo_b.jpg http://www.gchannel.com.br/fotos/Massivo_1_ANO/bar_Massivo.jpg 69 http://mixbrasil.uol.com.br/roteirao/cidadesmix/annovo/massivo_f.jpg 68
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experimentados na pista do Massivo, que parecia ter por filosofia a total permissividade no que se referia à sexualidade. “Meninos ainda em dúvida quanto à sua própria sexualidade se permitem ficar com outros garotos – e na próxima noite de novo com garotas. Já as garotas podem beijar outras garotas sem precisar sair com rótulos ou sob os olhos da opinião de todo o clube. Aliás, ao contrário: o mais moderno é (de novo os 70) ser bissexual. Sob consentimento, casais se desfazem ao entrar no clube para se encontrar somente à saída. Na gaiola, o grande palco para desvarios: bofinhos heterossexuais se rebolam em sensuais coreografias; bichas montadas de mulher fazem shows espalhafatosos e divertidos; moças de classe média criam verdadeiras performances de lascívia”. (PALOMINO, 1999)
O clima de hedonismo recriado pelas palavras de Palomino pode nos sugerir algumas leituras sobressalentes. A trajetória de um jovem paulistano que, em meados da década de 1990, começava a experimentar seus primeiros envolvimentos homoafetivos pode nos ser um bom exemplo. “Mas quando eu queria vê-lo de qualquer jeito, eu corria para o Massivo, pois ele o freqüentava de quinta a sábado e o que predominava lá era muita gente bonita e jovem. Com um som eletrizante para dançar feito louco, existia um excelente clima, para paquerar. Mas isso não quer dizer que estava livre para caçadas. Estava geralmente acompanhado de pessoas que não sabiam ao certo minhas preferências; eu não dava mole. Mas eu também não sabia qual era a do Glauber! Embalados ao som de Glória Gaynor era impossível trafegar sossegadamente do bar para aquela minúscula pista ‘do bem’. Possível era, esbarrar com algum ator galã de novela e mais... sentir explícita e literalmente, aqueles corpos bem talhados pela musculação e cavalares ereções de alguns rapazes mais afoitos. E foi no meio desses ‘confrontos carnais’ e deste empurra-empurra de mão boba que eu avistei pela primeira vez aquele cara”.70
Em meio à inversão de valores que aquele espaço – ouso dizer, ritual – possibilitava também que homossexuais que não pretendiam assumir-se publicamente como tal pudessem freqüentar essa boate e desfrutar dos toques, carícias e paqueras ali vividas sem que fossem, necessariamente classificados como gays ou lésbicas. Ali, seriam modernos. Para os que não se importavam com rótulos, o Massivo era um excelente espaço de afirmação de uma sexualidade transgressora, como parece ser o caso das “bichas montadas de mulher” que davam um show a parte. Uma dessas bichas se tornaria um dos conhecidos personagens da cena moderna dos anos posteriores: o magérrimo Johnny Luxo, que usava as sobrancelhas arqueadas, lembrando Elizabeth Taylor, dançava duro, com os braços recolhidos e as mãozinhas fechadas. (PALOMINO, 1999). 70
Esse trecho foi retirado de uma autobiografia escrita por Marcelo Bandeira – Bandeira Camuflada: Tentações de um jovem – uma publicação encomendada (Ângela Lara Editora) na qual não consta o ano de publicação. Os grifos são do autor.
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Em 22 de maio de 1992, o universo das “baladas” passa a receber um grande incentivo por parte da imprensa. Foi quando a jornalista Érika Palomino lançou o primeiro número de uma coluna semanal – sai às sextas-feiras, no caderno “Ilustrada” do jornal Folha de São Paulo (“Noite Ilustrada”). Essa coluna trazia crônicas da noite paulistana, mas se centrava principalmente nos elementos da cultura clubber, da qual a jornalista parecia ser “nativa”. Através da “Noite Ilustrada”, um grande número de leitores entrou em contato com elementos do underground presentes nas casas noturnas freqüentadas pela colunista, principalmente o vocabulário. Mais do que isso, a jornalista promovia uma espécie de democratização desse tipo de sociabilidade e o alavancava, na medida que, ao comentar sobre o cotidiano desses espaços também indicava seus endereços e a etiqueta que devia ser utilizada no interior desses espaços. Através de suas palavras, o grande público ficava sabendo, por exemplo, que não é “de praxe”, solicitar músicas ao DJ, pedir ao segurança para entrar para dar uma olhada prévia no interior das casas, que tipos de vestimentas usar em determinados locais. Outro comportamento indicado era também manter a “naturalidade” frente aos envolvimentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo no interior desses espaços. O clima de novidade do Massivo perdurou – embora ele tenha se mantido em funcionamento até o ano de 2004 – durou até que uma outra casa abriu suas portas; um lugar diferente, mas que recebia um público parecido. Inicia em São Paulo a história do Sra. Krawitz.71 Se o Massivo havia se firmado principalmente a partir do grupo de insiders, saudosos dos áureos tempos da Nation, o Sra Krawitz, que abriu suas portas no bairro de Santa Cecília (Rua Fortunato, 32) recebia qualquer interessado em experimentar o underground que parece ter se tornado a febre moderna daqueles anos. Alguns elementos introduzidos na noite paulistana pelo Sra. Krawitz podiam ser facilmente reconhecíveis. Seu promoter, Nenê, um assíduo freqüentador das baladas modernas da cidade, inaugurou a casa em setembro de 1992 e fazia questão de afirmar que, ali, o que importava era fazer o que se tinha vontade. Outro diferencial, e que chegou a causar uma certa preocupação para seus organizadores, era sua localização fora da região dos Jardins, ocupando uma área mais escura e decadente, onde no passado havia funcionado uma oficina mecânica, na Santa Cecília.
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O nome Sra. Krawitz – sugerido por nenê, o promoter da casa - foi tomado de empréstimo de uma das personagens do seriado “A Feiticeira”, mais especificamente a vizinha da feiticeira Samantha.
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Logo que se passava pela porta, uma escada escura levava ao mezanino onde estava a cabine de som, onde havia também uma chapelaria, na beira de outra escada, bastante concorrida nas noites frias, que levava até o pavimento onde estava o bar principal e os banheiros. O clima de libertinagem de que se tinha notícias no interior do Sra. Krawitz correu a cidade e muitos de meus interlocutores que freqüentaram essa casa ressaltam histórias que criam uma mitologia em torno dela e a diferenciava de outras. O número de homossexuais também era facilmente percebido pelos inúmeros casais que, encostados nas paredes, alguns sem camisa, abraçam-se e se beijam intensamente, pouco preocupados com o público à sua volta. O banheiro era um espetáculo à parte e, ainda que o chão ficasse sempre inundado, nunca havia água nos vasos sanitários. Embora separados entre masculinos e femininos, essa diferença nunca foi respeitada pelos habitues. Ali, algumas pessoas iniciam uma tradição que se repetiria em outras casas no futuro, a de formar grupos que ficaria boa parte do tempo no banheiro, fosse em divertidas conversas ou entrando em grupo nos reservados para consumir alguma droga – principalmente cocaína. As cenas de sexo também eram recorrentes. Em entrevista a Érika Palomino, o promoter Nenê lembra que:
“O Krawitz era o tipo de casa em que as pessoas enlouqueciam. Não tem como negar que tinha gente que ia ao banheiro para trepar, ficar conversando, para se colocar, para retocar a maquiagem... Mas principalmente o banheiro era um ponto onde muitos se encontravam para falar o que tinham visto na noite, para comentar algum detalhe que tinha acontecido na pista” (PALOMINO, 1999).
Em termos musicais, o Sra. Krawitz investiu na pesquisa e execução de músicas que não tocavam nas boates gays ou mesmo nas casas modernas como o Massivo. Os responsáveis eram o DJs Renato Lopes (ex-Nation), DJ Maurício, de apenas 23 anos e o então iniciante Mau Mau. Este último se apresentava sempre de forma bastante divertida, usando shorts, roupas coloridas e povoando a cabine em que tocava com bichos de pelúcia, que mudavam toda semana. Os Djs se revezavam, tocando sets de uma hora e meia, mais ou menos, mas Mau Mau usava sempre os melhores horários. Com o passar do tempo, a música do Sra. Krawitz vai se tornando única na cidade, suprimindo os vocais e se tornando cada vez mais progressivo. Foi quando o techno – um ritmo totalmente diferente do que se estava acostumado a ouvir na noite – vai se afirmando através das mãos do dj Mau Mau.
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O dj Mau Mau em uma de suas apresentações72
Foi em meio ao clima de deboche do Sra. Krawitz que alguns homossexuais começaram a se montar de forma extravagante, dando início à era das drag queens na noite paulistana. Dentre as várias festas famosas que aconteceram nessa boate, uma merece destaque não apenas pelo memorável nome – Nossa senhora do make up é drag – como também pela leva de drag queens que trouxe para essa casa, algumas inclusive de fora da cidade. Assim, o clube se diferenciaria do Massivo tanto pela música quanto pela freqüência totalmente misturada do público, recepcionado pelos, agora profissionais da noite, Jhonny Luxo – que se tornaria também um dos modelos mais conhecidos do estilista Alexandre Herchcovitch - e Kátia Miranda.
Jhonny Luxo e bebete Indarte, doors do Sra. Krawitz e dois dos hostess mais conhecidos da noite paulistana da década de 199073 72
http://www.jovempanfm.com.br/superstar/input/images/150_maumau.jpg
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Além de afirmar um novo estilo musical – o techno - e deslocar as baladas modernas para o centro, o Sra. Kravitz lega para o futuro também mais uma atitude que ajudaria a compor o imaginário sobre o hype contemporâneo, que é o fato de se chegar tarde nas casas noturnas. Com o passar dos anos, outras casas abririam e se afirmariam no circuito moderno, pautados num estilo de vida parecido e identificados com um estilo musical: o eletrônico. Contudo, a sofisticação desse tipo de música em São Paulo acabou testemunhando também uma divisão dos públicos, antes irrelevante. Tanto nas raves quanto nos clubes e boates, os heterossexuais foram se fechando em torno do trance e do drumming’bass, enquanto que os homossexuais que procuravam por essa música se direcionaram para o house, techno e electro. Assim, por exemplo, enquanto uma rave como a Tribe (especializada em trance) atrai um número bem menor de homossexuais, e quase nunca se percebe paqueras e trocas de carícias entre homens, na Circuito (techno), a presença de gays é bem mais intensa e visível. O mesmo parece acontecer atualmente com a D-edge (house, techno, electro), que recebe nos finais de semana um grande número de homossexuais, ainda que não seja especificamente uma noite gay, em oposição ao Clube A (trance), este quase que totalmente consumido por heterossexuais. O estilo de vida que se inicia nas baladas modernas é profundamente centrado nos ícones de modernidade vividos em outros países do hemisfério norte, valorizando a moda de rua, a extravagância, a apreciação de certas drogas e a freqüência a determinados espaços. Os homossexuais “moderninhos”, produzem esse tipo ideal também pela negação aos outros estilos de vida (gays dos Jardins, bichas do Centro) e acabam por impor um consumo peculiar da cidade. São vistos atualmente na A Loca (Cerqueira César), Dj Club (Jardins), Torre (Pinheiros), Pixs (Higienópolis), Super Club (Santa-Cecília), Suzy em Transe (Centro), D-Edge (Barra-Funda), etc, numa ocupação que extrapola as fronteiras de bairro-centro.
3 - NOVOS SUJEITOS NA CENA Como já vimos anteriormente, as transformações ocorridas na vida gay paulistana durante a década de 1980 foram hábeis em criar, ou afirmar, certos estilos de vida. Os homossexuais 73
Foto de Jhonny Luxo: http://www.terra.com.br/istoe/1789/fotos/sociedade_01.jpg. Foto de Bebete Indarte: http://www.irlabyanna.blogger.com.br/bebete.jpg
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aparecem nessa trama não necessariamente enquanto tais; antes são indivíduos que dividem, com outros, interesses por um consumo comum e aliados a certos paradigmas de juventude – noite, musica, moda, drogas, etc. Assim, no início da década de 1990, um poderoso veículo de comunicação já se encontrava consciente da necessidade de se criar um espaço para leitores gays e lésbicas e a pessoa privilegiada para assinar uma coluna desse tipo seria André Fischer. Fischer nasceu no Rio de Janeiro. Lá, formou-se em economia e passou a trabalhar numa agência de publicidade, onde, inclusive, realizou o primeiro projeto em computação gráfica do país. Em 1986, com seu namorado, mudou-se para São Paulo na intenção de montar sua própria empresa. Embora não sua família não ostentasse preconceitos contra a homossexualidade foi somente com a vinda pra São Paulo e na formação de um sólido círculo de amigos, que se sentiu a vontade em declarar sua homossexualidade para a família. A aproximação com o mundo público da homossexualidade se deu de várias formas. Fischer possuía alguns amigos nos Estados Unidos, mais exatamente em Nova York, cidade que passou a visitar em várias ocasiões. “Lá, as pessoas geralmente são mais comprometidas, especialmente meus amigos”, conta ele. Entre esses amigos “comprometidos” estava o diretor de cinema Karïm Ainouz74, que dirigia o Festival de Cinema Gay naquela cidade. Outra amiga era Suzy Capó, sua atual parceira de trabalho que também era bastante atuante. Em Nova York, Fischer se aproximou do movimento gay: “Então, eu conheci um pouco do movimento gay de lá e, numa dessas vezes, voltei imbuído dessa idéia: quero fazer alguma coisa bacana”. No desejo de “fazer alguma coisa bacana”, Fischer criou em sua produtora uma galeria em que, já nas primeiras exposições, contou com artistas discutindo questões ligadas à sexualidade. Em meio a essas discussões, a homossexualidade parecia ganhar evidência. Pouco tempo depois, foi convidado, pelo amigo Ainous, a fazer uma curadoria para o festival de Nova York, o que casava perfeitamente com sua apreciação pelo cinema. “Em 1993 o New York Lesbian and Gay Experimental Film Festival decidiu ampliar seus horizontes e convidar curadores estrangeiros para mostrar as diferentes formas de expressão da sexualidade em outros países. Os diretores do Festival Jim Hubbard, Shari Frilot e Karim Aïnouz convidaram 8 curadores responsáveis por cobrir a produção experimental em cinema e vídeo em vários continentes e assaram a chamar o Festival de MIX New York. André Fischer foi o responsável pela programação brasileira, chamada Brazilian Sexualities, já que não somente gays e lésbicas se encontravam representados mas um vasto repertório de manifestações das sexualidades. A imprensa, em especial a Folha de S.Paulo, foi especialmente sensível ao chamado de trabalhos para a seleção de Nova York, gerando um interesse inesperado. Clubbers, travestis, diretores comerciais e videomakers independentes 74
Karïm Ainouz dirigiu o filme nacional Madame Satã, lançado para o público em 2002. O filme é uma espécie de biografia do histórico homossexual negro carioca que viveu na boêmia Lapa, no Rio de Janeiro.
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apresentaram um grande número de trabalhos. O Departamento de Cinema do Museu da Imagem e do Som, então sob a direção de Zita Carvalhosa, fez o convite para sediar uma edição brasileira do MIX New York. O convite foi recebido com entusiasmo pelo Festival americano e surgia assim o MiX Brasil”.75
Assim, em setembro de 1993, os gays estadunidenses assistiram ao programa brasileiro, no qual foram exibidos 17 vídeos já na noite de abertura, no The Kitchen em Nova York. Nos dez dias em que transcorreu o Festival, André Fischer selecionou outros 76 trabalhos exibidos no Festival. Tudo estava pronto para que, no dia 5 de outubro o MIX Brasil – Festival de Manifestações das Sexualidades – estreasse no MIS, em São Paulo. “ Pela primeira vez no país foram exibidos para um grande público filmes falando abertamente da sexualidade gay e lésbica, além da primeira mostra de vídeos sobre tatuagem e piercing, que causaram comoção no público. Destaques para Mistress of The Rings, How To Lessons, Stolen Tango, Smacks! ,Queer Across Canada, Freak, Sewing on a Brest, Numbering Bad Fruit, Sex Fish e Kissy Suzuki Suck. Já estavam programadas versões do Festival no Palácio da Abolição em Fortaleza, Cine Ritz em Curitiba, Cine Usina em Belo Horizonte e na Casa Laura Alvim no Rio de Janeiro. Apenas 4 dias antes da exibição do Festival no Rio a diretora da Laura Alvim, Beatriz Nogueira, decidiu que o Rio de janeiro não estava preparado para esse evento e cancelou, sem maiores explicações, o MiX Brasil. Protestos gerados principalmente por parte de grupos gays e uma boa cobertura da imprensa garantiram a exibição improvisada na Torre de Babel a convite de Gringo Cárdia. Brasília encerrou a turnê do primeiro Mix Brasil, com 76 exibição dos programas na Sala Alberto Nepomuceno no Teatro Nacional.”
Como se pode perceber, a aparição na mídia fortaleceu a idéia de um festival de cinema que tratasse de assuntos tabus na sociedade. Havia um público intenso que se identificava com certos usos específicos do corpo – piercings, tatuagens – e orientações sexuais diversas. Uma vez que aceitou a proposta de realizar um Festival em São Paulo, Fischer foi lançado na mídia como uma espécie de figura de destaque do mundo gay:
“As pessoas estavam loucas pra que alguém desse a cara e se propusesse a estar fazendo isso. Quando eu fui convidado par levar os filmes pro MIX do festival de Nova York e tal, de cara eu consegui uma capa na Ilustrada. Então eu tenho essa impressão... estavam loucos pra que alguém desse um ponta pé. A gente foi pro Rio...já foi capa. O primeiro ano foi uma loucura.. foi capa de praticamente todos dos cadernos de cultura das principais capitais do pais mesmo por que tava todo mundo dentro das redações loucos pra que alguém tivesse ido justificar pra que houvesse um caderno cultural com isso. A gente atendeu a um clamor que estava sufocado ai e que a gente também tinha essa necessidade. A primeira vez que saiu uma foto minha, eu lembro que era assim...não sei o que do festival gay e lésbica...e gay e lésbica saiu assim em baixo do meu queixo...mas assim...eu acho que era muito mais uma demanda.”77
A idéia de que havia uma demanda reprimida não era ingênua. Já falamos sobre toda a visibilidade e diversificação que a vida gay experimentava em São Paulo na década anterior e no 75
Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/festival/hist/mix1.htm Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/festival/hist/mix1.htm 77 Entrevista com André Fischer, realizada em 04/09/2000. 76
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início dos anos 90. Além disso, a presença de homossexuais nos meios de comunicação de massa – “(...) mesmo porque estava todo mundo dentro das redações...” – criou uma situação privilegiada para que tudo se iniciasse. Assim, Fischer, aquele que mostrava filmes de gays e lésbicas, apareceu para a sociedade mais ampla como uma espécie de liderança, com o destaque que poucos ativistas políticos haviam conseguido até então:
“(...) primeiro é importante que você saiba que a coluna tem um histórico anterior. Eu acho que nos anos 70 o Jornal da Tarde já tinha uma coluna com temas gays. Então teve um hiato muito grande e depois a Folha voltou à ativa. Na verdade foi uma coisa que já existia. Quem começou foi a Mary Ree, em 93, final de 92 e era na Revista da Folha e depois, eu acho que tem uma outra coisa que foi assim... tem a coluna da Érika Palomino que também é anterior e que cumpria esse papel anteriormente”.78
A extinta coluna de Celso Curi e, mais tarde, as de Mary Ree e Érika Palomino, falavam para públicos específicos. Curi falava para as bichas, utilizando elementos desse universo como o vocabulário e um tipo de humor peculiar e Palomino, contemplava o mudo da noite e seus adoradores, falando de desfiles de moda, casas badaladas, música e premiações. Mas, no momento em que apareceu alguém que se dirigia a um público específico (gays e lésbicas), utilizando elementos já confirmados no imaginário social sobre a homossexualidade, a idéia de uma demanda reprimida começa a se clarear. A Revista da Folha, suplemento que sai aos domingos como encarte do jornal Folha de São Paulo, já possuía, desde 1993, uma coluna chamada “Gay”.Quando Fischer foi convidado para assumir, sugeriu que seu nome fosse trocado para “GLS”, por achar o termo mais abrangente. Mas a idéia de não fechar o público leitor de sua coluna somente entre gays e lésbicas parece também ter sido uma preocupação do jornal, pois, já na primeira reunião com a diretoria, Fischer foi lembrado de que “(...) a Folha é lida também por donas de casa e nos consultórios de dentistas”. A substituição do termo “Gay” por “GLS” parecia querer afirmar que não é preciso ser homossexual para ler sobre aquele mundo: se você é “simpatizante”, também pode fazê-lo. Uma idéia tanto bem vinda por seu poder mercadológico – vai além do consumo de um público específico – quanto pelas brechas que abria socialmente para a homossexualidade. Ainda, para aqueles que temiam serem reconhecidos socialmente como homossexuais, a idéia era conveniente, como também o era para aqueles que buscavam informações sobre festivais de 78
André Fischer. Entrevista realizada em 04/09/2000.
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cinema, noite e badalações. Pelo menos aparentemente, o contexto era totalmente favorável à criação e difusão da sigla GLS. “Pois é, a grande vantagem do tema é não ter um parâmetro para delimitar, justamente. No simpatizante acho que entra, de cara, os bissexuais, que no Brasil esse termo não vingou; essas pessoas que transitam pelo seu desejo de maneira mais livre; gays e lésbicas que não se incomodam com o rótulo e heterossexuais, efetivamente heterossexuais, que freqüentam a noite gay, estão próximos desse universo, têm amigos e tal, e que não são heterossexuais caretas; estão aí consumindo mais ou menos os mesmos tipos de produto, como filmes de temática gay, que estão indo à peça, que estão abertos a ir ao cinema assistir filmes gay por exemplo.”79
Fischer parecia estar falando de alguns dos antigos freqüentadores do Madame Satã, Sra. Kravitz e Massivo, além de uma nova geração que cresceu nesse contexto inclusivo. Pessoas que, de certa forma, não se identificavam com um mundo heterossexual de valores rígidos ou com o “gueto gay”. Essa ambigüidade parece, inclusive ter estado presente quando os cartazes do festival eram elaborados.80
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André Fischer. Entrevista realizada em 04/09/2000 As imagens acima foram capturadas no site http://mixbrasil.uol.com.br/festival/historico.shl, em 25 de novembro de 2003. 80
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Como se pode observar, as imagens mostrada nos cartazes extrapolam a idéia de um festival de filmes só para gays ou só para lésbicas. Na sua maioria, eles apontam desenhos – que não têm sexualidade –, situações, expressões ou partes do corpo que não remetem necessariamente a uma identidade. Esse parece ser o sentido da sigla, GLS; poderiam ser bissexuais, homossexuais e heterossexuais que possuíam um estilo de vida aproximado; que “consumiam os mesmos produtos”. Como se pode perceber, é pela chave mercadológica que o respeito à diversidade toma seu espaço na mídia paulista. Pelo menos do ponto de vista do ativismo político – e isso não quer dizer que Fischer e seu grupo não desenvolvem uma política – a onda GLS se diferenciava dos movimentos de militância, que nesse período também passavam por visíveis transformações. Nas palavras de Fischer:
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“(...) a gente quando pensou originalmente ele foi criado como uma categoria de consumo, pra pessoas que têm um perfil. Por isso assim que eu acho que tem toda a legitimidade a sigla GLBT, e acho que tem que ser usado de forma completamente distinta. GLBT são termos técnicos, que estão cobrindo aí gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, transgêneros, enquanto que o GLS originalmente, e é um critério que surgiu aqui dentro, e que eu vou ficar usando aí de maneira como ele foi concebido, é para pessoas que têm um determinado padrão de consumo, que saem, compram, fazem, independente da orientação sexual, lembrando que a maioria dessas pessoas são homossexuais.”81
Falar sobre a homossexualidade para a sociedade mais geral após o surgimento da onda GLS deixou de ser uma atitude ativista, como sempre essa prática era entendida. Paralelamente à movimentação dos grupos de militância, a onda GLS serviu para fortalecer a visibilidade de gays e lésbicas em São Paulo, expandindo suas fronteiras para outras cidades brasileiras. A idéia foucaultiana (Foucault, 1988) de invenção da sexualidade pode nos ajudar a entender esse processo, na medida em que a define como um dispositivo, criado para classificar comportamentos sexuais num momento em que a ciência passou a considerar os envolvimentos sexuais como uma questão social de grande importância. Uma vez que se nomeava o comportamento sexual, criou-se também sujeitos específicos através de práticas discursivas. Assim, surge para o mundo mais do que a homossexualidade; brotam os homossexuais. A sigla trazida por Fischer pode ser pensada também como uma espécie de dispositivo, pois nomeia práticas e, por conseguinte, pessoas e espaços, que já existiam em São Paulo, mas que não possuíam um nome específico. Nas diversas interlocuções ao longo da pesquisa, fui informado sobre pessoas que visitavam espaços mistos, freqüentados por todos os tipos de pessoas – quase sempre diziam isso se referindo a homossexuais (masculinos e femininos), bissexuais e heterossexuais. Mas não havia ainda a sigla GLS. Portanto, se eram simpatizantes, como André Fischer os batizou, dificilmente saberemos. Mas a verdade é que o termo simpatizante foi gentilmente aceito por muitas pessoas, que hoje, inclusive, se classificam dessa forma. No dia 23 de novembro de 2002, o Festival de cinema da Diversidade Sexual pretendia ir além das salas de cinemas a que exibição de seus filmes estava restrita. Juntamente com o Museu de Arte Moderna de São Paulo, que nesse ano ampliou sua parceria com o Mix Brasil e, os organizadores do festival resolveram levar a “diversidade” exibida nos filmes também para as ruas da cidade. Para esse dia ficou marcada a projeção dos melhores filmes do festival (na
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André Fischer. Entrevista realizada em 04/09/2000. Grifo meu
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opinião do júri) além de um filme surpresa – “uma produção brasileira em longa-metragem que promete paralisar o centrão de São Paulo na noite da projeção”.82 Nessa noite, a parte de baixo do “minhocão” (elevado Costa e Silva) que ficava nas proximidades do Largo do Arouche, geralmente ocupado por moradores de ruas, recebeu um grande número de homossexuais e simpatizantes que estavam ali para assistir à programação de filmes prometida. Entre eles, muitos passantes e moradores curiosos também tomavam as calçadas. As janelas e sacadas dos prédios da região também estavam tomadas por seus curiosos habitantes e alguns, visivelmente, se perguntavam sobre o que, afinal, estava acontecendo. Os expectadores estavam de pé, a exceção dos sem teto, que foram homenageadas com cadeiras cativas de frente para o improvisado telão no qual os filmes seriam projetados. Em torno, alguns ambulantes aproveitavam a movimentação para faturar algum dinheiro vendendo bebidas, balas e cigarros. Cenas de beijos e trocas de carícias entre pessoas do mesmo sexo, drags queens fechando e discursos dos organizadores, produziam uma noite diferente para aquele trecho. Não que em suas proximidades essas cenas não tenham se tornado comum – estava-se há poucas quadras da rua Vieira de Carvalho – mas naquele dia, aquela ocupação estava certamente imbuída de um sentido de liberdade. Da liberdade para os homossexuais de usar a cidade em que viviam para afirmar suas práticas culturais. No ano seguinte, mais uma vez um espaço público foi apropriado para a exibição dos filmes do Mix. Dessa vez, a projeção se realizou no pátio da Biblioteca Monteiro Lobato, na general Jardim. Como se trata de uma região ocupada por travestis se prostituindo nas ruas, o filme exibido foi o documentário “Dores de Amor”, filmado em São Paulo, em 1987, sobre a vida de alguns
transgêneros. Personalidades “históricas” do mundo homossexual como “Andréa de Maio, Brenda Lee, Thelma Lipp, Condessa, Estela, entre outras. Algumas choravam, outras sorriam discretamente. Parece que o local ganhou uma energia boa, que vinha das lembranças de quem viveu aquela época”.83 A baixo, algumas imagens da noite de exibição.
82
Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/projeto/mixbrasil10/mixbrasil10/programa.shl#minhocao
83
ver: http://mixbrasil.uol.com.br/festival/2003/mixbrasil11/dores/dores.shl
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Exibição do filme “Dores de Amor”, no pátio da Biblioteca Monteiro Lobato.
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Nessa noite, transformistas de outros tempos se fizeram presentes e, a cada vez que uma travesti aparecia no telão, se ouvia estrondosas gargalhadas e gritarias animadas. Na exibição desses comportamentos em vias públicas, podemos perceber que as mudanças no imaginário social em relação às divisões da cidade pautada na orientação sexual levaram a um dimensionamento da apropriação de São Paulo pelos homossexuais. ***
O que procurei mostrar ao longo desse capítulo é que houve uma história de apropriação dos espaços públicos pelos homossexuais que vêm se desenrolando desde as primeiras décadas do século XX. Nesse processo histórico, estilos de vida diferenciados, que têm a ver diretamente com o tipo de homossexualidade experimentada, propiciaram o usufruto diferenciado da cidade, já que, desde a década de 50 do século passado, essa divisão foi percebida por pesquisas de cunho sociológico. Os homossexuais se tornaram visíveis em praticamente todos os cantos do centro expandido de São Paulo (centro, zona oeste), com seus espaços de sociabilidade divulgados tanto por mídias internas (guias gays, sites, jornais) quanto externas (jornais e revistas de grande circulação).
84
ver: ver: http://mixbrasil.uol.com.br/festival/2003/mixbrasil11/dores/dores.shl
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A expansão da apropriação da cidade pelos homossexuais ganharia contorno específico com a tessitura de estilos de vida diferenciados que, embora imprimam historicamente as diferenças que marcam as experiências dos homossexuais de São Paulo, acabam por firmar sinais de suas experiências nos mais diversos pontos da urbe. No caminhar desse processo, quando a sigla GLS foi introduzida no repertório social paulistano, a confusão entre homossexuais e simpatizantes dividindo os mesmo espaços tanto ajudou na dinamização do consumo da cidade por sujeitos diversos, quanto expandiu as fronteiras sociais da homossexualidade. *** O cenário descrito ao longo desse capítulo pode, portanto, ser definido como modernidade tardia, ou seja, o momento em que as sociedades modernas passam a conviver com mudanças constantes, rápidas e permanentes; um processo sem-fim de rupturas e fragmentações internas no seu próprio interior. Nesse contexto, percebe-se um deslocamento na identidade homossexual que havia sido produzida a partir da década de 1970. Estabelecendo suas procuras por sociabilidade de acordo com certos estilos de vida, a questão da diferença interna já se colocava para o grupo. Embora se acreditassem homossexuais, essas pessoas elaboravam suas experiências pautadas em outras questões e nem todos que buscavam diversão ou mesmo encontros sexuais com outros homens se identificavam totalmente. Diferenciavam-se em relação à busca de sexo (saunas gay/gay e de garotos de programa), sociabilidade (modernos, freqüentadores do Centro ou dos Jardins) e pelo consumo de bens simbólicos (música, moda, espaços), tornando frágil, no cotidiano, a idéia de uma identidade unificada e totalizante. Contudo, é necessário atentar para outros lugares de produção de representações sobre a homossexualidade e que tiveram inovadora presença a partir dos anos 80. Assim, no próximo capítulo, pretendo evidenciar os avanços da informação e do mercado nas searas da homossexualidade.
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Cap III CONSUMINDO IDENTIDADES: Mídia e mercado homossexual em São Paulo
“Os desenhos futuristas dos anos 60 não foram capazes (ou não se deram ao trabalho) de prever as maravilhas tecnológicas da nossa era, o celular, a Internet, a TV a cabo e o CD. Estavam mais preocupados em ilustrar a vida no ano 2000 com pirotecnias de apelo visual ou humorístico. Não existem negros nesses desenhos (homossexuais, nem se fala), nem multiculturalismo, nem a caótica diversidade de roupas, cabelos, estilos musicais e formas de entretenimento que ostentamos como orgulho da nossa época de pluralismo, ‘criatividade’ e ampliação da democracia.” Otavio Frias Filho
No período compreendido entre os últimos 20 anos, a homossexualidade passou a ser percebida não apenas no perímetro urbano, mas também pelos meios de comunicação de massa. Essa incorporação acaba movimentando um crescente mercado e os homossexuais foram representados como consumidores privilegiados. Minha intenção, nesse capítulo, será refletir sobre a produção desse imaginário através das experiências de apropriações mercadológicas por que tem passado a homossexualidade nesse período. Inicialmente, é necessário pensar as ações mercadológicas modernas, ainda que de forma rápida, para contextualizarmos a discussão. No final da década de 70, foi publicado na Inglaterra o livro, “O Mundo dos Bens”, de Mary Douglas e Baron Isherwood (2004). Nessa obra, os autores (uma antropóloga e um economista) perseguem novas formas de entender as relações de consumo, dos sujeitos com os objetos, e também de sujeitos entre si. Para eles, os bens de consumo seriam também comunicadores de categorias culturais e valores sociais. Dessa forma, categorias da cultura orientam esse consumo e as escolhas do que consumir refletem julgamentos morais e valorativos produzidos socialmente “(...) carregam significados sociais de grande importância, dizendo algo sobre o sujeito, sua família, sua cidade, sua rede de relações. O ato de consumir seria um
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processo no qual todas as categorias sociais estariam sendo continuamente definidas, afirmadas ou redefinidas”. 85 Essa idéia é importante, não apenas por criticar os postulados da teoria econômica neoclássica, “centrados no utilitarismo, racionalidade e maximização de ganhos”
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, mas também
porque permite que se olhe para o mercado como produtor e reflexo de experiências sociais; as pessoas consomem com base no seu próprio repertório cultural e, aquilo que consomem são potenciais reveladores também de suas representações de homossexualidade.
Ao refletir sobre as atuais relações entre os negros e o mercado, Livio Sansone explica que:
“No processo de mercantilização de uma nova cultura ‘negra’ (uma dinâmica ativada tanto interna quanto externamente), certas características e certos objetos são escolhidos para representá-la como um todo; para objetificála, tornando-a sólida e material. A seleção é feita segundo as particularidades de cada sistema de relações raciais. No entanto, tais objetos geralmente estão ligados ao corpo, aos costumes e ao comportamento, como elementos formadores de um estigma ou como sinais de mobilidade e sucesso. Por meio de um processo de inversão de valores (...), esses objetos costumam ter para os negros um significado especial, diferente do que significam sob a ótica daqueles que os oprimem. Podemos citar como exemplo, no Brasil, os sapatos usados pelos homens livres ou pelos escravos fugitivos para se diferenciar dos escravos descalços. Ou as jóias, o ouro e os ternos espalhafatosos por meio dos quais os escravos se distinguiam de outros escravos e procuravam impressionar ou mesmo humilhar seus senhores. Ou ainda os barcos que os escravos pescadores faziam questão de exibir em suas limitadas horas livres para demonstrar que não se submetiam à proibição de ter algo além de canoas.”87
As palavras desse autor são instigantes e permitem uma certa analogia com a homossexualidade. Mas sigamos um pouco mais as palavras de Sansone.
“Por um lado, historicamente o consumo tem sido uma forma poderosa de expressão da própria cidadania e vem adquirindo cada vez mais importância na determinação do status entre os negros no Novo Mundo. Por outro lado, historicamente também, para grandes grupos de negros marcados pela escravidão e por suas conseqüências, a posição no trabalho não tem sido central para a construção da personalidade. Freqüentemente o que se pode chamar de ‘hedonismo negro’ - resultado de uma relação conflitante com o trabalho assalariado constitui as formas culturais criadas pelos negros e o modo como os não-negros as encaram: com uma mistura variada de desdenho e sedução. Nas últimas décadas, esse hedonismo tem se manifestado especialmente entre os jovens negros, e mais ainda entre aqueles de classe social mais baixa. Embora, em muitos sentidos, eles experimentem uma relação com a produção e o consumo muito similar à que ocorre com outros grupos de jovens (de classe baixa), os jovens negros geralmente
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Leitão, Débora. “O mundo dos bens de consumo”, resenha do livro de DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. (2004) 86 Leitão, Débora. “O mundo dos bens de consumo”, resenha do livro de DOUGLAS, Mary e ISHERWOOD, Baron. (2004) 87 SANSONE, Livio. “Os objetos da identidade negra: consumo, mercantilização, globalização e a criação de culturas negras no Brasil”. Mana, abr. 2000, vol.6, no.1, p.87
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somam uma perspectiva étnica a essa relação e, além disso, parecem celebrar sobremaneira o consumo e o consumo glamouroso em particular.”88
Partir do pressuposto de que o consumo é uma boa maneira de expressar cidadania – ou ter acesso a ela – parece ser um argumento interessante, já que, ao se tornar consumidor, um indivíduo se transforma num foco de interesse de determinados grupos sociais. Seguindo ainda nessa trilha, podemos pensar que esses interesses podem ser de grande ajuda no sentido de desfazer a opacidade historicamente produzida em que permaneciam encerradas algumas “minorias sociológicas”. Isso por que, para atingir um público, é necessário conhecê-lo, chegar a ele e criar representações sobre artigos e produtos que atraia esse segmento. Deve-se, no entanto, tomar alguns cuidados ao se traçar uma analogia entre o envolvimento dos negros com o mercado e o dos homossexuais. Ainda que os meios pelos quais as ações mercadológicas investem nesses dois segmentos partam de pressupostos semelhantes – criar e vender produtos específicos para públicos específicos – a raça e a orientação sexual são discursos elaborados de formas diferentes. A categoria “negro” existe na história do Brasil há bem mais tempo que a de “homossexual”. Ao primeiro se somaram diversos tipos de estigmas sobre os quais certos antropólogos e historiadores da escravidão podem dar seu parecer. Passaram por toda uma história de subjugação, resistência e lutas (reais e simbólicas) e, à cor da pele, foi atribuída uma série de representações salientadoras da diferença. Dialogando com esse repertório foi que um importante movimento político se construiu. Mas, com a abolição, eles se tornaram consumidores - com baixíssimo poder de compra, é claro - o que evidencia que as relações entre os negros e o mercado não é recente. O que parece novo é que esse mercado tenha prestado atenção especial a esse segmento, criando produtos voltados especificamente para a estética negra. Uma vez iniciada essa incorporação, a presença de modelos negras apresentando produtos estéticos em revistas, jornais, Internet e televisão vêm se tornando uma cena cada vez mais cotidiana, e também objeto para a reflexão dos cientistas sociais. Claramente pautados na idéia de diferença de raças, os empresários atiram para ambos os lados trazendo junto com a intenção de venda a positivação de alguns elementos da identidade negra. 88
SANSONE, Livio. “Os objetos da identidade negra: consumo, mercantilização, globalização e a criação de culturas negras no Brasil”. Mana, abr. 2000, vol.6, no.1, p.87
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No caso dos homossexuais, não há uma diferença percebida exclusivamente pela cor da pele, pois se pode ser homossexual independente da sua “raça”. Mas, como acontecia com os negros, não estavam de fora do mercado ao longo do século XX, já que sempre foram consumidores tanto quanto alguém que vive no meio urbano pode ser, mesmo quando a própria idéia de uma “identidade homossexual” ainda não estava em voga. Ao contrário, foram ávidos consumistas tanto de artigos voltados para homens quanto para mulheres, se formos pensar nas aproximações da homossexualidade com atitudes e comportamentos socialmente definidas como femininas. O que parece deveras novo, é que já existam produtos voltados exclusivamente para os, assim identificados, homossexuais. Ao consultar qualquer periódico voltado para o grupo, uma gama de artigos, casas noturnas, bares, saunas e boates saltam aos olhos, não deixando dúvida de se pode falar de um mercado homossexual. Mas essa inserção vai além: “Se há algum tempo, mercado gay era sinônimo de bares, saunas e boates, hoje existem lojas especializadas, um mercado editorial bem estruturado, e já foram criados bancos, cartões de crédito e até bebidas específicas. E as empresas, como um todo, estão abrindo os olhos cada vez mais ao poder do dinheiro gay. Mas isso nos estados Unidos e na Europa, porque, no Brasil, parece que ainda falta um pouco mais de visão por parte de alguns empresários”.89
As relações com o mercado aparecem como uma prerrogativa do grupo, uma vez que um de seus periódicos mais consumidos (a revista G Magazine) salientava essa preocupação.Assim, a noção de identidade homossexual também reforça o surgimento de uma mercado segmentado para os homossexuais. Considerada uma idéia capital para o marketing atual, a noção de mercado segmentado ganhou força nos meios acadêmicos e gerenciais a partir da segunda metade do século XX, em muito tributária do pensamento de Wendell Smith (1956).90 De acordo com essa perspectiva, é impossível atingir a todos os consumidores, que se diferenciam por distintas demandas ocasionadas por valores, dispersão geográfica, gênero e padrões culturais. Assim, as organizações deveriam direcionar sua produção tendo em vista grupos sociais específicos, fragmentando o mercado de maneira a atingir os consumidores em suas particularidades. Isso significa dizer que é necessário captar um conjunto de valores, situações sociais e práticas culturais que estabeleçam semelhanças e tracem um “perfil” desse consumidor. 89 90
LEKITSCH, Stevan. “O Poder do Dinheiro Gay”. Revista G Magazine, janeiro de 2001 Ver também ENGEL, FIORILLO & CAYLEY, 1972.
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A incorporação de um olhar sociológico pelas ações mercadológicas tem atingido alguns grupos sociais específicos. Para os negros, a segmentação do mercado se reveste de um discurso democrático, que diz respeitar as diferenças étnicas, com produtos cosméticos específicos para peles “morena e negra”, lançados no mercado com propagandas que salientam as diferenças existentes entre brancos e não brancos. Todavia, essa separação já traz implícitas as marcas de uma hierarquia; se no “mercado comum”, qualquer produto está disponível para pessoas de pele branca, é apenas num nicho mercadológico específico que as demandas de outras etnias se destacam. Com base na produção do binário branco/ não-branco – que teve sua formulação historicamente datada, e com objetivos particulares – é que esse mercado para os negros se estabelece. Mas a questão da identidade não deve ser esquecida. Ao investigar a publicidade envolvida com a estética negra, Peter Fry (2003) ressalta que a aparência começa a se impor como um poderoso elemento de afirmação de identidade. Na medida em que possibilita uma certa auto-estima, acaba dissolvendo uma miríade de classificações – termos utilizados pela sociedade brasileira para classificar os diversos tipos de “cores” como moreno (claro, escuro), mulato, etc. – em nome de uma unidade – negra. Foi também com base em outra construção binária que o mercado segmentado pelo gênero se estabeleceu. A polarização homem/mulher tem sido trabalhada de forma essencialista e pouco atenta ao contexto de produção dessa divisão. Hoje, é possível encontrar sabonetes, hidratantes, perfumes e demais cosméticos que atendem às peculiaridades dos corpos masculinos e femininos. Na medida em que lança ao mercado produtos diversos, diferenciados de acordo com o gênero do consumidor, essa segmentação reafirma noções cristalizadas sobre os significados de ser homem ou ser mulher. Tanto o binômio branco/ não-branco quanto o de homem/ mulher têm a ver com um contexto histórico particular. A segunda metade do século XX testemunhou sensíveis alterações nas experiências dessas duas minorias sociológicas, frutos do fortalecimento dos movimentos feministas e raciais ou da política de identidade. Organizaram-se nas lutas por direitos e cidadania, abrindo espaço no mercado de trabalho e denunciando as diversas formas de preconceito e exclusões a que, por muito, estiveram submetidos. Na conquista de espaços sociais – e isso não quer dizer que todos seus problemas foram resolvidos – afirmaram-se também como sujeitos com poder de compra e parte integrante de um mercado mais amplo.
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Mas, para entender as ações publicitárias no mundo moderno é necessário também revisitar as estratégias contemporâneas em evidência, já que a experiência do consumo no século XX foi profundamente orientada pela publicidade.
“Tudo começou, nas Exposições e Lojas de Departamento parisienses de fins do século XIX, quando a divulgação dos bens assumiu uma forma inovadora: obedecia agora aos princípios do show, da diversão, da excitação, do espetáculo. Ora, estes princípios que pautaram a publicidade desde seus primórdios são os mesmos que caracterizam o modo de consumo moderno, em sua fase massiva. Nas fantasias dos consumidores, eles vão buscar o apelo para as mercadorias, inaugurando a exploração dos sonhos pelo mundo dos negócios de uma maneira tão intensa e explícita como nunca antes vista. A publicidade e o modo de consumo a ela articulado inauguram também uma modalidade de interação nos ‘ambientes’ dedicados à exposição dos produtos. Os consumidores agora vagueiam mais livremente por estes ambientes, penetrando no ‘mundo dos sonhos’ sem se sentirem tão constrangidos a comprar”.91
Assim, uma vez estabelecido o contato visual com os produtos e sua dimensão fantástica, eles se revestem de uma certa “sensualidade voyeuristica” e o olho, elo de ligação entre os indivíduos e um universo fantasioso, adquire grande importância para o movimento de estetização do consumo. É por meio do olhar que o discurso publicitário, pleno de formas e ritmos, se insinua. Nesse sentido, a idéia de cultura de consumo, aparece como: “(...) o conjunto de práticas e representações que estabelecem uma relação estetizada e estilizada com os produtos. O seu nível de atuação mais decisivo é a difusão ampliada de um certo modo de consumo”. (ROCHA, 1999). De acordo com a autora é possível detectar dois princípios que norteiam o modo de consumo predominante na sociedade contemporânea: a “estilização”, uma espécie de dilatação da dimensão simbólica de alguns produtos, inspirada na noção de estilo de vida, de Piere Bourdieu, e a “estetização”, uma dilatação da dimensão imagética. No primeiro, os atributos simbólicos são habilmente manipulados em função de uma intenção expressiva, ou seja, a proeminência dos atributos simbólicos dos produtos se coloca em detrimento de suas qualidades estritamente funcionais e o consumo se transforma num espaço de articulação das distinções sociais que se hierarquizam com base distribuição diferencial de prestígio. Já no segundo princípio, o que se salienta é a construção de universos imagéticos relacionados aos produtos, “através da conversão
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ROCHA, Maria Eduarda da Mota. Publicidade e Cultura de Consumo: Problemas para um Estudo de Recepção. 1999, Mimeo.
