DE EDITOR E POETA TODO MUNDO TEM UM POUCO

October 4, 2017 | Autor: Leonardo Morais | Categoria: Poesía, Escritas Profissionais E Processos De Edição, Imaginario Cultural
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DE EDITOR E POETA TODO MUNDO TEM UM POUCO

Leonardo David de Morais


Resumo: Este ensaio tem por objetivo tecer algumas reflexões sobre possíveis relações entre duas instâncias a princípio distintas: a edição e a poesia. Segundo nossa hipótese, o ato editorial e o ato poético compartilhariam elementos em comum, como a "interpretação pessoal", à maneira romântica, e a "memória". Nesse sentido, busca-se também aventar, por meio do texto, uma possível associação de tais procedimentos a uma espécie de tradição arraigada ao nosso imaginário cultural.

Palavras-chave: Edição. Poesia. Imaginário cultural.


A poesia, a partir da invenção da escrita, teve sua presença cada vez mais notabilizada junto aos outros modos de expressão artística como a música e a pintura. Lembremos a Ilíada ou a Odisseia de Homero, que chegou aos nossos dias através de fragmentos orais compilados a mão em peles, couros ou suportes análogos. Ou ainda, o códice onde foram preservadas algumas das cantigas medievais portuguesas, uma das primeiras formas de poesia registrada no idioma luso. Percebe-se, a partir dessa perspectiva, uma importante relação advinda entre a arte e seu suporte, entre o artista e quem edita.

Sendo assim, entrevê-se, como traço característico do nosso imaginário cultural, algo como uma espécie de analogia entre o ato de edição do texto e o ato da criação poética. Nessas duas instâncias tão caras às nossas tradições estéticas, a edição e a poesia, alguns apontam como necessário tanto o conhecimento formal dos elementos da linguagem quanto uma sensibilidade artística para conseguir enxergar e propor outras visadas de cunho plástico a partir dessa mesma linguagem.

Nesse sentido de aproximações, de analogias entre operações aparentemente distintas, a editora e professora norte-americana Liz Danzico joga um pouco mais de luz por sobre essa nossa proposição: "A edição está para a mídia como uma performance está para uma composição: É um ato de interpretação, rica em oportunidades para a introspecção pessoal, julgamentos equivocados, ou brilho. Cada indivíduo é diferente, e cada um constrói experiências de maneira diferente" (DANZICO, 2010). O que se infere da fala de Danzico é que a edição, assim como uma performance artística, é gerada por meio de uma sensibilidade estética que, materializada no objeto artístico ou no modus operandi editorial, são geradores de sentido.

Para ilustrarmos nossa hipótese de que é possível entrevermos essa relação entre edição e poesia, vinculação que oscila entre o rigor da técnica e a supracitada sensibilidade estética, seria no mínimo incoerente não evocarmos a voz do poeta, uma vez que a voz do editor, através de Danzico, parece estar bem representada até o momento, principalmente ao longo do seu texto aqui citado. Para o poeta Ferreira Gullar, o "poema nasce do espanto, e o espanto decorre do incompreensível" (GULLAR, 2008). A aproximação entre as ideias presentes no texto de Danzico e de Gullar torna-se plausível quando a interpretação dos conceitos apresentados é direcionada sob uma perspectiva que se relaciona, conforme o até aqui sugerido, às manifestações de cunho estético, de natureza artística.

O "ato da edição", segundo Danzico, traz algumas características, apresenta determinadas peculiaridades que o aproximam muito, segundo entendemos, de alguns procedimentos de criação artística. Acreditamos ser possível, de alguma forma, associar o "ato da edição" à criação, por exemplo, do texto poético. Se, de acordo com o sugerido pelo poeta Ferreira Gullar, a poesia surge desse momento de "espanto" em relação à percepção das coisas no mundo, há no próprio ato de editar um movimento que proporciona que essa tal ação do "espantar-se" apresente-se manifesta.

Senão, vejamos. Danzico qualifica a edição como um "ato de interpretação", de "introspecção pessoal", de "julgamentos equivocados", de "brilho". Ora, todos esses atributos referentes à edição podem ser associados, em maior ou menor grau, à construção do texto poético ao longo da uma parte da tradição literária ocidental. Na estética romântica, por exemplo, tanto o "ato de interpretação", como o de "introspecção pessoal", ambos salientados no texto de Danzico, podem ser percebidos a partir do conceito de "subjetividade romântica", em que o autor, por meio do eu lírico, construía ao longo dos poemas uma visão particular, subjetiva do mundo.

