De homens e deuses

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Resenha de "Homens e deuses"
Por Eduardo A. Pohlmann e Willian Silveira
Uma das consequências danosas do ateísmo militante dos nossos tempos é a caricatura do Cristianismo com a qual ele impregnou o senso comum. Não tanto porque através desse expediente o Cristianismo perdeu parte de sua aura de respeitabilidade e autoridade, mas principalmente porque a imagem que nos foi transmitida tanto dos seus dogmas como dos seus fiéis é simplória e superficial.
Daí ser muito bem-vindo um filme como "Homens e deuses" (Des hommes et des dieux, França, 2010), que estreou no Brasil ano passado e, como sói acontecer com grandes filmes, passou praticamente despercebido. O filme conta a história real de um grupo de monges trapistas que vive no Mosteiro Cisterciense de Tibhrine, na Argélia, quando, em 1996, em plena Guerra Civil, são surpreendidos pelas ameaças de terroristas muçulmanos.
Não há porque se alongar em aspectos históricos do filme. Sua beleza e força estão em outros lugares, seja no seu conteúdo como na forma como aquele é transmitido. A direção é assinada por Xavier Beauvois, ator, diretor, roteirista e professor da renomada La Fémis. Autor de mais de trinta filmes desde Le matou, seu curta-metragem de estreia, em 1986; duas dezenas de indicações e doze premiações. As atividades e os números de Beauvois, francês nascido na pequena Auchel, em 1967, o credenciariam ao rótulo de homem do cinema. Sabe-se, porém, que embora correta, a carreira moldada apenas pelo comprometimento não basta para salvaguardar alguém do esquecimento. A prova disto é que, antes de "Homens e deuses" receber o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, poucos lembrariam sem esforço de N'oublie pas que tu vas mourir (Don't forget you're going to die, França, 1995), filme de Beauvois premiado pelo Festival na mesma categoria quinze anos antes.
À parte o tempo, o que separa ambos os filmes é a relação particular que mantêm com a linguagem cinematográfica. Nos anos 90, o jovem diretor titubeava frente à técnica. Aos poucos, aprimoraria o métier com a prática e pelo contato com pessoas do talento de Agnès Guillemot, um dos principais editores da Nouvelle Vague, em especial de Jean-Luc Godard.
Independente do meio, o domínio dos recursos técnicos e a maturidade da concepção da linguagem artística são características determinantes para a qualidade da obra. No caso do filme razoável, o pêndulo entre acertos e equívocos prejudica o julgamento ao dificultar o discernimento entre as decisões que pertencem ao realizador daquelas que cabem unicamente ao acaso. O filme excelente, por sua vez, prescinde de qualquer suspeita, pois a coincidência de sucessos aponta para um único responsável. Em "Homens e deuses", exemplo de excelência, o maior mérito do diretor reside em conseguir a comunhão primorosa do conteúdo com a forma. A forma cinematográfica não aparece na obra separada ou conjugada, servindo de complemento ou extensão do enredo, mas fundida organicamente de maneira a constituir a representação do conteúdo.
A corroborar a ideia de que Deus está no detalhe, a atenção para com a mise-en-scène destaca-se sobremaneira. A direção de atores concentra-se basicamente em dois princípios: na economia e no cuidado dos movimentos. Indiferente à importância da cena para o clímax narrativo, nenhuma passagem isolada sobressai à harmonia do conjunto. Da mesma maneira, o elenco experiente, composto por nomes como Lambert Wilson (Medos privados em lugares públicos, Alain Resnais, 2006), Michael Lonsdale (Munique, Steven Spielberg, 2005) e Olivier Rabourdin (Meia-Noite em Paris, Woody Allen, 2011), demonstra que o gestual minimalista, longe de diminuir a expressividade dos personagens, registra ainda mais intensamente e sem interferência as angústias das decisões e o regozijo da certeza oriunda da fé.
Igualmente, fazem parte da proposta estética do diretor as escolhas na composição dos quadros e a edição. Os louros da fotografia merecem ser divididos com a colega de La Fémis, parceira habitual e diretora de fotografia Caroline Champetier (Promised Land e Plus Tard). Nesse sentido, as sequências são sintomáticas, compostas predominantemente por planos gerais e abertos que evoluem com naturalidade para travelling horizontal. Não por acaso, as filmagens em Azrou, no Marrocos, deram preferência a ambientes com corredores e estradas a fim de explorar a profundidade e o movimento. Movimento este, aliás, que ganhará significado especial a partir do ritmo da editora Marie-Julie Maille. Pode-se destacar no trabalho de Maille o equilíbrio atingido a partir da regularidade do encadeamento das cenas. Aqui, também, a virtude celebra a simplicidade e a precisão. A ordem das sequências se compromete a dar unidade rítmica ao filme de maneira a emular a relação própria que a entrega religiosa, nas virtudes e no modo de vida, mantém com a passagem do tempo.
Há outros aspectos que merecem menção. O primeiro, a seriedade e o detalhamento com os quais a vida monástica é retratada. Vemos os monges nos seus afazeres diários, orações e atividades filantrópicas, e o grau de honestidade e realismo com que tais situações são exibidas é impressionante. No espectador não restam dúvidas: ali estão homens de profunda fé e convictos de sua missão.
O segundo aspecto que merece realce é a forma como a personalidade dos monges é lentamente desenvolvida ao longo da história. As suas motivações para adotarem este estilo de vida, o valor e a importância da sua fé, o tipo de pessoa que esta missão exige, as virtudes cristãs, tudo isso é apresentado com coerência e maestria. Estamos frente a personagens convincentes, que nos exibem da maneira mais profunda e honesta possível o que significa verdadeiramente ser cristão.
Por fim, a dimensão do dilema moral e espiritual a que são submetidos quando devem decidir se abandonam ou não o monastério frente às ameaças dos terroristas. Dos monges trapistas não era exigido o martírio. A bem da verdade, as atividades comunitárias e o envolvimento com o mundo exterior eram encaradas por eles como extrínsecas ao objetivo primordial de desenvolvimento espiritual. No entanto, o drama emergia exatamente da contrariedade dessa possibilidade com o propósito deles estarem ali prestando serviço àquela comunidade: como abandoná-los no momento em que eles mais precisam de ajuda? Num ato de coragem, fé e benevolência, eles decidem ficar e resistir à ameaça das armas.
O filme termina com uma evocação da piedade cristã que é ao mesmo tempo um chamado à tolerância religiosa, através da leitura do testamento de Fr. Christian de Chergé, líder do grupo e um dos sete monges sequestrados pelos terroristas em março de 1996. Fr. Christian era membro do grupo Ribat-es-Salaam, criado por cristãos com o objetivo de compreender melhor o Islamismo e estudar como ele poderia ajudá-los na sua própria vida e crescimento espirituais. O grupo se reunia com frequência no Mosteiro, inclusive doze dos seus membros estavam presentes na fatídica noite. Tal aproximação, no entanto, nunca envolveu a negação de qualquer dogma cristão ou um enfraquecimento de sua fé. Sua intenção era compreender de modo mais profundo o Islamismo e os valores religiosos que tem em comum com o Cristianismo. Tal exemplo de tolerância e abertura a outras religiões sem perdas de identidade e convicção no Cristianismo é mais um dentre tantos aspectos que fazem do exemplo desses monges e do filme que os retrata algo a ser admirado.





Bacharel em Direito e mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Tem formação em Letras e Filosofia. Crítico de cinema pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE).
École Nationale Supérieure des Métiers de l'Image et du Son

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