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dos ‘ambientes’ voltados para o consumo em lugares mágicos onde a experiência é envolvida por fantasias tecnologicamente produzidas” (ROCHA, 1999). Mas esses princípios só podem ser entendidos quando se pensa no contexto histórico em que eles agem, em que se localizam os sujeitos que o produzem. É através de uma intrincada relação entre significante e significado que os discursos publicitários sobre certos produtos são elaborados, ou seja, quando divulgam um produto para o grande público, há um esforço de fazer com que determinadas propagandas convençam o consumidor de que, consumindo tais elementos, essas pessoas reafirmam seu pertencimento a determinado grupo social. Logo, consumir produtos intimamente associados a pessoas “modernas”, “elegantes” e “bem sucedidas”, ofereceria a oportunidade de “ser” moderno, elegante e bem sucedido, ainda que, nem sempre, todos os consumidores façam parte de grupos sociais privilegiados. No que diz respeito ao homossexual, como consumidor, tais idéias parecem fazer sentido. Em uma matéria produzida para a revista Carta Capital intitulada “Homo: O mercado oculto”, Phydia de Athayde ressalta algumas percepções “de fora” que parecem orientar a visão da maioria das pessoas que vivem em São Paulo sobre os homossexuais:
“São homens bonitos. Ou, pelo menos, muito bem-arrumados. Muitos braços nus, graças às camisetas sem manga. No cabelo, pomada para dar o efeito “desarrumado”. Os jeans têm corte moderno e barras ligeiramente curtas. Nos pés, tênis com design arrojado. Nos pulsos, relógios chamativos. Todos olham para todos. É noite de sábado, a paquera rola solta em um dos mais agitados locais de “ferveção” gay de São Paulo. A multidão aglomera-se na esquina da alameda Franca com a rua da Consolação, na região dos Jardins. O circuito inclui, além de barzinhos, algumas das mais populares boates direcionadas ao público GLS (gays, lésbicas e simpatizantes, segmento que também abrange todas as modalidades não heterossexuais) da cidade. Ali, há anos, cidadã! Os do mesmo sexo beijam-se, andam de mãos dadas e namoram com a mesma naturalidade de milhões de casais heterossexuais cidade e país afora.”92
Numa “descrição densa” desse trecho, alguns significados sociais da homossexualidade vêm à tona. Primeiramente, o recorte espacial: trata-se da região dos Jardins, ocupada majoritariamente por homossexuais de classe média e alta. Segundo, o texto remete a um estilo específico de homossexualidade comum aos indivíduos dessas duas classes, tanto no que se refere ao modo de se vestir quanto aos estilos de corpos e comportamentos – os braços nus, a pomada nos cabelos, o jeans de corte moderno e de barras ligeiramente curtas, as camisas sem mangas para exibir braços fortes. Por último, fala da convivência de gays, lésbicas e
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ATHAYDE, Phydia de. “Homo: O mercado oculto”. In Carta Capital, nº 265, p. 10-15 (5/11/2003)
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simpatizantes – GLS – mais comum nessa região do que em outros espaços de sociabilidade voltados para homossexuais. Como se falasse de um universo exótico, a matéria prossegue em sua narrativa, falando da importância dos homossexuais como mercado consumidor, lembrando a opinião de especialistas sobre o tema do mercado e de empresários envolvidos com o pink money, além de refletir sobre como o modo de vida gay expande suas fronteiras e modifica o comportamento também dos heterossexuais, interessados na noite e na moda. Na verdade, essa descrição deixou de ser tão exótica assim para quem vive em São Paulo, acompanha programas televisivos ou consome revistas como Veja, Isto É, Época e Carta Capital, etc. Pelo menos a partir da década de 1990, essas imagens passaram a ser recorrentes nos meios de comunicação e ajudaram a produzir representações de homossexualidade para público amplo. Normalmente, essas matérias ressaltam que gays masculinos são ótimos consumidores por não constituírem famílias, fazendo com que suas economias se voltem para viagens, produtos caros, moda e noite. Em junho de 2001, mês em que acontece a Parada Gay de São Paulo, a revista Isto É publicou uma reportagem chamada “Alegria, alegria”. O subtítulo era: “O calendário das paradas mostra que o orgulho cresce e com ele o mercado específico; mas o preconceito ainda existe” “Ainda não há números precisos sobre o total de dinheiro movimentado pelos gays no Brasil. Mas há alguns indícios de um aumento da demanda por produtos e serviços para a comunidade. ONGs ligadas ao mundo gay calculam que 10% da população fez uma opção sexual alternativa, algo em torno de 18 milhões de brasileiros. Dados da recémcriada Associação dos Empresários GLS do Brasil revelam que no ano passado só na cidade de São Paulo esse público gastou mais de R$ 150 milhões. Se o preconceito não fosse maior que a vontade de ganhar dinheiro, esses números seriam ainda mais altos. Nos Estados Unidos, a comunidade homossexual desembolsou US$ 47 bilhões em 2000. Aqui, apesar de o orçamento total da Semana do Orgulho Gay de São Paulo ter ficado em R$ 320 mil, apenas R$ 200 mil foram arrecadados. ‘Convidamos 200 empresas para patrocinar o evento, mas apenas três toparam’, conta Fátima Tassinari, captadora de recursos da Parada. Graças ao portal eletrônico IG, à bebida energética Red Bull e à 93 companhia aérea South Africa, o maior evento gay da América Latina poderá ser realizado.”
Como é possível perceber, os comentários do jornalista chamam a atenção para o retorno lucrativo que investimentos no mundo gay poderiam gerar. A exemplo do que já acontece nos Estados Unidos, onde diversas organizações mercadológicas desenvolvem pesquisas sociológicas para classificar os gostos e até mesmo a orientação sexual dos consumidores, são ressaltadas as pesquisas de ONGs que apontam uma significa estimativa de homossexuais (18 milhões), e 93
SILVA, Chico ; CARUSO, Marina. “Alegria, alegria: O calendário das paradas mostra que o orgulho gay cresce e com ele o mercado específico. Mas o preconceito ainda é grande”. in Revista Isto É, Comportamento, 20/06/2001.
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também quanto esse público teria gastado em São Paulo no ano anterior. Visivelmente empenhado em abrir os olhos dos empresários, em nome da redução do preconceito, o jornalista prossegue em sua argumentação:
“Na cidade de São Paulo, o crescimento da vida noturna gay é ainda mais evidente. Segundo o Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares, o número de estabelecimentos especializados dobrou desde a primeira Parada Gay, em 1997. Hoje, são mais de 100 boates, restaurantes e bares GLS. A força de outros segmentos emergentes do setor também merece atenção. Agências e operadoras de turismo, editoras e até hotéis encontram nos bolsos do povo rosa uma maneira de escapar do vermelho. A Álibi Turismo é a primeira operadora do País voltada para homossexuais. Ela faz pacotes para casais e solteiros, organiza viagens para eventos gays mundo afora e fecha hotéis e pousadas para encontros de grupos. ‘No ano passado, tivemos um faturamento de R$ 1 milhão. Mais de 700 gays viajaram pela operadora. Este ano, a expectativa é de crescimento’, afirma Franco Reinaudo, 38 anos, proprietário da operadora. A maior novidade no setor é a adesão dos hotéis. Hoje, é possível ir com o parceiro(a) e pedir um quarto de casal sem chocar o recepcionista. São 25 hotéis espalhados pelo Brasil, alguns tradicionais, como a rede 94 Othon.”
Ao longo de toda a matéria, parece acontecer uma progressão, desde a tímida concentração de alguns homossexuais na primeira Parada gay, até o momento em que – em prol e pelo consumo – homossexuais passam a ser bem recebidos com seus parceiros até mesmo em estabelecimentos “tradicionais”, como diz ser o caso da rede de hotéis “Othon”. A mensagem parece ser: a redenção vem no rastro do mercado. Esse emaranhado de idéias merece ser mais bem discutido, pois, ela acaba tomando uma parte (Jardins) pelo todo e criando uma imagem globalizada utilizada para pensar os “homossexuais” como um grupo. A imagem de consumidores em potencial acaba por elaborar representações muito específicas da homossexualidade, já que nem todos os homossexuais que vivem em São Paulo se vestem, comportam e consomem da maneira narrada pela jornalista.
1 - O HOMOSSEXUAL COMO CONSUMIDOR Ainda na década de 1960, informações sobre o surgimento e o avanço dos movimentos militantes de gays e lésbicas de outros países se faziam timidamente presente nas paginas de alguns jornais brasileiros de grande circulação. Assim, para os interessados, esporadicamente chegavam ecos dos protestos, ações legais e lutas por direitos por parte dos homossexuais de algumas cidades americanas e européias. 94
SILVA, Chico ; CARUSO, Marina. “Alegria, alegria: O calendário das paradas mostra que o orgulho gay cresce e com ele o mercado específico. Mas o preconceito ainda é grande”. in Revista Isto É, Comportamento, 20/06/2001.
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“Por exemplo, em 1969, o Jornal da tarde publicou uma reportagem da Reuters sobre o ‘gay power’ em São Francisco, nos Estados Unidos. O Globo cedeu espaço em suas páginas para uma matéria da Associated Press sobre a marcha gay em Nova York, em 1970, organizada pela Frente de Liberação Gay. No ano seguinte, o prestigiado Jornal do Brasil publicou um breve artigo sobre um grupo italiano a favor dos direitos dos gays, além de uma reportagem sobre a segunda marcha anual do protesto de gays e lésbicas em Nova York. Nos anos seguintes, os principais jornais do país noticiaram outros fatos internacionais que trouxeram mais informações aos leitores sobre os esforços dos grupos de gays e lésbicas afim de reivindicar status legal para os casamentos entre pessoas do mesmo sexo e eliminar a classificação da Associação psiquiátrica americana que descrevia a homossexualidade como doença. O Jornal do Brasil também publicou uma história sobre as atividades da frente de Liberação Homossexual Argentina, o único grupo de direitos gays sul-americanos existente nessa época” (GREEN, 2000. pp. 416-417).
Embora o termo gay não fosse ainda tão corrente entre os homossexuais brasileiros, que utilizavam outras diversas classificações para se referirem a si próprios (FRY, 1983), essa circulação de informações sobre ações militantes sugeria a idéia de que os homossexuais eram um grupo específico, e com demandas peculiares frente a outros segmentos sociais. A afirmação política e social da “identidade homossexual” passou também pelas ações cotidianas, quando certos homens passaram a produzir informativos – elaborados por e para homossexuais. Tratava-se de publicações artesanais, de tímida circulação, mas que ajudaram a produzir esse grupo ao selecionar do repertório social elementos que acreditavam ser constituinte de seu modo de vida. Assim, corriqueiras fofocas e modestos eventos já apareciam ao lado de informações sobre concursos de miss, filmes indicados, dentre outros assuntos. Embora reflexo de experiências vividas, na medida em que selecionavam assuntos, os elaboradores desses “jornais” ajudavam a construir representações sobre os envolvimentos entre pessoas do mesmo sexo e um estilo de vida peculiar a esse grupo.95 Mais tarde, quando surge o primeiro grupo de militância homossexual em São Paulo, já encontramos pessoas que não apenas acreditam numa “identidade homossexual” como também pretendiam que outras pessoas tomassem consciência e assumissem essa identidade. Foi um momento de intensas discussões entre aqueles que viam nessa assunção o caminho para a redução do preconceito e de outros que descordavam de que fosse possível pensar a existência de uma identidade única para todos os homens que procuravam outros para a satisfação de seus desejos.(MACRAE, 1990). No final das contas, prevaleceu o termo homossexual, pelo menos do ponto de vista político. Outros grupos foram surgindo e, embora utilizassem a palavra gay em seus nomes, todos
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Sobre esses informativos ver GREEN (2000).
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acreditavam que homens que faziam sexo e amavam outros homens, eram homossexuais. Assim, os elementos culturais peculiares ao lazer e ao desejo dessas pessoas foram pensados através de demandas específicas, como faziam os movimentos feminista, negro e operário. Um outro elemento que, de forma catastrófica, acabou tendo uma colaboração decisiva na afirmação dos homossexuais como um grupo específico dentro da sociedade foi o surgimento da AIDS e a maneira como ela foi tratada, tanto pela mídia quanto pelos grupos de ativismo. Umbilicalmente aliada à homossexualidade desde seu surgimento e, em menor grau nos dias de hoje, a AIDS exigiu respostas imediatas tanto do dos médicos quanto de suas supostas vítimas preferenciais. Inicialmente, os grupos gays lutaram pela desconstrução do binômio AIDS/ Homossexualidade e, em pouco tempo os avanços no conhecimento da doença aliaria as opiniões médicas à dos ativistas e intelectuais; juntos, afirmavam que não eram apenas eles – “os homossexuais”- que correriam o risco de ser acometidos pela síndrome e “outros” grupos também seriam vítimas em potencial. Esses “outros” eram mais especificamente mulheres, heterossexuais usuários de drogas e homens heterossexuais que mantêm relações sexuais com homossexuais, seja por medo de assumir que “sua” homossexualidade ou porque não se pensam dessa maneira apesar dos encontros fortuitos e práticas sexuais efêmeras com outros homens. Como já sugeri em outro momento, na medida em que os grupos gays assumem uma posição explícita nas lutas contra a AIDS e denunciam na imprensa, nas ruas ou na televisão seu ponto de vista, a homossexualidade se torna um assunto cada vez mais falado socialmente. Nos períodos posteriores, pelo menos em São Paulo, a idéia de que os homossexuais eram um grupo específico e com demandas peculiares já estava totalmente sedimentada e aceita tanto pela mídia e pela academia quanto pela sociedade em geral. Assim, na medida em que essas demandas se construíam, uma estrutura que atendesse à essas necessidades também foi sendo montada. Na área da diversão, a Disney-Word apostou no Pink Money e criou em 1991 o Gay Day Disney, que, apesar de falar de um dia, dedica um final de semana inteiro e shows e atrações especiais voltadas para o público gay, atraindo mais de 100 mil pessoas. O evento ganhou a adesão também de outros parques da Flórida e o evento de 2001 prometia durar uma semana.
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“Uma das características é que todos os que chegam ao parque são avisados que estão na semana do Gay Day, para não serem surpreendidos com cenas ‘incomuns’.”96 Complementando o apoio ao mercado gay, a administradora de cartões de crédito Visa lançou nos Estados Unidos o Raimbow Card, uma espécie de cartão que reveste parte dos lucros para instituições gays e para pesquisas sobre AIDS. A garota-propaganda escolhida foi a tenista Martina Navratilova, assumidamente lésbica. Os avanços do mercado sobre a homossexualidade eram noticiados no Brasil tanto por periódicos especializados em economia e atualidades (Carta Capital, Veja, Isto É, Época), além dos diversos informativos voltados para o publico gay (jornais, revistas, Internet). Algumas dessas inovações foram absorvidas pelos próprios homossexuais, como parece ser o caso do Gay Day do Hopi Hare, que acontece no sábado que precede a Parada Gay de São Paulo. As informações sobre o primeiro dia gay desse parque de diversões foi noticiada pela Folha de São Paulo em 11 de junho de 2001.
“No sábado (16/6), o parque Hopi Hare celebra a diferença. É que acontece lá o primeiro Gay Day brasileiro, inspirado no evento homônimo norte-americano, que lota todos os anos a Disney World, na Flórida. O dia faz parte das comemorações da semana do Orgulho Gay, que culmina no domingo (17/6) com uma parada na av. Paulista. O Gay Day da Disney aconteceu pela primeira vez há dez anos, quando um grupo de 2.500 homossexuais se vestiu de vermelho e foi brincar no parque. Hoje, a celebração se espalhou e outros grandes parques temáticos da Flórida, como o Universal Studios, Sea World e Busch Gardens, também promovem a festa. Segundo a assessoria do Hopi Hare, as regras de comportamento serão as mesmas definidas para os casais heterossexuais que freqüentam o parque. Ou seja, mãos dadas pode, beijar na boca, também. Mas sem exageros e amassos mais quentes.”97
Apesar da intenção de visibilidade, o primeiro desses eventos se mostrou elitizado (R$ 32,00 e, caso se queira ir de Vã, R$ 50, 00.) e sofreu críticas também em relação à escolha do público. A despeito das iniciais proibições dos “amassos mais quentes”, o Gay Day do Hopi Hare foi sendo cada vez mais popularizado por todos os tipos de manifestação da homossexualidade paulistana. Numa matéria para a revista G Magazine, era ressaltado o avanço mercadológico entre os homossexuais de outros países. Dentre outros produtos, falava do inicio dos testes para o lançamento de uma cerveja (Budweiser) direcionada ao público gay norte-americano em 1981. Tratava-se da “Bud Light”, que foi lançada no mercado um ano depois. Ainda sobre bebidas, A empresa de uísques Johnnie Walker lançaria também o “Pink Label”, de composição menos 96
Stevan Lekitsch, “O Poder do Dinheiro Gay”. Revista G Magazine, janeiro de 2001 Reportagem Local. “O Gay Day brasileiro se inspira no evento da Flórida: Arco-íris invade o Hopi Hari”. In Folha de São Paulo, Folha teen, 11/06/2001. 97
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amarga, também com vistas aos homossexuais. Daí se apreende que marcas mais light e mais suáveis agradariam mais aos homossexuais. Na corrida pelo público gay, também os laboratórios farmacêuticos teriam investido. Aproveitando-se do binômio AIDS/homossexualidade, passaram a elaborar propagandas direcionadas aos gays, supostos aidéticos em potencial. “A Glaxo Wellcome, pôs anúncios com muito alto astral, de página inteira, em revistas americanas e alemães, de seus produtos contra o HIV. Seguiram na mesma linha a Pfizer (com a submarca Agouron), a merk, a Abbott, a Serono e a DuPont Farmacêutica.”98 No decorrer desse processo, diversos ramos empresariais passaram a crer na imagem do homossexual como consumidor especifico e com bom poder de compra e essa afirmação dialogava com todo um mundo de representações à sua volta, difundidas pelas diversas mídias. É sobre o que passo a refletir:
2 – INFLUÊNCIAS MIDIÁTICAS a) Homossexualidades escritas
Nos dias de hoje, ter acesso a escritos produzidos por e para homossexuais não é uma coisa difícil. Livros sobre esse assunto já se encontram disponíveis em praticamente todas as grandes – e em alguns casos, pequenas – livrarias da cidade e, em praticamente todos os bairros, é possível encontrar uma revista que atenda aos interesses desse grupo. Caso não se queira sair de casa e se dispunha de um computador ligado à Internet, a gama de possibilidades é infinitamente maior. Na rede, é disponibilizada, diariamente, uma infinidade de assuntos, facilmente localizáveis pelos sítios de busca. Informar-se sobre o cotidiano da homossexualidade em grande parte do mundo não é mais uma coisa que exija tanto esforço. Mas nem sempre foi assim. Há poucas décadas, ler sobre assuntos relacionados com o cotidiano da homossexualidade não era das coisas mais fáceis, como uma rápida volta no tempo pode mostrar. Com o fim do Lampião, o mercado editorial que atendia aos homossexuais se concentrou basicamente na produção de revistas gays, ou seja, um tipo de publicação consumida principalmente por homossexuais. Tratava-se de publicações ainda pouco elaboradas que, ainda que trouxessem matérias e rápidos artigos discutindo questões sociais, indicações de filmes, 98
LEKITSCH, Stevan, “O Poder do Dinheiro Gay”. Revista G Magazine, janeiro de 2001
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livros e peças de teatro, além de roteiros da vida gay nas grandes cidades, tinham como atração principal a exposição de corpos masculinos totalmente despidos e em estado de ereção. Através das indicações e, doação de alguns interlocutores, tive acesso a duas dessas publicações: as revistas Alone e Spartacus. Já em seu título, a revista Alone parece evidenciar a intenção de sua produção, já que se trata de uma palavra de língua inglesa que significa só. Todavia, pode-se pensar também numa dubiedade desse termo, que pode estar indicando tanto que é necessário estar “só” para poder masturbar-se tranqüilamente enquanto examina suas páginas, como também esse estar só pode estar significando não estar com ninguém por perto que testemunhe seu desejo por aqueles corpos. Em quase todos os números, a revista era em preto e branco, à exceção de umas poucas fotografias coloridas, e não possuía muitas páginas. Mesmo as fotos parecem não ser de modelos contratados pela produção da revista; mas parecem ter sido tiradas de alguma publicação americana – não consegui saber disso ao certo – com a diferença que, naquelas páginas, os modelos eram batizados com nomes correntes no Brasil como Roberto, Marcos, et. O mesmo parecia ocorrer com a Spartacus e, mais uma vez, o nome da revista também tem um potencial simbólico. Seu nome provém de Esparta, a cidade Grega famosa na literatura por seu exército imperialista e pelos amores masculinos. Lembro-me que, em meados dos anos 80 adquirir uma publicação desse tipo não era das tarefas mais fáceis. Normalmente, nas bancas de revista, elas ficavam ocultas em meio a outras revistas pornográficas, num canto mais escondido. Para comprar uma delas, era necessário primeiro que alguém se mostrasse homossexual para o proprietário da banca, depois cuidar para que ela não fosse descoberta, caso morasse com a mãe, esposa ou outras pessoas ignorantes a cerca de sua homossexualidade. Uma vez superadas essas barreiras, era possível não apenas ler as breves matérias e deleitar-se com os corpos desnudos, como também se informar sobre o endereço de alguns poucos espaços de confluência de homossexuais como saunas, bares e boates anunciados nessas publicações. Depois de algum tempo, elas passaram a publicar também anúncios pessoais de homens que procuravam outros homens para amizade, namoros ou encontros sexuais. Nesses anúncios, o sigilo pessoal era garantido, pois não eram mostrados telefones ou endereço; apenas caixas postais. Outras revistas, embora não direcionadas ao público homossexual, também acabava sendo consumidas por eles. Esse parece ser o caso da Private, uma revista especializada em anúncios
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eróticos pessoais na qual, esporadicamente, havia o anúncio de um homem procurando por outro homem ou por casais. Sobre isso, um de meus interlocutores afirma o seguinte: “Era bem melhor comprar uma revista de anúncios gerais do que uma revista de homem pelado. A gente morria de vergonha de chegar em uma banca e enfrentar o dono para comprar uma revista gay. Se a gente comprava outra, em que ia ver um monte de paus do mesmo jeito, ninguém ficava pensando nada. Cheguei, inclusive, a encontrar com alguns caras que estavam se anunciando nessas revistas. Era tudo muito discreto. Ninguém ficava sabendo de nada.”99
Havia uma brecha no imaginário social que permitia que os homossexuais se anunciassem nessa revista, afinal, não era uma coisa tão incomum, pelo menos nesse momento, que um homossexual se anunciasse disposto a sexo oral ou a uma prática sexual na condição de passivo com outros leitores. Assim, diferentemente dos leitores do Lampião, que eram basicamente homossexuais – o jornal das bichas, como os próprios editores definiram – não se pode afirmar que o mercado das revistas fosse tão lucrativo ou tão influente nesse período. Foi somente na década de 1990 que uma revista voltada exclusivamente para homossexuais, e com uma produção mais elaborada, chegou às bancas das principais capitais do país. Tratava-se da Suigêneris. A edição de número zero da Suigêneris saiu em 1994 na cidade do Rio de Janeiro e seu principal editor era o jornalista Nelson Feitosa. “Segundo o próprio Nelson, a revista não tinha pretensões muito ambiciosas. O que ele queria era um periódico pequeno e informativo para circular na zona sul do Rio de Janeiro, algo bastante restrito e íntimo. Mas, assim que a mídia ficou sabendo da notícia, ela se espalhou e o projeto caseiro se tornou uma das revistas gays mais bem sucedidas do país, com distribuição nacional, que durou até o início de 2000.”100
É em oposição ao tipo de revistas como as outras já citadas que surge a Sui Gêneris. Mas como afirma seu criador, não era um projeto nacional. Seu sucesso se deveu a uma demanda existente no mercado, num momento em que a homossexualidade já havia passado por uma série de transformações sociais. Não se deve esquecer também que a criação da revista Suigêneris coincide com a do Festival Mix Brasil de Cinema, voltado para os GLS da cidade.
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Afonso Carvalho, entrevistado em 15/12/2003.
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MONTEIROS, Marko. “O homoerotismo nas revistas Suigêneris e Homens”. Trabalho apresentado no evento Literatura e Homoerotismo: II Encontro de Pesquisadores Universitários. Uma agenda para os estudos gays e lésbicos no Brasil. Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 24-26 de Maio de 2000.
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As capas dessa publicação, embora evidenciem um certo erotismo em suas imagens, parecem estar preocupadas em rebuscar esse erotismo. Além disso, o fato de ser uma revista que não tinha por objetivo a exibição de nus masculinos fazia com que alguns artistas e esportistas conhecidos do grande público não se sentissem constrangidos em aparecer em suas capas, como podemos ver a baixo:
Duas capas da Suigêneris, com o ator Alexandre Frota e o jogador de futebol Renato Gaúcho, respectivamente.
Os avanços das publicações gays, numa relação dialética, eram ajudados pelas modificações ocorridas na mídia televisionada em relação à homossexualidade, ao mesmo tempo que, também a modificava. Acompanhemos essa trama. b) – A homossexualidade na televisão brasileira.
Comentando sobre a mídia televisiva, Pierre Bourdieu alerta que: “Os perigos inerentes ao uso ordinário da televisão devem-se ao fato de que a imagem tem a particularidade de poder produzir o que os críticos literários chamam o efeito real; ela pode fazer ver e fazer crer no que faz ver. Esse poder de evocação tem efeitos de mobilização. Ela pode fazer existir idéias ou representações, mas também grupos. As variedades, os incidentes ou os acidentes cotidianos podem estar carregados de implicações políticas, éticas, etc. capazes de desencadear sentimentos fortes, freqüentemente negativos, como o racismo, a xenofobia, o medo-ódio do estrangeiro, e a simples narração, o fato de relatar, como repórter, implica sempre uma construção social da realidade capaz de exercer efeitos sociais de mobilização (ou de desmobilização)”101
Fazendo crer no que mostra, a televisão levou às pessoas diversas imagens sobre homossexualidade, oferecendo ao público imagens de que se valiam para avaliar pessoas reais no 101
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 28.
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seu cotidiano. Não de deve esquecer, contudo, que essas representações dialogavam com experiências de pessoas reais, e que, somente desse diálogo, seria possível apreender os efeitos reais da penetração social dessas imagens. A entrada da homossexualidade na televisão brasileira se deu através dos programas humorísticos. Alguns dos mais conhecidos personagens homossexuais foram criados pelos humoristas Chico Anísio – o pai de santo “Painho” e o enrustido “Haroldo, o hetero” – e por Jô Soares – o controvertido herói “Capitão Gay”, acompanhado por seu escudeiro “Carlos Sueli”. Esses personagens, embora tenham se baseado em estereótipos caricaturais da homossexualidade, levavam para o grande público representações específicas, que pareciam sempre lembrar que homossexuais eram indivíduos deveras efeminados, que vivem arquitetando maneiras de seduzir homens jovens, bonitos e heterossexuais. E que muitas vezes conseguiam seus objetivos. Suas falas estavam sempre repletas de termos bem conhecidos dos homossexuais do período como bofe, bicha, mona, etc., e seus gestos incluíam sempre o desmunhecar, o andar cadenciado, a intensa, mas delicada, movimentação dos braços. Também a maneira como se vestiam, acompanhavam a feminilidade ou o exagero que seus criadores acreditavam que deveriam ter, para serem vistos como homossexuais. Assim, as malhas bem coladas do Capitão Gay, as roupas folgadas, brancas e bordadas do Painho, e as roupas sérias, mas com detalhes histriônicos de Haroldo. Os sinais diacríticos que essas personagens evidenciavam pareciam se aproximar das representações sociais de masculinidade, exacerbando o que se espera do feminino. Assim, embora esses humoristas tenham rompido com o silêncio em torno da homossexualidade, suas personagens levaram para a tela muito do que já se pensava sobre os homossexuais nas ruas. Para além disso, reafirmaram essas representações para quem não convivia com homossexuais assumidos em seu cotidiano. Lembro-me que, ainda criança, ouvia as pessoas trocando xingamentos – em brigas ou brincadeiras – em que chamavam uns aos outros de Capitão Gay, de Haroldo ou de Painho. Internamente ao grupo, essa imagem parecia não agradar a muitos homossexuais, principalmente àqueles interessados em fortalecer um movimento. Em um texto instigante, MacRae mostra como a imagem da bicha louca foi cada vez mais sendo tomada como um contraponto ao homossexual consciente de sua identidade.
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Mas foi somente na novela A Próxima Vítima, exibida pela rede Globo 1995 que os homossexuais que compunham a trama apareceram pela primeira vez livres das afetações que sempre os marcou nos folhetins televisivos. O casal formado por Sandrinho (André Gonçalves) e Jéferson (Lui Mendes) mostrava dois rapazes (um branco e outro negro) nada afeminados, assumidos para os amigos e bem resolvidos com sua orientação. Não possuíam uma vida social gay – eram os únicos homossexuais da trama e nenhum indício aparecia de que freqüentavam bares ou boates gays. Outra imagem que criou polêmica foi a das lésbicas, interpretadas por Silvia Pfifer e Cristiane Torloni na novela “Torre de Babel”, em 1998, também exibida em horário nobre. Na trama as duas personagens se aproximavam do que vinha se chamando de lesbian chic, ou seja, mulheres femininas, elegantes, que se relacionavam sexualmente e assumiam-se publicamente como lésbicas. No campo profissional, o casal também parecia ser bem sucedido, além de fazer parte de um grupo social composto por heterossexuais. Não estavam no gueto. Dessa vez, a polêmica partiu dos ativistas homossexuais que protestavam pela morte precoce das personagens nos primeiros capítulos da trama. Para os militantes, as lésbicas foram “assassinadas”, embora se tratasse, na novela, elas tivessem sido vitimas da explosão de um shopping. Essa opinião parece ter sido compartida também por intelectuais preocupados com questões a respeito de gênero. Em entrevista concedida ao “Mais”, suplemento de domingo do jornal Folha de São Paulo, a crítica e ensaísta literária Marlyse Meyer, lembra que, pelo menos na ficção, há uma certa dificuldade de aceitação de personagens homossexuais no Brasil.
“Tomemos o exemplo mais próximo, que é a novela ‘Torre de Babel’. Nela, um casal de homossexuais, mulheres, teve que sair de cena por pressões da audiência, que não admitia que aquilo fizesse parte de sua ficção. Paradoxalmente, este mesmo público assiste tranqüilamente às atrocidades apresentadas pelo "Ratinho" e similares. Tudo se dá como se houvesse uma fronteira nítida separando a ficção da realidade.”102
Mas, mesmo para os expectadores do Programa do Ratinho (exibido em horário nobre no SBT), a recepção aos homossexuais não parece agradar totalmente. Segunda uma leitora da Folha de São Paulo: “O ‘Programa do Ratinho’ é uma das melhores atrações existentes e seu único
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DIAS, Maurício Santana “As mil faces do romance: Entrevista com Marlyse Meyer”. Folha de São Paulo, MAIS, 02/08/1998.
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problema é levar ao ar homossexuais e macumbeiros. Isso sim é podre, é uma apelação! Mas a parte boa existe e é preciso mencioná-la nas reportagens.”103 Em 30 de julho de 1990, foram feitas as primeiras concessões de TV a cabo no Brasil, e o “Canal +” foi o primeiro canal por assinatura do país. Em setembro do ano seguinte, vai ao ar a primeira rede de Tv a cabo, a TVA. Havia ainda poucos canais – Showtime, TNT, ESPN, Supercanal e CNN. Havia, então, na cidade de São Paulo, 50 mil assinantes. No decorrer da década de 1990, novos canais foram surgindo e novas redes foram aparecendo. Em 1993, a Net Brasil, Multicanal e TVA recebem do governo federal a concessão para comercializar tv por assinatura. Diversos canais de filmes, documentários, sitcoms, jornalismo, etc, foram sendo adicionados à programação, compondo um variado leque de opção para quem pretendia não assistir apenas a tv aberta. Essas transformações, tecnológicas, tiveram uma profunda influência nas maneiras como certos temas sociais foram tratados pela mídia. Se no Brasil, as telenovelas vez ou outra ainda mostravam a imagem caricaturizada da homossexualidade, os canais de tv estrangeiros inseriam no cotidiano brasileiro novas representações sobre os envolvimentos homossexuais. É necessário lembrar que os países que produziam esses canais já haviam avançado bastante nas discussões sobre a homossexualidade e que os ecos dessas discussões estavam presentes nas grades de programação. Assim, filmes, documentários e programas especiais passaram a levar esse assunto para os lares brasileiros – principalmente das classes média e alta – contribuindo para uma certa globalização das representações sobre esse tema. Nos Estados Unidos, um programa de entrevistas voltado para o publico gay começou a ir ao ar em 1992. Tratava-se do “In the Life”, o único seriado de temática gay transmitido nacionalmente nos EUA e talvez no mundo. O programa bimestral, criado pela produtora de mesmo nome, passou a ser transmitido por cerca de cem afiliadas da PBS, uma emissora pública de TV norte-americana. A comemoração de seu quinto aniversário mereceu uma matéria da antropóloga Esther Hambúrguer. “O programa entrevista personalidades famosas que assumem sua identidade, cobre eventos promovidos pela comunidade homossexual, faz reportagens nos EUA e no resto do mundo, sempre para divulgar a causa de artistas ou militantes gays. O clima é divertido. As matérias resgatadas na edição especial mostram a cobertura de peças de sucesso como ‘Anjos na América’, um dia na vida de Lady Chablit, famosa Drag Queen, e cenas de exóticos clubes ‘western gay’, onde os fregueses dançam com roupas de caubói. Não faltam beijos e afagos em clima de festa. A 103
Carta de uma leitora endereçada à Folha de São Paulo: TV Folha, 22 de novembro de 1998.
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retrospectiva mostra trechos da entrevista com pesquisadores do Museu do Holocausto, em Washington, a primeira instituição a pesquisar e expor publicamente a saga dos homossexuais durante o Terceiro Reich. Alguns atores entrevistados celebram a chance de personalidades homossexuais receberem tratamento jornalístico. Não faltam também homenagens a companheiros mortos. O programa comemorativo encerra a retrospectiva com uma gloriosa Liza Minelli cantando em uma manifestação coalhada de bandeiras gays. Poderia ser um musical da Broadway. Entre os homossexuais estadunidenses há os que se sentem incomodados pelo que consideram excesso de agressividade do programa. Mas, embora ‘In the Life’ seja feito por gays e lésbicas e dirigido a um público GLS, sua repercussão extrapola o público-alvo. ‘In the Life’ gera repercussão política e na mídia. Ganhou muita notoriedade quando o republicano Bob Dole denunciou o programa como exemplo de mau uso de dinheiro público. Mas ‘In the Life’ não custa nada ao governo. No melhor estilo do laissez-faire contemporâneo, o programa é financiado por instituições filantrópicas e pessoas interessadas na causa.” 104
Como lembra Hambúrguer, tratava-se de um programa de entrevistas em que personalidades do mundo gay falavam abertamente de suas vidas para um publico amplo, com cenas da vida gay e suas simbologias (Liza Minelli, drag queens) levadas ao ar, patrocinadas por instituições filantrópicas e “pessoas interessadas nas causas”. A homossexualidade começa a aparecer em sitcoms norte-americanas com a série "The Corner Bar", que a ABC exibiu entre os anos de 1972 a 1973. Tão revolucionária quanto fracassada (pouca audiência), passava-se num bar de Nova York e mostrava o dia-a-dia designer gay Peter Panamá, vivido pelo ator Vincent Schiavelli. Mas a série não passaria de uma segunda temporada. Desde então, papéis secundários homossexuais apareciam esporadicamente nesse tipo de programação, como o homossexuais Steven ("Dinasty"), Leon ("Roseanne"), Smithers ("Simpsons") e Carol ("Friends"). Contudo, foi somente quando da comemoração do quinto aniversário desse programa que uma série festejada por grande parte da população norte-americana (e de vários países do mundo), causaria uma polêmica ainda maior. No dia 20 de abril de 1997, o jornalista Carlos Eduardo Lins da silva alertava aos leitores da Folha de São Paulo que uma personagem de uma sitcom americana revelaria, em horário nobre, sua homossexualidade. Tratava-se da personagem Ellen, protagonista da série de mesmo nome e interpretada pela atriz, Ellen DeGeneres, que em algumas entrevistas nas diversas mídias, havia assumido publicamente ser lésbica. “A reação à notícia tem sido extraordinária. Três dos principais patrocinadores do programa (as lojas de departamentos J. C. Penney, a rede de lanchonetes Wendy's e a fábrica de automóveis Chrysler) suspenderam seus anúncios. Religiosos conservadores pedem a seus fiéis que boicotem os produtos das empresas que continuarem a patrocinar a série. A ABC, que pertence à Disney, recusou anúncios de uma agência de turismo especializada em organizar cruzeiros para homossexuais e de entidades homossexuais que desejavam aproveitar a antecipada grande audiência do programa para promover sua causa. O assunto virou capa da ‘Time’. Ellen DeGeneres (que o reverendo 104
HAMBURGER, Esther. “Programa GLS dos EUA comemora 5 anos”. in Folha de São Paulo: Ilustrada, 08 de setembro de 1997
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Jerry Falwell está chamando de Ellen DeGenerada), 39, virou heroína do movimento lésbico. Ela ficou famosa em 1987, quando apareceu no especial ``Women of the Night'' da rede de TV por cabo HBO e roubou a cena com seus diálogos telefônicos com Deus. Ellen nasceu em Nova Orleans, onde começou a trabalhar como humorista em bares. Em 1984, mudou-se para San Francisco e passou a aparecer em programas nacionais de TV.105
Apesar da série “Ellen” ter ficado na lista dos dez programas de maior audiência dos Estados Unidos durante 4 anos, como informa o jornalista, as reações dos anunciantes não parece ter sido compreensiva. A aparição de personagens homossexuais, ao longo dos anos 90 foi sempre mediada pelos interesses mercadológicos, com os anunciantes temendo uma associação entre seus produtos e a homossexualidade exibida nos programas. A Notícia prossegue lembrando que: “Ellen não é o primeiro personagem homossexual da TV nos EUA. Em 1989, na série ‘Thyrtysomething’, a mesma rede ABC chegou a mostrar dois homens semidespidos, conversando na cama, e perdeu cerca de US$ 1 milhão em patrocínios. Segundo a revista ‘Advocate’, as séries em exibição atualmente têm 22 gays. Mas nenhum deles é o líder de um programa, em torno de quem gira toda a ação. Nem qualquer dos artistas que interpretam seus papéis têm uma fração da popularidade de DeGeneres. No episódio do dia 30, diversos grandes astros terão participações especiais. Entre eles, Demi Moore, Mellisa Etheridge, Oprah Winfrey, Billy Bob Thornton e k. d. lang. A ABC e a Disney dizem terem exigido dos produtores apenas duas coisas para colocar o espetáculo no ar: bom gosto e qualidade.” 106
Apesar de tentativas anteriores, a popularidade de Ellen De Generes e de seu seriado apostavam na idéia de que o público compraria a proposta. Parecia estar se abrindo espaço para que personagens homossexuais fossem vistos por um grande número de pessoas, principalmente após a popularização das TVs por assinatura. Como foi ressaltado na matéria:
“(...) há quem diga que o chefão da Disney, Michael Eisner, também ordenou que a assumida de Ellen ocorresse agora, após a assembléia anual dos acionistas da empresa (para poupá-lo de ataques) e a um mês do final da temporada (para que a ABC possa avaliar a resposta do público e decidir se mantém a série no ar a partir de setembro). Enquanto isso, os EUA aproveitam o mote para discutir o que acham do lesbianismo.” 107
Para o movimento homossexual americano, que sempre investiu na política da visibilidade para os homossexuais, o outing tanto da atriz como da personagem funcionava como uma injeção de ânimo para futuros desafios. Mais ainda, era uma possibilidade de avaliar o grau de aceitação dos expectadores americanos. Revertida em números, as presenças de personagens 105
LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. “Personagem revela que é lésbica em horário nobre”. Folha de São Paulo: Mundo, 20 de abril de 1997. 106 LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. “Personagem revela que é lésbica em horário nobre”. Folha de São Paulo: Mundo, 20 de abril de 1997. 107 LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. “Personagem revela que é lésbica em horário nobre”. Folha de São Paulo: Mundo, 20 de abril de 1997..
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homossexuais poderiam atrair anunciantes. Depois de ir ao ar o tão aguardado episódio, Ellen De Generes volta a ser notícia nos jornais, mas agora se falava também das repercussões sociais de sua revelação.
“Em compensação, várias festas aconteceram em cidades ao redor do país. A GLAAD (Aliança Gay e Lésbica Antidifamatória) promoveu noitadas batizadas de ‘Coming Out With Ellen’ em seis cidades. San Francisco, cidade onde dados extra-oficiais afirmam que 60% da população é gay, o maior agito foi no clube Sally's. Mais de 600 pessoas acompanharam pelo telão instalado no teto a insegurança de Ellen ao revelar sua homossexualidade. Para levantar fundos para a GLAAD, foram leiloados camisetas, agasalhos e fotos autografados por Ellen DeGeneres. Algumas veteranas do movimento de direito dos homossexuais aproveitaram para esnobar a nova colega. ‘Ellen é gay’, afirma Julia Birkenstein, 54, lésbica assumida há 36 anos. ‘E dai?’. Entre as novatas, apelidadas de ‘baby dykes’ (sapatão-bebê), o entusiasmo parecia ser maior. ‘Não tive coragem de contar para meus pais ainda’, afirma Jennifer Logan, 22. ‘Talvez esta seja a deixa’.” 108
A assunção publica e televisionada de um personagem foi revestida de uma importância simbólica impar para os ativistas homossexuais estadunidenses, e os reflexos dessa discussão chegaram a outros países através da Internet e dos diversos meios de comunicação, e isso foi usado de forma política. Quando a maior organização protestante dos EUA se manifestou contra a exibição dos episódios da série, David Smith, porta-voz do grupo de defesa dos direitos dos homossexuais (Human Rights Campaign), lembrava que a maioria população norte-americana discordava das posições "bizarras" dos batistas do sul.109 No ano seguinte, numa noticia traduzida do jornal norte-americano New York Times, comentava-se sobre o polêmico seriado: “Ellen DeGeneres, primeira estrela declaradamente lésbica, que conquistou audiências recorde na TV”110 Foi também nos anos 90 que surgiu uma série protagonizada exclusivamente por homossexuais. O canal pago Eurochannel estreou no dia 13 de setembro de 2000 a série inglesa "Queer as Folk", que criou polêmica por ter sido protagonizada por três homossexuais, em situações peculiares a seu cotidiano. Inicialmente produzido na Inglaterra, ganhando posteriormente uma versão norte-americana: “A programadora de canais pagos HBO do Brasil acaba de comprar a versão norte-americana do polêmico seriado gay ‘Queer as Folk’, sucesso de público e crítica nos Estados Unidos. A série, que terá o título traduzido para ‘Os LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. “Personagem revela que é lésbica em horário nobre”. Folha de São Paulo: Mundo, 20 de abril de 1997. 109 Ver matéria divulgada no jornal Folha de São Paulo: “CENSURA RELIGIOSA: Maior igreja protestante norteamericana diz que empresa tem direção 'antifamiliar e anticristã’.” Folha Mundo, 19 de junho de 1997 110 Novo "Ellen" satiriza homossexualidade. Folha de São Paulo: Ilustrada, 20 de janeiro de 1998.
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Assumidos’, estréia no Cinemax (TVA e DirecTV), em 1º de junho, à meia-noite. Será exibida sempre às sextasfeiras. O ‘Queer as Folk’ americano é cópia do inglês (exibido no Brasil no ano passado pelo Eurochannel), que só durou oito episódios devido a desentendimentos entre atores e produtores pelo valor dos cachês. Nos EUA, o seriado é exibido pelo canal pago Showtime desde dezembro. Já foram produzidos 22 episódios -a primeira temporada termina lá em junho.”111
Os episódios tratavam sempre de questões ocorridas no meio gay e pareciam tentar destruir alguns mitos existentes em torno das experiências homossexuais. O comentário de um jornalista sobre a profusão de programas de temática gay nas TVs norte-americanas, no dia 27 de janeiro de 2001, dizia o seguinte sobre esse programa: “Entre a dezena de títulos, não há nada mais barra-pesada do que a versão local do seriado britânico ‘Queer as Folk’, que o canal de TV paga Showtime exibe no fim da noite dos domingos. Com um título que faz trocadilho com um antigo ditado inglês (nada é tão ‘estranho como gente’) mas também com o termo para ‘bicha’ (‘queer’), o programa retrata o dia-a-dia de um grupo de gays. Dizer isso é pouco: ‘Queer’ tem sexo quase explícito. Câmeras em poses urológicas explicam posições e como chegar a elas. É um verdadeiro manual da sacanagem gay, com direito até à lenda urbana (heterossexual) dos quartos escuros das boates. Até atingir essa suposta liberalidade, ainda que às 10 da noite do domingo, ainda que numa TV paga, a telinha norte-americana trilhou um caminho longe de ser róseo, pelo menos no tocante à presença de homossexuais.”112
A despeito do tom satírico do jornalista, o seriado não agradava totalmente a todos os homossexuais e foi criticada por certos setores gays americanos por retratar os homossexuais como promíscuos. A polêmica gerada por essa série, que desagradava tanto gays como heterossexuais, deve ter ajudado no conhecimento sobre ela. No dia da estréia de “Os Assumidos” – um título já aludindo à visibilidade - seis homossexuais, com “autoridade” sobre o assunto foram convidados para assistir ao primeiro episódio e comentá-lo para um jornalista: Na última quarta-feira à noite, seis convidados da Ilustrada se reuniram para assistir ao primeiro episódio, em vídeo. Entre pizzas, guaraná e vinho tinto, o grupo era formado por Beto de Jesus, 38, presidente da Associação da Parada Gay de São Paulo, José Gatti, 50, professor da Universidade Federal de São Carlos e crítico de cinema, Júlio Nascimento, 33, psicanalista com mestrado na PUC sobre homoerotismo, Laura Rebessi, 27, produtora do Festival Mix Brasil da Diversidade Sexual, Maurício Gonçalves, 36, professor de cinema da Belas Artes, e Suzy Capó, 39, jornalista, colunista de sexo e diretora da Associação Mix Brasil. 113
Em opiniões omitidas a respeito do programa, os convidados lembravam que:
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CASTRO , Daniel. “HBO do Brasil compra seriado gay polêmico”. In Folha de São Paulo: Ilustrada, 03 de maio de 1997 112 DÁVILA , Sérgio. “Gays conquistam espaço em séries”. in Folha de São Paulo: Ilustrada 27/02 2001. 113 MATTOS, Laura. "Queremos séries gays na Globo e no SBT: " Folha de São Paulo: Ilustrada 01/06 2001.