Outro exemplo que reforça a tese de uma possível conexão entre as ações de "editar" e de "fazer poesia" afigura-se de maneira mais clara quando direcionamos o olhar para a expressão "julgamentos equivocados". Julgar algo equivocadamente, de acordo com a lógica, é estar incorrendo em erro. Impossível não mencionar, nesse sentido, o poeta modernista Oswald de Andrade, que em seu Manifesto da poesia Pau-Brasil, de 1924, defendeu a "contribuição milionária de todos os erros" (ANDRADE, 1970) para a construção de uma poética que pudesse apreender algo de uma essência cultural brasileira, que destoasse do rigor e da forma parnasianas predominantes até aquele momento.

Outro aspecto que podemos arrolar para reforçarmos a ideia de haver uma correspondência plausível entre poesia e edição refere-se ao manuseio e ao uso, ao suporte, à materialização para o consumo dessas manifestações editoriais ou poéticas enquanto produtos vinculados ao imaginário cultural. Mais uma vez, em ambas as manifestações, tanto a de cunho poético quanto a de natureza editorial, fica visível outro elemento comum que delimita e potencializa, técnica e esteticamente, as respectivas possibilidades de emissão e recepção advindas dessas operações: a memória.

Nesse sentido e ainda conforme as ideias de Liz Danzico, "ao mesmo tempo em que as novas plataformas do Facebook, Twitter e Tmblr transformaram consumidores em criadores, elas têm dado mais alternativas de gravação, de seleção e (como nós dolorosamente sabemos) de opções" (DANZICO, 2010). Para o poeta Waly Salomão, a "memória é uma ilha de edição". Mais uma vez um conceito cultural, a "memória", foi apropriado por dois fazeres a princípio diferentes um do outro, mas que podem se entrecruzar criando força plástica de acordo com o proposto até este ponto.

A relação entre o texto de Danzico e o verso de Salomão torna-se plausível quando levamos em conta os conceitos de "memória" e "edição" mencionados pelo poeta e pela editora. Segundo Danzico, o "ato de edição" passaria pela escolha, pela "edição" de determinados elementos para a construção de sentidos. Ora, tal processo de escolha, materializado por meio da "edição", apresenta estreita relação com a instância da "memória" enquanto recurso de construção lírica, conforme vaticinado por meio do poeta Waly.

Em redes sociais como as mencionadas pela autora, por exemplo, a construção de sentido muitas vezes parece surgir justamente a partir de uma espécie de "edição", por parte do usuário, do leitor, de um conjunto de informações e conhecimento armazenados numa espécie de "memória" virtual coletiva. Nesse contexto, podemos entender que a "memória", entendida não somente como espaço, mas também como práxis, como uma ação de rememorar algo, é por si só um modus operandi análogo à edição, no qual cada usuário, cada leitor, como se estivesse em sua própria "ilha de edição", pode escolher e compartilhar o conteúdo associado a sua própria experiência, a sua memória, a sua vivência, a sua subjetividade, da mesma maneira, ou análoga, a maneira da operação poética.

Conforme proposto a partir dos conceitos e dos exemplos apresentados, parece ficar um pouco menos pretensiosa a nossa tese de que, sim, há uma relação, ainda que de maneira tácita ou análoga, enfatizamos, entre o "ato da edição" e o "fazer poético". Em ambos os procedimentos subjaz uma maneira de apreensão da realidade que muitas vezes passa por uma reflexão, por uma reconstrução de certas experiências e vivências a partir não apenas do racionalismo cartesiano, mas pela experimentação estética e lúdica na produção e na recepção da linguagem. Em outras palavras, no contexto atual, parece ser exigido que o leitor seja, tanto na emissão quanto na recepção dessas manifestações culturais, um pouco editor, um pouco poeta.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Oswald. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às utopias. Obras completas Vol 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
DANZICO, Liz. The art of editing: the new old skills for a curated life. Disponível em: Acesso: 20 out. 2014.
GULLART, Ferreira. Poesia completa, teatro e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.






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