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“O mais legal da série é que tem beijo e sexo. Will & Grace é mais sofisticada, mas não mostra o melhor’, disse Gatti. ‘Estamos cansados de ver filmes gays inteiros, esperar até a última cena e não ver nem um beijo sequer’, afirma Júlio Nascimento. ‘Isso acontece também com as novelas brasileiras, que raramente colocam um gay na trama. O máximo que mostram é um olhar mais insinuante’, diz Maurício Gonçalves. Além das cenas de sexo, Suzy Capó elogiou o fato de a série mostrar romance, ‘namoro de verdade’, entre gays. ‘Isso é importante para mudar o senso comum, em que a homossexualidade costuma ser vinculada à sexualidade e não à afetividade.’ Beto de Jesus concorda: ‘Muitas vezes as pessoas ficam mais chocadas vendo dois homens ou duas mulheres se beijando, felizes, de mãos dadas, do que transando de fato’. É claro que ‘Os Assumidos’ também recebeu críticas, como a fraca atuação de parte do elenco. Outros problemas, para os convidados, não são específicos de uma produção para gays. ‘É claro que existe aquela maneira americana de ver as coisas. Todo mundo é lindo. Além disso, não há negros no elenco central’, diz Júlio Nascimento. 114
Primeiramente na exibição do seriado europeu e posteriormente na do norte-americano, foi levado aos lares brasileiros (principalmente paulistanos, os maiores assinantes) diversos elementos peculiares ao cotidiano gay vividos nos Estados Unidos. No rastro dessa globalização, que estava presente não apenas na TV, uma imagem gay global foi se constituindo. Os personagens em evidência freqüentavam bares e boates, consumiam as drogas do momento, grifes caras e possuíam um sólido círculo de amigos quase todos homossexuais. Não faltaram também as caricias e os fortes conteúdos eróticos que revelavam meandros do erotismo homossexual. É difícil dizer ao certo quanto das informações abstraídas desses programas foi realmente trazido para o cotidiano da homossexualidade paulistana. Todavia, a imagem do homossexual de classe média que vivia em São Paulo pouco se diferenciava daquela exibida pelos personagens do seriado “Queer as Folk”. No Brasil, as atitudes contra a aparição de personagens homossexuais estereotipados começa a sofrer ataques dos militantes. Por volta de abril e maio de 1997, em um filme de propaganda das sandálias “Rider” exibido nacionalmente, três rapazes tentam flertar com três moças em um bar e, por um equívoco de um estabanado garçom, o bilhete acaba indo parar nas mãos de um grupo de homossexuais, que se empolga com o bilhete. Depressa, como que aterrorizados, os rapazes fogem do bar, e dos lânguidos olhares do grupo de homossexuais. “Há cerca de um mês a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT) pediu ao Conar a retirada das inserções. ‘Concluímos que a cena, aparentemente engraçada, é homofóbica e discriminatória’, diz Toni Reis, secretário-geral da ABGLT. Para ele, o filme reforça o preconceito porque o grupo de homossexuais é estereotipado. Além disso, diz, incita o preconceito pela forma desesperada com que os rapazes fogem do aceno dos homossexuais. ‘Parece que estão fugindo de um monstro.’ Reis diz que a associação recebeu 17 manifestações negativas sobre comercial por telefone. Ele afirmou que a associação ‘está verificando as possibilidades de processar a agência e a indústria, caso o filme não seja tirado do ar’.” (...) Se o Conar entender que houve ofensa, decidirá a dose de punição, 114
MATTOS, Laura. "Queremos séries gays na Globo e no SBT: " Folha de São Paulo: Ilustrada 01/06 2001.
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que vai de uma advertência aos responsáveis à suspensão do anúncio, segundo Edney Narchi, diretor-executivo do conselho. 115
Tanto as comemorações em torno e em prol da exibição de personagens homossexuais na TV, quanto as reações aos personagens estereotipados evidenciavam as maneiras como diversos homossexuais desejavam ser representados na mídia. Em torno dessas ações, vai se configurando uma negociação entre anunciantes, atores, produtores e a sociedade em geral que resultaria num novo contexto para as representações homoeróticas na televisão. Muito das opiniões populares a respeito da homossexualidade se transformaram, provavelmente influenciados pelas aparições da homossexualidade na mídia e também pelas campanhas dos ativistas em prol da visibilidade, das quais a massiva parada gay de São Paulo era um bom exemplo. Em meio a essas mudanças intensas, um programa de TV de uma emissora direcionada principalmente ao público jovem, prometia promover o encontro de um casal homossexual para todo o país. O título da matéria que chegava aos leitores era: “Programa da MTV vai promover namoro gay”.
“Fica Comigo”, programa semanal que Fernanda Lima (ex-Rede TV!) irá apresentar na MTV, a partir de 2 de outubro, às 22h, promete dar o que falar. O programa, segundo Zico Goes, diretor de programação do canal, será a “versão MTV” do “Namoro na TV” de Silvio Santos, "engraçado e moderno". Tão moderno que a MTV pretende não só promover namoros entre heterossexuais, mas também entre gays e lésbicas. Segundo Goes, até o final deste ano pelo menos um programa será disputado por homossexuais. No "Fica Comigo", quatro candidatos -que serão chamados de "queridos" ou "queridas"- irão disputar um "alvo". Separados por um biombo, os "queridos" serão eliminados de acordo com as preferências do "alvo". Para participar do programa, é preciso se inscrever no site da MTV (www.mtv.com.br). Quatro candidatos já estão sendo "oferecidos" na Internet. Com a estréia do "Fica Comigo", a MTV deixa de reprisar o "Barraco MTV", como vinha fazendo desde julho. A emissora, que pretendia reformular o programa, decidiu encerrá-lo.116
Bem conhecida por levar ao ar clipes de Rock e de clássicos do pop nacional e americano, a MTV cativa a audiência principalmente do público jovem, daí seu interesse em assuntos ligados à moda, noite e sexualidade, tendo, inclusive entre seus apresentadores o irreverente Max Fivelinha, que diz ser assumidamente homossexual. No entanto, apesar da intenção inovadora de abordar a afetividade homossexual, encontrar pessoas dispostas a assumir em cadeia nacional sua homossexualidade – pelo menos dentro da faixa etária de 18 a 30 anos – não se mostrou uma tarefa fácil. Mas emissora insistia no assunto: 115
GARÇON, Juliana. “Conar julga hoje comercial da Rider”. Folha de São Paulo: Dinheiro, 03 de junho de 1997. CASTRO, Daniel. “Programa da MTV vai promover namoro gay”. in Folha de São Paulo, Televisão, 11 de setembro de 2000. 116
121
A MTV ainda não conseguiu reunir homossexuais dispostos a participar do “Fica Comigo”, versão moderninha do “Namoro na TV”. Mas o “Meninas Veneno” da próxima quinta (22h) terá sete mulheres homossexuais assumidas discutindo o tema “Meninas que Gostam de Meninas”. 117
Enquanto o tão esperado encontro de dois homossexuais em cadeia nacional não acontecia, outras emissoras continuavam a mostrar personagens homossexuais para o público jovem. “Na última semana, depois de ter sua homossexualidade descoberta por seus colegas de colégio, Sócrates decide mudar de escola. A história foi ao ar no seriado ‘Malhação’, da Globo - programa voltado para o público adolescente, nas tardes da emissora, povoado por garotos e garotas bonitas. Ao mesmo tempo, o ex-cabeleireiro Max Fivelinha, homossexual assumido, que tem um quadro no ‘talk show’ ‘Gordo a Go Go’ na MTV, prepara-se para comandar um programa dominical na emissora a partir de março. Os dois casos acima, embora distintos, são um exemplo dos tratamentos variados que os homossexuais recebem na televisão. No caso de ‘Malhação’, o personagem Sócrates, vivido pelo ator Erik Marmo, aparecia sem qualquer estereótipo e atraía a atenção das meninas. ‘Não quis fazer um clichê, especialmente em um programa que quer mostrar com realismo o universo dos adolescentes’, conta Emanoel Jacobina, autor da série. ‘Na TV, há a limitação de se trabalhar em um meio que entra nas casas das pessoas e é uma concessão pública. Por isso, devemos respeitar a moral da maioria da sociedade brasileira. Mas quis apontar as repressões da sociedade’, diz. Erik Marmo, que vive seu primeiro papel na TV, considera positivo interpretar Sócrates.” 118
Com a aceitação do público jovem, ficava mais fácil para os roteiristas proporem, em suas tramas, personagem homossexual destituídos de estereótipos negativados. No entanto, a despeito do jovem Sócrates, de “Malhação”, Max Fivelinha abusava dos gestos delicados e apostava num estilo pouco convencional, no que se refere às imagens de masculinidade. Sua aceitação, como aponta a matéria em sua continuação, estava no fato de que o artista não impunha bandeiras. “Ainda que não esconda sua opção sexual, Max Fivelinha diz não querer carregar qualquer bandeira. ‘Não vendo sexo na TV. Não quero vincular minha imagem a uma tribo.’ Segundo Max, sua persona televisiva é um personagem que ele veste quando vai ao ar. ‘Em comum com o personagem, só os bordões.’ A própria MTV diz que a sexualidade do apresentador não influiu em nada. ‘Max sempre foi uma figura folclórica na MTV, mas não por ser gay, e sim por ser engraçadíssimo. Sou contra explorar a sexualidade em uma atração de TV, como criar um programa GLS, porque você coloca os gays em um nicho’, afirma Zico Goes, diretor de programação e produção da MTV.” 119
117
CASTRO, Daniel. “GLS”. In Folha de São Paulo, Ilustrada, 11/02/2001. GARCEZ, Bruno; CROITOR, Cláudia “Mais espaço, menos clichê”. Folha de São Paulo, Televisão, 11 de setembro de 2000. 119 GARCEZ, Bruno; CROITOR, Cláudia “Mais espaço, menos clichê”. Folha de São Paulo, Televisão, 11 de setembro de 2000. 118
122
Pelo que se pode notar, a aparição da homossexualidade na TV deveria passar por dois modelos, o da “normalidade” e o da “não-militância”. A separação entre atores e personagens, tão perseguida quando se trata de assuntos relacionados à homossexualidade, foi comentada também na matéria: “Assim como Max Fivelinha, atores que interpretam ou que viveram personagens gays evitaram fazer com que a sexualidade de seus tipos estivesse em primeiro plano. É o que diz Luís Salem, que vive o homossexual Ávila em ‘Um Anjo Caiu do Céu’. ‘Tanto o Ávila como o personagem gay que vivi em Anjo Mau tinham uma conotação nãosexual, pois não era mostrada a relação deles com ninguém. Não quis fazer o Ávila com trejeitos de mão, porque as pessoas não são caricaturais no cotidiano’, diz. Cecil Thiré, que viveu o bissexual Mário Liberato em ‘Roda de Fogo’, diz que não procurou enfatizar a condição sexual do personagem. ‘Sua função na trama era ser um antagonista. A chave é que ele não se assumia publicamente.’ Há também o caso do caricatural Pitt-Bicha, interpretado por Tom Cavalcante em ‘Zorra Total’. Para Luís Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação, a transferência do quadro da tarde, quando era exibido no ‘Megatom’, para a noite, no ‘Zorra Total’, se deveu a uma ‘decisão para adequar o quadro à faixa etária do público’. Segundo ele, em sua teledramaturgia, a Globo já recorreu a psicólogos para auxiliar na composição de personagens gays. ‘Eles não são tratados como uma categoria, mas como indivíduos com características próprias.’ 120
Embora as falas desses profissionais se preocupem em buscar uma “normalidade” para seus personagens e deixem clara também a preocupação dessa emissora de TV (Globo) com opiniões “especializadas” sobre sua composição, a vantagem parece residir na não-sensualização dos personagens. Porém, demonstrando ou não traços de afetividade homoerótica, a visibilidade e a positivação das imagens de homossexualidade acabaram funcionado como um poderoso e eficiente ativismo. Finalmente, chega um aguardado dia para alguns homossexuais brasileiros, quando seria gravada a versão gay do programa “Fica Comigo”, na MTV. Como um alerta aos ansiosos interessados – sei disso por que eu mesmo e muitos de meus amigos éramos alguns deles – o jornal Folha de São Paulo lembrava que: “O ‘Fica Comigo’ especial para homossexuais foi gravado no último sábado e terminou com final feliz. Conrado, 29, que foi procurar um namorado na MTV, encontrou, e o programa terminou com um beijo na boca. A alegria do telespectador GLS, no entanto, deve durar pouco. A emissora não esperava encontrar tanto preconceito e dificuldade para produzir um ‘namoro na TV’ com gays. Apesar dos mais de 2.100 pretendentes que se inscreveram pelo site do programa, foi muito difícil convencer as pessoas a aparecerem na TV. Esse cenário deve atrasar qualquer plano de incluir na programação da emissora o ‘Fica Comigo’ homossexual. Aproveitando o tema do preconceito, a MTV decidiu exibir o ‘Fica Comigo’ gay às 23h do dia 8, quarta-feira, em vez da segunda, dia normal da atração. A idéia é fazer antes um debate no ‘Erótica MTV’. Assim, a cama que costuma receber um convidado, irá abrigar seis ou mais pessoas, que falarão sobre homossexualismo. ‘Não queremos fechar a questão, dizer que o mundo está errado, cheio
120
GARCEZ, Bruno; CROITOR, Cláudia “Mais espaço, menos clichê”. Folha de São Paulo, Televisão, 11 de setembro de 2000.
123
de preconceito e pronto. Por isso, resolvemos abrir o debate no Erótica’, diz Zico Goes, diretor de programação da MTV.” 121
No dia da exibição do programa, vários grupos de amigos se reuniram para testemunhar “evento” televisivo. Juntamente ao MTV Award, programa anual de premiação dos destaques mundiais da música, o Fica Comigo Gay garantiu a maior audiência da emissora naquele ano ao exibir as imagens a baixo122:
c) O mundo virtual A Internet começa a ser utilizada no Brasil, efetivamente, no ano de 1988, quando a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo),órgão ligado à Secretaria estadual de Ciência e Tecnologia, buscou acesso á rede nos Estados Unidos. Um dos principais responsáveis pela difusão da rede no Brasil foi o professor Oscar Sala, então professor da USP e conselheiro da FAPESP. Sua intenção era forjar uma rede de comunicações para fins acadêmicos e assim compartilhar dados com instituições estrangeiras. Em 1991, através de uma linha internacional conectada à Fapesp, o acesso à Internet se estendeu a instituições educacionais, fundações de pesquisa e órgãos governamentais, 121 122
MATTOS, Laura "Fica Comigo gay tem final feliz, mas sai do ar”. in Folha de São Paulo, Ilustrada, 31/06/2001. Imagens capturadas no site www.mixbrasil.com.br.
124
possibilitando a participação em fóruns internacionais, além de trocas de arquivos e softwares com outros países. No ano seguinte, o Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) firmou convênio com a APC (Associação para o Progresso das Comunicações), liberando a Internet também para as Ongs. Nesse mesmo ano, o Ministério da Ciência e Tecnologia inaugurou a RNP (Rede Nacional de Pesquisa) e organizou o acesso à rede no Brasil por meio de um “backbone” (tronco principal da rede). Em 1994, um grupo de estudantes da USP criou centenas de páginas na Web. Em novembro desse ano estimava-se que metade delas (500) estava na universidade. 123 Mas, a despeito de ter chegado ao Brasil sob as insígnias acadêmicas, a Internet foi rapidamente apropriada tanto para fins mercadológicos como para a diversão e aproximação de pessoas. Nos últimos anos da década de 1990, muitos jovens e adultos da classe média paulistana já estavam familiarizados com a Internet, descobrindo na rede um mundo de possibilidades. “Eu comecei a usar Internet por volta de 98, quando meus pais compraram meu primeiro computador. Nem precisei fazer curso, nada. Fui mexendo, descobrindo coisas, ta ligado? (...) Eu já saia com caras, mas isso só rolava em boates. (...) Quando vi, eu já estava marcando encontros, saindo com pessoas que eu conhecia no bate-papo. As vezes era uma merda, não é como agora que já tem cam, foto.A gente ia encontrar na cega. As vezes os caras eram interessantes, mas, as vezes, era uns caras que eu não gostava, mas ai eu sempre dava um jeito”124 “Já trepei muito pela Internet e já até consegui um namorado. Pra mim foi ótimo, mas a maioria das pessoas quer mesmo só trepar, não quer compromisso. Mas foda-se. Na noite também é assim, tem gente que ta a fim de namoro e tem gente que ta afim só de putaria. Vai do seu gosto, entende?”.125
De acordo com meus interlocutores, a experiência virtual possibilitou aproximações entre pessoas do mesmo sexo que, na maioria das vezes, estavam restritas aos espaços de sociabilidade gay. É possível perceber também as rápidas mudanças ocorridas nesse novo espaço de caça, na medida em que as pessoas passam a ver umas às outras, seja por fotos ou câmeras. A expansão no uso de aparelhos celulares também funcionavam como facilitadores dos encontros ou mesmo para a avaliação prévia da voz da pessoa com quem se está teclando ou que conheceu num site de anúncios pessoais. Tanto quanto a Internet, os celulares possibilitavam privacidade para essas experiências, tornando-as, possivelmente, mais recorrentes.Essas inovações tecnológicas sofisticavam as buscas e tornavam mais viáveis os encontros. 123
As informações foram pesquisadas em Aragão, Daniella Amâncio. Novas mídias: a síndrome do círculo vicioso: evolução e apropriação de modelos entre novas e velhas mídias. São Paulo, USP, 2001. Dissertação (Mestrado) 124 Carlinhos, entrevistado em 30/05/3004. 125 Thiago. Entrevistado em 27/06/2004
125
Em pouco tempo, os chats126 e as mail lists se proliferaram, bem como os sites informativos e pornográficos ligados à homossexualidade. Dessa forma, grupos informais, sem um sentido ativista, podiam se formar para discutir questões ligadas ao seu cotidiano. Diversas comunidades se formavam para discutir música, noite e moda, estreitando laços e afirmando novos significados para as experiências de homossexualidade. Acessando a página do UOL (Universo Online), não é difícil perceber que as salas mais populosas são aquelas voltadas para os homossexuais masculinos (gays e afins). A qualquer hora se pode encontrar homens interessados em interlocuções com outros homens. Com a popularização desse serviço, as salas foram inclusive se dividindo por estados e regiões, sendo que, no link para as conversas sobre “sexo” sexo, encontramos as divisões Gays e Afins ,
Gays
e
Afins
–
São
Paulo,
Gays
e
Afins
–
Rio
de
Janeiro,
Gays e Afins – A Dois. Na sala de gays e afins, os homossexuais e demais interessados podem conhecer outras pessoas tanto para sexo virtual quanto para encontros. Dessa forma, se tornou possível sem freqüentar os espaços de sociabilidade voltados para homossexuais masculinos encontrar alguém para sexo ou mesmo para relações afetivas. Inicialmente, as salas se dividiam basicamente pelas orientações sexuais dos interessados, mas a massiva presença de internautas, oriundos de São Paulo e Rio de Janeiro, levou o UOL a criar salas específicas. Isso tornava mais real a possibilidade de envolvimentos off line. Encontros também se tornaram possíveis através dos diversos sites de anúncios pessoais, em que os homossexuais se descreviam, muitos com fotos (nus e vestidos) e deixando claras suas preferências sexuais (ativos/passivos). Observando as salas de bate-papo, percebi que nicknames como ativo centro ou passivo jardins, eram facilmente encontrados nos chats; ressaltado a localidade em que residiam, esses internautas viabilizavam encontros reais e mais rápidos. Mesmo num novo contexto, as velhas representações de atividade e passividade continuam a marcar as experiências de homossexualidade. Contudo, os papes sexuais parecem, em muitos casos, se desligarem dos papéis de gênero através de nicknames como macho passivo, deslocando a idéia de que a feminilidade estaria umbilicalmente ligada à feminilidade.
126
Reflexões interessantes sobre as salas de bate-papo na Internet podem ser encontradas em Susan C. Herring. Computer-mediated communication: linguistic, social, and cross-cultural perspectives. Amsterdam; Philadelphia : J. Benjamins, 1996.
126
Os detalhes corporais também são ressaltados nos apelidos (malhado, 19cm, magrelo passivo) bem como a cor (loiro ativo, negro dotado) e geração. Alguns desses sites possuem uma abrangência mundial, possibilitando encontros em casos de viagens, sejam elas de trabalho ou de lazer.127Bons exemplos disso são os sites www.gaydar.nl ou www.disponivel.com, ambos massivamente acessados por homossexuais masculinos. Através das mail lists, a discussões de cunho acadêmico também se fortaleceram, como é o caso da AAGLS (Associação dos acadêmicos GLS), coordenada pelo antropólogo e militante Luis Mott (UFBA), no Yahoo Grupos, em que pesquisadores e demais interessados nas discussões sobre homossexualidade podiam discutir alguns assuntos, travar contendas ou informar os demais sobre notícias, denúncias e eventos ocorridos em vários cantos do país e do mundo. Através da rede, as informações sobre assuntos ligados à homossexualidade podiam ser acessadas por qualquer pessoa e de qualquer lugar, poupando os homossexuais mais tímidos ou ciosos de uma identificação pública, de recorrerem a grupos ativistas ou mesmo a uma banca de revista para adquirir uma revista. Por outro lado, aos que não tinham problema em assumir sua homossexualidade publicamente, a rede serviu também de importante espaço de aquisição de membros e difusão das discussões militantes para os grupos ativistas. Muitas das ações dessas organizações passaram a ser divulgadas em sites como o Mix Brasil (www.mixbrasil.com.br), Gay Brasil (www.gaybrasil.com.br)
e GLS Planet (www.glsplanet.com.br), dentre outros
inúmeros facilmente encontrados nos sites de busca como Google (www.google.com), Cadê? (www.cade.com.br) e Yahoo (www.yahoogrupos.com.br). O que quero sugerir é que, através da Internet, a possibilidade de viver as experiências de homossexualidade se dimensionaram e se estenderam tanto aos homens que pretendiam manter sua homossexualidade no anonimato, relegada a encontros efêmeros e fortuitos, quanto para aqueles que estavam em busca de sociabilidade, discussões e relações afetivas. Esse novo contexto ajudou na afirmação social da homossexualidade já que, através das redes, é possível entrar em contato com as diversas formas de homossexualidade vividas no plano local e global, acessar discussões políticas, fazer amigos e estabelecer trocas simbólicas de
127
Ver, por exemplo, os sites www.gaydar.nl, www.boysdobrasil.com, ou www.disponivel.com, ambos massivamente acessados por homossexuais masculinos.
127
diversos tipos. Mas, principalmente, por que, pelo menos no caso da homossexualidade, houve uma notória passagem do mundo virtual para o real.
3 – O SEXO GAY E O MERCADO a) A pegação tradicional O conhecimento dos locais de pegação
ampliava os trajetos dessas pessoas. Como
relembra em seu depoimento, J.S. Trevisan, muitos homens, em meados dos anos 80, cruzavam a cidade em direção ao Horto Florestal, bem afastado do Centro, onde poderiam encontrar uma atmosfera sexual realmente impressionante: “Era impressionante, era paquera durante o dia e trepação direta à noite. Um dia, por exemplo, no Horto Florestal, era famosa a putaria no Horto Florestal, você se metia naquele mato adentro a você só via gente trepando, você encontrava muito papel higiênico no chão, não tinha camisinha na época, era raro camisinha”.
O circuito da homossexualidade, proposto por outros autores, parece bem reduzido no que se refere a espaços fora da região central, como é o caso Horto Florestal. Mas por que razão os lugares como o Horto Florestal e as caças de rua pouco apareceram em trabalhos anteriores sobre homossexualidade em São Paulo quando eles parecem ter sido tão conhecidos para muitos homossexuais da época?128 Talvez porque tenham partido do pressuposto de que para traçar o “circuito gay” paulista, era necessário considerar apenas os bares, boates e cinemas pornográficos (guetos) que davam sinais de sua existência para um público amplo de homossexuais modernos. Sugiro, no entanto, que esse circuito era bem mais amplo, já naqueles anos, do que tais pesquisas levam a crer, o que nos faz pensar numa utilização ampliada da cidade para a realização dos desejos homoeróticos. Para quem pretendia sair em busca de sexo certeiro naqueles tempos, e com mais segurança, as saunas eram outra opção interessante. Na busca pelas termas, os trajetos homoeróticos também se pluralizavam. Inicialmente, as saunas podiam ser entendidas como espaços voltados para o relaxamento. Porém, acabaram passando por uma especialização no sentido de proporcionar envolvimentos sexuais com a criação de cabines e quartos escuros em seu interior. Elas estavam em muitos pontos da cidade e atendiam a gostos diversificados. 128
Apesar de só ter relatado as falas de Guilherme e Trevisan, as referências feitas por outros interlocutores a locais onde ocorria a pegação foram bastante recorrentes.
128
“(...) começaram a aparecer umas saunas mais finas na região de Moema e algumas saunas mais finas como foi o caso da For Friends. Tinha uma sauna deliciosa chamada Bel Ami, também na Vila Mariana. (...) Isso eu acho que foi...é difícil determinar...mas eu acho que foi no início da década de 80. Com certeza foi antes da AIDS por que várias delas fecharam com a AIDS não é? Havia uma outra na rua Santo Antônio que hoje está muito decadente, chamada Ipanema. (...) Havia uma outra...deixa eu ver qual era a outra sauna que eu freqüentava...a do Largo do Arouche já existia, existia a Danny, na Alameda Barros, que já é tradicional. Existia a Le Rouge, em outro lugar, era na Água Branca, que era também muito...eram umas orgias absurdas que tinham lá na Le Rouge, Le Rouge 80, que depois foi lá pra Pinheiros.”
De acordo com as memórias de Trevisan, havia saunas “mais finas” – possivelmente também mais caras – como a “For Friends” e a “Bel Ami”, na Vila Mariana. A “Termas Ipanema” na Santo Antônio, a “Termas Arouche” no largo de mesmo nome, a “Danny”, na alameda Barros e a “Le Rouge”, que hoje fica em Pinheiros, mas, na época, ficava na Água Branca onde havia “orgias absurdas”. Não foi, ainda, escrita uma história desses espaços em São Paulo e poucas certezas se têm sobre sua localização, data de fundação e tipo de pessoas que as freqüentava. Todavia, as saunas se tornaram um espaço de celebração por excelência das interações sexuais entre homens. Nos Estados Unidos, os gays que surgiram pós Stonewall129 traziam um diferencial em relação a seus antecessores: aderiram aos envolvimentos sexuais e afetivos com outros gays. Para essa nova geração, a criação de um espaço onde podiam se envolver e apreciar uns aos outros ajudou definitivamente na construção do gay pride e evidenciou uma notória mudança no comportamento homoerótico e assunção das pessoas como “gays” nesse país.130 Como nos lembra Gabriel Rotello: “A mudança se tornou muito mais visível nos anos 50 e 60, quando apareceram as primeiras saunas gays realmente modernas. Ao contrário das antigas instituições no estilo dos banhos turcos, onde os gays se misturavam com heterossexuais, esses novos estabelecimentos eram planejados para servir a uma clientela exclusivamente homossexual. Os clientes pagavam uma taxa pelo aluguel de um armário ou de um cubículo com uma cama, guardavam suas roupas e então se enrolavam numa toalha, percorrendo os corredores mal iluminados, aproveitando os banhos e as saunas e relaxando nas áreas de recreio, que em geral ofereciam sofás e TVs e vendiam pequenas
129
O movimento aconteceu em 1969, em New York, EUA, quando o bar Stonewall, cujo público era constituído basicamente por homens que estavam ali em busca de outros homens para envolvimentos sexuais foi invadido pela polícia. Os freqüentadores reagiram à invasão, brigaram com a polícia e montaram barricadas que impedia que os policiais entrassem no local durante três dias. Esse dia, 28 de junho, é até hoje celebrado em muitos países como o dia do “orgulho gay” e se tornou um marco do ativismo homossexual. Ver D’EMILIO, John. Sexual Politics and sexual Comunities: The making of a sexual minority in the United States. 1940-1970. University of Chicago Press, 1983. 130 Ver BÉRUBÉ, Allan. Coming out under fire: The history of gay men and women in word war two. Free Press: 1990.
129
guloseimas”131
Frente a um mundo permeado por intolerância, as saunas ofereciam um atraente espaço de socialização que gerava paulatinamente um sentimento de segurança e comunidade. A confiança nas saunas como espaços seguros para os envolvimentos sexuais entre homens, aliada aos avanços dos grupos de militância homossexual que pretendiam dar visibilidade à “cultura gay”, fizeram com que elas se multiplicassem rapidamente. O modelo de sauna descrito por Rotello não se diferencia muito daquele que havia em São Paulo no início dos anos oitentas. Porém, aqui, havia uma peculiaridade: as saunas não eram freqüentadas apenas por homens que se assumiam homossexuais e, nesse sentido, não foram, pelo menos nesse período, tão determinantes assim na afirmação de uma “identidade gay”. Quando perguntei a Guilherme se os bofes (heterossexuais masculinos) também iam às saunas no início da década de 80, a resposta foi: “Lógico. Iam os caminhoneiros, ia muita gente. Na Aquarius só ia gente de fora. Ela ficava atrás da estação Vila Mariana de Metrô. Era muito gostoso... rolava muita paquera: O cara passava, você olhava pro cara, o cara olhava, ele entrava num quarto, era tudo escurinho, você passava a mão, o cara passava, já pegava... era promiscuidade mesmo... MARAVILHOSA promiscuidade; era um puteiro franciscano... era maravilhoso” (Guilherme, 09/01/2002)
Da mesma forma, João Silvério Trevisan lembra que: “Havia uma quantidade imensa de homens casados nas saunas de São Paulo, de homens com alianças, assim chamados bissexuais”. Essa já salientada peculiaridade da cultura sexual brasileira, que oferece brechas para que um homem mantenha relações sexuais com outro homem sem que isso remeta à constituição de uma identidade sexual, fornecia um significado social para as saunas. Ainda que homens assumidamente homossexuais se envolvessem sexualmente entre si, os bofes também estavam ali para desfrutar dos prazeres que aqueles espaços podiam proporcionar. Se até meados da década de oitenta, não havia ainda uma definição fixa sobre os freqüentadores das saunas, banheiros públicos, praças e cinemões, ou seja, a ida a esses locais não definia, necessariamente, a orientação sexual dos seus freqüentadores, algumas modificações no imaginário social passariam a impor fronteiras a esse tipo de sociabilidade. Isso pode ser percebido inicialmente através de uma divisão que começava a se instaurar e que persiste até
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ROTELLO, Gabriel. Comportamento Sexual e AIDS: A cultura gay em transformação. São Paulo, Edições GLS, 1997. P. 79- 80
130
hoje: as saunas em que só vão os gays e as saunas de “michês”,
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aonde vão os homossexuais
que preferem transar com bofes. Para os homossexuais que recorriam às saunas dos garotos de programa, estes seriam a personificação do homem heterossexual, mas que transa com outros homens. Essa divisão também vai colocar algumas redefinições de trajetos, e a cidade passa a ser percorrida de acordo com as peculiaridades do desejo: “Havia uma sauna em Guaianazes, uma sauna de adolescentes, de molecada adolescente, famosíssima chamada sauna... havia churrascos aos domingos pra atrair a molecada, que era a molecada da região que ia lá fazer michê. Então vinha gente do Brasil inteiro praquela sauna. Dizem que muita gente conhecidíssima freqüentava essa sauna porque gostava de adolescentes, era sauna... ela existe até hoje só que não é mais de adolescentes porque o SBT entrou lá com a polícia e com câmeras de televisão e fodeu com tudo” (TREVISAN, 14/02/2001)
A procura por saunas como a de Guaianazes, localizadas em lugares onde o transporte público ainda era escasso e o acesso mais dificultado, demonstra que os trajetos se alteravam de acordo com os tipos de experiências que as pessoas buscavam para si. Cruzar a cidade de um ponto a outro – para os que moravam em bairros centrais – era muito atraente para quem preferia transar com os bofes ou com adolescentes. As saunas de garotos de programa mais antigas, ainda em funcionamento em São Paulo, são a “Termas Fragatas” inaugurada em 1980, no bairro de Pinheiros – que sempre anuncia em sua publicidade os “diabinhos de plantão” (garotos de programa) – e a “Termas Lagoa”, na Vila Mariana, inaugurada em 1982. O esquema é parecido com o das demais nas quais o cliente recebe a chave para um armário, duas toalhas e um par de chinelos que serão seus únicos acessórios ali dentro. O que difere é que os clientes não mantêm relações sexuais entre si. Toda a atenção é para os rapazes de corpos bem moldados que estão ali aos montes. Os “diabinhos” ficam cobertos apenas por uma toalha, quase sempre exibindo seus genitais em estado de ereção. Quando um programa é negociado diretamente com o boy133, o cliente solicita uma cabine, onde a relação é consumada. Nas duas saunas citadas as cabines são bem parecidas. Possuem apenas uma cama e as paredes cercadas por espelhos que permitem que os corpos do garoto e do cliente possam ser observados pelos mais diversos ângulos. No interior desses espaços existem sempre circuitos internos de TV que exibem filmes 132
Michês são os rapazes que se prostituem, seja nas ruas, bares e boates, seja nas saunas e clubes freqüentados por homossexuais. 133 Esse é um termo bastante usado para se referir a um garoto de programa. Muitos se anunciam como “boys de programa”.
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pornográficos heterossexuais, fortalecendo a idéia de que os boys são tão heterossexuais quanto os atores que estão em ação nas fitas. A sauna lucra apenas com o pagamento pelo ingresso do cliente (banho), seu consumo com bebidas, alimentos e a utilização das cabines. Para que isso aconteça, os “diabinhos de plantão” geralmente pagam bem menos que os “clientes”, sendo que, em algumas, sua entrada é livre. As saunas que não possuem garotos de programa têm a estrutura bastante parecida. Em muitas existem salas de vídeo onde são exibidos filmes pornográficos (gays e heterossexuais), quartos escuros e cabines, além das saunas (seca e a vapor) – e dos espaços coletivos onde se consome guloseima e bebida. Embora o gosto de determinados homossexuais os conduzisse a lugares outros da cidade quando saiam em busca de sexo rápido, muitos freqüentam também lugares especificamente homossexuais. Para encontrar amigos e trocar informações sobre suas experiências, os diversos bares e boates gays também podiam servir de interessantes pontos de encontro. Mesmo os que não freqüentavam não eram ignorantes de sua existência. Mudanças perceptíveis no consumo dos espaços também podiam ser percebidas entre os freqüentadores dos cinemas pornográficos. Os cinemões, termo nativo para designar espaços de exibição de filmes pornográficos apropriados para envolvimentos sexuais entre homens, podiam ser encontrados principalmente no centro da cidade: nas avenidas Ipiranga, São João e Rio Branco. Não havia ainda uma publicidade midiática134 mas, ainda assim, eles surgem nas memórias do escritor J. S. Trevisan como “absolutamente fantásticos”.135 Apesar de por muitas décadas terem sido espaços importantes de sociabilidade homoerótica, nem sempre apareceram nas pesquisas realizadas sobre homossexualidade. Quando isso ocorreu, foi sempre de maneira secundária, sendo maior importância atribuída aos bares e boates. A despeito desse “esquecimento”, foi nesses espaços privativos que alguns dos elementos mais peculiares da sociabilidade homossexual se forjaram. Resgato, em minha análise os cinemões porque acredito que esse apagamento pode ter conseqüências sérias e nos levar a crer que uma vida comunitária pautada na auto-identificação proporcionada pelos bares e boates – as marcas modernas da homossexualidade – foram as únicas, ou mesmo as mais importantes, possibilidades existentes. 134
Nos dias atuais, esses espaços ganharam divulgação em guias e periódicos – voltados ou não para homossexuais, como é o caso da Revista da Folha, distribuída como encarte do Jornal Folha de São Paulo no domingo. 135 Entrevista com João Silvério Trevisan. 14/02/2001
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Os cinemas pornográficos constituíam – até o final dos anos 80, um entrave para a formação da idéia moderna de homossexualidade, afinal de contas, não eram espaços privilegiados para a constituição das relações afetivas. Grande parte de seus freqüentadores se quer compartilhava desse ideal. Como foi possível perceber eles eram, e ainda o são – guardadas as devidas proporções – freqüentados também por homens que não se pensam como homossexuais, apesar de se deixarem tocar, aceitar felações e praticar relações sexuais com as bichas que se dispõem a isso. Nos relatos de Barbosa da Silva, eles aparecem como espaços freqüentados por prostitutos – que impõe uma imagem totalmente subtraída de delicadeza ou feminilidade – e por bichas em busca de bofes. Essas representações também aparecem no texto de Perlongher. Quando perguntei ao escritor João Silvério Trevisan sobre a vida sexual dos homossexuais nos anos 70, sua resposta foi: “Bem, era muito gostoso, desse ponto de vista, não havia a vida... o gueto era pequeno, era muito pequeno, não havia essa quantidade de saunas, nem essa quantidade de bares, nem boates; quer dizer, havia uma ou duas boates, só havia algumas poucas saunas mas muito freqüentadas, não havia casas como a que a gente tem hoje ali em pinheiros..a .. Station , que é uma casa de transa direta, mas havia uma vida sexual intensíssima nos cinemas, muito, muito, muito intensa, sexo direto, em qualquer horário, e sobre tudo nas ruas”.136
Um outro interlocutor, o funcionário público Álvaro Dias, de 55 anos, lembra que os cinemas eram espaços bastante concorridos por alguns homens nesse mesmo período: “Pelo menos duas vezes por semana eu ai nos cinemas. Era fantástico. A primeira vez que entrei num, foi mais ou menos por volta de 1975, eu fiquei abismado com o que vi. Uma legião de homens, sentados, de pé, andando; estavam todos lá. O cheiro era horrível e era muito escuro, mas a gente se acostumava a isso depois de alguns minutos lá dentro. Quando a vista clareava, e a gente andava pelo cinema, dava pra ver os caras se masturbando, alguém chupando e vários caras no banheiro se masturbando um ao lado do outro, enquanto outros olhavam. Só não fazia nada se não quisesse porque as pessoas eram muito disponíveis, e não interessava se era homem ou bicha. Claro que as bichas preferiam os homens, mas se não desse, se estivesse afim de beijos, coisa e tal, a gente ficava com outra bicha”137
Esses dois relatos dão conta de uma sociabilidade intensa no interior dos cinemas. Muitos homossexuais que viviam em São Paulo na década de 70 os conheciam, mesmo que não os freqüentasse. Em seu interior, as oportunidades de uma interação sexual eram diversas, tanto entre os próprios homossexuais como com os bofes, que ali estavam por qualquer motivo. Esses cinemas parecem ter funcionado tanto como uma alternativa para as bichas, que não se 136
Entrevista com João Silvério Trevisan, realizada em 14 de fevereiro de 2001. Os grifos são meus. Entrevista realizada com Álvaro Dias, em 13 de janeiro de 2001. O nome do entrevistado foi trocado a seu pedido. 137
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adequavam ao modelo gay/gay e que não freqüentavam os bares e boates de entendidos, quanto para os que não haviam imposto sanções a outros “tipos” de práticas de homossexualidade. Esses modelos não dão conta de explicar uma realidade muito mais matizada que ali se desenrolava, pois, como lembra esse último interlocutor, mesmo as bichas que preferiam os bofes, podiam recorrer a outras bichas, na ausência de seus objetos de desejo. Assim, trazer à tona a existência desses espaços tende a relativizar as transformações quase lineares que teriam substituído as relações hierárquicas pelas igualitárias. Uma rica descrição de um cinema pornográfico pode ser encontrada nos relatos de Luis Capucho, sobre o período em que freqüentou o cinema Orly na Cinelândia, Rio de Janeiro: “Talvez tenha freqüentado o Orly assiduamente, quer dizer, uma ou duas vezes por semana, durante mais de um ano. Era um fiel freqüentador, era quase um beato, e na entrada do Orly, à semelhança mesmo das igrejas, havia sempre um mendigo ou menores de rua pedindo esmola, quando tirávamos o dinheiro do bolso para comprar o bilhete de entrada ou tínhamos troco para ser guardado. Nunca dei esmolas. Não fazia parte da filosofia. No Orly, se é que havia alguma filosofia, não havia nenhum discurso em palavras. Havia um clima. Uma idéia de volúpia da atmosfera. Quanto aos filmes, eram apenas pretextos para mostrar o corpo de jovens nus fazendo sexo. Dos poucos filmes em que tentei perceber alguma estória ou de que pelo menos li alguma legenda, vi que Deus, o diabo, a morte, o amor, a mulher, o pau, a boceta são vistos como ridícula e tratados no mesmo nível. O valor está apenas no fazer sexo e na juventude saudável, embora trepem sem camisinha.” (CAPUCHO, 1999)
A exemplo de como acontece em São Paulo, o cinema Orly está localizado na região central do Rio de Janeiro e alguns de seus freqüentadores recorrem a ele com certa assiduidade. A maioria dessas salas foi um dia cinemas convencionais que, com a gradual perda de público para salas mais modernas, aderiram à exibição de filmes pornográficos. Pelos preços acessíveis, passaram a ser freqüentados por um público diverso, como trabalhadores da região – ou ainda de outras, interessados nos filmes ou nas oportunidades de sexo rápido – e também pelas bichas, atraídos pela figura dos “gogo boys” que ali encontrariam. A presença dos bofes se deve principalmente ao tipo de filme que é exibido – com casais heterossexuais praticando sexo explicito – e também porque sua entrada nesses recintos não gera desconfianças em relação à sua sexualidade, independentemente do que ocorre lá dentro. Sempre se pode alegar que se está indo assistir aos filmes e no máximo se masturbar com eles. Observando o interior de alguns cinemões, percebi que os não-homossexuais, ou pelo menos aqueles que passam essa imagem, sentam-se na platéia, enquanto as bichas circulam de um lado a outro. No auge da excitação, um desses homens pode iniciar uma masturbação e logo uma bicha senta ao seu lado e se oferece para ajudar, não necessariamente com palavras. Caso a
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coisa fique um pouco mais “quente”, podem se dirigir a um banheiro ou uma parte mais propícia, para uma felação ou uma relação sexual com penetração. Esses cinemas são, em alguns casos, alvos de preconceito dentro do grupo. Por várias vezes ouvi gozações e comentários jocosos sobre as pessoas que freqüentam essas salas de exibição. Para muitos, a única coisa que se encontra nesses locais é a promiscuidade representada pelas relações efêmeras e com diferentes parceiros. Difícil precisar, no entanto, se todos os homens que procuram pelos cinemões estão em busca somente de sexo ou se também vislumbram ali a possibilidade de uma união afetiva. Ou mesmo se essa separação existe em suas cabeças. Mas certamente, eles são resíduos de um tipo de relação que parece ter sido nublada com a criação dos bares e boates de freqüência exclusivamente homossexual. São locais eminentemente masculinos. Durante minhas visitas, nenhuma mulher foi vista, e o que mais se aproxima das formas femininas são os travestis encontrados em alguns deles – como no Cine Cairo, no Anhangabaú, ou no Art-Palácio, na São João – andando de um lado a outro e oferecendo-se para um rápido programa nas dependências do cinema. O que parece ser uma de suas marcas é o silêncio e a escuridão. Fala-se pouco, somente o indispensável, e a comunicação se dá mais por olhares, por atitudes e por gestos. Analisando outros espaços freqüentados por homossexuais em busca de sexo, percebi a recorrência desse modelo – a escuridão e o silêncio – mesmo para os espaços mais modernos. Seja num cruising bar, num clube de sexo, num dark room ou em certos ambientes das saunas, banheiros e espaços públicos de pegação (parques, bosques, etc.), falar ou gerar luminosidade não é uma coisa bem vista. Quando isso acontece, parece que o “ritual” é quebrado. O silêncio e a pouca luminosidade parecem criar a fantasia de que, ali, não se tem um nome ou um rosto, podendo ser então qualquer personagem. As conversas e a claridade ficam para os bares e boates, onde as pessoas estão em busca de outros tipos de relação, ou pelo menos encontros que não estão, a priori, mediados pelo sexo. Uma massiva popularização dos cinemas pornográficos ocorreria no início dos anos 90. Mais do que em qualquer outro período, os “cinemões” ganharam visibilidade e divulgação em meios de comunicação que extrapolavam os limites do grupo. Entre os anos de 1996 e 2001, é possível encontrar a propaganda de cinemas pornográficos no encarte semanal do jornal Folha de São Paulo, mais especificamente nos arredores da coluna GLS, escrita por André Fischer. Flyers
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indicando a localização, preço e programação passam a circular pela “noite gay”, concorrendo com os demais, divulgados por saunas, bares e boates. Mesmo a estrutura desses espaços foi se modificando para atender um público em expansão. Alguns passam a funcionar 24 horas, incluindo em seu interior bares, cabines ou mesmo sex shoppings, que vendiam de artefatos eróticos a fitas de vídeos pornográficos –como era o caso do “Cine Roma”, na Avenida São João. Essa reestruturação estabelecia uma nova percepção desses locais, diferentemente daquela que os colocava como espaços de anonimato, em que as pessoas entram e desaparecem em meio à escuridão. Outra novidade é que, em vez de exibirem exclusivamente filmes pornográficos com casais heterossexuais, alguns se especializaram na exibição de “vídeos gays”. Esse foi o caso do “Cine Stúdio”, localizado na rua Aurora, entre a rua Vieira de Carvalho e a Avenida São João que, além de um preço acessível, facilitava ainda a vida dos estudantes aceitando carteirinhas de meia entrada. Por volta de 2002, foi criado o “Cine Zen”, que contava agora com uma estrutura bem montada para receber os homossexuais: em seu interior, existem lavabos devidamente equipados com pias e papel higiênico. Outros, como o “Cine República”, localizado na Avenida Ipiranga, exibiam em salas diferentes tanto fitas com casais heterossexuais como de homossexuais, e o trânsito dos freqüentadores de uma à outra sala era constante. É interessante lembrar que continuaram a existir tanto os cinemas que eram freqüentados por bofes e bichas, quanto aqueles a que se dirigiam apenas os homossexuais. Mas a existência de cinemas como o “Cine República” adicionava a oportunidade desses dois grupos encontrarem espaços no mesmo ambiente.
b) Novos espaços
O período de terror em relação à AIDS não duraria muito mais que uma década. Os avanços médicos nas pesquisas sobre a AIDS e o surgimento de formas de tratamento que prolongavam a vida dos doentes, bem como a lenta desvinculação entre a doença e a homossexualidade, perseguida pelos grupos militantes, contribuíram para a modificação na percepção social dessa doença, o que teve implicações nos significados que os próprios
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homossexuais passaram a atribuir ao sexo. Em meados dos anos de 1990, a moda do dark room chega às boates paulistanas, proporcionando assim a volta aos envolvimentos sexuais efêmeros. Comentando a programação gay do carnaval de 1997, Paulo Marcomini escrevia na Folha de São Paulo: “Para animar os foliões foram convidadas mais 18 drags e ‘go-go dancers’. Um pula-pula inflável com 5 metros de altura, show de ‘skylight-laser’, ‘bubble machines’, sorteio de sungas, maiôs, CDs, camisetas, bonés e mountain bikes. Não serão permitidos beijos, amassos nos dois salões -um com axé music e outro com marchas carnavalescas. Os dois ‘dark rooms’, um ‘lick it room’ e um ‘sleazy room’ vão estar bem escuros e disponíveis aos beijoqueiros e aos mais afoitos. (...) O ‘Basfond’, no ano passado, foi o baile de maior êxito na cidade. Mais de 3.000 pessoas se acotovelaram nas filas formadas na porta para dançar as cinco noites num galpão mal ventilado na rua Lisboa. O que mais atraiu os foliões foram os blecautes de cinco minutos e uma tenda improvisada que servia como ‘dark room’.”138
Na primeira parte, o jornalista se refere ao baile de carnaval promovido pelo clube Floresta, que, apesar de montar uma programação muito atrativa aos homossexuais, não permite caricias mais ousadas entre homens nos salões, mas isso era suposto acontecer sob a escuridão das salas escuras. No segundo caso, trata-se do “Carnaval do Basfond”, já tradicional em São Paulo que acontece num enorme galpão na Rua Lisboa (Pinheiros) e, desde sua primeira edição já atraia os afoitos foliões pelos seus Blecautes e pelo concorrido dark room. Os dark rooms são espaços que existem no interior de algumas saunas e boates, totalmente escuros nos quais muitos homens entram e iniciam contatos sexuais com pessoas que pouco podem ver. Esses contatos sexuais variam desde simples carícias – toques, beijos, abraços, – até envolvimentos mais íntimos – masturbação, felação ou intercursos sexuais. O sexo é a grande atração desses locais. Não se deve esquecer que ainda se vivia sobre o forte preconceito à atitudes consideradas promíscuas (geralmente associadas a Aidéticos em potencial), e que a penetração desse tipo de discurso foi significativa entre os homossexuais. Passada a novidade e com a popularização das salas escuras, instaurou-se um diferencial entre as boates que tinham as abrigavam ou não. Mas, mesmo para as casas noturnas que não admitiam em suas acomodações a presença dos dark rooms, outro espaços acabavam sendo utilizados para fins aproximados. Comentando sobre uma nova boate, Érika Palomino lembra que:
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MARCOMINI, Paulo “Drag queens animam Carnaval gay de SP”. In Folha de São Paulo, Acontece, 7 de fevereiro de 1997.
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“(...) enquanto os clubbers ortodoxos vão ao Florestta, as tatas vão à Special K. É que também abre nesta quinta o novo clube de Sergio Kalil (o da Mad Queen). E desta vez o nome não está errado, não. É Special K mesmo. O endereço é Cardeal Arcoverde, 1.417. O staff da casa você já sabe: Léia Bastos, Johnny Luxo, Katia Miranda e a Normanda, chapeleira do Hell's. E vai ter também lojinha de Johnny. E vai ter também um ‘malhódromo’ (não dark room). E vai ter também um banheirón com dez metros de babado, com espelho frontal e tudo.”139
Independentemente do lugar onde a pegação acontecia no interior das boates, ela definitivamente se fazia presente. Característica marcante da homossexualidade paulistana do final dos anos 1990, a explosão do sexo mereceu o seguinte comentário de Contardo Calligaris em junho de 2000. “No caso dos comportamentos, nada nos induz a repetir estas condutas senão seu charme próprio, ou seja, o gozo ou o prazer que elas nos proporcionam. Em outras palavras, se trabalhamos 17 horas por dia, comemos espaguete, apostamos um terço do salário no bicho e passamos as noites em cinemas pornográficos, é porque queremos e gostamos. Podemos achar que, em algum caso, nosso querer é meio estranho, incômodo, sintomático, até doentio, mas, de qualquer forma, essas condutas são as nossas -produzidas por nosso desejo e não por agentes químicos”. 140
Se, como acredito o nosso desejo, de que fala Calligaris, se realiza numa contrapartida com o social, há de se ver o contexto em que essa explosão do sexo se realiza em terras paulistanas. No rastro dessa liberalização do sexo, afirmaram-se os espaços onde o sexo era a principal atração. Os primeiros estabelecimentos desse tipo a aparecerem em São Paulo foram a Station, SoGo e o Club Bleckaute. A Station é inspirada nos cruising bars americanos e sua atração principal é a oportunidade de ter relações sexuais em várias de suas dependências. O primeiro andar possui um bar, em que poucas pessoas se detêm por muito tempo, revistas de nu masculino e sexo explícito e um dark room para o qual alguns homens se dirigem vez ou outra. No piso superior, existem dois ambientes, separados por um setor intermediário em que uma tv exibe filmes pornográficos gays cabines dispostas. Em frente às cabines, muitos homens passam, estacionam ou aguardam pacientemente para entrar em uma delas. Algumas possuem os glory roles, mais exatamente
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PALOMINO, Érika. “E o mundinho fashion continua a rodar”. in Folha de São Paulo, Noite Ilustrada, 29/03/1998. 140 CALLIGARIS, Contardo. “Não tem droga do cibersexo: somos apenas desejo-dependentes”. In Folha de São Paulo, Noite Ilustrada, 29 de maio de 1998
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pequenos círculos entre a parede de uma cabine e outra, bastante explorados em filmes com temática lether141 A SoGo, localizada no bairro dos Jardins surgiu no final dos anos 90, mas não era totalmente voltada para a oferta de sexo. Possuía três andares sendo que, no primeiro e no segundo, espaço para dançar e um bar para o consumo de bebidas. A partir de um determinado horário – por volta das três da madrugada -, até para garantir que as pessoas consumam, as portas do terceiro piso se abrem e os homens – só eles podem subir – interessados em adentrar esse espaço devem fazê-lo sob algumas condições. Caso não estejam trajando roupas básicas, entendase jeans e camisetas, devem deixar essas peças na portaria. Alguns homens entram apenas de calça, alguns poucos só de cuecas. Depois de subir as escadas que o conduzem ao terceiro piso, um bar surge logo em frente, com algumas cadeiras em torno do balcão. Do lado de dentro do bar, um monitor de tv exibe um filme pornográfico gay, o mesmo que está sendo exibido e assistido por um certo número de homens na pequena sala que separa o bar do dungeon em que homens entram e saem, para alguma tomar bebida ou para fumar um cigarro. Entrando nessa sala, algumas cabines estão dispostas dos dois lados e, na primeira delas, uma rede de couro, suspensa por correntes, está disponível para os amantes desse fetiche. Como na Station, algumas cabines também possuem glory roles e, nas cabines maiores, a prática do sexo grupal é bastante recorrente. A luz é fraca, mas é possível definir perfeitamente o formato dos corpos ou as feições do rosto. Todavia, para quem prefere não ver direito o parceiro, um grande dark room existe nos fundos, totalmente cheio em determinadas horas da madrugada, quando
grande parte das
pessoas, que antes estavam nas pistas, já se encaminharam para o terceiro andar. O Club Bleckout propõe algo mais radical nesse sentido. Não há outra atração que não o sexo, com, ênfase em alguns fetiches. Em uma etnografia realizada em 19 de março de 2003, ofereço uma descrição mais exata desse local: Cheguei no Clube Blackout por volta de sete e meia da noite. Era cedo ainda, pois o local abre às sete. A entrada era um portão prata, de ferro, com anúncio dos cartões de crédito aceitos no local. Nenhum letreiro que indicasse o nome da casa ou mesmo qualquer tipo de informação sobre o que acontece lá dentro. É apenas pelo endereço, divulgado em diversos jornais, flyers e revistas que circulam pelo mundo gay, que se tem a certeza de ter chegado ao local certo. Ademais, o formato da entrada se parece com o de algumas saunas e cruising bars. A mensagem 141
Lether é uma expressão inglesa (couro) bastante conhecida entre os gays norte-americanos para se referir ao fetiche por roupas e acessórios de couro (roupas íntimas, corselet, botas, máscaras e chicotes), podendo também incluir as práticas de sado-masoquismo.
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principal é a discrição, pois, por ficar em uma avenida bastante movimentada (Amaral Gurgel), com intenso tráfico de veículos, uma placa explicativa ou um anúncio chamativo, atrairia demasiada atenção, principalmente de quem não é homossexual. Além do mais, o estilo rústico, acentuado por um portão de ferro e uma campainha que deve ser tocada para anunciar a chegada de alguém, contribui para o ar de mistério e curiosidade em relação ao que se passa no interior da casa. Depois que toquei a campainha e anunciei minha chegada, um homem abriu a porta, pediu pra que eu entrasse e perguntou se eu já conhecia o funcionamento da casa. Respondi que não e fomos então para o pagamento – 25 reais, pagos antecipadamente. Isso acontece no primeiro andar, onde há apenas uma pequena sala em que ficam as máquinas dos cartões de crédito, toalhas, chinelos e as chaves que as pessoas recebem ao chegar. Ao lado desse pequeno cômodo, havia uma escada que me conduziu ao segundo piso. Era escuro, mas o suficiente para ver os degraus. A escuridão é acentuada pela cor preta das paredes e, das escadas, já se podia ouvir músicas típicas das boates e bares gays que existem pela cidade. A escada leva exatamente a uma parte que faz a ligação entre o bar do lado esquerdo de quem está chegando, e um salão do lado direito. Em frente ao balcão, que percorre horizontalmente toda a extensão do bar, existe uma mesa de bilhar, um acessório típico de um espaço masculino. Nessa área, há também um banheiro – como os outros, sem portas, para que tudo seja feito à mostra de todos – com um vaso sanitário, uma duchinha e um chuveiro. O banheiro é mais iluminado do que o resto dos ambientes, onde impera uma meia luz. Mais à esquerda do bar, existe uma outra sala, sem portas, ocupada apenas por uma grande cama que toma praticamente todo o espaço e, num dos cantos, uma tv exibe um filme pornográfico gay. Como acontece em praticamente todos o ambiente, as paredes são pintadas de preto. Apenas uma pessoa já havia chegado e estava no bar, tomando alguma coisa. Do lado direito do bar havia um salão equipado uma grande cama, acessórios leathers e SM – duas redes de couro com algemas para os pés e uma tv que exibia um filme pornográfico gay, com cenas de sado-masoquismo, além de vários flyers que anunciavam a programação semanal da casa. Todos eles traziam cenas de sexo grupal com desenhos inspirados nos modelos de Tom da Finlândia. Mais à direita dessa sala, havia uma outra, com o mesmo grau de luminosidade das demais, com uma cadeira especial para fist fucking, paredes com glory holes, uma banheira vazia e alguns bancos. Havia também uma armação de mais ou menos dois metros, em forma de X, com algemas nas extremidades, provavelmente usadas pelos adoradores do spanking. Numa das paredes dessa sala, estava pichado, com spray branco, a palavra “macho”, uma referência ao comportamento esperado das pessoas que vão até esse lugar. Existe nessa sala, afixado em uma das paredes, um código de normas internas, lembrando, dentre outras coisas, da proibição de “formar casais” ou consumir drogas no interior do clube. Lá dentro, ficava-se normalmente de toalha e chinelo, permanecendo os pertences pessoais guardados em um armário fornecido pela casa. Alguns, no entanto, ficavam só de jeans ou com suportes que ocultam a genitália mas deixam livres as nádegas. As pessoas começaram a chegar depois das oito e, a cada uma que chegava, ouvia-se uma campainha que ecoava por todo o recinto, atiçando a curiosidade dos que já estavam ali. Com apenas alguns minutos na casa, logo se envolviam em alguma carícia com um dos presentes. Em determinados momentos, formavam-se pequenos aglomerados, que podiam se desfazer de forma repentina Cenas de felação e penetração aconteciam em praticamente todos os ambientes da casa.
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Localizado na Amaral Gurgel – onde no passado funcionou a “histórica” boate de Andréa di Maio, a Prohibidus142 – sua aparência externa lembra muito a da Station. Para entrar, é necessário apertar uma campainha e esperar que alguém abra a porta. Uma vez lá dentro, recebese uma toalha, chinelos, alguns preservativos, lubrificantes e a informação de que a casa é voltada principalmente para o sexo grupal. A própria estrutura espacial já remete a isso, pois não há ambientes privativos e, no quarto maior, há uma enorme cama onde os homens podem se dedicar diretamente ao sexo. Embora no passado essas práticas sexuais já estivessem contempladas por alguns espaços, não há outra justificativa para estar ali – como se poderia alegar nas saunas e cinemas de pegação – que não seja exclusivamente para fazer sexo, ou se dedicar ao fetiche do voyeurismo.143 Além desses espaços, listas de discussão na Internet passaram a congregar pessoas interessadas em sexo grupal, marcando festas off line onde apenas os membros das mail lists poderiam entrar.Como se o sexo voltasse à cena com força total, estatísticas apontam que a certeza de que a AIDS havia se tornado uma doença crônica e a feminização dessa síndrome144 , abrandaram os medos em relação ao sexo, ainda que o discurso do sexo seguro seja assumido pela maioria dos freqüentadores e dos proprietários dessas casas. A oportunidade de conseguir envolvimentos sexuais na metrópole se dimensionou e, diferente do que acontecia no início dos anos 80, esse novo apogeu do sexo homossexual já conta com uma estrutura bem montada e bastante fonte de inspiração nos diversos sites difundidos na Internet. Aliás, graças ao poder de comunicação propiciado pela rede, uma prática já difundida em outros países passou a gerar preocupações e se transformou numa polêmica interna do grupo. Trata-se da prática do barebacking, expressão inglesa que pode ser traduzida por “montando sem cela”. Mais especificamente, esses homens se propõem a praticar sexo sem preservativos, em 142
Andréa di Maio foi o travesti mais famoso do “undergroud” paulista. Depois de passagens pelo teatro e pelo cinema, onde atuou em peças famosas como “Her” e “A Opera do Malandro” e em alguns filmes de chanchada, transformou seu corpo com silicone e hormônios e passou a se apresentar na noite gay. Depois de alguns anos abriu uma boate freqüentada, principalmente, por travestis e seus namorados, além de outros homens interessados. Sua boate, a Prohibidus, abria suas portas normalmente à três da madrugada, quando os travestis começavam a deixar seus pontos de prostituição para divertir-se assistindo shows, bebendo e namorando. O Filme de Júlio Maria Pessoa, que tem o mesmo nome da boate de Andréa de Maio – e no qual ela mesmo faz uma rápida participação – mostra um pouco do clima daquela casa. Filme: Prohibidus. Júlio Maria Pessoa. São Paulo/ ECA/ 2000. 143 Prática sexual que consiste em chegar ao orgasmo através da observação de situações eróticas, recorrentes dentro ou fora do mundo gay. 144 Entenda-se o aumento vertiginoso de casos de mulheres infectadas pelo HIV. Ver Bastos, Francisco Inácio. A feminização da Epidemia da AIDS no Brasil; Determinantes estruturais e alternativas de enfrentamento. Coleção ABIA/ Saúde Sexual e Reprodutiva, N. 3. Rio de Janeiro, 2001.
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sintonia com um movimento internacional. Comentando sobre um possível “desleixo” dos homossexuais em relação à prevenção, a jornalista Bárbara Gancia informa os leitores sobre essa nova prática:
“O tal medicamento do dia seguinte está sendo usado a torto e a direito pelos gays de alto poder aquisitivo. Existe até um novo termo para designar o ato de se transar sem proteção. Trata-se do “barebacking” (em uma livre tradução, algo como o desnudar das costas, ou melhor, dos fundilhos). É transar e bater na porta do médico particular no dia seguinte atrás de uma receita. Dane-se se daqui a pouco ficar comprovado que o coquetel criou uma variação ainda mais resistente do vírus. No ano passado, as mortes causadas pela Aids caíram 23% nos EUA. Nos próximos anos, é esperar para ver.”145
Também sob o impacto dessa nova (em termos) modalidade sexual, uma matéria online do provedor IG anunciava, com uma chamada que iniciava com POLÊMICA, o: “Barbacking: Onda de só fazer sexo sem camisinha chega ao Brasil”.146 “O movimento ainda não é organizado, e a prática ocorre de maneira restrita em reuniões isoladas, saunas, festas de orgia e boates específicas. Mas é cada vez maior o grupo de homossexuais que num movimento suicida se expõe voluntariamente a relacionamentos de alto risco e se recusa a adotar a melhor estratégia até hoje inventada para prevenir a contaminação pelo HIV: o sexo seguro mediante o uso de preservativos. A prática se chama “barebacking” e, segundo adeptos, chega agora ao Brasil, depois de conquistar milhares de gays nos Estados Unidos e na Europa. A expressão “bareback” pode ser traduzida como “cavalgada sem sela” e se caracteriza pela prática intencional de sexo anal sem proteção com parceiros escolhidos aleatoriamente, para unir ao prazer sexual à adrenalina do perigo. Estimativas dão conta que existem sete milhões de praticantes de “barebacking” nos Estados Unidos e 2 milhões na Europa. Um estudo feito no ano passado pelo Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos, no entanto, sugere que este número pode estar subestimado. De acordo pesquisa, 14% dos cerca de 500 homossexuais entrevistados haviam praticado esse tipo de sexo nos últimos 24 meses.”147
Embora a matéria classifique a prática como suicida – até porque, do contrário o veículo em que ela foi divulgada poderia vir a receber severas críticas por parte dos leitores que apostam na prática do sexo com preservativos – o crescente número de pessoas que aderiram a ela em outros países começam a sugerir preocupações aos centros de tratamento e campanhas de prevenção de HIV/AIDS. A resposta dos líderes do movimento, apesar disso, atribuem outros significados à prática do barebacking. Ricardo Rocha Agueiras, que concedeu a entrevista ao site, afirma:
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GANCIA, Bárbara. “Comportamento de risco volta com força total” in Folha de São Paulo, Cotidiano, 26/09/1997. 146 DARLAN Alvarenga, http://ultimosegundo.ig.com.br/home/cadernoi/artigo/0,2945,916693,00.html. Esse artigo recebeu várias críticas provenientes de outros sites e grupos de prevenção em DST/AIDS como o “Grupo Pela Vida”, que encaminhou para várias listas uma carta de repúdio à matéria divulgada pelo IG. 147 http://ultimosegundo.ig.com.br/home/cadernoi/artigo/0,2945,916693,00.html
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“Quero deixar claro que não defendo deixar de usar camisinha. O que defendo é que as pessoas possam escolher se querem ou não usar camisinha. Quem acha que tem de transar com camisinha, que use. Dou até as minhas, que ganho às dezenas nas saunas e nas boates, como se as pessoas que freqüentam esses lugares não já fossem suficientemente informadas e não tivessem grana para comprar a sua na farmácia. ·Mas penso que temos de ter o direito de escolher os riscos que a gente quer correr para sermos felizes. Uns escolhem corrida de automóvel, em que o carro pode voar se espatifar diante a multidão, esmagar 50, além de matar o piloto. Por que práticas arriscadas como automobilismo e alpinismo são aceitas e tudo que envolve sexo é tão massacrado? Como acompanho a Aids muito de perto, acho que a doença virou uma doença crônica e não mais fatal. Os coquetéis estão fazendo efeito sim, apesar da paranóia médica que existe em cima. As pessoas estão confiando no tratamento e acham que pode relaxar”. Mas é uma verdade: elas podem relaxar mais. Segundo ponto, é muito mais gostoso sexo sem camisinha. As pessoas falam ‘não pode’, só que quando você as encosta na parede, nunca conheci uma que me dissesse não. A realidade é que as pessoas fazem sexo sem camisinha e não se trata de um fenômeno puramente gay”.148
A confiança nos avanços científicos no tratamento da AIDS, o repúdio às formas de disciplinarização da sexualidade homoerótica e à vinculação da prática do sexo inseguro à homossexualidade parecem ser os principais argumentos de Agueiras nas críticas feitas ao movimento barebacking, além dos prazeres que essa prática proporcionaria para seus praticantes. “Colocar o sexo sem camisinha como um fenômeno puramente gay é mais uma forma cruel de preconceito. Por que nós gays temos de carregar mais esse rótulo? Na grande maioria dos filmes pornôs heterossexuais o sexo é praticado sem camisinha. Por que a coisa tem de pesar sempre para o nosso lado, como se nós fôssemos responsáveis pela conscientização da sociedade. Os gays não são responsáveis por nada. As pessoas, homossexuais ou heterossexuais fazem sexo sem camisinha, não adianta tapar o sol com a peneira (...) Não me considero um suicida. Sou apenas um cara que defende o direito a escolha e dentro das escolhas pode existir o direito ao suicídio. Eu defendo o direito à liberdade, o direito de as pessoas decidirem como elas querem viver ou morrer, que tem muito mais a ver com os filósofos existencialistas franceses que defendiam o suicídio. (...) Sexo sem camisinha é muito mais gostoso. A relação mucosa com mucosa é diferente, a questão da entrega é muito maior. Poder gozar dentro da pessoa proporciona outro tipo de prazer. Para as pessoas da minha geração foi muito difícil se adaptar a camisinha. Somos resultado da revolução sexual de 60 e queríamos provar tudo. Quanto mais você trepava, mais você era valorizado no meio homossexual. De repente, veio a Aids como uma bomba e a gente teve de aprender a usá-la de tanto que a coisa foi massificada. Mas para mim sempre foi muito difícil. Ela rasgava, eu sentia um extremo desconforto, broxava.149
Na realidade, um contexto muito específico propiciou o surgimento e a incorporação dessa prática por alguns homossexuais de São Paulo. O repúdio a toda uma história de culpabilização dos homossexuais pela AIDS, os avanços médicos que hoje já conseguiram inclusive descobrir as substâncias existentes nas células de alguns portadores em que o vírus não consegue penetrar, bem como as lutas por liberdades e direitos em relação à homossexualidade que vêm se desenvolvendo vêem nos preservativos os representantes da disciplinarização da sexualidade. O próprio discurso de Ricardo Agueiras está impregnado do clima de liberação sexual que diz ter vivido desde os anos 60. 148 149
http://ultimosegundo.ig.com.br/home/cadernoi/artigo/0,2945,916692,00.html http://ultimosegundo.ig.com.br/home/cadernoi/artigo/0,2945,916692,00.html
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Uma visão instigante a respeito do barbecking foi exibida para os homossexuais que vivem em São Paulo nos dias 22 e 23 de outubro de 2003, com o filme The Gift (O Presente) uma das atrações do “Festival MixBrasil de Cinema”. Conta a história real dos jovens , Doug Hitzel e Kenboy, ambos infectados por opção, (o que se chama nos EUA de "bug chasers", ou seja, jovens que querem o vírus.). Dos dois, Hitzel se arrepende.
“Aparentemente, a prática do ‘barebacking’ também tem adeptos por aqui. Numa pequena nota no site do MixBrasil, convidando ‘barebackers’ para o debate, 48 pessoas se inscreveram, mas nenhuma esteve presente ao debate no MIS. Leo Bolanski, agente do Centro de Testagem e Acompanhamento da Prefeitura de São Paulo, conta que é comum encontrar grupos de rapazes em parques públicos que não aceitam camisinha. ‘Sempre há resistência quando vamos falar de sexo seguro’, conta Bolanski.”
Como se pode perceber, ainda que alguns homossexuais tenham aderido à prática do sexo sem preservativos, poucos estavam dispostos a falar publicamente sobre esse desejo considerado pernicioso, num mundo marcado pelo discurso do sexo seguro. Essas discussões ficaram geralmente restritas às mail lists e aos círculos particulares. As diversificações das experiências, propiciadas pelas transformações ocorridas no plano da sexualidade – mais especificamente da homossexualidade – nas duas últimas décadas do século XX, promoveram sensíveis transformações na intimidade dos homens que se envolvem sexualmente com outros homens. Em meio a essas transformações de diversas ordens, a vida pública, a vida privada e a vida política se fundem, gerando novas formas de classificação e de identificação.
c)A indústria pornográfica gay
A pornografia homossexual, certamente, não é uma invenção do período abordado nessa pesquisa. Contudo, foi nos anos 90 que ela se dinamizou no Brasil, primeiro através do mercado editorial – como fotos de sexo, nu masculino e contos eróticos - depois com o mercado de vídeos de sexo explícito. Abordar esse tipo de pornografia é interessante tanto do ponto de vista mercadológico, pois um segmento consumidor se fortalece em torno dela, como também pelas representações que são emitidas por ela. Através da industria pornográfica, podemos perceber
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como velhos significados ligados á homossexualidade se fundem aos novos, e o que surge dessa mistura. A história da homossexualidade brasileira vivida nas décadas de 80 e 90 influenciou e foi influenciada pelo aumento do mercado da pornografia, e evidencia nela algumas de suas transformações. Inicialmente, pelo menos até meados da década de oitenta, não havia tantas revistas e vídeos pornográficos voltados para homossexuais produzidos no Brasil. Ainda que os interessados tenham tido sempre acesso ao mercado pornográfico norte-americano, as pessoas não se viam refletidas naquelas imagens e, em muitos casos, se quer eles eram traduzidos para o português. Imagens homossexuais pornográficas brasileiras eram buscadas então nesse tipo de produção direcionado ao público heterossexual; afinal de contas, apreciar corpos masculinos em cenas de nu, ou de sexo explícito não apenas agradava a muitos homossexuais masculinos – aqueles em busca dos bofes – como amenizavam o embaraço de ir até uma vídeo-locadora ou uma banca de revista para adquirir esses produtos. Além do mais, revistas como a Private, especializada em classificados eróticos, também trazia algumas fotos e anúncios de homens em busca de encontros com outros homens. As transformações que se operavam no cotidiano – aumento da visibilidade e a gradual assunção do modelo moderno de homossexualidade – insinuaram transformações na produção da pornografia brasileira. Não se deve esquecer também que as sanções impostas à sexualidade homossexual, sempre aliada ao discurso da promiscuidade, conduzia os desejos “obscenos” cada vez mais para o interior dos lares e tendo na masturbação uma prática sexual livre de riscos. Assim, nos anos 90, surgiram não apenas revistas especializadas em nu masculino, com modelos nacionais em estado de ereção, como também as produtoras de filmes pornográficos “gays”, que usavam em suas cenas apenas atores brasileiros. Muitos dos modelos das revistas e dos filmes eram garotos de programa e gogo boys, facilmente encontrados na noite paulistana e nas saunas da cidade. No que se refere às revistas, a primeira experiência de uma edição bem acabada veio com a revista Banana Louca, que trazia um acabamento melhor – páginas coloridas, uma maior preocupação com as fotos e com as matérias apresentadas ao publico homossexual. Depois dela, veio a G Magazine, o maior sucesso editorial desse tipo no Brasil. Duas das maiores produtoras de filmes pornográficos gays brasileiras estão sediadas em São Paulo. Trata-se da Frenesi Filmes e da Pau Brasil.
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Desde o inicio da pesquisa, me preocupei em coletar e a assistir muito do que foi produzido para o público homossexual, mesmo sem ter certeza do que realmente esse material poderia me sugerir. Depois de alguns anos de observação - o meu “eu estive lá”, criticaria Clifford (1998) -, comecei a perceber algumas recorrências alinhavando a pornografia gay, que se alimentava de um imaginário em relação aos desejos homossexuais muito visível em outras esferas como mídia, artes e cotidiano. Vou dividir algumas dessas recorrências em categorias para viabilizar a discussão. Tanto nas revistas como nos vídeos eróticos as imagens que se sucedem são as de homens másculos, desprovidos de qualquer resquício de feminilidade. No caso das revistas, as fotos são de homens fortes, trajando uniformes dos quais se livram no decorrer do ensaio e exibem seus pênis em estado de ereção, como que num convite ao leitor. Corpos demasiado magros, ou que possam incorrer em algum tipo de delicadeza, não são muito vistos. Quase nunca, quando há uma enquête com os modelos, eles se referem a qualquer envolvimento sexual com outro homem, e afirmam-se heterossexuais nos comentários sobre suas fantasias sexuais – sempre com mulheres – e nos tipos de mulheres que preferem. Embora se exibam de costas nas fotos, esse não é um ângulo muito explorado e, quando o é, isso acontece de forma comportada, sem que o ânus seja mostrado. Coloca-se aqui um diferencial em relação às revistas norte-americanas desse tipo, nas quais, quase sempre, os modelos exploram bastante a parte de trás, mostrando o ânus, por exemplo. Da mesma forma, os vídeos pornográficos brasileiros são hábeis em sugerir que os atores em cena são heterossexuais entregues a relações sexuais com outros homens. São mecânicos, policiais, gogo boys, piões, índios, esportistas e outras infinidades de alegorias que remetem ao imaginário social do homem heterossexual. Porém, como se trata de filmes de sexo, em algum momento um dos atores ficará na posição de passivo durante a relação sexual. Mas, na grande maioria dos casos, não há uma alternância entre o papel de ativo e passivo por um ator na mesma cena, como acontece em muitos vídeos estadunidenses. Numa entrevista concedida ao site “Abalo”, Rafael Alencar, um brasileiro que atua em filmes pornográficos fora do país, respondeu o seguinte:
“Quais as produtoras que você já trabalhou? Studio 2000, Falcon, Kristen Bjorn, Titan Média, Ícarus, entre outras.
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Qual você mais gostou de trabalhar? Studio 2000 são muito carinhosos. Você atua como ativo ou passivo? Sou versátil, posso ser tanto ativo como passivo, mas por causa do tamanho do meu pau, me encaixam mais em quadros de ativo, mas faço os dois.”
Um outro diferencial é que Rafael assume-se publicamente como homossexual e, nessa entrevista, fala, inclusive, de sua vida amorosa: “Você namoraria um ator? Claro, já namorei vários. Talvin de Machio. (...) Se você se apaixonasse por alguém e ele te pedisse para largar do pornô, você faria? Eu larguei um ano, amei, gostei, mas aí ele me deixou, me abandonou, depois que larguei todos os trabalhos. Parei, olhei no espelho e disse: _Puxa vida, larguei toda minha vida, perdi muito dinheiro de filme, disse não para muita propaganda, por causa de uma pessoa que hoje não me quer, me evita. Nunca mais vou fazer isso. É por isso que os atores pornôs preferem se relacionar com as pessoas do mesmo trabalho. (...) E qual o seu tipo de homem? Gosto de todos, o que não gosto... Você tá falando físico... Gosto do que é simpático, desculpa, posso falar bobagens, mas é o que ri, que tem simpatia, me conquista e fico com tesão. Quanto a corpo forte e músculos todos os atores pornôs são, na verdade, na média são todos iguais, o que varia são que alguns são simpáticos e outros antipáticos. Bem, o que queria para mim... Eu não gosto de pessoas altas, talvez porque eu não seja tão alto e perca o controle, o domínio da situação. Gosto muito de pessoas carecas, com pouco cabelo, só gosto de pessoas mais velhas, de ursos, o que não tenho tesão é em gente nova e magrinha, meu tesão é para os mais velhos.”
Se para um ator que atua em filmes fora do Brasil, ser assumidamente gay, ou passivo durante uma cena, é um problema, no Brasil as coisas não ocorrem dessa forma. Ao contrário, alguns dos atores se notabilizaram por serem “ativos convictos”, que em hipótese alguma mudam de posição. Observando tantos ensaios e vídeos, somos levados a crer que eles adotam a postura moderna de homossexualidade, ou seja, a idéia do gay macho, desprovido de atributos femininos. Mas alguns problemas se colocam. Primeiro, se eles afirmam uma heterossexualidade, pode-se pensar que os consumidores serão apenas aqueles homossexuais da velha relação bicha/bofe, que primam pelos bofes. Segundo, que esses consumidores elaboram todas as suas fantasias em torno dessa imagem masculinizada de homossexualidade.
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Todavia, ambas essas imagens, quando trazidas para o cotidiano, descortinam uma ilusão. Tanto os editores das revistas quanto os produtores dos filmes pornográficos tem em mente uma fantasia ainda bastante presente no meio homossexual brasileiro, a de que é possível convencer um “homem verdadeiro” a uma relação sexual com outro homem. Contudo, esse material pornográfico é muito consumido pelos homossexuais em geral e se transformou em um dos atributos desse universo. Na verdade, estão fundidas tanto as velhas formas de identificação quanto as modernas, o que leva a crer que essas “identidades” não existem de forma cristalizada. As diferentes alegorias veneradas tanto pelas bichas quanto pelos gays se fundem no mesmo ensaio ou na mesma fita. O que sobra de fato, é a masculinidade, procurada por ambos. Assim, pelo menos na pornografia, as velhas noções de atividade e passividade não conseguem definir a identidade de seus espectadores. Enquanto nos vídeos e nas revistas pornográficas consumidas por heterossexuais prevaleceu durante muito tempo, e ainda hoje é muito recorrente, a imagem de casais – ou trios, ou grupos – mantendo relações sexuais sem preservativos, essa atitude foi gradualmente desaparecendo da pornografia homossexual. Depois de toda a carga de preconceito que rondou as práticas sexuais homoeróticas com o surgimento da AIDS, a camisinha passou a ser um acessório revestido de características morais, principalmente entre os próprios membros do grupo. Alguém é mais ou menos consciente ou mais ou menos promíscuo, de acordo com o uso do preservativo em suas interações eróticas. Como foi possível observar nas fitas, não houve uma cena de penetração que tivesse sido rodada, pelas produtoras brasileiras, sem o uso de preservativos – embora truques de edição sempre ocultassem o momento em que ele era colocado -, o que deve ter contribuído também para a erotização desse artigo. d) O turismo GLS
Um meio ao crescente mercado voltado para os homossexuais, o que parece ganhar cada vez mais destaque é o do Turismo. Em praticamente todos os periódicos voltados para homossexuais, sempre despontam matérias sobre a vida gay experimentada em outros países ou cidades brasileiras, indicando os custos e sugerindo hotéis e roteiros. Em relação ao turismo gay com destino a São Paulo, este parece ganhar destaque tanto pela diversidade de espaços voltados
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para gays e lésbicas, além de ser considerada uma das melhores cenas noturnas do Brasil e da América Latina., como pela populosa Parada Gay que se afirmou ao longo do tempo e se multiplicou em população de forma vertiginosa.“Em São Paulo, uma das agências gays de maior expressão, a Álibi Turismo, no mercado há dois anos, prepara o fôlego para 2001. ‘Enquanto o turismo tradicional passa por um período complicado, o turismo gay cresce a cada ano’, festeja Franco Reinaudo, proprietário da agência.”150 Em algumas épocas do ano, São Paulo e Rio de Janeiro parecem se transformar numa extensão uma da outra, pelo menos para alguns homossexuais da classe média e classe média alta, colocando essas pessoas num circuito de espaços muito similares. Durante o Reveillon de 2002 para 2003, participei de alguns eventos voltados para o público gay no Riu de Janeiro. O número de rostos conhecidos de São Paulo é realmente impressionante e não ficava só no nível da impressão. Em torno, ouvi várias conversas de pessoas sobre os locais que freqüentavam em São Paulo, os eventos, os bares, as boates. Conheci algumas dessas pessoas e a maioria delas me dizia que estavam no Rio em qualquer feriado prolongado, tanto pelo tempo de viagem quanto pelo valor a ser gasto para essa locomoção. Quando finalmente chegam os feriados e períodos de férias coletivas, aviões, ônibus e automóveis, repletos de moradores da cidade de São Paulo, começam a chegar ao Rio para um roteiro que, na maioria das vezes, já lhes é bastante conhecido. Muitos já estabeleceram uma rede de parentes e amigos onde ficam hospedados durante essas épocas do ano. Mas, para quem não tem hospedagem garantida, juntar-se a um grupo de amigos e alugar um apartamento por temporada, que geralmente cobre um feriado prolongado, o carnaval ou os festejos de final de ano, é boa uma alternativa, principalmente se deseja privacidade e liberdade para levar parceiros “para casa”. O valor não é baixo, o que faz com que um número grande de pessoas se hospede em um apartamento bem menor do que o ideal. Mas se o apartamento está em Ipanema ou Copacabana – local mais procurado pelos homossexuais que vão ao Rio – tudo é negociável. Para quem não precisa se preocupar com preços, os hotéis de Ipanema e Copacabana oferecem estadia por um preço pouco acessível. Diárias em torno de um salário mínimo são o preço médio, mas geralmente as vagas são organizadas em pacotes que cobrem uma determinada temporada. As alternativas a esses preços estão nos hotéis de regiões um pouco mais afastadas, mas ainda na zona sul, como os hotéis que ficam nos bairros do Flamengo e Botafogo. Ainda que 150
LEKITSCH, Stevan, “O Poder do Dinheiro Gay”. Revista G Magazine, janeiro de 2001
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existam hotéis de preços altos, nesses bairros é possível encontrar hospedagem a preços muito mais acessíveis, se comparados com os de Ipanema ou Copacabana. Para quem não alugou um automóvel ou não pretende ter um gasto a mais com táxi, o transporte público do Rio é uma boa alternativa pois, os ônibus que vão para as praias mais concorridas pelos homossexuais passam a todo momento e circulam dia e noite. Durante o dia, conduzem-se à praia de Ipanema, mais especificamente ao trecho que fica na esquina com a rua Farme de Amoedo, no posto 8 e meio, de onde, ainda no calçadão, já é possível ver tremular uma bandeira com um arco íris - a bandeira gay - balançando ao vento. Esse trecho da praia, que parece estar bem mais tomado do que outros, gradativamente foi se tornando um espaço para homossexuais. Peculiaridades da cultura gay são ali reproduzidas a todo momento, como a troca de nomes masculinos por femininos, a voz falseada para parecer menos masculina ou os xingamentos recorrentes (bicha, viado, maricona). Manter-se informado sobre o roteiro gay também não é uma tarefa difícil. Um circuito mais ou menos fechado de casas noturnas, bares e saunas distribuem seus flyers tanto na praia quanto na próxima etapa – o bar e restaurante Bofetada. As opções não são variadas e todos se esforçam em ir para os locais a que recorrem o maior número de pessoas. É para lá também que se dirigem os gringos, essa vasta legião de homens brancos e de olhos claros, falando em idiomas estrangeiros, muito ouvidos nessas épocas. Há momentos na praia em que a língua mais ouvida parece ser o inglês e não faltam histórias de pessoas que teriam conhecido um gringo, na praia, na sauna ou em alguma boate e ido morar fora do país com eles. Um de meus interlocutores no Rio de Janeiro parece ter sido uma dessas pessoas, apesar de não ter saído para morar fora do país. Daniel é carioca, proveniente de família pobre e não chegou a concluir um curso superior. Apesar das feições finas e do cabelo liso, a cor negra de Daniel é intensificada pelos longos períodos que ele dedica ao sol e à praia, que parece ser seu habitat natural. O conheci na “Farme”, no trecho ocupado pelos homossexuais. Uma coisa me chamou a atenção e fez com que eu fosse até ele para manter uma interlocução, ele falava pelo menos quatro idiomas e era abordado por muitos turistas estrangeiros que pareciam ter uma certa familiaridade com ele. Depois que o conheci melhor, vi que não estava enganado, ele de fato conhecia “de alguns carnavais” muitos dos homens que a ele se dirigiam. Daniel era muito visado pelos turistas estrangeiros tanto por sua cor exótica quanto por ser um gentil anfitrião.
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No mês de junho, o turismo gay no Brasil se volta principalmente para São Paulo, visando a Parada gay que hoje se tornou a maior do mundo. Sobre ela, falaremos mais adiante. Na metrópole paulista, encontram uma estrutura bem montada de bares, boates, saunas casas de sexo, cruising bars, além de restaurantes, agências de viagens, academias e lojas voltados exclusivamente para esse público. Dessa forma, São Paulo se tornou, nas últimas décadas, uma cidade totalmente preparada para receber turistas homossexuais.
* * *
No decorrer dos últimos 20 anos, se produziram diversas transformações no imaginário social em relação à homossexualidade. Os significados se multiplicaram e chegaram a um número enorme de pessoas. A crescente diversificação das representações difundidas pelas diversas mídias e comercializadas por um “mercado homossexual” em expansão teve reflexos diretos na questão da identidade. Por um lado, a mercantilização do sexo, nas suas mais diversas formas, apontavam para a idéia de que os homossexuais eram excelentes fregueses para esse ramo. Claro que, como procurei mostrar, os avanços médicos no tratamento da AIDS forneceu para muitos homossexuais que viveram em São Paulo nesse período a segurança para sair em busca do sexo rápido, pago e que era experimentado por gays de outros lugares do mundo. De uma certa forma, as modalidades sexuais difundidas por determinadas mídias e promovidas pelo mercado, associavam esses lugares à modernidade, vista em filmes, revistas e sites da Internet. Festivais de cinema, programas televisivos, novelas, peças de teatro, o mercado editorial, todos foram determinantes na diversificação das formas de identificação da homossexualidade, tanto no Brasil quanto em outros países. Mas deve-se lembrar que esses produtos foram amplamente consumidos e se mostraram paulatinamente mais lucrativos, tanto no Brasil quanto fora dele. São Paulo é a cidade que se mostra como uma grande vitrine dessas inovações, onde os homossexuais puderam primeiramente ter acesso a dark rooms, um grande número de saunas, cinemas pornográficos diferenciados por público, cruising bars, casas de sexo grupal, um número grande de bares e boates, etc. Além disso, o grande número de consumidores de Internet e tv à cabo colocava os homossexuais paulistanos com estilos de homossexualidade experimentados em outros países. Esse contato se estreita ainda através dos festivais de cinema que exibem documentários e ficções diretamente ligados à questão da homossexualidade. Acredito que,
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através da mídia e do mercado, essas informações chegam a praticamente todos os homossexuais que vivem em São Paulo, guardadas as devidas proporções. Assim, modelos de homossexualidade peculiares às classes médias e altas da população, ou da zona oeste da cidade, são tomados como tipos “ideais” e exemplo a ser seguido, mas não se deve crer que essa influência foi tão determinante. Andar pelas ruas do centro pode nos lembrar que se tratava de apenas uma parte, não do todo. No próximo capítulo, minha intenção será refletir sobre outro lócus de diversificação das identidades homossexuais, que, de certa forma, dialogam com as questões mercadológicas abordadas em minhas últimas palavras.
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Cap IV
PERFORMANCES CORPORAIS MODERNAS
1 - REFLEXÕES SOBRE O CORPO
“Porque el cuerpo es nuestra manera de estar en el mundo, es la entidad a través de la cual percibimos y aprehendemos la realidad. Nuestros sentidos nos dan la información sobre la que construimos nuestra visión del mundo. Sin embargo, los contenidos de esa visión del mundo están pautados por la cultura, son simbólicos.” Daniela Jaschek
As palavras acima evidenciam a importância do corpo como espaço discursivo por ser a instância primeira de apreensão da realidade. É pelo corpo - a partir dos sentidos - que as pessoas elaboram suas visões de mundo e suas representações. Mas a autora lembra também que os conteúdos dessas visões só ganham sentido na sua relação com o simbólico, com a cultura, fazendo do corpo o espaço da imbricação entre o interior e o exterior ou entre o “Eu” e o social. Logo, acredito, o corpo é um espaço privilegiado para a instigante discussão indivíduo e cultura já que, as experiências vividas no cotidiano se inscrevem na construção do corpo e delineiam hábitos e comportamentos que definem tanto nossa auto-imagem quanto a percepção dos outros sobre nós. Os estudos antropológicos, desde os seus primórdios, atentaram para a dimensão simbólica da produção corporal, analisando como a cultura modela os corpos e lhes atribui significados específicos para cada caso. Ou seja, culturas diferentes produzem representações corporais específicas e essa produção é marcada pela noção de pessoa, pelos valores e na relação dos indivíduos com a natureza. Do ponto de vista histórico, podemos crer que a produção do corpo é tributária de contextos específicos e dialoga com questões de seu tempo. Incorrendo no risco da busca pelas origens, de que nos alerta o historiador Marc Bloch (1965), falemos aqui da sociedade moderna.
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Foi por volta do século XVI, com a ascensão do individualismo na sociedade européia, que se inicia uma preocupação com o controle do corpo. A separação entre o pensamento laico e a racionalidade, que se aprofundaria nos séculos seguintes, propiciou a afirmação do saber médico, que mais tarde se tornaria a linguagem oficial para falar do corpo. Não mais o corpo fonte de pecados ou virtudes, mas o biológico, que precisava ser examinado, entendido e diagnosticado. A ascensão do racionalismo moderno estabeleceu uma separação entre corpo e mente (intelecto), definindo a constituição física como natural e a mente como o local de produção da subjetividade, da cultura. Dessa forma, as percepções modernas sobre o corpo tendem a instaurar um distanciamento entre o indivíduo e seu corpo. Apropriado pelo saber médico, este último se tornou passível de intervenção e modificação. É com base nessa idéia que as diversas tecnologias de intervenção do corpo foram se produzindo na sociedade moderna, respondendo a percepções estéticas que vão se expandindo juntamente com o processo de rápida circulação de informações intensificadas a partir do século XX. Desde as técnicas de educação física, que tem por objetivo moldar um corpo sob certos padrões estéticos e mantê-lo saudável, até as intervenções cirúrgicas, estamos lidando com representações históricas e culturais que só fazem sentido se pensadas em diálogo com seu tempo. Portanto, com vistas nessa relação entre corpo e cultura, saliento alguns elementos que devem ser abordados para pensar as concepções culturais dos sujeitos dessa pesquisa. As pesquisas de Richard Parker (1993) sobre corpo e sexualidade no Brasil oferecem uma trajetória histórica e cultural interessante. A família patriarcal, segundo o autor, mais do que um arquétipo de organização social funcionou também como um sistema de representações e construção ideológica que ainda hoje influenciam as maneiras pelas quais os brasileiros estruturam suas interações sociais e interpretam o sentido de suas relações sociais. Parker, ao pensar a diferença entre os gêneros recorre a essa história patriarcal para entender as diferenciações sociais entre homens e mulheres: “O homem e a mulher, por exemplo, os próprios conceitos de masculinidade e feminilidade, foram assim definidos em termos de sua oposição fundamental, como uma espécie de tese e antítese. Com o poder investido inteiramente em suas mãos, o homem era caracterizado em termos de superioridade, força, virilidade, atividade, potencial para a violência e o legítimo uso da força. A mulher em contraste, em termos de sua evidente inferioridade, como sendo em todos os sentidos o mais fraco dos dois sexos – bela e desejável, mas de qualquer modo sujeita à absoluta dominação do patriarca”. (PARKER, 1993)
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Seguindo Parker, podemos pensar que esse dualismo – homem x mulher - contribuiu para legitimar a ordem aparentemente natural da hierarquia de gênero. Essas idéias se insinuam e são experimentadas no cotidiano, notadamente através da linguagem. “É nas expressões, termos e metáforas utilizados para falar do corpo e suas práticas, que as relações da criança com a realidade começam a tomar forma e que os sentidos associados ao gênero na vida brasileira são mais poderosamente expressos”. (PARKER, 1993) É claro que falar da “vida brasileira” é um pouco vago, se considerarmos que não há uma homogeneidade que garanta que todos os “brasileiros” pensem suas relações com o corpo da mesma forma, mas as idéias de Parker sobre as maneiras como o dualismo homem/ mulher são vividos e reafirmados no cotidiano são bastante evidentes. A separação entre os gêneros se dá inicialmente no plano da natureza – biológicas e anatômicas – e essas diferenças são significadas por um repertório social que lhes atribui valores sociais, explicando-se assim as diferenciações hierárquicas de gênero na vida brasileira. Os termos usados pelos informantes de Parker para se referir aos órgãos genitais masculinos remetem a força e superioridade enquanto que os da mulher são marcados sempre pela deficiência e inferioridade: “Entre os termos mais regularmente citados para o pênis, por exemplo, estão expressões como pau, caralho, madeira, cacete, pica, mastro, vara, arma, faca, ferro, bicho e cobra”. Embora essa breve lista não exaura de maneira nenhuma o vocabulário disponível (...), o padrão que ela estabelece é claro: baseadas na observação das qualidades físicas do pênis, todas essas expressões descrevem um objeto alongado, fálico no sentido mais óbvio. Mas também fazem mais do que isso, porque põem ênfase na potencialmente ativa qualidade do falo – em sua potencialidade agressiva, em sua potencia não apenas como órgão sexual, mas, na linguagem metafórica, como um instrumento a ser empunhado, como uma espécie de arma, intimamente ligado tanto à violência quanto à violação” (PARKER, 1993)
Se o pênis, e seus sinônimos na linguagem cotidiana, está associado à violência e dominação, os órgãos genitais femininos aparecem como o objeto dessa violência e local de perigo.
“A lista de termos sinônimos empregados para falar da vagina na conversação diária é, sem dúvida, tão grande quanto a que foi usada para falar do pênis. Como no caso do pênis, a terminologia é variada. De qualquer modo, aqui também os termos mais comumente usados se agrupam e se elaboram em torno e sobre as características físicas mais evidentes e básicas: expressões como boceta ou buceta, buraco. Gruta, racha, chochota ou xoxota (de chochar, tornar-se seco, fraco ou insípido), greta, carne mijada, boca mijada, boca de baixo, perereca, aranha, baratinha” (PARKER, 1993)
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As classificações cotidianas para os órgãos sexuais se ligam tanto às diferenciações “naturais” quanto àquelas construída cultural e historicamente. Já vimos que a homossexualidade brasileira passou por transformações históricas que a modificaram socialmente. As reflexões de Fry sobre atividade e passividade como práticas marcadas e constitutivas do gênero trazem a idéia de que, num primeiro momento, a homossexualidade estava próxima do feminino e hierarquicamente inferiorizada frente ao masculino. Na relação bicha/bofe a atividade é o papel sexual que define a masculinidade. Por ser aquele que é penetrado, o homossexual (passivo) se assemelha à mulher o alvo da violência fálica, assumindo então outras características do sexo feminino como a delicadeza, os gestuais e a fragilidade. No entanto, o autor atentou também para as modificações que esses significados vão sofrendo ao longo dos tempos. Na medida em que novos tipos de representações da homossexualidade vão se insinuando no cotidiano, novas questões em relação ao corpo homossexual vão se delineando. Assim, com o aparecimento das relações igualitárias – marcadas pelo surgimento do “entendido” – alguns homossexuais vão se afastando dos atributos feminilizantes e afirmando um novo modelo no qual ambos os parceiros são ativos e passivos em suas interações sexuais. As relações igualitárias não significaram um fim para as hierárquicas, e estas, ainda hoje podem ser percebidas de alguma forma na conduta do grupo. Todavia, juntamente com as transformações nos significados dos envolvimentos sexuais entre homens, novas representações sobre o corpo também vão sendo urdidas, pois, na aproximação com a masculinidade, os atributos de fragilidade e inferioridade vão sendo negados. Podemos dizer que esse novo contexto da homossexualidade não pode ser entendido se não atentarmos para a penetração de modelos externos, como aqueles advindos dos países do hemisfério norte. Lá, toda uma história de movimentos políticos e sociais afirmavam separações entre homens homossexuais e heterossexuais como sujeitos sociais distintos. Apropriada pelos discursos militantes e acadêmicos, a noção de uma identidade gay vai se impondo no meio urbano e elaborando sinais diacríticos positivados: os gays não precisavam ser femininos, como era pensada a “bicha louca”. Nesse processo, o corpo homossexual vai passando do feminino ao masculino. Assim, em prol da identidade gay, alguns ativistas políticos acreditaram que o respeito e o fim do preconceito social viria com a masculinização; em outras palavras, assumir o lugar do poder que essa masculinidade representa socialmente.
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As transformações na idéia de masculinidade também não devem ser esquecidas, afinal de contas, se a homossexualidade funciona como um espelho invertido da heterossexualidade, as mudanças ocorridas em um desses campos são tanto modificados quanto modificadores do outro. Na sociedade contemporânea, a sensualidade do corpo masculino parece ter sido descoberta e explorada pelos meios de comunicação e no cotidiano. A definitiva incorporação da mulher na sociedade, inclusive como potente consumidora, a coloca como lugar de incidência de um mercado específico, qual seja o do erotismo masculino. A imagem dos galãs, explorada pelos meios de comunicação, não falam mais apenas do charme. Para além disso, a boa forma física, a virilidade e a sensualidade do corpo masculino se tornam objetos de consumo como tem sido o corpo feminino há muito tempo. O homem que vive nas grandes metrópoles se envaidece. Dedica mais tempo aos cuidados com o corpo, à escolha do vestuário, procurando quase sempre se aproximar dos tipos ideais explorados pelos meios de comunicação. Também suas atitudes em relação ao corpo se modificam através do gestual. O homem que pouco gesticulava – pois o exagero nos gestos era uma das características da bicha – agora rebola e mostra o corpo com esses movimentos. Mais do que isso, esse novo gestual passa a ser codificado socialmente como viril; sem riscos à sua masculinidade. Um termo que vêm sendo usado em grandes cidades como Londres e Nova York, recentemente incorporado pela mídia paulistana, ajuda a entender os novos significados da masculinidade entre os habitantes das metrópoles. Trata-se do metrossexual. De acordo com uma matéria publicada pela Folha de São Paulo151, metrossexual é uma junção dos termos heterossexual e metropolitano. Um homem que “(...) gosta de mulher e de Listerine”152. A matéria denuncia também as dificuldades “estruturais” que um metrossexual enfrenta ainda no Brasil: “Se o homem metrossexual brasileiro ainda tem alguma dificuldade de encontrar seu creminho nas revistas brasileiras, americanos vaidosos como o astro galã Brad Pitt acham fácil o deles em páginas e páginas de publicações masculinas bem-sucedidas, consideradas hoje bíblias do metrossexualismo, como a Details, a GQ e a Vanity Fair.”153
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Metrossexual, o novo “homem Moderno” invade a cultura pop. Folha Online. Ilustrada. 30/12/2003. Informação capturada no site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u40099.shtml 152 Produto usado para manter a higiene bucal. 153 Metrossexual, o novo “homem Moderno” invade a cultura pop. Folha Online. Ilustrada. 30/12/2003. Informação capturada no site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u40099.shtml
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A idéia é que é possível manter a heterossexualidade e, ainda assim, incorporar atributos que até então eram incompatíveis com as noções de masculino e heterossexual parece ser tão historicamente nova quanto a classificação metrossexual. Esse termo, na verdade, surge para salvaguardar a oposição entre homossexualidade e heterossexualidade, já que o cuidado estético com o corpo e o gestual – representações populares recorrentes da homossexualidade - é uma fronteira que parece estar ruindo. Quando uma pessoa assume, para si ou para os outros, sua “condição” de homossexual, se coloca diante de diversos modelos a serem seguidos. Assim, esse indivíduo elege um tipo - ou tipos - de sociabilidade e também um modelo com o qual passa a se identificar. Esse arquétipo tem a ver tanto com o estilo de vida que vai assumido quanto com o modelo de corpo que passa a adotar (estruturas físicas, gestuais e vestimentas). Essas imagens não são fixas e passam por modificações ao longo da experiência social, podendo se transformar de acordo com a idade ou com o meio social em que se convive. Em outras palavras, os indivíduos produzem sua imagem corporal de acordo com os modelos estéticos e culturais a que tem acesso. Os corpos gays explorados pela mídia, atualmente, são variados e se referem a arquétipos diversos de homossexualidade. Para essa pesquisa, tomaremos como base três “tipos ideais” para serem analisados mais de perto. Embora muitos outros possam ser – e o são - classificados dentro do grupo, acredito que essa modesta imersão corporal ajude a refletir sobre a produção de significados em relação ao corpo vivida pelos homossexuais de São Paulo. É preciso lembrar que as concepções sobre o corpo não existem livres dos diversos recortes sociais como classe, geração, raça ou gênero. Negros e brancos, pelo que percebi, não experimentam seus corpos da mesma forma por haver um universo de representações que os separam. Da mesma forma, essa diferença se institui entre pobres e ricos, entre jovens e velhos, freqüentadores dos Jardins ou do Centro, modernos, ursos e barbies – de que falarei adiante. Vários filtros agem no sentido de produzir significados e representações sobre o corpo. É somente pensando esses corpos (indivíduos) do ponto de vista histórico, como pessoas inseridas numa rede social, que será possível buscar algumas recorrências.
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2 – TIPOS E CORPOS a) Sarados, barbies e malhados: Masculinização e Musculação
“Cancelaram o espetáculo. Aos que quiserem será devolvido o ingresso. Mas aos que não tiverem o que fazer e já estando no teatro, é uma pena saírem. Se ficarem, eu irei diverti-los com a história de minha vida. Adeus, sinto muito [aos que estão saindo]. Se ficarem aborrecidos, ronquem, assim RRRRR. Entenderei, sem ter meus sentimentos feridos. Sinceramente. Me chamam Agrado, porque toda a minha vida sempre tento agradar aos outros. Além de agradável, sou muito autêntica. Vejam que corpo. Feito à perfeição. Olhos amendoados: 80 mil. Nariz: 200 mil. Um desperdício, porque numa briga fiquei assim [mostra o desvio no nariz]. Sei que me dá personalidade, mas, se tivesse sabido, não teria mexido em nada. Continuando. Seios: dois, porque não sou nenhum monstro. Setenta mil cada, mas já estão amortizados. Silicone... Onde? [Grita um homem da platéia]. Lábios, testa, nas maçãs do rosto, quadris e bunda. O litro custa 100 mil. Calculem vocês, pois eu perdi a conta. Redução de mandíbula, 75 mil. Depilação completa a laser, porque a mulher também veio do macaco, tanto ou mais que o homem. Sessenta mil por sessão. Depende dos pêlos de cada um. Em geral duas a quatro sessões. Mas se você for uma diva flamenca, vai precisar de mais. Como eu estava dizendo, custa muito ser autêntica, senhora. E, nessas coisas, não se deve economizar, porque se é mais autêntica quanto mais se parece com o que sonhou para si mesma”
Essa fala, cômica, mas contundente é, na verdade, trecho de um filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, “Tudo Sobre Minha Mãe”. Quem profere o texto é a travesti Agrado, figura marcante da história não apenas por sua aparência andrógina, mas pelas confusões que seu corpo provoca em alguns personagens da trama. “Toda a companhia está obcecada com o meu pau. Como se fosse o único... Na rua lhe pedem para chupar só porque você tem pau?", diz Agrado a um dos personagens que pede para que ela mostre seu pênis. Mas sua fala é particularmente instigante por narrar, ponto a ponto, as maneiras como um corpo pode sofrer interferências e ser modificado com determinados objetivos. “Um corpo feito à perfeição”, segundo ela. As diversas tecnologias de transformação corporal já exploradas anteriormente possibilitaram a Agrado tão bem sucedidas mudanças, mas suas motivações para a modificação de seu corpo primeiro, aquele com que nasceu, só poderão ser entendidas se pensadas socialmente. Como não abordo nessa pesquisa o corpo trânsgênero, transporto a situação de Agrado a outros corpos, que também se modificam e que, no rastro dessa mudança, reelaboram visões de mundo e valores sobre o outro e também sobre si. Embora o corpo forte e definido não seja um fenômeno em si da homossexualidade e mais pareça uma marca dos nossos dias, entre os homossexuais ele se constituiu numa forma de classificação que estabelece fronteira com outras. O corpo malhado, para meus interlocutores,
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funciona muitas vezes como enunciador de um estilo de vida e produtor de representações específicas de homossexualidade. O termo utilizado pelo grupo para classificar os homossexuais que exibem corpos fortes e definidos é um nome popularmente conhecido, por mais irônico que pareça, principalmente entre as crianças: Chamam-se “barbies”, como as esguias bonecas norteamericanas. Mas, pelo menos aparentemente, não se percebe nenhuma relação entre os homossexuais musculosos e as frágeis bonecas. Enquanto essa última é feminina, esguia, de pernas alongadas, cintura fina, quadril estreito e seios protuberantes, os homossexuais barbies são viris, de corpo avantajado, forte, definido e rijo. Contudo, analisando as representações que cada um desses corpos oferecem – a boneca e os homens – talvez uma semelhança essencial venha à tona. Ambos representam um ideal de corpo perfeito, afinal, o modelo corporal apresentado para a boneca não difere de importantes símbolos de feminilidade, beleza e erotismo dos nossos dias: as super modelos. No caso dos homens, o corpo pleno de músculos e definições remete também a tipos masculinos ideais como esportistas, modelos, atores de cinema e galãs de televisão. Dessa forma, o termo barbie, da boneca ou do homossexual, se relaciona tanto com a afirmação de papéis de gênero – masculinindade/feminilidade – quanto a um ideal de beleza, notadamente ocidental. Assim, para que esse termo seja melhor entendido quando utilizado nesse texto, lembro que barbies são os homossexuais masculinos, freqüentadores de academias de musculação e que, visivelmente apresentam corpos fortes e definidos. Essa expressão é utilizada entre o grupo pesquisado e, na maioria das vezes, não ultrapassa suas fronteiras. Poucos heterossexuais sabem de fato, com exceção dos simpatizantes, o que é uma barbie, que não seja a boneca.
Barbies em um dos pontos gays mais conhecidos do Rio de Janeiro, A Farme de Amoedo, em Ipanema.154 154
http://www.ipanema.com
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Se inicialmente, esses homens de corpos fortes não se assumiam como barbie, sabiam ao menos o que significava ser uma. Mas, diferentemente de outras classificações internas da homossexualidade – como os ursos, por exemplo – preferem ser chamados de malhados ou sarados. Pelo menos é assim que se nomeiam nas salas de bate-papo de gays e afins da Internet. Pouco se escreveu sobre as barbies do ponto de vista antropológico. Os únicos escritos a que tive acesso sobre “elas” – o termo é sempre usado no feminino – aparecem em informativos do grupo e algumas análises semiológicas. Dentre essas, a que mais chama a atenção é a de Wilton Garcia (2000). “Naturalmente, essa denominação aparece no panorama das minorias sexuais, para satirizar com muito humor e ironia os garotos musculosos, através de uma representação iconográfica – corpo perfeito – de uma boneca americana extremamente popular, denominada barbie. Aspectos de beleza e perfeição contaminam o jogo de possibilidades da nossa leitura, que paradoxalmente trata de ambivaler o gênero desses fortões. A imagem poética desses fortões, ou melhor, das barbies, se caracteriza nos rapazes que vivem nos clubes de fisiculturismo, de ginástica e academias de musculação, especialmente para trabalhar o corpo, solidificando-os com exercícios musculares de respiração (aeróbicos e anaeróbicos), de pesos e medidas em séries de repetições. Uma enorme quantidade de tratamentos físicos compreende ações de perseverança, dedicação e auto-estima nos treinos, que reafirma um grau de excelência excessivo para o condicionamento físico. O resultado disso tudo são marcas torneadas bem detalhadas que se espalham pelo corpo, pontuando a rigidez plástica - moldando assim um varão.”(GARCIA, 2000)
As palavras de Garcia sobre as barbies nos oferecem uma definição imagética detalhada sobre esses homossexuais e chega mesmo a questões instigantes como a produção simbólica de um varão através de uma disciplina rígida de modelação do corpo. Porém, na medida em que fala de significados “observáveis”, pouco revela sobre as reais motivações dessa experiência corporal. Ao longo de sua análise, o autor reifica esse termo e produz uma homogeneidade que engloba todos os “fortões”. Para entender a experiência de tornar-se ou ser uma barbie, é preciso ir além e atentar tanto para o lugar que essas pessoas ocupam entre os homossexuais quanto para o contexto de produção dessa classificação. Os corpos “sarados” não são necessariamente uma invenção recente entre os homossexuais como o é o termo (barbie) que os classifica. Acompanhando a história da homossexualidade é possível perceber que esse tipo corporal já está presente no imaginário dos envolvimentos sexuais entre homens pelo menos desde a primeira metade do século XX, quando os trabalhos do fotógrafo americano Bob Mizer se tornaram conhecidas. Mizer especializou-se em fotografar corpos masculinos jovens e atléticos, nus ou seminus, explorando de forma
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fascinante a sensualidade que reside na força e nos músculos. Em 1945, Bob Mizer fundou em Los Angeles uma agência de modelos culturistas, a Athletic Model Guild. Os modelos eram geralmente rapazes que não tinham regressado às suas terras após a guerra e migravam para a capital do cinema, onde pensavam em seguir carreira como atores em alguma produção hollywoodiana. Em pouco tempo, esse fotógrafo desenvolveu um serviço de venda de suas fotografias por correspondência até que, em 1951, lançou a revista “Physic Pictorial”.
“Tratava-se de uma revista consagrada à cultura física, o que, para os seus editores, significava reproduzir a escultura clássica esculpindo o corpo humano por meio de exercícios especiais e da musculação. Era uma revista dirigida claramente a uma clientela homossexual. Cada modelo era acompanhado de sua ficha identificadora que compreendia uma breve biografia e as atividades favoritas. Era manifesto que o nu masculino se tornava cada vez mais pragmático”. (LEDDICK, 1983).
Através dos trabalhos de Bob Mizer, e de outros que o sucederam, a estética do corpo com musculatura exuberante foi se tornando cada vez mais ligada à homossexualidade. Mais do que isso, disponibilizaram aos homossexuais interessados um material erótico que trazia arquétipos bem definidos do corpo masculino, como podemos ver a baixo:
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O termo “beefcake”, também o nome de um documentário sobre os trabalhos de Bob Mizer, era uma metáfora adequada ao “bolo de carne” que suas fotografias mostravam, mesmo quando os Estados Unidos viviam os anos do McCarthismo. Mais tarde, a prática de tonificar os músculos e deixá-los cada vez mais exuberantes se difundiu entre os homossexuais americanos, e muitos homens recorreram às academias de ginástica como o lugar propício para isso. A YMCA se tornou um símbolo desse novo modelo corporal, exportada para o mundo através de suas diversas filiais, ou mesmo através da música do grupo americano Village People. Como lembra Garcia:
“O grupo musical Village People, ao cantar sobre a Associação Cristã de Moços – ACM – (Macho, really, I’m really a macho man), conclama a possibilidade de lermos o jogo de linguagem entre os freqüentadores das academias da ACM espalhadas pelo mundo inteiro, inclusive no Brasil”. (GARCIA, 2000)
Mas se as fotografias de Bob Mizer ainda podiam sugerir uma atenção maior para a prática do fisiculturismo em detrimento de um evidente homoerotismo, os desenhos de Tom of Finland (1920-1991), que se tornariam bem populares entre os homossexuais de diversos países algumas décadas depois, exaltaram definitivamente o erotismo entre homens, como podemos perceber nas imagens mostradas abaixo.
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As obras desse artista se resumiam ao universo homossexual masculino e mostravam sempre homens extremamente masculinos, de corpos avantajados, usando algum uniforme e com órgãos sexuais enormes, ora delineados sob suas calças ora livres de quaisquer vestimentas. Em muitos de seus desenhos, dois ou mais homens se tocavam, indo de uma simples carícia ao ato sexual completo, deixando claro que o homoerotismo, pelo menos de forma “ideal”, devia ser experimentado por homens sem o menor traço de feminilidade. Em São Paulo, mesmo antes do surgimento das barbies – da classificação – diversos desenhos de Tom of Finland já eram encontrados decorando as paredes das saunas e nas páginas de revistas gays e demais informativos voltados para os homossexuais na cidade de São Paulo. Além de todas as representações imagéticas, o final dos anos setentas também já produziam representações da homossexualidade que cada vez mais se afastavam da feminilidade. Tanto os grupos ativistas quanto muitos homossexuais que freqüentavam os espaços de sociabilidade pareciam cada vez mais estar em busca dos homens mais masculinos e mais
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distantes das caricaturas produzidas pela mídia. Assim, é de uma imbricação entre um contexto de mudanças nas representações e nas possibilidades imagéticas de uma arte advinda de outros países que as barbies parecem ter se originado. O fenômeno barbie ganhou evidência no final da década de 1980 do século passado, quando a presença de homossexuais de corpos avantajados se tornou cada vez mais recorrente na cena gay paulistana. Isso não quer dizer que, antes, não existiam homossexuais que se dedicavam à “malhação”, mas que, a partir desse período, um estilo de vida coletivamente experimentado vai se configurando. Mais à frente, tentarei mostrar que elementos estão presentes da construção de uma barbie. Não se pode crer que todas as barbies têm as mesmas concepções a respeito de seus corpos, ou que a disciplina voltada para a produção de um corpo milimetricamente moldado segue as mesmas linhas entre todos os sujeitos desse “grupo”. Conversando com alguns adeptos de academias de musculação, com os quais mantive interessantes interlocuções durante a pesquisa, uma idéia recorrente aparecia em frases como “eu não era assim”.155 Todavia, longe de manifestar qualquer melancolia ou saudades de um tempo passado, essa frase remete a uma vitória, e a palavra implícita é: “eu consegui”. Esse “eu consegui” vem sempre aliado a uma história pontuada por esforço, disciplina e força de vontade como podemos observar na fala a baixo: “Cara, eu trabalho em banco, ta ligado? E ainda fazia faculdade há noite. Mas eu tava muito afim de melhorar, deixar de ser gordo; tipo, me cuidar mais. Eu sabia que se deixasse o tempo passar eu só ia ficar pior. Comecei a malhar umas duas vezes por semana, foi foda. Mas com o tempo a gente vai pegando gosto pela coisa, vai se acostumando e vai querendo malhar mais pesado. E quando você vê que o corpo ta ficando legal, isso dá mais vontade.” (Walter, 32 anos)
Para esse interlocutor, a imagem que tinha de si e do seu corpo era pouco animadora, apesar de nessa fala ficar pouco claro o porque desse descontentamento. Mais à frente, quando voltei à questão de sua insatisfação, ele revelou que: “Ah, eu sempre curti muito sair na balada, e até meus 18, 19 anos, um monte de cara queria ficar comigo... eu aprontei muito; muito mesmo. Mas ai veio aquela coisa... trabalho, faculdade, comer muito errado, vida sedentária. Foi aparecendo uma barriga, ganhei uns pesos; eu tava muito feio, tava mesmo.” (Walter, 32 anos)
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Mantive interlocução com um grupo composto por 8 homens, assumidamente homossexuais, com idade entre 22 e 38 anos, freqüentadores de academias de musculação e freqüentadores da noite gay paulistana
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O que mais incomodava meu interlocutor é que, devido a questões conjunturais, seu corpo foi deixando de ser fonte de desejo. Transformou-se num problema, pois, no passado, o tipo de “balada” que o atraia casava bem com seu corpo. Ficava com muitas pessoas na noite. É interessante notar que esse interlocutor não pensa seu corpo como um dado natural. Ao contrário, o corpo que lhe foi dado “naturalmente” o satisfazia; aproveitou-o bastante durante sua juventude. Uma vez que deixa de ser um corpo privilegiado nos espaços que freqüentava, esse interlocutor optou por manter os lugares, mas mudar o corpo.
Como
Walter,
um
outro
interlocutor também diz ter tido uma trajetória parecida. “Eu sempre pratiquei esportes, sempre nadei bastante, meu corpo sempre foi definido. Mas ai, depois que eu me formei da faculdade, comecei a trabalhar como um louco, a ganhar dinheiro porque eu precisava ter a minha vida, sabe? E ai a gente relaxa com essa coisa de cuidar do corpo; é outra história, sabe?” (Paulo, 26 anos)
A percepção de que o corpo era um problema também se parece bastante com a do interlocutor anterior:
“(...) ai eu comecei a ver que as pessoas que eu queria ficar não queriam mais ficar comigo. Eu me lembro que eu pagava um pau pra um cara, e que ele sempre me olhava também. Mas, de repente, ele parou de me olhar. Ele e todo mundo, porque eu estava feio mesmo. Tava com barriga, não tinha definição nenhuma mais. Ai eu decidi voltar a malhar; nem queria mais nadar, que é o que eu curto. Voltei a malhar e a me dedicar mais com meu corpo. Fui pegando gosto pela coisa e fui vendo meu corpo ficando legal, sabe. A gente percebe que todo mundo passa a ver a gente de outra forma”. (Paulo, 26 anos)
Mais uma vez, o que parece estar por trás das mudanças corporais é uma gradual perda de parceiros. Depois de analisar todas as histórias que eu dispunha, uma trajetória mais ou menos comum vai se estabelecendo: Um corpo atraente, que se “deteriora” e precisa ser transformado. Claro que há os casos das pessoas – principalmente os mais jovens – que aderem às academias por já terem sido criados dentro da cultura do corpo perfeito. Ou mesmo aqueles que sempre estiveram em desacordo com esse ideal e que lutam para se aproximar dele. Mas, em todo caso, o corpo aparece como um elemento possível de transformação. Uma vez que se toma a decisão de malhar o corpo, o cotidiano dessas pessoas é reelaborado, e o primeiro passo, é a busca por uma academia. Para os homossexuais que pretendem modificar seus corpos, seja por possuírem mais ou menos quilos do que gostariam, seja apenas para conseguir um corpo mais “definido”, as
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academias de musculação se tornaram parte dos seus trajetos. Não é difícil chegar a uma delas. Atualmente, as academias podem ser encontradas na maioria dos bairros da capital paulistana. A procura pelos locais para exercitar o corpo não segue sempre os mesmos padrões. Para alguns de meus entrevistados, existem academias em que você só vai para malhar e outras que viram pontos de encontros com amigos, paqueras e, até mesmo, oportunidades de sexo. Pedro tem 23 anos e diz não gostar de ficar mais de três dias sem malhar. Por morar nas proximidades da Avenida Paulista, matriculou-se em uma academia que faz parte de uma ampla rede. Quando perguntei porque escolheu essa e não outras Pedro respondeu que: “Acho que a gente vai não só pela musculação em si, mas também onde tem gente bonita, bons aparelhos e um clima agradável. Na academia que eu vou tem sempre um carinha interessante, troca de olhares. Já sai com alguns caras que malham comigo. Teve um deles que a gente se olhou durante uns três meses até a gente se falar a primeira vez. Saímos algumas vezes mas não deu em nada.” (Pedro, 23 anos)
A busca por academias com um “público interessante” apareceu no discurso de seis dos oito interlocutores com os quais conversei, embora todos tenham também se referido a bons instrutores e bons equipamentos. Esse detalhe é particularmente importante por ser mais um dos atrativos que esses espaços podem sugerir a um interessado e mais um dos muitos vetores da experiência de corporificação. Outra motivação importante na escolha do local para praticar musculação é a rede de conhecimentos informais. “Quando tomei a decisão de praticar uma academia, pensei logo em alguma em que algum amigo meu já freqüenta. E praticamente todos os meus amigos já malhavam quando eu comecei. Foi fácil porque a academia que eles fazem fica perto da minha casa”. Eu não acostumei logo, os primeiros dias foram barra. Mas como a gente sempre ia com alguns amigos, era mais fácil continuar. Hoje eu vou mesmo quando eles não vão. Alguns até pararam, mas eu continuei.” (Pedro, 23 anos)
As indicações conseguidas entre os amigos do trabalho, da “balada”, escolas ou faculdades também orientam as escolhas de uma academia em detrimento de outras. Uma companhia agradável pode ser, inclusive, uma das motivações para que se entre totalmente nesse estilo de vida, como é o caso desse interlocutor. Embora menos citados pelos homossexuais com que conversei, o preço pelo serviço ou propagandas na mídia também foram destacados. Na medida em que os resultados da malhação vão aparecendo, podem-se perceber mudanças no comportamento público. As roupas são agora escolhidas com o objetivo de
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evidenciar os ganhos em massa muscular e deixarem a mostra os bíceps, abdominais, pernas e nádegas bem trabalhados. “Eu já gostava de me vestir assim, com uma calça mais reta, uma camiseta regata, principalmente em dia de calor. Mas chegou o dia em que não dava mais, a barriga tava aparecendo. Passei a usar camisetas mais largas, calças mais discretas, mas tudo com o bom gosto que me é peculiar (risos). Mas também não que eu estivesse gordo, entende? Com três meses de malhação eu já estava bem em cima, bem gostoso. Ai eu dei uma mexida no guarda-roupa”. (Pedro, 23 anos)
Apesar de Pedro deixar claro que mesmo gostando desse tipo de roupa (jeans justo e camisetas regata), e tê-las abolido quando seu corpo não se adequava mais a elas, a fala de um outro interlocutor mostra que alguns se quer acreditavam que um dia as usaria.
“Meu, eu sempre achei esses caras que usam camisa regata muito malas, ta ligado? Pra mim era tudo uns metidinhos narcisistas que queriam aparecer. Eu nem pensava em um dia usar camiseta coladinha, essas coisas. Mas quando eu comecei a malhar, fui tendo mais orgulho do meu corpo, fui me achando mais atraente. Resolvi investir nisso e mudar um pouco meu visual. Hoje eu acho que algumas pessoas também me acham metido e narcisista, não que eu seja. Mas a verdade é que me sinto melhor, ta ligado? Agora eu sempre vejo os caras querendo me catar”. (Pedro, 23 anos)
O que desponta na fala desses dois interlocutores é que o corpo moldado precisa de um aparato que o complemente, e que as roupas e alguns acessórios ajudam na composição do modelo barbie. Durante minhas observações em bares, boates e praias, percebi que ainda que as roupas mudassem em modelo, estampas e cores, o estilo era bem próximo. Nos bares e boates, as calças jeans retas, coladas ao corpo e com a cintura baixa o suficiente para mostrar as cuecas de cós altos, brancas, ao estilo Calvin&Klein. As camisetas são justas, curtas ou regatas que deixavam os braços fortes à mostra. Olhando mais detidamente, via-se também que os cabelos bem curtos ou carecas, tatuagens nas costas e bíceps e peito imberbe também eram peças chaves para compor o visual barbie. Quando se pergunta a um freqüentador da noite gay paulistana sobre os espaços freqüentados pelas barbies, as respostas convergem sempre para alguns bares e boates específicos. Isso não apenas evidencia uma noção formada do que é uma barbie como aponta também o conhecimento público de seus espaços de sociabilidade. Assim, quem é ou pretende se tornar uma barbie quase sempre já tem uma noção dos espaços onde poderá mostrar seu corpo em transformação. As respostas que tive quase sempre coincidiram com os locais freqüentados por meus interlocutores freqüentadores assíduos das academias.
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Contudo, não se deve crer que esses locais se perpetuam. Ao contrário, eles são bastante efêmeros e poucos tem uma vida longa. No início dessa pesquisa, em 2000, a casa preferida pelas Barbies era a boate SoGo, localizada na Alameda Franca com a Bela Cintra, nos jardins. Uma boate voltada para as classes médias e altas de homossexuais que dispunham de dinheiro suficiente para arcar com o valor da entrada e das bebidas no interior da casa, ambos pouco acessíveis para as classes mais baixas. O resultado disso é que, ali dentro, as pessoas são na sua grande maioria brancas, usam roupas mais caras e freqüentam boas academias. O número de barbies na pequena pista de dança era de chamar atenção e pareciam unificados tanto pela maneira de dançavam quanto pela aparência física – as mesmas calças justas, os peitos nus, cabelos curtos ou carecas, tatuagens e a camisa presa na parte de trás da calça. Ali, as barbies talvez não fossem a maioria, mas elas normalmente se concentram bem próximas uma das outras, formando pequenos grupos que dançam abraçados. Esses grupos podem variar de um simples casal até quatro ou cinco pessoas. Pelo que pude observar, elas parecem formar um círculo seleto no qual só quem penetra é quem também parece ser uma barbie. Havia também o clube BASE, na rua Brigadeiro Luis Antônio, que nesse período já vivia seus últimos momentos. De propriedade de Sérgio Kalil, importante empresário da “noite gay” paulistana, essa boate já havia funcionado como um clube “hetero” que, aos poucos, foi se tornando cada vez mais “gay”. Diferentemente da SoGo, sua freqüência era bem diversificada no que se refere aos diversos estilos de homossexualidade. Lá, era possível ver tanto alguns ursos quanto modernos, mas as barbies se destacavam. Como se tratava de uma casa bastante ampla, com um palco ao centro, havia espaço para que grupos diferentes se formassem. Assim, as barbies sempre se concentravam próximas uma das outras, ainda que esse local não fosse previamente definido. Observando como esses grupos se formam, percebi que elas parecem ser atraídas por outras barbies, fazendo com que o desejo instaure uma definição espacial no interior da casa. Como pretendiam envolver-se com alguém parecido, estar próximo era o primeiro passo. Com a abertura de “Level”, localizada no bairro da Barra Funda e também de propriedade de Sérgio Kalil, as barbies parecem ter encontrado seu lugar favorito. Mas parecendo um grande galpão de dois andares, essa boate fica totalmente tomada nas noites de sábado e uma rápida passada pela porta já mostra o grande número de barbies na fila. Uma vez dentro da casa, corpos musculosos e sem camisa parecem ocupar todos os lugares e, diferentemente de outras boates gays, nesta quase nenhuma mulher é encontrada.
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A definição dos espaços de sociabilidade das barbies é interessante por elaborar uma base espacial para esse segmento interno da homossexualidade paulistana, pois a experiência de ser uma barbie só se realiza quando ancorada num conjunto de fatores. O que pretendo mostrar é que, para ser uma barbie, não é necessário apenas freqüentar academias de musculação e moldar o corpo. Para alem disso, deve-se usar determinados tipos de roupas e cabelos, freqüentar determinados lugares e comportar-se de forma específica no interior desses espaços. Essas questões são particularmente interessantes por serem pontos de demarcação de fronteiras internas entre as barbies, pois as roupas seguem o mesmo estilo, mas precisam ser de grife. Precisam freqüentar certos lugares geralmente só possíveis pelos elementos das classes média e alta. Precisam malhar em boas academias, possuir dinheiro para manter o corpo bem cuidado e principalmente, dinheiro para inserir o corpo nesse estilo de vida.
b) No Mundo dos ursos Enquanto tipo ideal, um urso é um homem grande, quase sempre com pelos no corpo e de peso avantajado. Tais características supostamente os assemelhariam, em alguns pontos, ao animal de que tomaram o nome de empréstimo e, através de uma relação totêmica em que se imiscuem o homem e o animal (forte e mortal) – uma idéia proveniente das comunidades indígenas americanas – acaba ocorrendo uma erotização da força, brutalidade e violência.
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Contudo, o discurso recorrente entre aqueles que se definiam como bears parecia, principalmente, celebrar os atributos masculinos (barbas, pelos e corpulência), de que, geralmente, a sociedade acreditava serem os homossexuais destituídos. Apesar dos sinais diacríticos já citados serem sempre salientados entre aqueles que se sentiam parte desse grupo, a definição sobre quem é ou não um urso parece repousar mais na valorização desses atributos do que, necessariamente no fato de ostentá-los. Assim, uma primeira divisão já pode ser percebida: nos Estados Unidos, onde a idéia foi inicialmente gestada no final dos anos 70, existiam tanto os bears como os chasers (caçadores). O movimento dos ursos
se originou de redes informais entre alguns homossexuais
estadunidenses das décadas de 1960 e 1970, mas passaram a compor o imaginário gay masculino somente com a aparição de uma revista erótica especializada nesse tipo corporal, sugerindo, pela primeira vez, o termo para um publico amplo: Tratava-se da Bear Magazine, publicada nos estados Unidos no final da década de 1980 e que trazia na capa a frase: “Masculinity without the trappings”.156 Nesse subtítulo, ficava clara a idéia de que os elementos peculiares ao sexo masculino deviam ser celebrados e nunca disfarçados. Como outras publicações eróticas especializadas, a Bear Magazine originou-se de um fanzine modesto, foto-copiado e de pequeno formato, que se transformou posteriormente numa publicação ilustrada, publicada pela “Commercial San Francisco Pornography Outlet”. (WRIGHT, 1997). Nos Estados Unidos do início dos anos 80, já havia um movimento gay forte e organizado, e as experiências homossexuais já eram visíveis em grandes cidades como São Francisco e Nova York. Muitas das discussões internas a esse movimento já haviam se sofisticado e se dividido em diferentes tópicos tais como direitos, identidade, etc. Graças a esse amadurecimento, certos indivíduos já se encontravam em posição de questionar certos modelos estéticos hegemônicos que excluía grande parte dos integrantes do segmento homossexual. Assim, os homens de corpos avantajados e seus admiradores desempenharam um papel importante para a crescente diversificação e especialização de organizações ativistas dos movimentos de identidade da década de 1970.157 A primeira organização foi fundada no início da década de 1990, e entre suas principais atividades estava a promoção de festas e encontros, criando assim um circuito bear que atraia 156
Cf. WRIGHT, Les K. The Bear Book: Readings in the history and evolution of a gay male subculture. NY, Harrington Park Press, 1997 157 http://www.glbtq.com/social-sciences/bear_movement.html
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homossexuais de diversos pontos dos Estados Unidos. O “The Lone Star Saloon”, inaugurado em São Francisco em 1989, foi provavelmente um dos primeiros espaços públicos especificamente voltado para a freqüência desse estilo de homossexualidade. (WRIGHT, 1997). Em outros lugares, os ursos dividiam espaço com os adoradores da cultura lether em bares e boates que promoviam, em alguns dias da semana eventos voltados para os ursos. Paulatinamente, os ursos foram se transformando num grupo distinto, com suas próprias insígnias, e também num nicho de mercado para o qual se voltava um tipo peculiar de pornografia, clubes de sexo, viagens turísticas, além de diversos tipos de vestuário e acessórios.
Bear Flag
Boneco Teddy Bear
Vídeo Pornográfico Bear
O “Bear Pride”, realizado anualmente em Chicago no “Memorial Day weekend” é um momento em que todos podem “consumir” a cultura bear, e que se transformou num momento ritual de afirmação desse modelo de homossexualidade. O avanço desse movimento parece a alguns de seus integrantes uma maneira de forçar o discurso público homossexual a incluir entre suas representações (eróticas) os corpos grandes e peludos, especialmente num momento em que os modelos de beleza homossexuais se voltam prioritariamente para os corpos imberbes, depilados e de músculos definidos. Todavia, embora os ursos, como idéia, tenham se originado entre a classe média homossexual americana, seus fetiches se conduzem aos de homens do campo (notadamente os
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lenhadores) e das classes trabalhadoras (trabalhadores da construção civil, caminhoneiros, etc.), produzindo uma espécie de erotismo que cruza as fronteiras de classe em busca da masculinidade; uma clara oposição a arquétipo feminino pelo qual os homossexuais são pensados.
Em algumas regiões de São Paulo, mais especificamente nos limites do Largo do Arouche e da Praça da república, tornou-se notória a presença de homens com idade superior a 30 anos, com cerradas barbas, corpos avantajados e de músculos pouco definidos, e de aparência discreta; sinais diacríticos que historicamente se ligaram à masculinidade. A despeito disso, mostram-se homossexuais nas escolhas dos parceiros e nos bares e boates que freqüentam e nos estilos de vida que levam. A ocupação por esse público dos bares localizados na rua Vieira de Carvalho e suas proximidades não é recente. Contudo, não era corrente ainda, no início dos anos 80, a idéia de que essas pessoas eram ursos. A grande maioria sequer conhecia a expressão que apenas em terras americanas estava difundida. As transformações tecnológicas e mercadológicas ocorridas ao longo dos últimos 20 anos trouxeram para as experiências homossexuais de São Paulo uma série de classificações produzidas em outros países. Esse consumo se dava basicamente através dos meios de comunicação e imensamente dinamizado pela Internet que, uma vez popularizada, permitiria a analogia entre os freqüentadores de alguns bares do centro da cidade com os bears americanos.
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Numa noite de janeiro de 1996, eu estava acessando a Web após o trabalho. Resolvi procurar algumas páginas sobre barbas, um dos assuntos que mais me fascinavam e, sem dúvida nenhuma, a característica física que mais me atrai em um homem. Eu não estava procurando especificamente páginas gays; aliás, nem passava pela minha cabeça que pudesse existir toda uma subcultura dentro do movimento gay que valorizasse os mesmos atributos que eu. É claro, eu sabia que provavelmente devia haver pelo menos alguns homossexuais com as características de que eu gostava, e outros tantos que também tivessem as mesmas preferências. Mas eu nem suspeitava que a coisa pudesse ser assim tão grande. Hoje qualquer pessoa sabe que na Web sempre se encontram páginas sobre qualquer assunto, e que através da Internet se pode conhecer pessoas que compartilhem quaisquer interesses. Naquela época, porém, a Web ainda estava começando sua explosão, e poucos ainda tinham uma real noção de suas imensas possibilidades. 158
Nesse relato, algumas coisas devem ser salientadas. Primeiro que a atração de certos homossexuais brasileiros por um determinado tipo físico (barbas e pelos) já existia anteriormente à classificação. Segundo, que o acesso aos termos classificatório desse desejo se tornavam possível graças à Internet.
Assim, através de uma busca num search engine, encontrei uma página britânica sobre barbas, a Beards Home Page, muito completa e informativa (essa página parece ter sido desativada: pelo menos, não consegui encontrá-la mais no antigo endereço). Tive a curiosidade de ver o "livro de visitantes", para ver quem poderia se interessar pelo mesmo assunto que eu. E encontrei ali muitas referências a bears ("ursos", em inglês). Num primeiro momento, pensei que fosse apenas um erro de ortografia com a palavra beards ("barbas") - que, afinal, eram o próprio tema daquele site. Mas aquele "erro" repetia-se tanto que achei que devia haver mais alguma coisa. Algumas ocorrências tinham links para sites pessoais, e cliquei em alguns desses links. Todos eles davam em páginas pessoais de homossexuais. E em um deles encontrei um link para o Resources for Bears, até hoje o mais importante site ursino do mundo. Eureka! 159
Uma vez tendo percebido que não se tratava de um erro de grafia ou uma confusão com o termo beard (barbudo), o autor desse texto percebeu, através de anúncios pessoais que havia um corpo bear; que havia uma comunidade e um movimento “ursino” espalhado pelo mundo. Sua alegria diante dessa descoberta residia no fato de que havia descoberto em torno do mundo um grande número de homossexuais ao redor do mundo que, como ele, primavam eroticamente pelos sinais diacríticos da masculinidade. Depois de se cadastrar nas mail lists e se corresponder com outros ursos, nosso aspirante ainda não estava satisfeito: Mas todos eles viviam fora do Brasil, principalmente nos Estados Unidos. Isto frustrava-me, porque eu estava a milhares de quilômetros de distância de pessoas com as quais eu me afinizava completamente, enquanto o conceito
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Ver: www.ursosdobrasil.net/port/descob.htm Ver: www.ursosdobrasil.net/port/descob.htm
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era completamente desconhecido em meu próprio país, e o meio gay brasileiro parecia não dar nenhum espaço para gente como eu. E naquela ocasião, eu não estava em condições financeiras de fazer uma viagem internacional. 160
A impossibilidade de manter um contato mais próximo com a cultura ursina levou esse interlocutor a pensar na existência de um movimento parecido no Brasil, ainda que o “meio gay” daqui dispensasse pouca importância a essa causa, notadamente num momento em que as barbies pareciam ter voltado para si todos os holofotes. Para finalizar essa história, apenas três meses depois de conhecer o movimento dos ursos, nosso autor finalmente realizou uma viagem de trabalho aos Estados Unidos e aproveitou para ter com um bear que conheceu em uma de suas maIil lists. Em Dallas, informou-se amplamente sobre o que era esse movimento e finalmente pareceu estar em casa. Rogério Munhoz tem 24 anos e assumiu-se homossexual para a família aos 19. Precocemente, engajou-se em grupos militantes (Corsa e Identidade) e, em seguida se tornou um dos organizadores da Parada GLBT de São Paulo. Além de ter estudado filosofia e atuou como “light-jockey” da boate gay Mad Queen. Contudo, esse militante urso se tornaria nacionalmente conhecido por virar uma espécie de “ídolo gay da mídia brasileira” depois de integrar o elenco da primeira temporada da série "20 e Poucos Anos", produzida e exibida pela MTV Brasil - um seriado que retrata o cotidiano de jovens de diferentes estilos de vida, onde não há roteiro nem ensaios. Esse programa passou a ser exibido a partir do dia 5 de julho, toda quarta-feira, às 23hs. 161
A trajetória desse personagem se funde com a afirmação do movimento ursino no Brasil e, principalmente em São Paulo, já que, através de sua participação em diversas mídias, mostrava para o grande público o cotidiano de um homossexual e assumia-se como tal. Como aconteceu de você participar do "20 e Poucos Anos"? Eu tenho contato com o pessoal da MTV, e eles me chamaram porque... são 8 personagens, e um deles é o gay, e para achar um gay assumido, que não tivesse estereótipo, que a família aceitasse, que pudesse botar a cara na TV, eles pastaram. E não queriam drag, travesti, não por discriminação, mas justamente para ter esse lance do suspense. E aí me filmaram na boate que eu trabalho, em casa...162
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Ver: www.ursosdobrasil.net/port/descob.htm Informações capturadas no site http://mixbrasil.uol.com.br/cultura/entrevis/entrev/rogerio.shl 162 Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/cultura/entrevis/entrev/rogerio.shl 161
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A aproximação com o movimento ursino se deu por acaso: “Há 11 anos atrás eu tinha um amigo que me chamou pra fazer umas fotos pra uma loja de roupas pra gordos, e lá vi que tinha vários gordos gays, ai descobri o movimentos urso ”.163 Em pouco tempo, Munhoz se envolveu com o movimento, passou a organizar eventos e ser chamado para discutir o assunto em diversos sites e informativos dos homossexuais brasileiros. Tornaria-se mais conhecido ainda quando a revista G Magazine resolveu criar uma coluna intitulada “Ursos” (na verdade uma página dedicada aos transgêneros, lésbicas e ursos). A projeção alcançada o levou a ser convidado para uma entrevista num programa de grande audiência exibido pela Rede Globo, onde o fato de afirmar-se um urso também foi abordado. Nessa entrevista a Jô Soares, exibida em 12 de abril de 2002, Munhoz explica grosso modo como e onde surgiu o movimento dos ursos e a clara oposição ao movimento dos gays malhados.
Entrevista com o militante urso Rogério Munhoz com Jô Soares (http://www.cronicabear.hpg.ig.com.br/antiga/geleia.html)
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Ver: http://eduardoburger.sites.uol.com.br/darkroom.htm
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A entrevista foi bastante didática no sentido de esclarecer a população sobre o que era um urso – fotos foram mostradas no telão.
Ao contrário do que aconteceu entre os bears americanos, no Brasil as fronteiras (pelo menos ainda) não se definiram de forma rígida. Em São Paulo, os ursos dividem espaços com homossexuais mais velhos que a rua Vieira de Carvalho, como o Caneca de Prata, Casa Bar, Lord Byron, Hábeas Copus e a Lanchonete Nova Vieira (apelidada popularmente de Caneca de Lata). Caneca de Prata - R. Vieira de Carvalho, 55. República (11)3222-5848. Possui um bar escuro e mesas para comidas rápidas. A freqüência maior é de ursos e senhores.164 (...) Vermont Itaim - Pedroso Alvarenga, 1.192 - tel.: (11)30793621 – Itaim De quinta a sábado aberto 24 horas.Domingo até as 2h da manhã.De segunda a quarta das 8h às 2h da manhã. Vermont Bear-Av.Dr.Vieira de Carvalho,63 - Praça da República -Sp 11 3333-6190. O Endereço dos Bears Ursos no Brasil.165
Os ursos se tornaram rapidamente visíveis no Brasil entre os homossexuais, tanto pelos eventos públicos em que participavam a caráter (parada gay, festas, encontros públicos) quanto pela sua presença constante nos informativos voltados para o grupo. Vale lembrar que, numa página em que a revista G Magazine parece destinar às “minorias internas”, a coluna dirigida às lésbicas e ainda uma outra assinada pela transexual Claudia Wonder (transgêneros) passaram a dirigir espaço na mesma página com Rogério Munhoz, um ativista urso de São Paulo.
c) O Corpo Moderno O termo moderno não é unânime, mas é usado internamente pelo grupo para nomear certos estilos de vida e de comportamento. No cotidiano, as pessoas se relacionam com essa classificação de forma a instituir tanto uma aproximação como o afastamento daquilo que acreditam ser moderno. Assim, penso-a como categoria nativa, utilizada entre meus interlocutores para nomear certas roupas, músicas, espaços e comportamentos. Se alguém 164 165
Ver: http://www.superfestas.com/bares_visualiza.php?arcd_artigo=41&autor=24 http://www.superfestas.com/bares_visualiza.php?arcd_artigo=41&autor=24
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consome cotidianamente esses bens simbólicos, essa pessoa toma a forma dos significantes e se tornar, ela própria, um moderno perante o grupo. Por se pautar num estilo de vida, o conceito de moderno parece ter fronteiras pouco claras, mas, refere-se, principalmente, ao público jovem residente no meio urbano, de classe média e alta, consumidores de determinadas substâncias (maconha, cocaína, ácido lisérgico,ectasy, Special K), adoradores de certos estilos musicais (rock, eletrônico, discoclub), cultivadores de um tipo de moda (street wear, retrô) e freqüentadores de determinados espaços (bares, boates, cinemas, galerias de arte). Dessa forma, para entender quem são os modernos, é necessário partir das informações nativas e entender quem e o que meus interlocutores definem como tal. Kiko é um jovem assumidamente homossexual, de 23 anos, residente no bairro de Perdizes, onde, numa faculdade privada, conclui o curso de jornalismo. Cheguei a esse interlocutor num bar que é identificado socialmente como uma “balada moderna” (A Torre). A abordagem se deu, principalmente, pelas informações que me foram repassadas por outros interlocutores sobre quem seriam e onde estariam os modernos paulistanos, uma vez que me interessava saber as definições do grupo sobre o ser moderno. Durante nossa interlocução Kiko, que me chamou a atenção por seus piercings e tatuagens, disse que se identificava com essa modernidade. “Não sei dizer ao certo quando foi que eu comecei a me vestir assim, sempre de preto, e freqüentar essas baladas (Torre, ALoka), mas isso se tornou meu estilo. Pra dizer a verdade eu nem penso muito sobre isso. Eu me sinto bem assim, não curto ser igual a todo mundo. Hoje eu sei que as pessoas me marcam dessa forma. Aliás, acho que elas estranhariam muito se eu aparecesse meio caretinha na facu.”.166
Quando perguntei a Kiko sobre o porque de sua preferência pelas baladas modernas, ele me respondeu que: “Primeiro eu vou pela música. Eu não gosto de música massificada, que toca nas rádios, na televisão ou nas boates gays. Curto coisas diferentes. Depois os caras que eu quero ficar são aqueles que fazem o mesmo tipo de balada que eu, curtem as mesmas coisas. Eu curto falar de cinema, de teatro, de música. Eu sou um jornalista, tenho que estar bem informado sobre o que rola de novo no mundo; não dá pra eu ficar saindo com pessoas que não são antenadas.”167
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Entrevista realizada em 23 de janeiro de 2004. Entrevista realizada em 23 de janeiro de 2004.
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Como já foi mostrado anteriormente, essa modernidade aparece mais como um estilo de vida no qual a música, o cinema, o teatro, a moda, pelo menos no discurso desse interlocutor são importantes mediadores. Vale lembrar que o acesso aos bens culturais defendidos nessa fala ou aos lugares onde a modernidade é experimentada, remete quase que diretamente à classe média, principalmente aquela localizada na zona oeste da cidade. Prosseguindo em nossa conversa, chegamos mais próximos do corpo. “Primeiro eu fiz essa tatuagem (uma estrela discreta no ombro esquerdo), depois resolvi tatuar a perna também. Os piercings (na língua e na sobrancelha esquerda) vieram depois. Eu gostei do resultado principalmente porque as pessoas elogiaram. Percebi também que isso me deixava mais moderno, exatamente como eu queria ser. Parece que isso atraiu mais os caras que eu queria ficar.” 168
Seu corpo, modificado pelas tatuagens, piercings e roupas escuras funciona como sinal diacrítico, calculadamente utilizado para informar seu estilo de vida. Assim, os body modifications funcionam como demarcadores de fronteiras que estabelecem diferenças entre experiências diferenciadas de homossexualidade. Mas se esse interlocutor justifica sua aparência corporal através dos modificadores corporais, outros parecem ver sua modernidade como elemento desafiador dos papéis de gênero. Esse é o caso de Lukas, de 22 anos, residente no bairro de Pinheiros e estudante de graduação em arquitetura da USP. Lukas usa cabelos compridos, pele clara, corpo magro e de altura considerável. Usa vários brincos nas duas orelhas além de acessórios como cintos prateados e braceletes, que segundo ele, nunca são esquecidos, independente do lugar para que esteja indo. Além dos lugares citados por Kiko, Lukas freqüenta ainda a D-Edge, o Lov.e e vai sempre em Raves. “Eu sei que eu sou gay e não tenho problemas com isso. To pouco me lixando se eu vou sair na rua e vou ouvir gracinhas pela maneira como eu me visto, me falo, me comporto. Foda-se. Quem disse que homem não pode usar maquiagem, bijuterias. Eu uso. Acho que o que eu tenho de mais moderno é justamente isso; eu não sou desses viadinhos que fica fechando por ai, mas se eu quiser sair de saia, vou sair”.169
Nas palavras desse interlocutor, percebemos uma crítica a normas heteronormativas. Mesmo se pensando como gay, não abre mãos de acessórios e maquiagens, bem como o uso de
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Entrevista realizada em 23 de janeiro de 2004. Entrevista realizada em 19 de fevereiro de 2003.
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roupas que, socialmente, possam comprometer sua masculinidade. Lukas diz diferenciar-se tanto dos “viadinhos” quanto das pessoas que não entendem seu estilo. Na verdade, não há um consenso entre os modernos sobre qual a medida ou que acessórios fariam de alguém uma pessoa moderna. Mesmo no interior de boates como A Loca, diversos estilos de se vestir parecem ter em comum apenas o fato de que fogem à regras convencionais. Como se pode observar nas fotos a baixo170:
Durante minhas observações foi possível perceber que há um conflito interno entre as pessoas que levam esse estilo de vida. Mas, mesmo unidos por certas peculiaridades, deve-se ter cuidado para não reificar essa categoria e fazer parecer que todos são iguais, pois nem todos que são chamados de modernos conduzem suas ações das mesmas maneiras. Uma série de difereças pode ser percebida no interior desse grupo. Uma boa maneira de fugir ao engano reificante é lembrar que as apropriações sociais do termo “moderno” são bem diversas. Dois exemplos, escolhidos pela maneira como esses interlocutores significavam o “ser moderno” em seus discursos, podem dar conta disso:
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Fotos capturadas no site da boate A Loca: http://aloca.com.br/
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Marquinhos tem 23 anos, trabalha como vendedor em uma loja de decorações. Saiu de casa muito cedo, deixando sua família em Ribeirão Preto, sua cidade natal, e veio morar em São Paulo.
“Eu não tinha problema com a minha família, eu não. O que me dava vontade de sumir era que ela (a cidade) era muito pequena. Todo mundo se assustava com tudo. Se a gente usava uma roupa assim, mais moderninha, todo mundo já falava. Acho que hoje não é mais assim, mas na minha época, nossa!”
A modernidade de Marquinhos tornou-se, para ele, incompatível com a cidade em que nascera. São Paulo lhe parecia a cidade ideal por todo o imaginário que, como ele, pessoas do país inteiro construíram sobre essa metrópole. Aqui, poderia usar livremente suas roupas mais “moderninhas” e freqüentar os locais onde se compartilhava de um estilo aproximado ou, pelo menos, já estariam acostumadas à presença pública dessas manifestações. Nas palavras de Marquinho: “Pra você ver; aqui eu saio com um lenço verde no pescoço, as pessoas olham e ninguém fala nada. Ou se falam, eu nem me preocupo; nem conheço!” Quando perguntei a Marquinhos sobre os locais que ele freqüenta na noite, suas respostas, de início, me pareceram – uma vez que eu estava informado sobre as definições de modernidade da classe média paulistana da zona oeste - incompatíveis com todo o discurso anterior sobre ser moderno. Suas incursões noturnas eram sempre à região central da cidade, nas imediações da Vieira de Carvalho. Era nos bares e boates dessa região que ele dizia encontrar com os amigos, também moderninhos, e dançar ao som dos drag hits171. “Olha, eu gosto de dançar. Chego na balada e nem caço, só danço. E tem até muita gente bonita, com umas roupas legais, já até fiquei com alguns. Mas eu adoro essas músicas que estão tocando agora nas baladas, tipo Madona, Brytney, Cristina Aguilera. Eu piro. Saio só quando acaba. E isso é legal porque, quando saio de lá, já tem busão, metrô.”
As boates que freqüenta são a Dunger, Salvation e Blue Space, essa última na Barra Funda. Lá, Marquinhos dança despreocupado ao som de dançantes músicas pop, bastante tocado pelas rádios. Certo de que, em sua saída, poderia tomar suas duas conduções: um metrô e uma “lotação” para o Jardim Mirian, bairro em que reside. Um outro exemplo é o de Ricardo, um paulistano de 24 anos, estudante de teatro e formado em publicidade. Como Marquinhos, saiu de casa muito cedo, pois a situação havia se 171
Drag hits é uma classificação nativa para as musicas estrangeiras, dubladas por Drag Queens durante suas apresentações em bares e boates.
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tornado intolerável depois que a mãe descobriu sua homossexualidade, e também que fumava maconha. Nessa época, Ricardo estava concluindo sua graduação, mas como já trabalhava numa agência, resolveu dividir um apartamento com alguns amigos no bairro de Perdizes, com os quais mora até hoje, mais de três anos depois. Os locais freqüentados por ele, em suas saídas noturnas são A Loka, Torre, Suzi em Transe e alguns after-hours no Paradise. (D-Edge)
“É que nesses locais, as pessoas curtem o que eu curto, tá ligado? Gosto dessa coisa das pessoas estarem bem loucas, com roupas modernas. A música é legal e todo mundo curte. Os caras que eu fico eles pensam mais ou menos como eu, gostam das mesmas coisas. Por isso que não vou muito pra balada gay. Não me vejo ali, não gosto da musica, das pessoas. Já até fui em algumas, mas não é a minha praia, ta ligado?”
Ricardo diz que quando a balada está boa, e ele já está “bem louco”, esquece do relógio. Quando uma encerra, ainda é possível encontrar outra “balada”. Como ele mesmo diz: “(...) o bom de Sampa é isso. Você ta a fim de ficar na balada, você fica. E uma balada foda, que não te deixa cair, velho!” Os dois exemplos acima nos remetem a diferentes sentidos do ser “moderno”. Marquinhos pensa suas roupas, suas músicas e seu comportamento como modernos. Sua modernidade é possibilitada pelos acessórios comprados na 25 de Março, por roupas costuradas, sob sua orientação, por uma vizinha, pelas músicas que ouve nas rádios e que dança nas pistas e pelo sistema de transportes da cidade, quer permite sua locomoção do afastado bairro em que mora até o centro da cidade. Logo, sua noção de modernidade não se atrela, necessariamente às grifes caras, à música eletrônica ou rock europeu, tão pouco aos after-hours em boates de preços mais elevados. Para ele, ser moderno é estar na noite, com roupas e acessórios que chamam a atenção e ter um grupo de pessoas que pensam como ele e fazem as mesmas coisas. No caso de Ricardo, que possui uma condição social melhor, mora num bairro classe média, possui um carro e um emprego que lhe garante um salário razoável, ser moderno é principalmente ouvir música eletrônica, consumir determinadas drogas e estar sempre nas “baladas”. Em sua fala, as boates gays não são modernas. Ele não se identifica com os drag hits, não gosta do estilo das pessoas. As diferenças de classe exercem forte influência sobre as de gostos, daí a maior participação dos elementos da classe média na cena moderna. Mas, para não perder de vista essa diferença, procurei perceber o que interlocutores de diferentes estilos de vida, classe social, cor, profissão e faixa etária definiam como espaços modernos, bem como o tipo de pessoas que
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chamariam dessa forma. Assim, independente dessas diferenças, alguns espaços e tipos corporais acabam perpassando a maioria das falas. Não se deve esquecer que esses comentários são diretamente informados pelas diversas mídias a respeito de determinadas representações de “ser moderno”; existem também as representações sobre esses corpos advindas das relações sociais cotidianas. Logo, as definições de modernidade apontadas pelos meus diversos interlocutores remetem, quase que sem erro, para um estilo de vida peculiar de alguns elementos da classe média paulistana, enquanto que, nas outras classes, ou grupos, elementos difusos (roupas, músicas, espaços, usados de determinadas formas), a modernidade aparece como uma cópia modificada. O ser moderno sobre o qual vou me deter parece se afirmar mais pela negação de outros estilos do que, necessariamente, pela afirmação de um em específico. Sabe-se que freqüentar boates exclusivamente gays, não é moderno, que vestir determinadas roupas, não é moderno e mesmo que ouvir determinados tipos de música ou moldar o corpo de determinadas formas, não é moderno. A D-Edge não é uma boate gay e não é anunciada dessa forma nos sites da Internet ou nos semanários que noticiam os roteiros noturnos da cidade. No site do Mix Brasil, uma espécie de porta voz dos GLS, sua programação é sempre indicada, salientando-se que a casa é freqüentada pelos amantes da música eletrônica, independente de sua orientação sexual. Aliás, essas informações iniciais – ser palco de sofisticada musica eletrônica e receber pessoas de diferentes sexualidades – são elementos importantes que fazem com que essa casa seja percebida pelos seus freqüentadores como uma balada moderna.
. Pista da D-Edge172 172
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Os proprietários da D-Edge se preocupam em levar sempre ao seu público a melhor música eletrônica da cidade, executada tanto pelos djs residentes – aqueles que fazem parte do staf da casa, como é o caso de Jorge Active – quanto djs convidados, que podem vir de outras cidades brasileiras ou ainda de outros países. Os nomes tanto nacionais quanto internacionais devem ser reconhecidos como bons profissionais pelos apreciadores e conhecedores da música eletrônica. A ênfase da casa nesse estilo musical pode ser percebida na sua programação, pois, apenas em dois dias da semana – a casa abre todos os dias, com exceção das terças – esse não é o principal estilo. Mais exatamente nas segundas-feiras, quando o dj residente – o conhecido roqueiro e apresentador João Gordo – e seus convidados executam seus sets de rock e punk-rock, e nas quartas feiras (CIO 80), quando os pops dos anos 80 tomam conta do espaço. Nas quintas-feiras, os segmentos da música eletrônica enfatizados são o trance e o psytrance, nas sextas-feiras o house e suas variações e, nos sábados, quando acontece o after hours (Paradise) – quando a boate funciona até o meio dia de Domingo – uma miscelânea de techno e suas variações, house e suas variações bem como o trance são executados ininterruptamente. Ultimamente, também os domingos se tornaram dias úteis, quando, animada também pela música eletrônica, a festa começa a partir das 5 da tarde e encerra à meia noite. Nos dias mais lotados – aqueles que mais se aproximam do final de semana – o público é variado, mas parece contar com uma presença maior de moças e rapazes heterossexuais nas segundas e quintas feiras, enquanto que nas sextas e nos sábados o público gay é, certamente, majoritário. Vale lembrar que a presença de mulheres é sempre perceptível em qualquer uma das noites e pouco se pode dizer a respeito de suas orientações sexuais.173 Essa predileção por determinados dias da semana pode sugerir que os homossexuais que freqüentam a cena moderna privilegiam estilos específicos em meio à música eletrônica, quais sejam o house e o techno. Ou os pops dos anos 80 em detrimento do rock e punk-rock. O público das noites que mais freqüentei (sextas e sábados) é composto na maioria por homossexuais masculinos que tem entre 18 e 40 anos (estes em menor número), de pele mais
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A presença de mulheres heterossexuais em boates gays ou modernas é uma realidade que inclusive já foi percebida e comentada em informativos sobre o grupo pesquisado.
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clara174 e oriundos das classes média e alta. O preço pago pela entrada e pelas bebidas no interior da boate não é barato, quando comparado a outras casas noturnas freqüentadas pelos homossexuais. Os homens, em dias de festas normais, pagam R$25,00 de entrada ou R$40,00 de consumação, podendo ainda esse preço se elevar com a apresentação de um dj (nacional ou internacional) aclamado da cena eletrônica. Em meio à iluminação que parece alterar o estado de sobriedade, com luzes emitidas das paredes, do teto e mesmo do chão, corpos diversos se movimentam ao som da música eletrônica. Apesar da maioria estar vestida de forma discreta, mas quase sempre com alguns acessórios ou marcas (piercing, tatuagens, cintos, sapatos) modernas, as atitudes corporais parecem seguir uma mesma linha. Primeiramente, se movimentam de forma parecida, podendo, em alguns momentos, entrar em uma espécie de transe (vib, uma abreviação de vibration), proporcionada pelos djs. Os óculos escuros são muito vistos, a despeito da pouca claridade, e parecem informar que alguma substância química (droga) foi consumida e que seu estado de normalidade foi alterado. Na verdade, eles funcionam como uma espécie sinal diacrítico através do qual as pessoas afirmam estarem “loucas”. Como tais, podem ser apropriados por freqüentadores que não estariam necessariamente nesse estado, mas que querem fazer crer que sim. No bailado da musica eletrônica, os trejeitos considerados mais femininos em outros espaços, aqui poderiam ser pensados como “estilo”, e pouco se pode perceber a diferença nas maneiras como dançam heterossexuais ou gays. Pelo menos na pista, as duras definições de gênero que remetem a comportamentos adequados, parecem ser implodidas. A questão da raça é outra interessante. Como a grande maioria dos freqüentadores são de pele mais clara, a negritude, ressaltada no cabelo e em outras partes do corpo, se torna um elemento exótico, mas não popular. Cabelos black power, lábios grossos, etc. podem ser lidos como modernos, quando acompanhados pelos gostos pelas mesmas músicas, estilos de moda e casas noturnas. Na sua afirmação, os modernos também contribuem para a destruição dos guetos, na medida em que se afastam das boates gays, primando pelos locais em que a orientação sexual não é capaz de definir completamente o público. Assim, a identidade homossexual totalizante é
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Interessante lembrar que atentei para esse dado quando, ao levar um amigo carioca, negro e homossexual, na DEdge, foi ele que me chamou a atenção para o fato de que, além de um ou outro funcionário, era um dos pouquíssimos negros ali dentro.
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modificada; embora não a neguem, ela encontra significados outros que extrapolam os elementos que estiveram presentes na sua produção.
3 - QUAQUÁ: A VIRTUALIDADE DISCIPLINADORA Vindo em meio às reflexões sobre tipos corporais, podemos incorrer no risco de afirmar a existência de um corpo quaquá. Erro, porque essa categoria, diferentemente das outras aqui etnografadas, não encontra uma corporificação em si. Não acharemos em São Paulo, em qualquer ponto da cidade, alguém que se defina dessa forma. A quaquá é a alteridade dentro da alteridade, em outras palavras, algo de que os homossexuais precisam impor um distanciamento. Mas cuidado com as reificações. Quando digo que a quaquá é uma virtualidade é porque, como percebi ao longo da pesquisa, ela não pertence a uma classe específica, a uma etnia, a um gueto ou apresenta uma aparência de gênero definida. Na verdade, ela surge de um conflito de representações que será tingido pelas cores de todos esses filtros sociais. Para ser mais claro, alguém pode ser rotulado de quaquá sendo pobre ou rico, branco ou pobre, judeu ou protestante, freqüentador dos Jardins ou da Vieira de Carvalho, Barbie ou Urso. Isso se dá porque, no interior de cada um desses filtros, existem normas que orientam as posturas ideais. Sigamos com essa idéia. Pedro, nosso interlocutor já citado, foi quem, inicialmente, chamou minha atenção para a força dessa virtualidade. Durante nossas interlocuções, ele utilizava esse termo de forma a definir quem era “nós” e quem representava o “outro”. “Então, meu. Eu curtia muito ir na SoGo, tinha muita gente bacana, gostosa. Mas a boate foi piorando. Depois que a Level abriu, todo mundo que era interessante, ia pra lá. A SoGo ficou mesmo pras bichas mais quaquás. Na Level até dá umas, mas como lá é bem maior, você encontra mais gente bonita, o tipo que eu curto, ta ligado.”
Precisamos refletir mais sobre as informações desse interlocutor, a quem cheguei com o objetivo de investigar o modo de vida e os significados de ser uma barbie. Seu ponto de vista a respeito da homossexualidade está totalmente comprometido com seu estilo de vida e de corpo. Ao se referir às pessoas “bacanas” e “gostosas” que freqüentavam a SoGo, Pedro se remete principalmente aos “malhados”; os homens de corpos fortes e definidos que, sem camisa, exibiam o resultado das academias na pequena pista de dança. As quaquás – aquelas que não eram
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“bacanas” ou “gostosas” – ao se tornarem a maioria entre os freqüentadores dessa casa, o afugentaram. Junto com outros iguais (nós), passou a freqüentar a então recém inaugurada Level, onde mesmo as quaquás se diluiriam no grande número de corpos malhados que essa boate passou a abrigar todos os sábados. Partindo dessa interpretação da fala de Pedro, podemos achar que um dos primeiros indícios para definir uma quaquá é ter um corpo pouco trabalhado em academias. Nosso interlocutor prossegue, respondendo à minha indagação sobre quem eram as quaquás. “Então. Quaquá são aquelas bichas muito femininas, mais mulherzinha, com aquelas roupas baratas, sabe. Elas adoram fechar na boate, fazem escândalo, barraco. Eu não tenho nada contra, não é a minha ,mas eu respeito. Mas eu nunca ficaria com elas. Por exemplo, passa ali na Vieira num sábado à noite (risos)... ta cheio.”
Mais uma vez, a fala de Pedro merece ser esquadrinhada. Uma primeira definição de quaquá que surge nesse emaranhado de idéias é que ela é feminina e demonstra trejeitos exagerados dessa feminilidade. A outra, é que ela pertence a uma classe inferior (usa roupas baratas) e, por último, ela pertence ao Centro da Cidade (Vieira de Carvalho e suas imediações). Somos levados a crer então que, ser quaquá é não ter conseguido/querido ser masculino, elegante, contido e freqüentar lugares “adequados”. O estilo de vida adotado por Pedro, como já vimos anteriormente, segue um quadro (rígido) de normas. Não apenas nas academias, mas também nas posturas perante a sociedade, diante da qual é necessário mostrar-se masculino, discreto e adequadamente vestido. Mas deslocando o nosso foco para os “ursos”, semelhanças e diferenças vão se insinuando na definição da quaquá. O funcionário público Waldemar, de 42 anos, é freqüentador assíduo de alguns bares e danceterias do centro da cidade. Diz fazer isso por que, lá, encontra sempre os “tipos” de homens que lhe interessam. “Ali no Vermont, as pessoas parecem estar mais a vontade com elas mesmas. Você até vê umas quaquás por lá, mas tem muito cara interessante, que não está só preocupado com o corpo, entende, com a aparência. Já conheci lá dois caras com quem tive um relacionamento, ambos pessoas esclarecidas, legais, gostosas e boas de cama. Cansei de ficar indo pra boate cara, cheia de gente fútil. Gosto de um bom papo, de uma boa conversa, mas gosto de homem, nada de corpo lisinho, de tudo certinho.Nada daquelas bichas trucadas, quaquá fazendo linha.”
O Café Vermont, a casa a que esse interlocutor se refere, fica em uma das extremidades da Vieira de Carvalho, mais especificamente aquela que faz fronteira com a Praça da República.
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Mas, diferentemente do que nos informava Pedro, Waldemar acha que lá “(...) Você até vê umas quaquás por lá, mas tem muito cara interessante”. O mundo homossexual que existe para além dos limites do centro parece a meu interlocutor um lugar pouco provável de encontrar pessoas interessantes e lá – seu contraponto são os bares e boates dos Jardins – acredita que não encontraria sues objetos de desejo: homens másculos, e peludos, de papo interessante. Para ele, nos “jardins”, as bichas são “trucosas”, fazem “linha”, ou seja, representam um papel de algo que não são na realidade. São quaquás. Juntando ambos os depoimentos na busca da definição da quaquá, percebemos que há uma discordância em relação à definição espacial da quaquá. Embora para ambos ela esteja, em menor quantidade nos espaços que elegeram para sua diversão (Centro/Jardins), não pertencendo então a nenhum deles de forma exclusiva. Outra diferença está na idéia de que as quaquás, necessariamente provem de uma classe inferior, já que mesmo as dos Jardins parecem a Waldemar como tal. No entanto, apesar dessas desinteligências na definição do “sujeito quaquá”, para ambos a quaquá é aquele indivíduo que não é masculino o suficiente, com a diferença que, para Pedro, elas são “fechativas” e para Waldemar, elas são “trucadas”. Em uma outra conversa, o termo quaquá também apareceu. “Sei lá, eu curto uma noite mais underground, entende? Não gosto muito dessa coisas de ir pra balada totalmente gay. Gosto de curtir música eletrônica e, normalmente, os lugares onde toca essas músicas eles são mais misturados. Depois enche o saco aquele bando de bicha quaquá que tem nas boates gays. Elas são um saco. Vivem fechando, chamando a atenção. Só vivem caçando. Não curto não. Vou sempre na Loka e no D-Edge porque lá é mais misto, vai todo mundo que curte boa musica eletrônica, um povo mais interessante”.
Novas incertezas. Se para Pedro e Waldemar, as divisões despontam das casas gays escolhidas, para o estudante de jornalismo Thiago, o termo quaquá foi usado para definir os freqüentadores de espaços de sociabilidade prioritariamente voltados para os homossexuais, seja a Level ou o Café Vermont. Em casas como essa, em suas palavras, os freqüentadores “(...) Vivem fechando, chamando a atenção. Só vivem caçando”. Destarte, algumas concordâncias pontuam as três falas: quaquás fecham, quaquás chamam a atenção. Minha estratégia de colher as representações sobre as quaquás em grupos diferentes – que de uma forma ou de outra apresentavam semelhanças internas nessa definição – me conduzia para algumas idéias subjacentes capazes de ultrapassar os limites do particular e perceber que,
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mesmo com estilos de vida (e de corpo) diferentes, algumas normas organizam o pensamento dos homossexuais que vivem em São Paulo. Pensando sobre as quaquás, chegamos ao primeiro dos fantasmas que ronda a vida do grupo pesquisado: A masculinidade. Se a quaquá é, como afirmo, uma virtualidade disciplinadora, o medo de parecer uma quaquá é uma das experiências constitutivas das identidades homossexuais. Embora as noções apresentem divergências de classe, corpo, vestimentas ou de espaços de sociabilidade, o fato de que elas seriam menos masculinas parece ser uma certeza. Temos que tomar cuidados, no entanto, para não cairmos na armadilha da naturalização, supondo que existe realmente uma masculinidade em si. Mais vale pensar que ela nasce das relações entre um comportamento idealizado e suas condições de realização no cotidiano. Em outras palavras, o próprio significado dessa masculinidade não pode ser desvencilhado das experiências sociais dos diversos membros do grupo, afinal de contas, como percebemos anteriormente na fala de Pedro, Waldemar e Thiago, independente do corpo, das vestimentas e do comportamento em público, essa masculinidade permanece uma representação conflitiva. A despeito disso, esses deferentes grupos identitários no interior da homossexualidade valorizam suas próprias condutas através de um espelho invertido, no qual aqueles que estão de fora não são masculinos o suficiente. Essa masculinidade se transforma então num espectro de si mesma, um objetivo a ser perseguido, mas que só se realiza no plano das idéias. Afinal de contas, quando masculinos, parecem a Waldemar que se trata de homossexuais “trucados”, que fazem “linha”, que ocultam sua quase que natural feminilidade. São inevitavelmente quaquás. Essa não existência de uma masculinidade única, quase palpável também pode ser percebida durante o processo de observação. Através de meu próprio grupo de amigos, cheguei a outros. Muitos deles adotavam estilos de vida diferentes que, em algum ponto se tocavam. Por exemplo, alguns freqüentam assiduamente boates como a Level, outros vão aos jardins, ao centro ou mesmo não gostam de freqüentar a noite, preferindo saunas, cinemas pornográficos e clubes de sexo. Apesar disso, alguns trafegam por esses espaços, evidenciando o quanto as separações estanques se diluem nas práticas cotidianas. Na
convivência
diária,
elementos
normalmente
acionados
para
pensar
a
homossexualidade socialmente começam a se fazer presentes, principalmente em ambientes mais privativos como uma reunião de amigos ou uma festa fechada. Nesses encontros bem humorados, mesmo aqueles “mais masculinos” chamam uns aos outros por nomes femininos. Gesticulam
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mais, mudam o timbre e o tom de voz e se permitem, assim, fugir um pouco das amarras da masculinidade normativa. Assim, essa masculinidade ganha também contornos diferentes quando experimentada em ambientes privativos ou públicos.
“Nossa, eu morro de ódio quando passa algum amigo meu numa boate, ou quando eu estou paquerando alguém, e dá uma fechada, brinca comigo. É que as bichas fazem de sacanagem, querem te tombar. Eu nem dou bola. Até porque, se der confiança ai é que eles zoam. Mas se elas ficarem tirando muito, eu saio de perto, odeio escândalo.”
As palavras desse interlocutor são instigantes. Conheço Fernando há pelo menos três anos e ele sempre me pareceu “masculino”, discreto e de poucas brincadeiras. No entanto, sempre que o encontrava em espaços mais privativos, ele parecia mais brincalhão e fazia coisas que, para mim, não condiziam com sua evidente “masculinidade”. Parecia que ali, ele a pendurava na porta, como um guarda-chuva ou um casaco, e se deixava levar pela descontração do grupo. Mas não confundam o que estou dizendo. Não quero dizer que, no público, Fernando é “trucado” e que no privado ele “fecha”, aproximando-se, portanto da quaquá, mas que algumas noções sociais de “masculinidade” são acionadas de forma performativamente política. É na escolha de elementos positivados do repertório da homossexualidade que alguns elementos do grupo pautam suas experiências públicas. Anteriormente, já discutimos sobre os significados da homossexualidade brasileira tanto antes quanto depois do surgimento da AIDS. Vimos também que os avanços do mercado e sua segmentação em busca do público homossexual elegeram e positivaram alguns tipos ou comportamentos homossexuais e que as diferentes mídias tiveram um papel significativo nesse processo. Dentre os elementos ressaltados e positivados a masculinidade parecia ter um lugar de destaque. Era tanto bandeira de luta dos movimentos ativistas – que pretendiam afastar a homossexualidade da imagem da “bicha louca” – quanto dos que avaliavam a homossexualidade de fora do grupo – a antipatia ás bichas loucas. Assim, precocemente, alguém que passa a freqüentar o mundo gay de São Paulo vai descobrindo que existe uma animosidade, dentro e fora do grupo, em relação aos trejeitos femininos em público. Que as quaquás é que fazem isso; que não se deve ser quaquá. Contudo, não se deve pensar esse repertório social produzido historicamente como uma camisa de forças, pois o cotidiano coloca essas pessoas diante de escolhas com as quais concordam ou não, ou concordam apenas em parte. Em outras palavras, pensar esses elementos
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de forma estanque não daria conta de explicar o porque alguns homossexuais optam por serem mais femininos, mesmo publicamente e também porque alguns grupos ativistas preferem o termo bicha a seu correspondente gay. A revisão de uma noção estanque de masculinidade ajuda, então, a deslocar as discussões de gênero do aparentemente natural binômio masculino/feminino e, no interior desse masculino, representações conflitivas se degladiam. Finalmente que masculino e feminino, como vem mostrando as feministas, têm uma existência para além do social. Seguindo uma hierarquia de significados para entender a nossa virtualidade disciplinadora - a quaquá – percebi que a passividade funcionava como um elemento que negativava – ou tornava mais quaquá – determinados homossexuais.
“Ah, eu acho que a maioria dessas quaquás que vão nessas boates gays são passivas. Vivem metidas no dark room. Tem uns que vão lá só pra isso. Eu não tenho nada contra, até já entrei nuns, mas não é a minha praia. Curto ver os caras na pista, paquerar, ser paquerado, ta ligado?. Também, ali, você nem vê quem ta beijando, pode ta ficando com a maior quaquá e nem ta sabendo”.
Fernando não apenas acha de que muitos dos homens que estão nas boates gays são quaquás, mas que também a maioria prefere ser passivo numa relação sexual. Em sua fala ainda, essa passividade é quase sempre experimentada de forma inapropriada, como no interior de um dark room, onde pouco pode ser visto. Assim, a quaquá se desmaterializa de vez e se torna cada vez mais uma idéia. Mesmo não sendo possível vê-la, ela está ali dentro e está sendo passiva. De outra forma, ir a boates gays, entrar num quarto escuro ou ser passivo – nesses e em outros espaços – também ajudam a definir quem é quaquá. Todavia, Fernando lembra também que já até entrou algumas vezes em quartos escuros, mas que prefere paquerar na pista. Talvez, ali, seja mais fácil perceber, pela performance, quem é ativo ou passivo e também quem é quaquá e quem não é. Minhas observações também levam a crer que o escárnio com que a passividade é tratada no interior do grupo a coloca muito próximo da virtualidade quaquá. Chamar um amigo de passiva é uma boa forma de causar gargalhada por parte dos outros amigos, aborrecer esse amigos ou simplesmente brincar de forma carinhosa. Nem sempre elas remetem à prática sexual recorrente de uma pessoa e seu uso preserva os significados apenas de forma jocosa. Ativo ou passivo, ou ambos, não se está livre de brincadeiras ou mesmo de insinuações. Nas boates, drag queens brincam com isso a todo momento e incorporaram a palavra a seu vocabulário cênico. Em
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determinados momentos, percebemos que se alterarmos certas frases – como, por exemplo, “olha que quaquá” - e substituirmos o termo quaquá por passiva, a brincadeira ou a acusação ainda assim vai fazer sentido.
*** As categorias de classificação nativas que observei não devem ser pensadas como coisas concretas; como marcas identitárias que definem por completo a vida dessas pessoas. Ser barbie, urso ou moderno é, na verdade, uma atitude que extrapola a questão do corpo, vivida de forma performática e política. As histórias de vida que acompanhei me levam a crer que há diversas vias pelas quais as pessoas chegam a assumir os traços identitários corporais. Além disso, as categorias internas de cada uma dessas formas de classificação dão a entender que há uma mobilidade na posição que os sujeitos ocupam dentro desses tipos de corpos. Existem barbies que vão desde o magrinho sarado até o bombados, para utilizar as classificações nativas. Existem ursos chasers, tedy bears, etc., assim como, entre os modernos existem os básicos e aqueles que utilizam diversos apetrechos do mundo fashon. Para explicar essas diferenciações é necessário ter em mente toda uma hierarquia de significados. Ninguém nasce um urso; não se é barbie ou moderno a vida inteira. Embora modelos de corpos existam por longos períodos, eles se tornam traços identitários apenas quando, num determinado contexto, as formas físicas ganharam uma importância historicamente nova, para além delas mesmo.
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Cap V
APOTEOSE COLORIDA: A aventura da Parada Gay paulistana
“Ah se eu tivesse assim, tantos céus assim... Muita história eu tinha pra contar”.175
1 – HOMOSSEXUALIDADES PÚBLICAS, DIREITOS PRIVADOS. O aparecimento da AIDS, além de promover a incorporação de novas problemáticas pelo ativismo homossexual, modificou também a percepção do grupo a respeito da conjugalidade. Uma vez que a “promiscuidade” homossexual foi vista com grande desconfiança e que as relações sexuais com parceiros múltiplos passaram a ser considerado “comportamento de risco”, a monogamia passou a ser cada vez mais reivindicada entre os homossexuais. A discussão a respeito da conjugalidade legal de homossexuais não se iniciou no Brasil. Ao contrário, quando essa questão se tornou pública, aqui, outros países já colhiam os louros dessas batalhas, realizando “casamentos” e formalizando a adoção de crianças por pais do mesmo sexo. Em algumas cidades americanas e européias, as famílias homossexuais já contam inclusive com um suporte social e mercadológico representado pelas organizações religiosas de gays e lésbicas, escolas para os filhos de casais homossexuais além de uma gama de profissionais liberais (advogados, psicólogos, pedagogos, médicos, etc.) que se dedicam ao atendimento prioritário dessa (nova) modalidade familiar. O historiador norte-americano John D’Emilio acompanhou essas transformações de modo gradual nos Estados Unidos e lembra que as discussões sobre a constituição de famílias por gays e lésbicas mais parecia, no passado, um exercício de ficção científica. Por volta de 1950, antes da afirmação do movimento de liberação de gays e lésbicas impulsionada por Stonewall, os estereótipos de gays e lésbicas pouco se encaixavam nas idéias de família, já que o mundo gay 175
Trecho de Pavão Misterioso, de Edinardo, o tema da primeira grande Parada do Orgulho GLBT de São Paulo.
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era pouco visto, associado com o vício e criminalidade.; Além disso, a homossexualidade também era pensada como pecado, crime ou doença, produzindo para os gays e lésbicas daqueles anos a imagem de indivíduos isolados, solitários, problemáticos, loucos e sem relacionamentos estáveis. D’Emílio também ressalta que estereótipos opressivos de gays molestadores de crianças ou de “vampiras” lésbicas à procura de novas recrutas produziram representações de homossexuais como sujeitos perniciosos para a integridade da família e a segurança das crianças. (D’EMILIO, 2002) As lutas políticas dos ativistas gays e lésbicas estadunidenses se direcionaram de forma incisiva contra esses estereótipos, buscando, ao mesmo tempo em que positivava a imagem pública, conquistar direitos sociais para as pessoas que mantinham relações same sex. Mas D’Emilio também lembra que mesmo sob condições opressivas, de uma maioria da sociedade que ainda considerava a homossexualidade uma anormalidade, diversos gays e lésbicas forjaram relações familiares e incorporaram ao seu cotidiano as batalhas por esse direito perante as leis. As lutas pelo direito à intimidade, a liberdade de organizar sua vida pessoal da maneira que bem entendesse, foi tomando força entre gays e lésbicas e se transformando em bandeiras de luta na afirmação social da homossexualidade naquele país. Mais que isso, de diferentes modos, o ativismo de gays e lésbicas estadunidenses vem conseguindo ganhos significativos. Em outro momento, num artigo que procurava relacionar as histórias de vida de autores importantes da homossexualidade no Brasil com seus posicionamentos em relação à questão da identidade homossexual (TRINDADE, 2002), observei que muitas das idéias dos ativistas homossexuais da época – quando da fundação do Grupo Somos – eram tributárias de um contato direto com a militância vivida em outros países. Aproveito-me novamente dessa idéia para sugerir que, enquanto em certas capitais norte-americanas, a discussão a respeito de famílias homossexuais vem sendo percebida pelo menos desde os primeiros anos da década de 1970, ela se torna pública, no Brasil, na década de 1990.
a) As lutas em torno da Parceria Civil Unificada Pelo menos popularmente, as pessoas falavam do Projeto da deputada Martha Suplicy que, se aprovado, permitiria o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo no Brasil. Ainda que esse projeto de lei tenha sido lido de forma “equivocada” ou “romantizada” pelos homossexuais, a
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discussão se aproximava da constituição de parcerias homossexuais amparadas por direitos legais. Popularmente, isso remetia á idéia de família. Ainda no início do ano de 1995, quando as discussões sobre homossexualidade se mostrariam bem mais intensas do que nos anteriores, pelo menos na mídia brasileira, o jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria com o seguinte título: “A Briga dos Homossexuais no Congresso: direitos gays devem compor a pauta do Congresso este ano. Legalização de casamento gay e mudança de sexo estão entre os projetos”.176 Já no título, a população ficava sabendo que havia uma batalha instaurada, na qual homossexuais tentavam conquistar direitos de que acreditavam ser merecedores. Entre estes, eram destacados o “casamento gay” e a mudança de sexo. Embora o decorrer do texto pouco esclareça sobre as reivindicações das transexuais, ou mesmo demonstre entender a diferença entre homossexuais e transexuais, sugerida pelo próprio grupo, a notícia já familiarizava a população com as posturas dos homossexuais, não mais como simples vítimas, mas como agentes históricos. Os responsáveis pelos projetos de lei de que fala o jornalista Vinicius Torres Freire em seu artigo, são classificados de “bloco politicamente correto do congresso”. No entanto, procura esclarecer que “o grupo parlamentar não reúne gays e lésbicas, mas deputados e senadores que assumiram em suas campanhas o compromisso de apresentar projetos de lei e discussões relativas à cidadania de pessoas de orientação homoerótica”. 177 A bancada possuía dois “líderes informais”, Martha Suplicy (PT-SP) e Fernando Gabeira (PV-RJ), além de simpatizantes do projeto oriundos do PSDB, PSB e PPS, e as prioridades do projeto seriam a proibição constitucional explícita à discriminação de homossexuais e a União Civil de pessoas do mesmo sexo. Vale lembrar que, nesse momento, o deputado Fernando Gabeira também incluiu como pauta as medidas contra a discriminação de transexuais e travestis e a legalização de cirurgias de mudança de sexo. Mas, pelo menos naquele ano, o jornalista que escreveu a matéria encerrava lembrando que “consenso mesmo só na inclusão na Constituição da proibição da discriminação”.178 O texto lembra também que a movimentação, levada a cabo pelo “bloco politicamente correto”, já havia sido apresentada ao congresso constituinte, mas recebeu apenas um quarto dos
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Folha de São Paulo, Brasil, Brasil, 12/02/1995. Folha de São Paulo, Brasil, Brasil, 12/02/1995. 178 Folha de São Paulo, Brasil, Brasil, 12/02/1995. 177
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votos. Mais uma vez ficava claro que essa luta já vinha se desenvolvendo e conquistando adeptos desde a década de 1980. Entre os congressistas, a situação parecia ir da chacota aos receosos apoios. As palavras de José Fortunati (PT-RS) são emblemáticas dessa situação, quando relatou que no ano anterior havia feito um discurso contra a discriminação no dia mundial do orgulho gay: “Desci do Plenário e fui alvo de piadinhas, mesmo de colegas”, disse ele. Atitudes como essa embasavam as afirmações da deputada Martha Suplicy de que havia homofobia mesmo no Congresso. O tom do artigo se mostrava simpático à questão e tinha ainda a validade de anunciar que não havia certezas internas sobre essas reivindicações; que a questão dividia dentro do congresso, mas também entre os próprios militantes homossexuais. Dois meses depois, a Folha de São Paulo volta a tocar no assunto, lembrando que um grupo de parlamentares recém-chegados no congresso pretendia incluir no texto da Constituição a proibição à discriminação de homossexuais, já que o texto aprovado em 1988 não fazia qualquer menção a eles. Entre eles, estava a deputada Martha Suplicy (PT-SP), que pretendia também apresentar ao Congresso no semestre seguinte um projeto de lei que regulamentava a “união estável entre duas pessoas do mesmo sexo”. Comentando sobre o assunto, Martha lembrava que conhecia “ (...) inúmeros casais de homossexuais onde um deles morre de AIDS e a família do morto toma tudo e o outro fica sem nada. São uniões às vezes de 25, 30 anos”.179 As palavras da deputada são contundentes e revelam alguns pontos importantes para uma reflexão. A primeira delas é que a presença de casais homossexuais entre os elementos de classe média e alta, vivendo abertamente sua homossexualidade, já parecia ser uma constante; alguns desses casais havia se formado ainda nos anos de 1960, se seguirmos à risca as informações de Martha Suplicy. Logo, se a idéia de constituição de famílias entre homossexuais não era nova, pelo menos em São Paulo, os crescentes casos de mortes em virtude da síndrome da AIDS acirrou a necessidade de uma base legal para essas relações. As reivindicações da deputada Martha Suplicy coincidiriam com a realização no Brasil da 17º Conferência Internacional de Gays e Lésbicas, realizada entre 18 e 25 de junho desse mesmo ano na cidade do Rio de Janeiro. A deputada foi convidada de honra para falar sobre o tema principal da Conferência naquele ano
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Folha de São Paulo, Brasil, 17/04/1995.
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Em certa medida, esse evento serviria de base para enfrentar a “bancada evangélica do Congresso”, seus principais oponentes. Entre esses contrários, por exemplo, estava o deputado evangélico Valdenor Guedes (PP-AP), da “Assembléia de Deus”, que dizia que a bíblia condenava a união homossexual. Segundo ele: “Deus não aceita o casamento de homem com homem ou mulher com mulher. Se eles puderem adotar filhos, por exemplo, essas crianças vão crescer num ambiente de promiscuidade”.180 Às vésperas de sua apresentação, o projeto proposto por Martha Suplicy havia conseguido 190 assinaturas, superando as 171 necessárias para que um projeto fosse apresentado na Câmara. Sua proposta de emenda constitucional pretendia que a expressão “orientação sexual” fosse incluída entre os artigos da Constituição que proíbem discriminação por sexo, idade, cor ou estado civil, uma reivindicação dos movimentos homossexuais. Um dos artigos a serem alterados se referia à discriminação no mercado de trabalho. A apresentação do Projeto da deputada e seu conhecimento por parte da saciedade através da imprensa sugeriam para a sociedade novas representações sobre a homossexualidade. Agora, as lutas políticas do grupo havia sido incorporadas por “não homossexuais”, sensíveis às questões que lhes diziam respeito. Chamavam a atenção para o fato de que, em certas instâncias de suas vidas, os homossexuais eram considerados “menos cidadãos” que outras pessoas e que isso chegava a ter repercussões no mercado de trabalho. Nesse contexto, a homossexualidade deixa de ser discutida na imprensa apenas em casos de violência física, mas como um grupo que demandava direitos sociais quanto qualquer outro. A apresentação dos projetos de leis de Marta Suplicy e a realização do Congresso da Ilga no Rio de Janeiro chamaram a atenção da imprensa para as questões relacionadas aos direitos homossexuais, bem como sua movimentação, até então restritas ao grupo. Uma vez aberto este espaço, notícias sobre o ativismo homossexual experimentado em outros países contavam agora com um excelente espaço de divulgação, como podemos perceber na matéria publicada pela Folha de São Paulo em 24 de junho de 1995. “Eugene Goforth e Robert Menas vivem juntos há 50 anos. A festa das bodas de ouro está sendo preparada pelos amigos. Para serem ainda mais felizes, os dois só aguardam uma decisão da Justiça americana marcada para setembro: o direito de gays e lésbicas se casarem diante da lei. Goforth e Menas são um dos milhares de casais homossexuais estadunidenses que querem se casar. Não se trata de um mero ritual de troca de alianças. Os gays e lésbicas estão exigindo o direito a um casamento legal como o lavrado entre homens e mulheres. Como esposos, 180
Folha de São Paulo, Brasil, 17/04/1995.
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querem ter os mesmos direitos garantidos aos casais: pensões, heranças, indenizações, seguro comum, decisões sobre filhos adotados, proteção do Estado em caso de divórcio e o simples direito de estar ao lado do companheiro num quarto de hospital ou decidir se seu corpo será cremado”. 181
A existência das primeiras uniões entre homossexuais eram mostradas como precedentes que ajudariam na batalha. Como contraponto, no mesmo dia podia ser lido um artigo anunciando a situação dos homossexuais pela legislação brasileira: “Não se trata exatamente de casamento. A proposta deve regular, basicamente, direitos patrimoniais decorrentes da união, tais como pensão previdenciária e partilha de bens em caso de separação ou morte de um dos parceiros.”182 Para remediar a situação, era possível aos casais de homossexuais fazer testamentos em benefício um dos outros, pois, se houver herdeiros necessários (pais, filhos), o testamento só versará sobre 50 % dos bens. Outra alternativa, ainda, seria fazer em vida um compromisso de compra e venda quitado, passando os bens para o parceiro. No caso de separações ou morte do beneficiário e conseguinte reivindicação por parte dos parentes, deve ser feito um contrato de rescisão do compromisso. Ainda que essas atitudes ajudassem a prevenir o desmantelamento de uma vida a dois, no caso da morte de um dos parceiros, nada possibilitava que um casal homossexual adotasse legalmente uma criança por não ser considerado legalmente como família. Também não era possível estabelecer uma pensão previdenciária. Os avanços políticos na questão vividos por outros países na época – Dinamarca, Noruega e Suécia, por exemplo - serviam de apoio para as reivindicações dos grupos homossexuais e as lutas pelo direito de constituir famílias, começam a brotar na imprensa brasileira: Luis Mott publicou um texto na Folha de São Paulo, no qual, de forma incisiva, ressaltava a abertura social conquistada pela homossexualidade e criticava a postura da igreja católica perante a questão. Suas preocupações se referiam à visita que o Papa João Paulo II faria ao Brasil em pouco tempo e dos efeitos da visita do “santo padre” na avaliação dos projetos propostos por Martha Suplicy. Mott lembrava que era necessário que os direitos de cidadania plena se estendessem também aos homossexuais e criticava a vinda do Papa com as seguintes palavras: “Receberia de braços abertos o presidente da República a visita do chefe supremo de uma importante religião mundial que declarasse o judaísmo é intrinsecamente mau?”. 181 182
Folha de São Paulo, Brasil, 24/04/1995. Folha de São Paulo, Brasil, 24/06/1995.
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A visita do Papa ao Brasil foi tomada como um grande evento social, com intensa cobertura dos meios de comunicação. Ainda sob as repercussões da “santa” visita, em 26 de outubro de 1995, o projeto proposto por Martha Suplicy chegou às mãos do congresso, sendo o acontecimento noticiado no dia seguinte pela imprensa paulistana. Os jornais lembravam que, mesmo antes de ser votado, o projeto já dividia os parlamentares do congresso. Entre os que apoiavam, estavam o presidente da Câmara, Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA) e Roberto Campos (PPR-RJ). Entre os contrários estavam o deputado Pinheiro Landim (PMDB_CE) e Wigberto Tartuce (PPB-DF) e Moisés Lipnik (PTB-RO). Segundo este último: "Eu acho que a vida tem que ser como Deus programou, homens com mulheres". Outros, como Esperidião Amim (PPB-SC) não o projeto de Martha Suplicy como assunto prioritário para votação. Se o projeto de Martha Suplicy não foi aprovado na sua primeira apresentação, foi vitorioso em inaugurar um campo de reflexões a respeito dos direitos de família entre os homossexuais brasileiros. Ele se tornou alvo de discussões cotidianas e impulsionou em alguns sonhos românticos de uma união conjugal amparada pela lei e, nos mais céticos, a vontade de se tornarem mais cidadãos plenos. Só que dessa vez, quimeras e desejos já pareciam mais possíveis. Já no final da década de 1990, a homossexualidade não era pública apenas em algumas ruas. Para além disso, já era discutida em telenovelas, minisséries de TV, capas de revistas variadas e consumida fartamente pelo grupo através de diversas mídias. As relações entre o mercado e a homossexualidade, além da visibilidade conquistada na imprensa pareciam dotar de auto-estima os homossexuais que viviam em grandes cidades brasileiras como São Paulo e Rio de Janeiro. A Parada do Orgulho gay de São Paulo (Parada do Orgulho GLBT) – como veremos mais à frente – aumentava em participantes a cada ano e diversas manifestações de combate à homofobia se tornavam mais presentes no cotidiano.
b) Combate à homofobia: o assassinato de Edson Neris Na madrugada de domingo do dia 6 de fevereiro de 2000, uma atitude de violência extrema contra um casal de homossexuais alcançaria projeção nacional, impulsionando as discussões sobre homofobia e questionando as atitudes sociais em relação à homossexualidade em São Paulo e em outros pontos do país. Trata-se do assassinato por linchamento do adestrador de cães Edson Neris da Silva que, enquanto caminhava entre os arbustos da praça da República
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de mãos dadas com Dario Pereira Netto, foi agredido por um grupo de jovens (carecas do ABC) e espancado até a morte.
O adestrador de cães Edson Neris da Silva
De acordo com o depoimento de Dario Pereira Netto - que passeava com Edson Neris da Silva entre os arboredos da Paraça da república por volta da meia-noite do dia 6 de fevereiro de 2000 - um grupo de 30 jovens carecas , vestidos com roupas pretas aproximou-se do casal. Temendo por sua segurança, Silva e Netto correram em direções opostas. Netto foi agredido, mas conseguiu escapar, mas Neris da Silva foi alcançado e espancado violentamente até a morte.183 Noticiada sobre o ocorrido, a policia saiu imediatamente em busca dos criminosos que, depois do covarde assassinato, caminharam até um bar na região do Bixiga. Lá, foram interceptados e receberam ordem. Apesar de negarem veementemente o crime ou admitirem, sequer, seu envolvimento, cinco deles acabaram se contradizendo. 184 Os assassinatos contra homossexuais não eram, nesse momento, uma raridade nesse país. Só no ano de 2000, quando o adestrador de cães foi morto, mais 27 vítimas mortais da homofobia foram notificadas no estado de São Paulo.185 Comentando sobre o assunto Mott afirma, numa entrevista concedida em 2004 ao site do Mix Brasil que, só nos últimos 20 anos mais de 2500 183
IZIDORO, Alencar. “Careca acusa 5 por morte de adestrador” in Folha de São Paulo. Cotidiano, 07 de fevereiro de 2000. 184 Informação capturada na url: http://mixbrasil.uol.com.br/pride/intolerancia/edsonneris2.htm 185 Ver Mott, Luis. Sobre homofobia, violência anti-gay. Entrevista 16. Capturado na url: http://geocities.yahoo.com.br/luizmottbr/entrev16.html
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homossexuais brasileiros haviam sido barbaramente executados e que, a cada 2 dias, um homossexual é assassinado no Brasil. “Porque tanto desprezo e violência? (pergunta a matéria) Simplesmente porque os homossexuais são considerados marginais, doentes, pecadores, e nossa sociedade cristã legitima o terror contra os gays, lésbicas e transgêneros.”186 Independentemente das motivações que levam aos assassinatos de homossexuais, a verdade é que eles por muito estavam presentes no cotidiano brasileiro. Ao se referir aos últimos 20 anos, o antropólogo denuncia que a homofobia é grave e pouco conhecida, apesar das ações isoladas dos grupos que sempre se informaram e denunciaram esse tipo de crime. Apenas dois anos antes da morte de Neris da Silva, em 1998, foram registradas 116 mortes.187 A forma hedionda de como se consumou a morte do adestrador de cães parecia ser inovadora e crimes como decapitação, empalamento, carbonização e mutilação de homossexuais de ambos os sexos já haviam ocorrido em solo brasileiro. Os sujeitos da violência, os skinheads, também já eram conhecidos dos homossexuais que, juntamente com nordestinos, punks e judeus, se tornaram vítimas preferenciais das ações violentas desse grupo, já que, em 1996, um arrastão foi promovido por 20 skinheads num bar gay de São Paulo (Burger and Beer, na Consolação), resultando na morte do artista plástico Nilton Verdini Silva. Três anos depois, em 1999, uma notícia nos dava conta da ação de grupos neonazistas na cidade: “Um grupo que faz campanha contra o homossexualismo está mobilizando a polícia, o Ministério Público e a Secretaria da Justiça e Defesa Cidadania. Os integrantes da Frente Anti-Caos, como eles se autodenominam, pregam cartazes na rua contra o homossexualismo (o símbolo é um bonequinho jogando no lixo a sigla GLS -gays, lésbicas e simpatizantes) e têm um site na Internet”.188
As diferenças em relação ao passado de mortes silenciadas, ou pouco comentadas, estavam no fato de que, como já mostrei anteriormente, os grupos homossexuais já haviam conduzido as discussões sobre o preconceito para a arena das leis. Questionando as exclusões a respeito dos direitos dos parceiros e iniciando também as discussões sobre adoção, muitos militantes acreditaram que essa via podia ser frutífera. Uma vez tornada pública a discussão dos direitos homossexuais, as informações sobre os andamentos das lutas ativistas, assumida também por políticos simpáticos à causa, traziam auto-estima e injetava fôlego nas ações militantes. Os
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Vê: http://mixbrasil.uol.com.br/troctroc/arena/mott/mott.asp ver: http://geocities.yahoo.com.br/luizmottbr/entre2.html 188 LEMOS, Antonina. “Discriminação”. in Folha de São Paulo. Cotidiano, 19 de setembro de 1999. 187
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grupos agora travavam um diálogo mais próximo com o estado em busca de um fim comum: a diminuição do preconceito e o combate à homofobia. Imediatamente após o assassinato, os grupos de militância homossexual se mobilizaram para cobrar uma participação mais efetiva da justiça para o caso. Efetuada a prisão dos agressores, os ativistas iniciaram uma árdua luta para que o ocorrido se tornasse um referencial exemplo de punição aos crimes homofóbicos no país. Assim, foi realizada no dia 10 de fevereiro de 2002, Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos na Assembléia Legislativa, com a presença da Promotoria responsável pelo caso. A audiência foi aberta ao público, que podia inclusive se pronunciar. Dois dias depois (12/2), das 22:00 às 0:00, foi organizada a "Vigília Contra a Violência aos Homossexuais", na Praça da República, onde Neris foi assassinado. Entre os organizadores do movimento, estavam o Grupo Corsa, a Associação Parada do Orgulho Gay, o Grupo Identidade e a Assembléia Legislativa de São Paulo.189 As discussões públicas a respeito do caso Edson Neris traziam implícita a divulgação pedagógica das manifestações do preconceito contra os homossexuais, visando a prevenção de novas ocorrências. Nas palavras de um desses ativistas: “Iniciamos um trabalho muito intenso junto à mídia em geral, fornecendo informações para os jornais, revistas, televisões, rádios e Internet. Construímos um site para divulgar as informações sobre o caso, bem como manter a memória de crime bárbaro como sinal de um marco contra a homofobia e a intolerância.”190 Essas palavras vieram de um importante personagem na luta contra a homofobia no Brasil. Trata-se do educador Beto de Jesus, 41 anos, que atuou também como um dos fundadores da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, da qual foi coordenador entre os anos de 1999 a 2002. A ligação de Beto de Jesus com a parada do Orgulho GLBT de São Paulo o colocava como um importante articulador das lutas homossexuais na cidade. Assim, enquanto presidente da Parada, foi avisado por Marcelo Milani, advogado de acusação no caso,para que conclamasse as pessoas descontentes com a violência aos homossexuais a se fazerem presentes no julgamento dos acusados, mais especificamente no dia 25 de fevereiro de 2002, no Plenário 8 do Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo.
189 190
Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/pride/intolerancia/edsonneris.htm Ver: http://www.social.org.br/relatorio2002/relatorio027.htm
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A ação dos militantes, ao denunciarem os crimes de ódio, a mais grave faceta da homofobia, chamavam a atenção para as maneiras como os homossexuais eram tratados socialmente, desaguando inevitavelmente nos campos do direito e cidadania. No primeiro julgamento, os ativistas realizaram um trabalho intenso de mobilização da população, conseguindo o apoio da imprensa – vale lembrar que já havia uma abertura nos meios de comunicação pára as discussões sobre homossexualidade desde o projeto de Parceria Civil de Marta Suplicy -, valendo-se sempre da situação bizarra em que o crime havia se dado. “Ocupamos a frente do Fórum e sabíamos que, se não nos mobilizássemos e trouxéssemos para as pautas do dia o tão esperado julgamento, correríamos o risco de ver atenuado esse crime. Foi um momento muito marcante em nossa militância, pois conseguimos uma grande mobilização e trouxemos, após mais de um ano, esse crime para as páginas dos jornais, editoriais, internet, TV etc”, afirmava Beto de Jesus.191 O julgamento dos acusados pela morte de Edson Neris parece ter inaugurado uma nova etapa nas ações militantes em prol da homossexualidade e sugeria que a justiça estava sendo feita e se estendia também aos homossexuais. No primeiro julgamento, em que dois dos acusados, o clima foi tenso. Alguns amigos dos acusados e supostos skinheads estavam presentes, bem como diversos militantes do movimento homossexual paulistano. O julgamento transcorreu por horas seguidas, e, ao final, dois dos assassinos foram condenados a quase 20 anos de reclusão em regime fechado, uma vitória para os ativistas ali presentes. Nos julgamentos, a liberdade social dos homossexuais foi trazida para o centro das discussões e a manifestação de afetividades entre pessoas do mesmo sexo era, agora, reconhecida como uma atitude que devia ser respeitada pela população em geral. A partir disso, muito do foco das ações militantes ocorridas em São Paulo pareceu voltar-se contra o cerceamento dessas liberdades atuando de forma preventiva. Atualmente Beto de Jesus desempenha a função de Secretário Geral do Instituto Edson Neris, fundado em São Paulo, e dirige a região sudeste da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros – ABGL. Numa entrevista ao site da ILGA (International Lesbian and Gay Association), esclarece que: “Minha Instituição - Instituto Edson Neris - desde a consulta sobre a Resolução Brasileira na Cidade do Rio de Janeiro em dezembro de 2003 vem trabalhando junto aos Grupos LGBTs e demais Grupo de Defesa dos Direitos Humanos no Brasil, pressionando o Governo Brasileiro, bem como divulgando a Resolução na mídia.
191
Ver: http://www.social.org.br/relatorio2002/relatorio027.htm
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Desenvolvemos um trabalho de capacitação dos operadores do Direito e de Coordenadores Pedagógicos e Professores da rede pública de Educação na Cidade de São Paulo, introduzindo a discussão da Orientação Sexual e Identidade de Gênero”.192
Como já havia acontecido com o episódio de Stonewall em Nova York, nos Estados Unidos, o assassinato de Édson Neris se transformou numa forte e eficaz bandeira de luta que, ainda que não tenha tido o mesmo alcance do confronto estadunidense, deixou marcas indeléveis na afirmação social da homossexualidade em São Paulo. Para além disso, a recorrente divulgação dos andamentos desse caso na imprensa acabaram por lançar as discussões sobre a homossexualidade brasileira, mais do que em qualquer outro momento de nossa história, na esfera pública.
c) Os beijaços No dia 03 de agosto de 2003, mais exatamente às 17hs, um protesto reuniu um grande número de gays, lésbicas e bissexuais da cidade para protestar na praça de alimentação do shopping Frei Caneca. Naquele domingo ensolarado, a imprensa já estava devidamente avisada e, em torno do prédio, algumas viaturas estacionadas criavam um clima de tenção e, de alguma forma, alertava aos moradores e passantes da região que alguma coisa estava prestes a acontecer. Próximo delas, grupos diversos de homossexuais, ativistas e curiosos pareciam desafiar as atitudes da polícia, conversando, fechando e soltando sonoras gargalhadas. Nas paredes do shopping, bocas coladas foram fixadas e serviam de palco para a multidão que entrava apressada. Os manifestantes presentes estavam ali, acionados pelos militantes da cidade, para protestar contra o ocorrido alguns dias antes, quando dois rapazes foram repreendidos pelos seguranças desse shopping, que ordenaram que eles parassem de se beijar ali. Ofendidos, o casal solicitou imediatamente a presença da polícia e registraram a ocorrência na delegacia. E foram além, dando entrevistados na TV e divulgando a história para diversos grupos e mail lists pela Internet. Uma vez informada sobre o que tinha ocorrido num dos shoppings da cidade em que a freqüência de homossexuais é intensa – é comum entre os homossexuais da região ouvir o trocadilho “Gay Boneca”, em vez de Frei Caneca -, diversos homossexuais se dirigiram para a praça de alimentação em que se deu o incidente para beijarem-se publicamente. “O primeiro impulso, no
192
Ver: http://www.ilga.org/news_results_b.asp?FileID=202
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entanto, era o de boicotar o shopping. Refletindo melhor, conclui-se que melhor do que se retirar, o importante era escancarar o motivo da discriminação e demonstrar que não iríamos arredar o pé. E faríamos isso com a mais romântica e tradicional forma de expressar afeto: com um beijo!”193 Apesar de os homossexuais já estarem aptos a denunciar legalmente as formas de homofobia, perceberam que, além disso, poderia também criar um fato social e alertar um público amplo de que não estavam dispostos a serem vítimas de discriminação. Mais do que isso, afirmavam para todos que suas práticas não deviam estar circunscritas a gueto e que, como qualquer outro consumidor do shopping, poderiam manifestar sua afetividade. No horário em que foi marcado o beijo coletivo, os organizadores discursaram e lembraram a todos os presentes os motivos pelos quais estavam ali. Desafiando a própria expectativa dos militantes, centenas de casais começaram a se beijar enquanto os fotógrafos se acotovelavam por entre as mesas para registrar aquele momento (histórico), tornando-o inesquecível.
“Em conversa com amigos e companheiros do grupo CORSA, a expectativa era a de que umas 50, no máximo 100 pessoas aderissem ao manifesto, como de costume. Mas ao chegarmos ao local, havia uma massa de gente, o que surpreendeu e alegrou Lula Ramires e Stevan Lekitsch, idealizadores do ato. O que mais impressionou, num primeiro momento, foi a quantidade de repórteres que acorreu ao evento: desde os canais de TV abertos, passando pelas agências de notícias até os portais de internet. Receando que o público se intimidasse, pois em geral as pessoas não gostam de expor, como esperar que pessoas do mesmo sexo se beijassem na boca em público?”.194
Devido a ação do casal repreendido e dos ativistas do movimento GLBT, o Shopping Frei Caneca recebeu advertência com base na Lei Nº 10.948. Os leitores dos jornais da cidade, no dia seguinte, foram devidamente informados sobre o que havia se dado no Frei Caneca e sobre a resposta dos homossexuais à discriminação. Nesse episódio, pode-se perceber novamente os avanços das lutas homossexuais no período abordado pela pesquisa. Mas quero ressaltar que tais acontecimentos se deveram às ações de pessoas reais que, uma vez crentes de que eram cidadãos plenos de direitos quanto qualquer outro, se dirigiram às instâncias legais para denunciar a discriminação. Deve-se também às mudanças incididas aos responsáveis pela segurança pública que, desde o caso Édson Neris, já 193 194
http://mixbrasil.uol.com.br/troctroc/arena/beijaco/beijaco.asp Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/troctroc/arena/beijaco/beijaco.asp
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haviam sido criticados e cobrados publicamente de forma mais efetiva pelos homossexuais. Também a imprensa já via nesse assunto algo digno de uma matéria. Enfim, tratava-se de um contexto completamente novo. A afirmação da homossexualidade, que vinha se desenvolvendo na cidade, era, portanto, tributárias de movimentações que vinham se dando tanto no plano legal, através dos protestos contra a homofobia ou as lutas em prol da parceria civil e adoção, logicamente difundidas através das diversas mídias. Os espaços conseguidos na imprensa, seja através de periódicos específicos do grupo ou lidos pela população em geral, nos programas de televisão, filmes, teatro ou telenovelas, atingiram um grande número de pessoas e as mobilizaram para essa questão. Alguns sites da Internet tornaram-se uma espécie de termômetro dessas ações publicando e-mails de leitores que expressavam publicamente essas opiniões. Depois de noticiar o evento ocorrido no shopping Frei Caneca, o site do Mix Brasil lançava a questão: “E você, participaria de uma manifestação do tipo? Você beijaria alguém do mesmo sexo em espaço público, como shoppings e bares? Dê sua opinião!”. O debate entre os que acessavam e liam a matéria (GLS?) se tornava público: Essas manifestações de beijaço assim como a tal parada gay são as coisas mais fúteis e baixas que já inventaram, afinal de contas a população homo é a minoria que está querendo por sua "religião" contra uma maioria que não aprova, afinal ninguém é obrigado a apoiar... Imagina uma mãe que quer levar sua filha pequena pra brincar no parque da esquina de sua casa e quando abre a porta pra sair... Vê um monte de gente praticamente fazendo sexo na sua rua... E o que ela fala pra sua filha ou mesmo nesse shopping... Uma criança passeia com a família neste lugares e do nada vê um festival de baixaria como esse tal beijaço aí.... Ninguém merece... Os gays se ofendem por nada, não é a toa que são sempre zuados na tv nos programas de comédia, por exemplo, e se depender de mim isso pode até continuar... Fui ! ! ! ! (...) Não só beijaria como já beijei. Lembro-me que, em 1994, beijei meu namorado na entrada do Metrô República. Os seguranças demonstraram surpresa, mas não fizeram nada. Algumas pessoas murmuraram algo, mas ninguém partiu pra nenhuma intimidação. Aliás, o preconceito existe e devemos, claro, lutar contra ele. Mas nós também o superestimamos. No caso do shopping, o movimento foi muito proveitoso. Continuo freqüentando-o e vejo muitos casais gays se expressarem sem problema algum. Mas isto é muito pouco. Seria necessária uma maior mobilização. Ainda não conseguimos eleger um vereador sequer; sinal que a comunidade GLBT não dá tanta importância assim à militância.
Como é possível perceber, as opiniões expressas vão desde a não aceitação das atitudes de protestos dos homossexuais, e mesmo contra suas práticas em espaços coletivos, quanto a testemunhos de que é necessário desafiar o preconceito, os ganhos disso e também – criticando a militância - a intenção de eleger um vereador homossexual (assumido).
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Outras formas de apropriação dos shoppings pelos homossexuais também foram observadas recentemente. Já no início do século XXI, a ação dos adolescentes homossexuais uma categoria historicamente nova, já que a assunção da homossexualidade se dava geralmente já na idade adulta, quando muitos homossexuais já se encontravam mais seguros e com melhor estrutura social para se assumir publicamente – em alguns shoppings centers da cidade chamaram a atenção tanto da imprensa como dos passantes que se aventuravam pelas praças de alimentação. Trata-se do happy hour gay, que já chegou a atrair 300 pessoas e que acontece nos shoppings Metrô Tatuapé (às segundas, a partir das 18 horas), Metrô Santa Cruz (às quintas, a partir das 18 horas) e Paulista (aos domingos, a partir das 15 horas). As praças de alimentação dos shoppings sempre foram locais apropriados pela juventude de São Paulo e contam com equipamentos necessários para esse tipo de sociabilidade como lanchonetes, sorveterias, cinemas e fliperamas. No entanto, há uma visível divisão que permite os flertes e paqueras de jovens heterossexuais, legando aos “outros” a discrição ou a dissimulação. Insatisfeitos com essa situação, jovens dos mais diversos pontos da cidade, que tinham fácil acesso a determinados shoppings centers, notadamente aqueles em que havia estações de metrô em suas proximidades, passaram a organizar encontros semanais no qual poderiam livremente trocar informações, flertar e trocar carícias com seus escolhidos. Outros beijaços aconteceram em bares e restaurantes da cidade onde casais de homossexuais disseram ter sido vítimas de preconceito, não necessariamente com o mesmo número de presentes quanto no ato do shopping Frei Caneca. A divulgação das ações militantes, difundidas na Internet, colocava os gays de diversos pontos do mundo em conexão, fazendo tanto com que os ativistas brasileiros se informassem sobre novas modalidades de protestos, as informações sobre os beijaços paulistanos também eram consumidas globalmente. Assim, no dia 06 de maio de 2004, em Barcelona, na Espanha, centenas de homossexuais pararam uma avenida, reivindicando o respeito à liberdade sexual, e se beijaram publicamente para protestar contra as agressões praticadas a um casal homossexual por um grupo de skinheads.195 Um dos mais importantes exemplos da globalização das formas de ação dos homossexuais em torno do mundo é a realização das Paradas do orgulho gay. Na medida em que essa manifestação - que em pouco tempo alcançou enorme sucesso em São Paulo, tornou-se a maior
195
Ver: http://www.gaybrasil.com.br/news_05.asp?Categoria=Radar&Codigo=345
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do mundo em 2004, apoiando e sendo apoiada por outras ações de visibilidade e militância, uma reflexão mais detalhada sobre ela se mostra de grande importância.
2 – A PARADA DO ORGULHO GLBT DE SÃO PAULO A atual Parada do Orgulho GLBT de São Paulo surgiu efetivamente em 1999. Contudo, ela não nasceu do nada. Essa história, em São Paulo, inicia com a concentração, na Praça Roosevelt, ocorrida no dia 28 de junho de 1996. Com vistas nesse evento, o jornalista Paulo Marcomini, uma semana antes, conclamava os homossexuais paulistanos para se fazerem presentes ao evento. “Vamos ferver no orgulho gay? A marcha "Lesbian & Gay Pride" acontece todos os anos em várias partes do planeta. Em Sampa, o povo toma um copo de leite, se atira da janela e cai na real. Sem desfile, mas com triângulo rosa pra dar e camisinha pra vender, vão fechar a rua, chamar um trio elétrico e dançar quadrilha com as "drags". Alguém se habilita? E ainda tem o "Mural do Orgulho", que é pra resgatar a história. É a visibilidade. Em 1969 _você já era nascido?_ a polícia novaiorquina invadiu pela última vez o Stonewall Bar. Desde então, muita coisa mudou. É o orgulho gay, que muita gente adora mostrar. Se anima! Se estiver muito frio, tira um casaco do armário e sai com ele pra dar uma volta. Se não quiser aparecer, ponha uma máscara, se veste de caipira, mas vá! Liiinda!” (Paulo Giacomini, Revista da Folha, 23/06/96. P.42)
O convite do Giacomini, feito com palavras descontraídas, não deixava de resgatar uma história, da qual, acreditava, todos os gays compartilhariam. Tanto quanto para o movimento gay norte-americano, a revolta de Stonewall é reivindicada como força motora para a mobilização dos leitores. Mas apesar do convite caloroso, poucas pessoas de fato compareceram à Praça Roosevelt no domingo em que o dia do orgulho gay seria celebrado entre os homossexuais paulistanos. Por ali, eu via apenas alguns militantes, drags (como prometido), e algumas personalidades da noite gay. Apoiando a manifestação, havia também alguns punks, que se solidarizavam com as reivindicações de gays e lésbicas. No ano de 1997, em vez de uma concentração, pensou-se na possibilidade de uma passeata, que tomaria uma das pistas da Avenida Paulista, que, certamente, atrairia mais visibilidade. Poucos dias antes da realização do evento, o jornal Folha de São Paulo publicou uma matéria em que o jornalista Marcelo Rubens Paiva comenta sobre a “parada virtual”, prevista para janeiro de 1998. A matéria trazia também uma entrevista com o organizador, na qual era possível perceber que, para Benjamim Bee, o organizador do evento, o baixo número de
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pessoas na manifestação de 28 de junho, na praça Roosevelt significaria que o homossexual brasileiro preferia o anonimato de seus “armários”. Numa parada virtual, eles se sentiriam mais à vontade por terem sua privacidade garantida. Tais palavras devem ser medidas, pois, nesse ano, as ruas do bairro dos jardins já se encontravam tomadas, nos finais de semana, por um grande número de homossexuais que pouco pareciam buscar anonimato. O mesmo ocorria em outros pontos da cidade, como a região central, onde diversos bares, boates e calçadas ficavam cheios de homossexuais de todas as cores e idades. A questão é que essas mesmas pessoas ainda não haviam sido cooptadas para a causa do “orgulho gay” e mais vale pensar esse processo como uma construção que se deu de forma diferenciada, entre os diversos estilos de homossexualidade, e tangenciada por diversas questões. Uma vez definida a nova concentração na Avenida Paulista, os organizadores – membros do Grupo Corsa, CAHEUSP e outro grupos - solicitaram ao poder público autorização prévia para o evento. Pelo menos naquele ano, não contaram com a boa vontade dos órgãos responsáveis, pois, no sábado que antecedia a Parada, uma nota no jornal informa sobre a negação, por parte da CET, ao pedido de ocupação do centro financeiro de São Paulo. Os organizadores diziam que a Parada aconteceria mesmo assim.
Parada gay sai mesmo sem permissão da CET. “ Mesmo sem autorização da CET, cinco grupos de homossexuais comandam amanhã caminhada na avenida Paulista, em comemoração ao Dia Internacional do Orgulho Gay. Segundo organizadores, o pedido de acompanhamento da parada foi feito com antecedência. A CET disse que não autoriza mais manifestações na Paulista. Num levantamento feito pelo grupo gay da Bahia em 2004 sobre a ocorrência de Paradas gays no Brasil, pode-se observar a ascensão desse tipo de política de visibilidade no país.” (Folha de São Paulo, Cotidiano, 27/06/97)
Para os leitores da Folha, não houve mais notícias sobre o acontecido no domingo em que a celebração do orgulho gay - 1ª Parada do Orgulho GLT (Gays, Lésbicas e Travestis) - se realizou na Avenida Paulista, contando com aproximadamente duas 2 mil pessoas, que seguiram em festiva passeata até a Praça da República. Ocultando as repercussões do evento, foi somente no ano seguinte que o “orgulho gay” voltou a ser abordado pela Folha de São Paulo. Mas agora, o tema parecia gozar de mais espaço por parte do jornal, que publicou um artigo de Maria Izabel da Silva, secretária de políticas públicas da CUT (Central Única dos Trabalhadores). O artigo informava os leitores sobre o que
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era o “orgulho gay”, por que era comemorado e qual a importância dessa data simbólica. O artigo assim era intitulado: “Sou homossexual e me orgulho disso”. As palavras de Maria Izabel da Silva remetem ao mito de Stonewall, mas não de jeito breve e divertido como fez Paulo Marcomini. Usa da seriedade das palavras para informar que “o dia 28 de junho foi adotado como Dia Internacional do Orgulho Gay e Lésbico em função da rebelião promovida por gays e travestis em Nova York no ano de 1969”. A situação atual da política homossexual era apontada como desdobramento da revolta gay americana:
“San Francisco, Paris e Londres são algumas das cidades que organizam paradas de orgulho gay em torno do 28 de junho. No Brasil, as primeiras iniciativas voltadas para um movimento homossexual surgiram no eixo Rio-São Paulo, na segunda metade da década de 70, com a fundação do jornal "Lampião da Esquina" e do grupo Somos. No início da década de 80, organizaram-se grupos por todo o país, que desempenharam importante papel na luta pelos direitos humanos e civis dos homossexuais. Na segunda metade da década, esses grupos foram fundamentais na proposição de respostas à sociedade civil sobre a epidemia da Aids, que atingia majoritariamente os gays”. 196
Nesse caminhar, a criação e difusão dos grupos de militância pelo país são lembradas, ressaltando inclusive a importância dessa movimentação repercutia nas respostas civis à AIDS. No que se refere ao orgulho gay paulistano, Maria Izabel da Silva lembrava que:
“As comemorações brasileiras do 28 de junho, no entanto, são recentes. Foram assumidas a partir de 1996, aqui em São Paulo. Em 1997, a 1ª Parada do Orgulho GLT (Gays, Lésbicas e Travestis) reuniu cerca de 2.000 pessoas, entre vários artistas e personalidades, que levantaram o tema "Estamos em Todos os Lugares e em Todas as Profissões". A 2ª Parada do Orgulho GLT percorre de novo o circuito avenida Paulista-praça Roosevelt este ano. A atividade começa às 14h, em frente ao prédio da Gazeta. A manifestação quer chamar a atenção para o fato de que nós _gays, lésbicas ou travestis_ somos sujeitos com direitos e exigimos da sociedade tratamento igual. Nossa opção sexual não nos faz diferentes dos demais cidadãos. Exatamente por isso, não podemos admitir nem a violência policial nem a homofobia que presenciamos freqüentemente em nossos bairros, cidades, Estados. Também não podemos admitir de forma alguma a discriminação nos locais de trabalho”.
Evidenciando a trajetória da parada do orgulho gay em São Paulo, deixa claro que o movimento já foi iniciado e o aponta como importante espaço de visibilidade para as diversas formas de exclusão a que estão submetidos os homossexuais brasileiros. No dia seguinte à publicação do referido artigo, Érika Palomino chamava, pedagogicamente, seus leitores a se fazerem presentes na Paulista: “Enquanto isso, acontece no domingo a segunda Gay Pride brasileira. Que no Brasil ganha o nome de Parada do Orgulho GLT, onde GLT se traduz por gays, lésbicas e travestis. No ano passado, ficou aquela coisa, lembra?, todo 196
Maria Izabel da Silva. “Sou homossexual e me orgulho disso”. Folha de São Paulo. Opinião. 25/06/1998.
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mundo ficou meio assim, mas depois decidiu ir, e o evento reuniu 2.000 pessoas. A concentração é às 14h, na avenida Paulista, 900, em frente à TV Gazeta. Vai até a Consolação e a praça da República. Diz que até a Rita Lee já confirmou.”197
Por volta de 14 h do domingo, a Paulista já se encontrava tomada por alguns trios elétricos e um grande número de gays e lésbicas (alguns fantasiados, outros não), travestis seminuas (outras não) e drag queens, desfilando seus coloridos e espalhafatosos modelitos. Por ali, via-se também muitos simpatizantes (ou não), divertindo-se com a festa. Nesse ano, em sua segunda edição, a Parada do Orgulho Gay contou com o apoio de grupos punks, anarquistas, da CUT e de alguns partidos políticos (PT e PSTU) e conseguiu levar às ruas, segundo os cálculos da Policia Militar, 3,5 mil pessoas. Durante o evento, a então deputada Marta Suplicy, autora do projeto de parceria civil registrada, estava presente, e os organizadores pediam em seus discursos a aprovação do projeto. Assim, a Parada seguiu em festa pela rua da Consolação em direção a Praça da República. No trajeto, vi que as calçadas estavam sempre tomadas por pessoas (gays, lésbicas ou não) que se faziam presentes o observavam a marcha que chegou na praça às 17:30 e, depois da manifestação dos organizadores, militantes e políticas de partidos de esquerda, as cantoras Laura Finnochiaro e Vange Leonel (ambas assumidamente lésbicas) comandaram o show. Ali se teve a notícia, divulgada pelos organizadores – diferentemente do que foi divulgado pela PM - de que a Parada tinha chegado a 6000 pessoas. A cidade do Rio de Janeiro também comemorou o seu dia do orgulho gay, nesse mesmo domingo e as vitórias das paradas realizadas na capital carioca e, principalmente em São Paulo, salientavam um contexto de mudanças em relação às representações de homossexualidade correntes dentro ou fora do grupo. Não eram mais, como dizia Benjamim Bee, no ano anterior, pessoas que primavam pelo anonimato, ciosas de violência e repressão. Se atraídos pela festa ou pela militância, não importava. Estavam nas ruas assumindo publicamente sua homossexualidade e diziam ufanar-se dela. 3,5 mil ou 6000 pessoas nas ruas, mostrando seu orgulho de ser homossexual, enchia de alegria os velhos e calejados militantes presentes. Uma vez consolidada numericamente, a Parada do Orgulho GLBT passou a ser um evento esperado por milhares de gays e lésbicas de São Paulo, dos interiores e mesmo de estados vizinhos como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Paraná. Assim, em 1999, foi criada 197
PALOMINO, Érika. “Clubber que é clubber se joga no fim-de-semana” in Folha de São Paulo. Note Ilustrada. 26/06/1998.
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em São Paulo a Associação da parada do Orgulho GLBT. Em entrevista, um de seus fundadores – nosso já conhecido Beto de Jesus – relembra um pouco de sua trajetória: “Em 1997 entrei para o grupo CORSA, depois de ter participado da 17a. Conferência da Associação Internacional de Gays e Lésbicas em 1995, no Rio de Janeiro. E, 1997 mesmo realizamos a primeira Parada, juntando os grupos de militância da cidade. Em 1999 criamos a Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo e em setembro de 99 fui eleito o presidente para os próximos dois anos. Em 2000 iniciamos a maior virada da história do Movimento Homossexual Brasileiro, com a IV Parada, que teve mais de 120.000 pessoas e desdobramos em 2001 com mais de 270.000 pessoas, chegando a 2002 com mais de meio milhão de pessoas. Fui presidente da Associação nos últimos 3 anos; sou membro do Comitê Assessor para HsH (Homens que fazem Sexo com Homens) da Coordenação Nacional de DST/Aids; sou membro do Fórum HsH do estado de São Paulo; sou Conselheiro do Orçamento Participativo da Prefeitura de São Paulo, representando o segmento da comunidade GLBT; acompanho junto ao Promotor Marcelo Milani o caso dos "skinheads" que mataram Edson Neris; sou consultor do Grupo CORSA no "Projeto Educando para a Diversidade", que capacita professores da rede municipal no tema orientação sexual / homossexualidade; sou membro da Equipe Executiva do Fórum GLBT da Cidade de São Paulo.”198
A associação da Parada do Orgulho GLBT contava com a experiência de militantes experientes e já envolvidos com a discussão pública a respeito da homossexualidade em São Paulo. Uma vez constituída uma associação, foi possível dimensionar as ações e os diálogos com o Estado e demais instituições, visando aumentar o número de participantes e estruturar melhor o evento. Estimavam agora a presença de 14 mil participantes. No dia da realização da esperada concentração, os leitores da revista da Folha daquele domingo (27 de junho de 1998) podiam ler o convite de André Fischer, conclamando as pessoas a se fazerem presentes no evento. Mais uma vez, o Fischer faz referência ao histórico dessa manifestação, remetendo à revolta de Stonewall: “A data é uma referência à histórica revolta de Stonewall do dia 28 de junho de 1969, quando um grupo de homossexuais no bar Stonewall Inn, cansados de ser humilhados pela polícia de Nova York, se rebelou contra os maus-tratos e provocou uma guinada no movimento gay.” Uma vez apresentado o “mito”, Fischer lembrava que; “Em São Paulo, este domingo também vai ser dia de festa. A concentração começa às 14h no edifício Gazeta na Paulista (metrô Brigadeiro). A Parada terá três trios elétricos, carros alegóricos, megabandeira do arco-íris, distribuição de kits e camisetas e termina na praça da República com show de artistas da noite paulistana a partir das 18h”. Nesse ano, também se esperava uma presença maior de lésbicas, já que era o ano em que o movimento de ativismo das lésbicas completava duas décadas. No mesmo dia Érika Palomino
198
Ver: http://www.cronicabear.com/edicoes/cb5.html
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reafirmava o convite de Fischer e falava um pouco sobre a Parada e sobre a programação. Segundo ela: “Estão prometidos sete carros alegóricos, das principais boates gays de São Paulo (Blue Space, Station/ Frenesi, Nostro 2000, Ponto G, Diesel & B.A.S.E, Mad Queen, So Go). Temas em debate junto à comunidade, como direitos humanos e violência; Aids; parceria civil registrada; e o levante de Stonewall (que originou a data das comemorações do "Gay Pride" nos EUA) serão lembrados em faixas e cartazes. Estará na parada também a bandeira do arco-íris, com 50 metros de comprimento, que será aberta assim que os participantes começarem a caminhada. A apresentadora drag Silvetty Montila (estrela dos shows de boates) vai comandar a parada com seus famosos gritos de guerra. Na praça da República, outra diva do underground paulistano, Claudia Wonder, apresentará as atrações, que incluem a dupla de tecno Tétine e outras drags, como a top Dimmy Kier.”
Palomino, além de informar sobre a festa, se referia também à dificuldades envolvidas com a sua realização:
“Apesar de a parada fazer parte do calendário oficial da cidade, os organizadores reclamam não ter recebido qualquer verba da prefeitura, o que, segundo Paulo Giacomini, conselheiro fiscal da parada, comprometeu a organização e a divulgação. "Não é como uma rave, por exemplo, em que as pessoas já conseguem as coisas e existe toda uma infraestrutura. Este ano, conseguimos CGC para a parada, mas ainda estamos no caminho da profissionalização." O evento todo custou R$ 25 mil. Em Nova York, a parada aglutina todos os segmentos do mundo gay e seus temas emocionam até quem não faz parte do movimento. O Brasil está ainda distante da articulação norte-americana _o levante de Stonewall, símbolo da luta de gays e lésbicas dos tempos modernos, completa agora 30 anos, mas vale a pena lembrar a fala do presidente Clinton ao decretar junho como o mês do orgulho gay e lésbico, no dia 11 passado: "Não podemos adquirir verdadeira tolerância simplesmente”
As reclamações dos membros da recém fundada Associação da Parada do Orgulho GLBT sobre a baixa captação de recursos pretendiam, pelo menos inicialmente, atingir, como em Nova York, “todos os segmentos do mundo gay”. Os altos custos para a realização de um megaevento e a falta de capital pareciam ser, naquele momento, a maior dificuldade enfrentada. Nesse ano, as expectativas foram superadas. O ambicionado número de 14 mil participantes foi dimensionado para 20 mil participantes, segundo o jornal Folha de São Paulo, amparado nos números da Polícia Militar.199 Ainda que tenha havido desinteligências entre os cálculos dos organizadores é os que foram divulgados pela imprensa, foi o triplo da contagem registrada no ano anterior. A realização da terceira Parada do Orgulho GLBT, que saiu da avenida Paulista por volta das 15h e chegou na praça da República às 18h, “foi animada por sete carros alegóricos, uma bandeira de 50 metros de comprimento com as cores do arco íris, símbolo
199
Folha de São Paulo. 28/06/1999. Comportamento
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do movimento gay em todo o mundo, e centenas de balões coloridos”.200 Era mais ou menos essa imagem que se via:
Estavam presentes no evento a então deputada federal Marta Suplicy (PT-SP), e o deputado estadual Paulo Teixeira (PT), dentre outros militantes de partidos de esquerda com menor visibilidade. A grande adesão da população ao evento ajudaria nas reivindicações futuras e colocaria definitivamente a Parada do Orgulho GLB entre os mais esperados eventos da cidade, pelo menos para os homossexuais de São Paulo e estados vizinhos. No ano seguinte, na sua IV edição, foram organizadas também outras atividades durante a semana que antecedia o domingo festivo.201 (Ver anexo I) Para além de um dia de manifestações, a Parada do Orgulho GLBT se transformou numa espécie de semana cultural que se expandiu por diversos pontos da cidade, e que abordava a temática da “diversidade” através de filmes, literatura, teatro, debates e exposições. Havia também discussões políticas, ocorridas durante a entrega do “Prêmio Diversidade”, além da diversão garantida para os homossexuais durante a realização da Parada. A população podia ter a cesso livre a quase todos os eventos. Em 2001, essa programação dinamiza o número de eventos, contando agora também com encontros acadêmicos relacionados com a discussão da diversidade sexual, simpósios e festas
200 201
Folha de São Paulo. 28/06/1999. Comportamento Essa programação foi divulgada no Jornal Folha de São Paulo no dia 20 de junho de 2000. (Ilustrada).
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noturnas em casas privadas, além do “Dia Gay no Hopi Hare”. Um dos maiores parques de diversões do país.202 (Ver anexo II) Nesse eventos, embora a questão mercadológica se afirme, ela não deve ocultar a projeção da homossexualidade para além das suas “fronteiras”. Uma etnografia do gay day, no Hopi Hare, realizada em 21 de junho de 2003, pode ajudar a mostrar do que se trata: Cheguei no Hopi Hare por volta do meio dia. É um local bem amplo e, logo na chegada, a moça do estacionamento alertava: “hoje é o dia gay, você se importa em ficar?”. Pelo que pude perceber, mesmo as pessoas que pareciam estar desavisadas sobre o que estava acontecendo, optavam por entrar com suas famílias. Logo na entrada, já se via um cenário bem peculiar ao mundo gay: rapazes sem camisa, alguns de shorts bem curtos, de lycra; drag quens montadas com muitos acessórios desfilavam em bandos, além de casais de rapazes e moças andando de mãos dadas e amontoando-se nas filas para os brinquedos. Desconheço como é a movimentação em outros dias, mas, nesse dia, o parque já estava totalmente tomado naquele horário. Meus amigos e eu nos dividimos e marcamos um encontro no restaurante, caso não conseguíssemos nos encontrar. Alguns queriam os brinquedos mais “perigosos” e outros os menos. As gírias do mundo gay eram ouvidos a todo momento e eram muito recorrentes os grupos de amigos usando camisas com dizeres como: “Cox” e nas costas “But not all over them”. Havia um grupo de “ursos”, andando juntos, alguns de mãos dadas, trajando uma camisa que fazia propagando de uma festa chamada “bear lounge”. Alguns acontecimentos evidenciavam a importância simbólica daquele dia para as pessoas que ali estavam. Um desses casos aconteceu quando um grupo composto por cico drag queens se preparava para entrar na “Torre Eifel”, um brinquedo em que as pessoas sentam presas a cadeiras e são suspensas por, acredito, quarenta metros para então despencar em queda livre. Enquanto elas tomavam seus lugares, o funcionário que auxiliava as pessoas para sua segurança as aconselhou a retirar suas perucas e demais acessórios, caso contrário, não poderiam seguir no brinquedo. Ora, tirar as perucas e os acessórios desconstruiria a imagem de drags; seriam apenas homens de vestidos. Elas de início se negaram e acabaram tendo que ceder sua vez. Porém, o grupo que aguardava por sua vez na fila se negou a ocupar o lugar delas, alegando que só entrariam depois delas. Diante disso, elas voltaram para o brinquedo sob os aplausos dos observadores e finalmente foram permitidas, com perucas e demais acessórios. A mensagem que parecia ficar dessa situação era: “hoje ninguém deve nos proibir de nada”. Tomadas de autoconfiança depois desse episódio, foram ainda em outros brinquedos e, ao sair, pousavam para as fotos, cientes e orgulhosas do seu “gay day”. Um casal que causou bastante comentário remetia diretamente a uma questão bastante dolorosa para a experiência dessas pessoas. Dois rapazes bem fortes, de aparência masculina e discreta. Um deles trazia no colo uma garotinha de um ou dois anos de idade enquanto que o outro segurava uma bolsa de bebê com fraudas e demais utilidades para a criança. Observei que em volta do casal, na fila, o assunto se dividia entre a beleza dos rapazes, a vontade de ter um filho, as dificuldades de fazê-lo ou a afirmação de que jamais o fariam. A verdade, é que, vendo aquele casal, ficava na cabeça das pessoas a idéia de que aquilo deveria ser possível, caso optassem por isso. 202
Ver: http://www1.folha.uol.com.br/folha/equilibrio/noticias/ult263u63.shtml
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Se em outros países, importantes marcas aliaram seus produtos ao público gay (bebidas alcoólicas, refrigerantes), a falta desse apoio parecia tornar mais lenta a incorporação mercadológica da homossexualidade no Brasil. Um reflexo disso é a falta de anunciantes de artigos que não são voltados exclusivamente para homossexuais. “A falta de anunciantes de peso sempre foi um impasse das revistas gays nacionais. (...) Uma das alegações que as empresas ‘convencionais’ dão para não anunciarem nessa mídia é o fato das revistas citadas exibirem cenas de nudez frontal.”203 Apesar dos argumentos alegados, os anúncios de produtos diversos nas revistas de nu feminino (Playboy) são vendidos a altas cifras. Mas a despeito desse receio, alguns anunciantes de produtos indiretamente ligados aos homossexuais como preservativos, operadoras de TV por via satélite (Direct TV) que possibilitam acesso aos programas gays de outros países, etc., além dos anúncios de saunas, boates, cinemões, ajudavam a manter as revistas em funcionamento. Quando se considera que o tipo de homossexualidade que vem, cada vez mais, ganhando espaço na sociedade, se refere principalmente a elementos da classe média das grandes cidades brasileiras, definem-se atitudes, comportamentos e estilos de vida imbuídos nessas representações. A “boa” homossexualidade, que trouxe visibilidade através da imagem de “consumidores privilegiados”, se não alcança da mesma forma todos os segmentos econômicos desse grupo, é disponibilizada no mercado através dos bens de consumo a eles associados pela publicidade. Assim, o consumo de muitos desses produtos estaria associado também à uma identidade “pretendida”. A expansão das Paradas do Orgulho Gay no Brasil, que tinha como referência principal a Parada do Orgulho GLBT realizada em São Paulo, atraiu a atenção de vários setores da sociedade. Dentre eles, alguns ligados ao comércio se aproximavam timidamente, impulsionados por estatísticas divulgadas em revistas lidas nacionalmente. Vejamos o quadro a baixo:
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Stevan Lekitsch, “O Poder do Dinheiro Gay”. Revista G Magazine, janeiro de 2001
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O quadro em rosa, quase chegando ao pink, dizendo que os gays estavam por cima (de salto alto) apareceu numa matéria da revista Isto É204 para salientar o poder de consumo dos homossexuais no Brasil. Da mesma forma, alertava que, apesar de ainda não haver números específicos sobre o valor movimentado pelos homossexuais brasileiros, haveria indícios de um aumento na demanda de produtos e serviços para esse segmento.
“ONGs ligadas ao mundo gay calculam que 10% da população fez uma opção sexual alternativa, algo em torno de 18 milhões de brasileiros. Dados da recém-criada Associação dos Empresários GLS do Brasil revelam que no ano passado só na cidade de São Paulo esse público gastou mais de R$ 150 milhões. Se o preconceito não fosse maior que a vontade de ganhar dinheiro, esses números seriam ainda mais altos. Nos Estados Unidos, a comunidade
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Imagem capturada em: Silva, Chico e Caruso, Marina. “Alegria, alegria: O calendário das paradas mostra que o orgulho gay cresce e com ele o mercado específico. Mas o preconceito ainda é grande”. In Revista Isto É, Comportamento, 20/06/2001.
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homossexual desembolsou US$ 47 bilhões em 2000. “Aqui, apesar de o orçamento total da Semana do Orgulho Gay de São Paulo ter ficado em R$ 320 mil, apenas R$ 200 mil foram arrecadados”. 205
No ano de 2001, por ocasião da V Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, que para sua preparação teria desembolsado 320 mil reais, 200 mil foram arrecadados de apenas 3empresas privadas (portal IG, energéticos Red Bull e companhia aérea South África), ainda que 200 outras tenham sido contatadas.206 O medo de aliar seu nome ao publico homossexual ainda parecia um grande entrave para a captação de recursos. Para não incorrer no risco de explicar os avanços da homossexualidade em São Paulo única e exclusivamente devido ao mercado, já mostrei anteriormente que transformações no interior da militância, as modificações no estilo de vida e a expansão urbana dos espaços de sociabilidade, além da visibilidade alcançada pela mídia já vinha se desenvolvendo desde a década de o final dos anos 80. Todavia, nesse momento, os homossexuais começam a serem representados na imprensa como valiosos consumidores, muitos deles oriundos das camadas médias e altas da população. Em 2001, essas certezas parecem ter se asseverado quando 200 mil pessoas ocuparam a Avenida Paulista. Embora a Parada se multiplicasse vertiginosamente a cada ano que passava, esses números pareciam ainda bastante contraditórios com a homofobia percebida no país já que: “Um levantamento da Associação da Parada do Orgulho GLBT, com base em notícias publicadas na imprensa, indicava que 130 homossexuais foram assassinados no Brasil no ano passado”.207 O evento ocorrido na Praça da República no dia 06 de fevereiro de 2001, em memória de Edson Neris, que contou com a presença de militantes de diversos grupos e partidos políticos, além de artistas da noite, jornalistas e escritores ligados de alguma forma aos homossexuais. Como se pôde perceber no ano seguinte, em 2002, mais empresas se aliaram à Parada, que contava também com mais apoio do poder público. Dessa vez, se montou uma infra-estrutura para receber um grande número de pessoas vindas dos mais diversos lugares do Brasil e do mundo. Além das atividades já conhecidas da semana da parada, o site do Mix Brasil divulgava
205
Silva, Chico e Caruso, Marina. “Alegria, alegria: O calendário das paradas mostra que o orgulho gay cresce e com ele o mercado específico. Mas o preconceito ainda é grande”. In Revista Isto É, Comportamento, 20/06/2001. 206 Silva, Chico e Caruso, Marina. “Alegria, alegria: O calendário das paradas mostra que o orgulho gay cresce e com ele o mercado específico. Mas o preconceito ainda é grande”. In Revista Isto É, Comportamento, 20/06/2001. 207 Folha de São Paulo. Cotidiano. 15/02/2001
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também a programação das casas noturnas, que estavam preparadas para receber a grande leva de homossexuais que aportaria na cidade.208 (Ver anexo III) A publicação dessas informações e mesmo os custos com entrada, divulgados pelas casas (cruising bars, bares, boates e festas excepcionais) parecem apostar nos consumidores de classe média e alta, turistas ou não. As opções também abrangiam vários “tipos”de homossexuais, com espaço para os modernos, ursos e barbies. No ano seguinte, em 2002, a programação da Parada Gay se dimensiona e, além das manifestações artísticas e intelectuais, deu lugar também à ocupação de ruas e espaços de sociabilidade pautados pela ética da heteronomatividade e, como observamos abaixo, a duração dos eventos conta agora com um período maior. No domingo, dia 02 de junho de 2002, a parada do Orgulho GLBT começou com um grande atraso, saindo da Avenida Paulista apenas às 16:20hs. Seria a edição do evento que tinha como tema a visibilidade para as lésbicas. Assim, ela foi aberta por um grupo de mulheres em motocicletas. “Uma tarde de céu infinitamente azul dá as boas-vindas à VI Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, domingo, 2 de junho. A tropa de soldados se organiza ao longo da Avenida Paulista onde casais de mulheres de mãos dadas chegam apressados. Curiosos,velhos, crianças, gays, e drag-queens começam a aparecer. A parada começa e termina com as mulheres. E nunca se viu tantas lésbicas numa parada gay.”209
Além das lésbicas, outros homossexuais que também não se sentiam socialmente visíveis tiveram espaço garantido. Esse foi o caso dos ursos, que, nos eventos organizados por ocasião das festividades do orgulho gay, tiveram presença marcante, como dá conta a matéria a baixo postada em um site voltado para a comunidade ursina do Brasil:
208 209
Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/pride/pride2002/festas.htm Ver: http://glsplanet.terra.com.br/pride/parsp2002.shtml
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“Mas a Parada não se restringiu a este aspecto e sim foi composta por uma série de eventos voltados para grupos diferenciados dentro da diversidade que impera no universo homossexual. A Parada conseguiu na totalidade agregar todos os subgrupos do universo gay que seguram juntos sob as bandeiras da conscientização, diversidade e da diversão. A presença de Bears na Parada foi notada, enaltecida e cultuada até por grupos gays não Ursos ou Bears.”
Assim, nesse ano, os sinais diacríticos que usados para evidenciar a diferença em relação aos outros “tipos” de homossexuais foi salientada em diferentes momentos ao longo da programação: Festa na Vieira, Encontro dos ursos na Nanquim, ursos na Sauna (Wild Thermas Club), Encontro Bear SP, Bears no Bailão, Bears no Hopi Hari, Bears Selvagens na Sauna, BearLounge, ursos na Blue Space, VI Parada de São Paulo e Evento de Encerramento:.210 Nessa edição do evento, em que a expectativa dos organizadores novamente foi superada em vez dos esperados 300 mil, foi falado em pelo menos 700 mil – a presença e afirmação dos ursos foi percebida tanto nos eventos culturais coletivos quanto naqueles realizados em espaços públicos. As festas privadas a esse subgrupo e seus apreciadores contavam com o apoio dos proprietários dos bares freqüentados por esse segmento e também pelo site de divulgação de eventos e informativos para essa comunidade. O movimento das Paradas, impulsionado pela de São Paulo, se expandiu de norte a sul do país, seguindo datas parecidas, o mesmo modelo de organização (trio-elétricos, bandeiras do arco-íris, shows, drags, gogo boys e a participação de militantes políticos), também foram divulgadas pela mídia e se tornaram assuntos de discussão entre a população. De acordo com o levantamento elaborado por Luis Mott (Ver anexo V), fica claro que na maioria das capitais brasileiras, os grupos de ativismo homossexual conseguiram levar pessoas para as ruas visando visibilidade pública para as questões relacionadas com a homossexualidade, masculina ou feminina. Elaborando um ranking das mais “visíveis”, Mott ressalta ainda as estimativas dos grupos organizadores no ano de 2004: 1. SP – 1.800.000 2. Rio – 600.000 3. Porto Alegre – 100.000 4. Manaus – 70.000 5. Fortaleza – 60.000 6. Salvador – 50.000 7. Belo Horizonte – 30.000 8. Belém – 25.000 9. Curitiba – 22.000 210
Ver: http://www.cronicabear.com/edicoes/cb3.html
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10. Goiânia – 11.000
O sucesso dos grupos na organização desses eventos foi reconhecido pela mídia e, não restava mais dúvidas de que essa política de visibilidade conseguiu se tornar a maior do mundo, através da extensa Parada do orgulho GLBT de São Paulo. Havia também colocado o país em segundo lugar em número de Estados da federação que apostam nesse tipo de militância. A maior parada gay do mundo (São Paulo), como sonharam ter um dia os militantes homossexuais, ajudou a criar um massivo movimento também ao longo do país
3 - SIGNIFICADOS DA PARADA GAY Para uma etnografia mais detalhada da festa, utilizo as anotações do meu diário de campo anotadas em 17 de junho de 2001, no domingo da V Parada do Orgulho GLBT:
A festa começou ainda em minha casa. Recebi um amigo do Rio de Janeiro e outro do interior (Ribeirão Preto), além dos demais que moram em São Paulo, mas que escolheram minha casa como Q.G., de onde sairíamos em direção à Av. Paulista, para a concentração em frente ao prédio da Gazeta. A movimentação em meu apartamento é intensa e por volta de uma da tarde, todos estão prontos para sair. A preocupação com o que vestir parece ser mais aparente do que em qualquer outro dia. É verdade que nem todas as pessoas que estavam ali viviam aquele momento de forma parecida. Para alguns era só mais um encontro festivo e para outros seria um dia de clamor por direitos, por felicidade. Não sei ainda qual das expectativas é de fato a mais válida, mas o importante é que todos foram. Vesti-me com um calça bem larga, que deixava à mostra a barra de minha cueca azul e branca. Minha camiseta era vermelha e eu usava ainda na orelha um argola grande e pouco discreta. Ainda em casa, enquanto nos preparávamos, um amigo fez um comentário interessante. Segundo ele, aquele dia era pra nós o dia do Círio. O comentário surgiu em virtude de sermos – ele e eu - de Belém do Pará, onde acontece a festa do Círio de Nazaré. Esta festa é uma cerimônia religiosa que leva pras ruas mais ou menos um milhão e meio de pessoas e é o momento de maior expressão de fé de minha cidade. O nervosismo e a ansiedade na espera pelo Círio estavam de alguma forma comparados ao que vivíamos naquele momento. Nossa fé era na visibilidade, que gritaria nossa existência. No caminho para o metrô, fez-se uma verdadeira festa. Fotos na frente do prédio em que não faltavam caras e bocas, comentários mordazes. Éramos um grupo relativamente grande e no caminho, ficava claro para as pessoas que olhavam atentas, para onde estávamos indo. A chegada ao metrô foi diferente de qualquer outro dia. Mais fotos e atitudes histriônicas por parte de alguns de nós. Era como se fosse aquele o momento de gritar, das mais diversas formas e em espaços públicos, brincadeiras que estavam restritas a espaços privados. Ali, outros homens e
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mulheres também se dirigiam pra av. Paulista, formando pequenos grupos. As demais pessoas olhavam curiosas e nunca saberei o que elas pensavam sobre tudo aquilo. Na chegada (estação Brigadeiro) havia um número muito grande de pessoas que esperavam por outras com as quais, provavelmente, haviam marcado encontrar. Mais risos e brincadeiras que, agora, não vinham apenas do nosso grupo. Na saída, já se podia perceber o clima festivo em que se encontrava aquela rua. Trajes nada convencionais, rapazes seguiam de mãos dadas, moças acompanhadas de suas namoradas e muitos grupos – homossexuais? – rumavam para a concentração. Era por volta de 14:30. Edições anteriores de revistas gays (Fetiche, G Magazine) eram distribuídas para as pessoas que se amontoavam para conseguir o seu exemplar. Também eram distribuídos flyers, pirulitos com as cores do arco-íris, camisinhas, informativos, leques de papel com propaganda (IG, Boates) espalhados ao longo da manifestação. Quanto mais nos aproximávamos, as músicas provenientes dos diversos carros de sons se confundiam. A presença de drag queens era massiva tanto em cima dos carros como na pista e todas sempre desfilando de um lado a outro, fazendo brincadeiras e sendo convidadas para compor fotografias. Não faltavam, também, os trajes como fardas, homens de saia, mulheres de gravata, sado-masoquistas e muitas outras manifestações peculiares ao universo da homossexualidade. Por volta das três da tarde, após o discurso de algumas personalidades (dentre as quais, a agora prefeita Marta Suplicy), a passeata começa seu trajeto. Eu estava muito empolgado e emocionado com tudo aquilo. Ao mesmo tempo que minha atenção era desviada para as pessoas que me atraíam, eu não perdia de vista o fato de que aquele era um momento muito importante para minha pesquisa e cada uma daquelas pessoas representava as transformações sociais que eu tanto perseguia. Optei por não usar meu caderno de anotações naquele dia e deixar que minha memória registrasse o que era ou não interessante naquele momento. Nativo, como tantos outros ali presentes, porém pesquisador também, certamente muita coisa permaneceria na minha memória. Como pesquisador, eu teria então um bom material e como nativo, teria um dia festivo e de emoções muito intensas. Segui, inicialmente, o carro em que cantavam Édson Cordeiro e Elza Soares. Elza havia, provavelmente, sido convidada muito em cima da hora e fazia um show na base do improviso. Vestida de forma tão exuberante quanto as drag queens, a cantora a todo momento falava da importância do respeito pela diversidade, aliás, palavra que orientava praticamente todas as falas dos manifestantes que iam ao microfone de algum carro. Nos carros, era freqüente a presença de gogo boys, principalmente no da boate SoGo, onde homens, extremamente fortes, ornados como anjos, dançavam sensualmente e atraíam a atenção do público. A música deste carro era marcada pelo techno e disco e concentrava em grande quantidade os fãs da casa. Nesse sentido, o mesmo acontecia com o carro da boate “A Lôca”, onde percebi a presença de algumas pessoas que eu já tinha visto em algumas das minhas idas a essa casa. A apresentadora oficial era Silvetty Montilla, a mais conhecida drag paulistana, que usava, como aconteceu no ano anterior, um vestido salientando as cores do arco íris. Essa era uma referência constante na parada: um enorme arco composto por bexigas com as cores do arco-íris, pequenas bandeiras vendidas durante a caminhada além de uma grande bandeira levada pelos participantes do evento. O arco-íris parece ser o mais nítido símbolo da globalização no que se refere à homossexualidade, já que é um símbolo do movimento homossexual dos países desenvolvidos e que se destaca em causas gays mesmo em países da periferia do capitalismo.
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Tomei muita cerveja, fumei mais do que o normal e dancei muito. Durante o percurso, muitas coisas chamavam minha atenção: Uma lésbica em uma cadeira de rodas que trazia, nas costas da cadeira a frase “Cá? Gay!”, um homossexual já bem idoso, vestido com uma camisa cor de rosa, de modelo bem convencional, um trenzinho das lésbicas, o carro das travestis, além da intensa presença de crianças e velhos. A caminhada seguiu até a praça da República, onde havia um palco em que os organizadores do evento e alguns artistas presentes se manifestaram. Ali, a impressão que eu tenho é que as pessoas paqueravam muito e dançavam muito também. Vários já estavam embriagados, pois haviam bebido durante todo o percurso. Passeando de um lado a outro por qualquer motivo, as pessoas se olhavam e se roçavam. Alguns já estavam dentro da praça aos beijos, outros também lá, procuravam por alguém. Por volta de nove da noite, se encerravam as atividades da V Parada do Orgulho GLBT em São Paulo. As motivações das pessoas que esperavam ansiosamente por aquele dia tinham a ver tanto com as causas militantes em relação a um evento que, através da política de visibilidade, pretendia tornar mais fácil a vida dos homossexuais na cidade – talvez por isso a analogia com o Círio – mas também era o momento em que uma gama de práticas culturais, até então restrita aos bares, boates e espaços privativos, poderiam ser vivenciadas publicamente. O mesmo valia para os casais de namorados que, naquele dia, trocavam carícias publicamente e caminhavam de mãos dadas pelas ruas. Além disso, a Parada era um momento privilegiado para ver pessoas, paquerar e flertar, já que o evento parecia uma grande boate ao ar livre em que as pessoas poderiam beber e dançar ao som de suas músicas preferidas. Durante a Parada, os públicos diversos de homossexuais ocupam a Avenida Paulista e, ali, “acidade cor de rosa” se faz presente através dos carros alegóricos das diversas boates (Loca, SoGo, Level). Em torno deles, se distribuíam os freqüentadores do Centro, dos Jardins ou os amantes da cena moderna, que traziam para a Parada do Orgulho GLBT os sinais de seu estilo de vida e de corpo (malhados, ursos, modernos). Fazer tudo isso para além do “gueto”, pelo menos naquele momento ritual, era tanto o que desejavam quanto o que os organizadores esperavam que os homossexuais fizessem. Em diversos pontos da cidade, mesmo para quem não pretendia ir à Parada, era possível perceber os homossexuais que para lá se conduziam utilizando ruas, ônibus e metrô. A vinda de um grande número de homossexuais para São Paulo, por ocasião das festividades da Parada acabou sendo bem vista também pelos empresários ligados ao turismo já que muitos ficavam hospedados em hotéis e o número de passagens compradas para esse mesmo período ajudavam a ganhar a simpatia dos empresários das empresas de transportes (aéreos e terrestres). Percebendo
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os lucros de uma concentração tão grande de pessoas, o portal IG espalhou, ao longo da Parada, diversos banners. Mas não eram apenas os grandes empresários que lucravam com o evento. Donos de bares, saunas e boates tinham a sua clientela multiplicada por ocasião da Parada, pois, como ela passou a sempre acompanhar o feriado de “Corpus Cristi”, muitos chegavam à cidade ainda na quinta feira e ficavam até o domingo. Os “de fora” também eram informados sobre a noite gay paulistana através dos diversos flyers e jornais, distribuídos durante o evento e podiam dançar ao som das músicas executadas nas pistas de alguma boate, que estavam representadas na Parada por seus trio-elétricos, gogo boys e drag queens. Ao longo da manifestação, sinais diacríticos são salientados, como que dando uma cara para a cultura gay. Assim, as velhas representações correntes de homossexualidade são ressignificadas e mulheres usavam gravatas, enquanto que alguns homens vestiam-se com trajes usualmente femininos. Homens de couro aludiam ao fetiche do sado-masoquismo e fitas do arcoíris amaradas na cabeça ou bandeirinhas flamejantes nas mãos funcionavam quase que como o cocar na cabeça de um índio que não mais o utiliza em seu cotidiano. Ali também, homossexuais de diferentes idades poderiam apropriar-se desses sinais diacríticos e afirmarem sua homossexualidade como o senhor mais velho, vestido com sua camisa rosa. Tanto como os demais, naquele momento queriam mostrar-se homossexuais. Orgulhava-se disso. Nos arredores da festa, uma leva de trabalhadores informais aproveitava o evento para vender bebidas variadas, além de cigarros, guloseimas e adereços como bandeirinhas, broches com símbolos do orgulho gay, além de outros acessórios. A Parada do Orgulho GLBT acabava mobilizando bem mais do que os gays e lésbicas da cidade. A drag queen Silvetty Montila, que se tornou a apresentadora oficial do evento, afirmouse como figura carismática e politizada - em algumas idas a boates quando da candidatura de Marta Suplicy à prefeitura de São Paulo, Silvetty Montila, em tom de brincadeira, pedia que as bichas votassem na candidata por que, dizia, ela defenderia os direitos de gays e lésbicas na cidade - que, em meio a brincadeiras escrachadas, falava também dos direitos homossexuais e protestava contra a homofobia. Vale lembrar que se trata de um homossexual negro que tem por profissão vestir-se com roupas femininas e animar boates gays do centro da cidade. Silvetty se afirmou paulatinamente como uma personalidade forte e marcante entre os homossexuais que viviam em São Paulo, ou por ali estavam para as festividades.
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Hoje, São Paulo possui a maior Parada Gay do mundo e o Brasil é um dos países que conta com o maior número de cidades que realizam esse tipo de manifestação. O tímido movimento passou a ser uma referência mundial, entrando na rota do turismo gay mundial e colocando São Paulo entre as cidades mais gays do mundo. A busca pelo pote de ouro no fim do arco-íris, metaforicamente, está se convertendo numa poderosa bandeira de luta na qual se efetivam críticas à homofobia, pleiteiam-se direitos sociais e se celebra a homossexualidade, nas suas mais diversas matizes. Durante suas edições, proporciona encontros entre homossexuais dos mais diversos lugares do país, reafirma redes de solidariedade (diversos amigos se hospedam na casa de outros), diversifica as discussões sobre o tema das mais diversas formas (filmes, peças de teatro, artes plásticas, música, debates) e para um público amplo. Intensifica a ocupação de lugares públicos (feira cultural no Largo do Arouche, gay day no Hopi Hare, desfile da Parada, premiação no Centro Cultural São Paulo), que, naqueles momentos, são apropriados para trocas de carícias, escrachos e paqueras entre pessoas do mesmo sexo. Na medida em que a Parada de São Paulo crescia em números, esse avanço se refletia nas telenovelas, nas publicações e nos informativos diários, onde a homossexualidade passou a ser discutida de forma cada vez mais positivada. A opinião pública, que convivia apenas com as arcaicas e risonhas imagens de homossexualidade, passou a conviver com outras representações acerca dos envolvimentos entre pessoas do mesmo sexo, que, em muitos casos, passaram de algozes a vítimas na percepção social. O caso de Édson Neris – muito em virtude da ação dos grupos ativistas – se tornou paradigmático na sensibilização social para com a homofobia de que são vítimas os homossexuais. Logo, um número cada vez maior de homens e mulheres, freqüentador desses eventos, passou a acreditar na necessidade de assumir essa faceta de suas vidas. Outros, principalmente aqueles que trabalham e vivem em ambientes totalmente heterossexistas, pelo menos, já sabem que isso é bem mais fácil hoje, do que há poucos anos atrás. Muitos deles aventuram-se pela numerosa parada, se diluindo em meio à multidão.
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CONCLUSÃO
Recentemente, um leitor carioca se mostrou insatisfeito com a ação pública de alguns homossexuais, exibidas nos meios de comunicação, e enviou uma carta para a revista Isto É, na qual declamava sua insatisfação: “Os homossexuais já estão abusando do direito de protestar contra a discriminação. Concordo que não sejam discriminados, pois são seres humanos e merecem respeito. Mas passeatas e “beijaços” em shoppings já é demais. Sem contar com o espaço que a mídia vem abrindo para eles, mostrando fotos e cenas homossexuais, como que fazendo propaganda do homossexualismo, que é mostrado como uma coisa natural e até bacana. Nossas crianças e jovens vêem jornais, revistas e televisão e, não demora muito, vão virar homossexuais porque “está na moda”. Tenho dois filhos pequenos, de um e quatro anos, e não quero vê-los serem “bombardeados” dessa forma sobre esse assunto. Antônio Mattos, Rio de Janeiro”. 211
Essas linhas, plenas de informações e indignações, revelam algumas das questões que procurei trazer à tona ao longo dessa tese: os protestos (a afirmação política), a visibilidade social e a presença na mídia escrita e televisionada. Mas, a despeito do tom de ofensa com as demonstrações públicas de homoerotismo, o autor da carta já havia sido enredado pelo assunto “homossexualidade”. Não apenas através dos episódios que aponta - e critica -, mas por coisas que vão além. De início, deixa perceber que os homossexuais já conquistaram o direito de protestar publicamente contra a discriminação (estão “abusando” disso) e, depois, esclarece os mesmos devem ser respeitados porque são “seres humanos”. Para nós, pouco importa se esse leitor acredita nisso ou não, mas que aprendeu que, politicamente, não é simpático agredir verbalmente homossexuais diante de um público amplo já que, como bem lembrou, os indivíduos de que fala parecem ter caído nas graças da mídia. Por fim, Antonio Matos teme por suas crianças e jovens, potenciais consumidores dessas imagens positivadas de homossexualidade; preocupava-se com a influência que isso poderia ter na orientação sexual de seus entes. A homossexualidade poderia ser aprendida.
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Ver: http://www.terra.com.br/istoe/1768/1768cartas.htm
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Ao longo da tese, procurei abordar as transformações por que passou a homossexualidade nas duas últimas décadas e, por conseguinte, questões relacionadas à identidade homossexual. No decorrer desse período, ela se pulveriza e diversos grupos internos se afirmam e reclamam visibilidade. Partindo do velho Centro, que por muito foi o espaço de visibilidade por excelência dos homossexuais paulistanos (bichas, frescos, viados, gays, entendidos), a cidade foi amplamente apropriada pelos homens que buscavam interlocuções homoeróticas nas décadas de 80 e 90 e seus trajetos salientavam estilos de vida diferenciados no interior do grupo. Logo, as velhas representações sobre homossexualidade, passaram a evidenciar novas “fronteiras” entre um tipo e outro de homossexualidade. Essas demarcações, ainda que porosas, se afirmavam por elementos diversos tais como músicas, moda, tipos de corpos, sites de Internet e modalidades sexuais. Assim, surgem os “freqüentadores do centro”, “dos jardins”, e os modernos, malhados (sarados, barbies) e ursos, que liam, assistiam e consumiam, de diversas formas, significados múltiplos a respeito da homossexualidade. Dessa forma, diferentes homossexualidades se produziram e ganharam a cena nesses anos, evidenciando sensíveis deslocamentos identitários. Questões relacionadas à classe social, estilo de vida e performances sexuais e corporais passam a informar classificações identitárias que dialogam diretamente com modelos de homossexualidade oriundos de outros países. Na medida em que se pensa a produção dos corpos de forma performativa – afinal, a percepção social desses corpos deve muito a seus sinais diacríticos – afasta-se do risco de naturalizá-los. Se tais classificações organizam, de certa forma, o consumo urbano de produtos simbólicos (noite, drogas, moda, sexo), há de se perceber que as fronteiras entre esses grupos são porosas, e não raro podemos encontrar barbies e ursos em locais ocupados pelos modernos (isso vale para outros cruzamentos entre esses elementos), impondo ou modificando a etiqueta peculiar a cada um desses subgrupos. Isso é possível porque, no cotidiano, os homossexuais foram sendo, mais do que nunca, informados sobre os significados de ser uma barbie, um moderno ou um urso. Parafraseando Geertz, eu diria que isso acontece porque a cultura é pública; que os significados que produzem socialmente essa categoria estão presentes na tessitura de um repertório no qual as pessoas se baseiam para pensar a si e aos outros. Ainda que a homossexualidade paulistana tenha seguido os paços de outros países na produção de sua visibilidade - forjando subcategorias como ursos, barbies, modernos,
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freqüentadores do Centro ou dos Jardins e quaquás - as pessoas encontraram, performaticamente, formas de fazer usos políticos de tais categorias, trafegando de um a outro, dependendo do lugar e do momento. Não se deve crer, portanto, que as separações entre os subgrupos de homossexuais, observáveis tanto no mundo real quanto virtual, funcionam perfeitamente. Tais divisões convivem com uma diversidade afirmada pela experiência. Ao longo de toda pesquisa, pude perceber a porosidade que trai a existência dos tipos ideais, a partir da qual as demarcações urbanas, os espaços de sociabilidade e as práticas sociais se interpenetram. Assim, freqüentadores do centro podem ser vistos também esporadicamente nas baladas modernas, e vice-versa; ursos, barbies e modernos podem manter interlocuções sexuais e sociais com elementos de dentro e de fora do seu grupo e que indivíduos considerados quaquás em alguns contextos, também podem possam vir a ser pensados sobre outra ótica num contexto diferente. Em outras palavras, se as classificações forjadas para estabelecer fronteiras são perceptíveis (socialmente e virtualmente), a dinâmica social as mostra como campos de disputas por espaços e representações nos quais as pessoas aprenderam a se movimentar de forma política. Não há dúvida também de que com o aumento do consumo (real e simbólico) proporcionado tanto pelos avanços tecnológicos (Internet) quanto pelos político-sociais, é maior a certeza de que os homossexuais são um grupo específico dentro da (globalizada) sociedade. Todavia, não é bom esquecer que, tratando-se de experiências sociais, há de se considerar todas as questões culturais que perpassam esse consumo. Para além de apenas afirmar uma identidade (gay) globalizada, ele também instaura, e é também atingido, por diferentes concepções de (homo) sexualidade. Adjetivam, mais do que nunca, o substantivo gay a ponto de certos grupos internos estabelecerem mais contato com as características sociais do “grupo oposto” (heterossexuais) e a orientação sexual deixa de ser a principal orientadora de suas práticas de suas sociabilidade. Esse me parece ser o caso dos modernos. Performatizando os modelos corporais e os estilos de vida dos gays de classe média e alta, os freqüentadores da Vieira de Carvalho, - que estão fora do “tipo ideal” de gay produzido pela mídia, por exemplo - se apropriam desse mercado e consomem apenas alguns produtos. Isso sugere que o consumo não está de fora dos recortes sociais; ele os salienta e os reafirma de formas múltiplas.
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O contato com outras experiências de homossexualidade, divulgadas pela mídia, também ajudam a configurar o mercado do turismo. Os visitantes homossexuais, ao chegarem em São Paulo, encontram uma estrutura bem montada, com diversos bares, boates, saunas, cinemas pornográficos, restaurantes e outros espaços de concentração homossexual mais ou menos semelhantes àquelas a que estão acostumados em seus países de origem. Para outros, São Paulo é o local onde vão experimentar essas inovações e diversificações e entrar em contato com os ecos de uma cultura gay universalizada. Assim, ser homossexual em São Paulo nos últimos 20 anos significa principalmente ser conhecedor de uma multiplicada cadeia de classificações, suas etiquetas e das maneiras como as pessoas se relacionam com elas, independentemente de sua geração, raça, classe social, tipo de corpo ou religião. Através de uma visibilidade crescente e da dinamização das representações sociais da homossexualidade, as pessoas foram se posicionando dentro da trama e produzindo suas experiências a partir desse posicionamento. Ainda que, em momentos rituais (Parada Gay, Beijaços), ser homossexual pareça muito mais válido e traga mais ganho, a identidade que assumem tem mais a ver com o lugar e o momento em que ela é evocada. Os homossexuais paulistanos, de posse dessas múltiplas informações identitárias, elaboram ou se aproximam dessas classificações em determinados momentos. Para que seja possível, aqui, falar em uma identidade – já que as paradas do orgulho gay são reivindicações reais, de sujeitos reais -, deve-se pensá-la como fluida, performática e fragmentada. Os pontos convergentes, aqueles que ainda se baseiam numa política de identidade, se refletem nas lutas por direitos sociais, nas batalhas contra a homofobia e a negação de imagens deturpadas e estereotipadas de homossexualidade. Nesses momentos, são todos homossexuais; são um grupo. Porém, em seu cotidiano, experimentam essa mesma homossexualidade de formas diversas. Além de fragmentada a identidade homossexual tornou-se maleável, capaz de ser reivindicada de forma política como quando um índio usa um cocar no Congresso Nacional, mas não mais em sua tribo - supondo que ainda haja uma “tribo”. Agora, já no final da tese, me vem à lembrança um trecho da música usada como hino da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo em 1999, e epigrafe do último capítulo. Na voz de Laura Finochiaro, a estrofe de “Pavão Misterioso”, composta por Edinardo, reclamava: “Ah, se eu tivesse assim, tantos céus assim; muita história eu tinha pra contar”. Parece-me que agora, essa
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história está sendo e, inevitavelmente, continuará a ser contada. A mudança, como diria John D’Emilio, é irreversível.
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los
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países,
cuatro
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na
Bahia:
ao
amor
que
não
ousava
dizer
seu
nome”.
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241
ANEXO I
Programação da Semana da Parada do Orgulho GLBT de 2000
Segunda-feira, 20 de junho 19h - Entrega do Prêmio Cidadania, com presença de Clóvis Bornay, Elke Maravilha, Marta Suplicy e André Boulerice (deputado de Quebec, Canadá), entre outros - salão nobre da Câmara Municipal de SP 21h - Estréia da peça "As Sereias da Rive Gauche", de Vange Leonel (até dia 25) - Centro Cultural São Paulo - R$ 12 Tercça-feira, 21 de junho 10h - Exposição "Viagens", fotos de C. Gama Jr. - Art Store 19h - Estréia da mostra "Os Devassos no Cinema", com os curtas "Profissão Travesti", de Olívio Tavares de Araújo, e "Batiman e Robin", de Ivo Branco - MIS 20h - Abertura das exposições fotográficas "Farpa", instalação e vídeo-poema de Wilton Garcia; e "Go Babydoll", megapainéis de Mariana Rocha e Roberto Stelzer - MIS 21h - Exibição do filme "Bahia de Todos os Santos", de Trigueirinho Neto – MIS Quarta-feira, 22 de junho 19h - Exibição do filme "Vera" - MIS 20h - Exposições: "Capas do Jornal 'Lampião'"; fotos de Paulo Roberto Ferreira ("Quase Todos os Homens de Paulete"); fotos de Alexandre Perroca sobre as paradas anteriores Futuro Infinito Lançamento do CD "Sobre a Paixão", de Regina Machado, e do livro "A Forma Estranha", de Wilton Garcia 20h - "Retrospectiva", mostra com obras de vários artistas - Allegro 21h - Exibição do filme "Anjos da Noite" – MIS Sexta-feira, 23 de junho 19h - Exibição do filme "Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora", de Djalma Limongi Batista (23 min, 1968) - MIS 19h30 - Debate "Devassos no Cinema", com André Fischer, João Silvério Trevisan e Djalma Limongi Batista - MIS 21h - Exibição do filme "O Beijo da Mulher Aranha" – MIS Sábado, 24 de junho 15h - Lançamento dos livros "O Que É Lesbianismo" e "Vila das Meninas" - Futuro Infinito 19h - Filme "Orgia, ou o Homem que Deu Cria", de João Silvério Trevisan - MIS 21h - Lançamento do livro "Devassos no Paraíso", de João Silvério Trevisan - MIS 21h - Exibição do filme "Toda Nudez Será Castigada"
242
Domingo, 25 de junho 14h - 4ª Parada GLBT - concentração na av. Paulista, 900 19h30 - Show com Edson Cordeiro - praça da República 21h - Exibição do filme "Romance", de Sérgio Bianchi - MIS
243
ANEXO II Programação cultural da Semana da Parada do Orgulho GLBT de 2000 08 de junho • Simpósio sobre DST/Aids Prevenção no Terceiro Milênio No auditório da Folha de S.Paulo (al. Barão de Limeira, 425, 9º andar, Santa Cecília), às 20h. 10 de junho • Orquestra Sinfônica de São Paulo tocando obras de compositores gays. Praça da Paz, no Parque do Ibirapuera (av. Pedro Álvares Cabral, s/nº., Ibirapuera), às 11h. 11 a 13 de junho • 3º Encontro de Pesquisadores Universitários "Cultura e Homoerotismo". Universidade Federal Fluminense, em Niterói. • Coquetel de Abertura da Semana Cultural, com exposição de fotos da Parada 2000 e lançamento dos livros de Vange Leonel, Franco Reinaudo e Pedro Almeida (11 de junho, às 20h). Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1000, Paraíso) 12 de junho • Entrega do Prêmio 'Cidadania em Respeito à Diversidade' (, às 20h). Salão Nobre da Câmara Municipal, Viaduto Jacareí, 100 - 8º andar, Centro, São Paulo 13 de junho • Exposição de Fotos de Dadá Cardoso (, às 20h). Livraria Futuro Infinito (al. Franca, 1567, Jardins) • Celebração Macro Ecumênica (13 de junho, às 20h). Auditório da Funarte (al. Nothmann 1058, Campos Elíseos) 13 e 14 de junho, • às 18h (entrada franca). Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1000, Paraíso) 14 de junho • Festa na Vieira de Carvalho, com música, shows e barracas de ONGs. R. Vieira de Carvalho, República, 14h às 22h • 15 de junho • Show com Vange Leonel, Laura Finochiaro e convidadas. Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1000, Paraíso), às 20h • Festa Oficial da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo às 23h30. Matrix (r. do Rocio, 116, Vila Olímpia) • 16 de junho, às 19h • Lançamento do novo livro de Stella Ferraz. Livraria Futuro Infinito (al. Franca, 1567, Jardins) • 16 de junho • Gay Day no Hopi Hare. Rodovia dos Bandeirantes, Km 72, Vinhedo • 17 de junho • 5ª Parada do Orgulho GLBT de São Paulo av. Paulista, altura do número 900 (em frente ao prédio da Gazeta) • Show de Encerramento com Edson Cordeiro e convidados. Praça da República.
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ANEXO III Programação da Semana da Parada do Orgulho GLBT de 2000
30/05 - quinta São Paulo X-Demente em São Paulo Fábio Monteiro agita a sua tradicional festa carioca com os djs Márcio Careca, Papagaio, Gustavo Tatá, Renato Lopes e Mau Mau no Club A1. Local:rua Funchal, 500 - Vila Olímpia Tel.:(11) 3845 9235 Preços: R$20,00 - antecipados nas lojas: FOCH - Al. Franca 1546 - Jardins FOCH - Rua Visc. De Pirajá, 365B - Ipanema - RJ/ DIESEL - Rua Oscar Freire, 1009 - Jardins - SP), R$25,00 (na hora com flyer) e R$30,00 (na hora sem flyer) 30/05 - quinta São Paulo Galera underground agitando a pista do Rabo de Saia. Dj.: Bispo e convidados. Loca: R. Mourato Coelho, 575 30/05 - quinta São Paulo Encontro dos Ursos no bar Nanquim Local: Rua Melo Alves, 344 - Jardins Horário: 23 hs. 31/05 - sexta São Paulo André Fischer e o site MiX Brasil fazem um descolado "chill in" no Tostex. Horário:a partir das 21h. Local:Rua Haddock Lobo, 949 - Jardins 31/05 - sexta São Paulo Ultralevel Ultralounge e Level Club juntas para animar a semana da parada gay.Djs: Oscar Bueno, Paulo Ciotti, Renato Cecin, Herbert Ton, Douglas, Renato Lopes, Luis Pareto e Flávio Brücken.Hostess: Kátia Miranda, Marcelona e Léia Bastos.After a apartir das 5h. Local:LEVEL CLUB Av. Marquês de São Vicente 319.
245
Barra Funda - Tel.: 3612-4151/ 3612-4144 Preços: -R$ 15 antecipado -R$ 20 com flyer -R$ 25 sem flyer 31/05 - sexta São Paulo A Lôca e a boate Puerto Livre trazem a festa TRADE. DJs Tom McMillan e Dudu Marques. Local: r. da Consolação, 2.414 31/05 - sexta São Paulo Festa Woof na Rabo de Saia Local: Rua Morato Coelho, 575 - Pinheiros 01/06 - sábado São Paulo Pride Party Dj’s Rodrigo Ventura, Hebert Tonn, HT e Lilico. Performances de Silvetty Montila, Thalia Bombinha, Fênix e GoGo Boys.Hostess:Dimmy Kieer e Happy Angel.Será aceito alimentos nãoperecíveis como parte do ingressoadquirido na bilheteria. Local:Rua Paulo Gontijo de Carvalho nº 500 Ingressos:Antecipado, nos postos de venda até dia 31/5 R$ 10. No local: - C/ Flyer + 2 Kg de alimentos não-perecíveis R$ 10 - C/ Flyer sem a doação de alimentos R$ 15 - S/ Flyer R$ 20 01/06 - sábado São Paulo Festa do Orgulho Gay na boate Tunnel. LocaL:Rua dos Ingleses, 355 - Bixiga 01/06 - sábado São Paulo Level Club GoGo Boys e Drag Queens animam a maior casa noturna gay de Sampa. Local: Av. Marquês de São Vicente, 319 Barra Funda 01/06 - sábado São Paulo GangBang na Parada Em comemoração ao Gay Pride o Blackout Club estará promovendo uma mega orgia.Horário:a partir das 19:00 H as 05:00 h.
246
Local:Clube BlackOut Video Bar Rua Amaral Gurgel, 253 Tel.: (11) 3333-2840 / 3361-9017 02/06 - domingo São Paulo Parada Gay 2002 com o tema "Educando para a Diversidade". Local:Av. Paulista - a partir das 14 horas
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ANEXO III Programação da Semana da Parada do Orgulho GLBT de 2002 29 de maio 19h30: debate "Os Prazeres da Sexualidade Lésbica" Onde: auditório da Folha de S.Paulo (al. Barão de Limeira, 425 – 9º andar) 19h30: Mostra de Cinema Homoerótica (filmes: "Funcking Amal - Amigas de Colégio" e "O Solteirão") Onde: Centro Cultural São Paulo - Sala Lima Barreto (av. Vergueiro, 1.000) 30 de maio 14h: Meia Maratona da Diversidade Onde: largo do Arouche (passa pelo elevado Costa e Silva e avenida São João) 14h às 22h: Festa na Vieira Onde: largo do Arouche com rua Vieira de Carvalho a partir das 17h: Exposição – Projeto PósModerme – Giancarlo Pazzanese (até 25 de junho) Onde: Livraria Futuro Infinito (al. Franca, 1.567) 19h30: Mostra de Cinema Homoerótica (filmes: "Funcking Amal - Amigas de Colégio" e "O Solteirão") Onde: Centro Cultural São Paulo - Sala Lima Barreto (av. Vergueiro, 1.000) 31 de maio 17h: Bate-papo Literário Onde: Livraria Futuro Infinito (al. Franca, 1.567) 19h30 às 20h: Show Comédia da Diversidade, com Laura Finocchiaro Onde: Centro Cultural São Paulo – Sala Adoniran Barbosa (r. Vergueiro, 1.000) 1º de junho 9h às 20h: 2º Gay Day Onde: Hopi Hare (rodovia dos Bandeirantes, Km 72) a partir das 13h: Encontro dos Ursos Onde: Brear Lounge (av. Paulista, 1.499 – loja 12 e 13) 2 de junho a partir das 14h: 6ª Parada do Orgulho GLBT de São Paulo Onde: av. Paulista, 900
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a partir das 19h: show de encerramento da 6ª Parada do Orgulho GLBT de São Paulo com "Frenéticas" Onde: praça da República até 9 de junho 1ª Mostra de Arte Lésbica com todos os sentidos Onde: Centro Cultural Evolução (r. Regente Feijó, 1.087 – Campinas) 6 de junho 13h à 0h: 1º Manifesto GLBT da Zona Leste Onde: Bar Berdaches (r. Mendes de Faria, 100 – Itaim Paulista) 5 de julho Balé da Cidade de São Paulo Onde: Teatro Municipal de São Paulo (praça Ramos, s/n)
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ANEXO V - Paradas Gays no Brasil CIDADE 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31.
OLINDA, PE CAXIAS DO SUL, RS SOROCABA, SP SALVADOR S.PAULO,LÉSBICAS JOÃO PESSOA,PB ITABUNA, BA SÃO PAULO, SP RECIFE, PE BRASÍLIA, DF CUIABÁ, MT BELÉM, PA NOVA IGUAÇU, RJ CURITIBA, PR ALFENAS, MG BLUMENAU, RS CARIACICA, ES RIO DE JANEIRO, RJ GOIÂNIA, GO FORTALEZA, CE CRATO, CE CAMPINAS, SP MADUREIRA, RJ UBERLÂNDIA, MG JUAZEIRO, CE TERESINA, PI PORTO VELHO, RO CAMPO GRANDE, MT PALMA, TO PORTO ALEGRE, RS MANAUS, AM
32. APARECIDA, GO 33.FEIRA DE SANTANA,BA 34. SANTA MARIA, RS 35. São Vicente, sp 36. PELOTAS 37. BELO HORIZONTE, MG 38. NATAL, RN 39. São Luiz 40. Camaçari, ba 41. S.JOSE R.PRETO 42. ARACAJU, SE 43. MONTES CLAROS, MG
DATA 24/1 16/5 6/6 12/6 12/6 13/6 13/6 19/6 20/6 20/6 20/6 19/6 26/6
NUMERO PARADA 3ª 1ª 1ª 3ª 2ª 3ª 1ª 8ª 3ª 7ª 2ª 2ª 4ª
28/6 28/6
4/7
4/7 4/7
3ª 3ª
28/6
11/7 11/7 11/7 11/7 11/7 18/7 25/7 25/7 18/7
AVALIAÇÃO PM/MIDIA
6 1 2 2 25 4 4
20-80.000 200 3.000 1.600 1.500.000
4
3.500
6.000-9.000 3.000-10.000
4 8ª 2ª 5ª 1ª 4ª 5ª 3ª 1ª 2ª 2ª 1ª 1ª 8ª
26/6 27/6 27/6
TRIOS/ SOM
7ª 1ª 3ª 4ª 3ª 1ª
16 8
2 3 2 2
1.000 centenas 400.000 3.000-4.000
4.000 2.000 6.000 6.000 1.000 500 500-600 20.000 10.000 70.000 1.000
3
2
1
AVALIAÇÃO DO GRUPO 1.000 1.000 20 CARROS 50.000 500 5.000 1.600 1.800.000 10.000 9.000 10.000 25.000 2.000 4.000-22.000
150 10.000 4.000-30.000 10.000 10.000 13.000 15.000
600.000 11.000 60.000 5.000 25.000 8.000 8.000 3.000 5.000 2.000 1.000 100.000 70.000 5.000 4.000-6.000 1.000 10.000 30.000-100.000 20.000 12.000 10.000 13.000 15.000
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