De Jesus para Paulo: um breve panorâma do debate acerca dos ecos de Jesus em Paulo e sua relação com as parábolas

May 27, 2017 | Autor: D. Vercelino da Hora | Categoria: Tradição Oral, Memoria, Jesus Histórico, Paulo de Tarso, Parábolas
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CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER S.T.M. EM ESTUDOS BÍBLICO-HERMENÊUTICOS NO NOVO TESTAMENTO

DE JESUS PARA PAULO: UM BREVE PANORÂMA DO DEBATE ACERCA DOS ECOS DE JESUS EM PAULO E SUA RELAÇÃO COM AS PARÁBOLAS Monografia apresentada ao Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper como parte dos requisitos da disciplina Metodologia do Trabalho Científico, ministrada pelo professor João Paulo Thomaz de Aquino, entregue como cumprimento parcial para obtenção do título de Sacrae Theologiae Magister em Estudos BíblicoHermenêuticos no Novo Testamento.

POR DIOGO VERCELINO DA HORA

São Paulo, 2015

RESUMO

Este trabalho busca verificar a caracterização das parábolas de Jesus como material da tradição oral sobre Jesus, conforme o debate que se iniciou no século 19. Para tanto, faz uma breve narrativa história não linear, identificando alguns extremos ao longo da história do debate, bem como tentativas de conciliar a tradição de Jesus com os escritos de Paulo, das quais tenta traçar critérios para os possíveis paralelos. Enfatiza-se abordagens mais recentes, a partir de artigos de James Dunn, Paul Achtemeier e Eric Wong, como forma de reconhecer os caminhos atuais do debate e firmar um novo paradigma baseado na oralidade para a análise da tradição de Jesus e suas repercussões. Por fim, se dispõe a aplicar os critérios e tendências encontrados à questão das parábolas, culminando em uma breve análise de um possível paralelo entre Paulo e as parábolas de Jesus em 1Tessalonicentes 5.2 e a metáfora do “ladrão na noite”. PALAVRAS-CHAVE: Parábolas de Jesus; Tradição de Jesus; Tradição oral; Paulo; Memória; Jesus histórico.

ABSTRACT

This work tries to verify the customization of Jesus’ parables as Jesus’ oral tradition material, according to the debate started in the nineteen century. Willing to accomplish that, it makes a short not-linear historical narrative, identifying some extremes through the history of the debate, as well initiatives to conciliate the Jesus’ tradition with Paul’s writing, trying to delineate some criteria for possible parallels. Also emphasizes some recent approaches, with articles written by James Dunn, Paul Achtemeier and Eric Wong to recognize the modern ways of the debate and establish a new paradigm based on the orality to analyses Jesus’ tradition and it`s repercussions. Finally, it proposes an application of the criteria and tendencies found to the parables question, resulting in a brief analyses of the possible parallel between Paul and Jesus’ parables in 1Thessalonians 5.2 and the metaphor of the “night’s thief”. KEYWORDS: Jesus’ parables; Jesus’ tradition; Oral tradition; Paul; Memory; Historical Jesus. 1

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 3 1.

2.

3.

ENTRE JESUS E PAULO: ABORDAGENS HISTÓRICAS DO DEBATE .......... 5 1.1.

Ênfase no Jesus Histórico .................................................................................. 5

1.2.

Ênfase na teologia paulina ................................................................................. 7

1.3.

Tentativas de conciliação ................................................................................... 8

ABORDAGENS RECENTES AO DEBATE ......................................................... 11 2.1.

Uma nova configuração padrão ....................................................................... 12

2.2.

Uma nova perspectiva literária ........................................................................ 16

2.3.

Sitz im Leben como fator determinante ............................................................ 19

PARÁBOLAS DE JESUS E SEUS ECOS EM PAULO ........................................ 23 3.1.

Parábolas como material da tradição oral sobre Jesus ..................................... 23

3.2.

Jesus, Paulo e o “ladrão na noite” .................................................................... 25

3.3.

Parábolas como tradições comunitárias ........................................................... 26

CONCLUSÃO ................................................................................................................ 28 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 30

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INTRODUÇÃO

O trabalho que se segue consiste no levantamento de abordagens a um dos debates centrais nos estudos do Novo Testamento: a interrelação entre Jesus, com sua tradição decorrente, e Paulo e seus escritos epistolares. Tal levantamento visa uma avaliação da categorização das parábolas de Jesus, de modo geral, como tradição oral sobre Jesus, segundo os princípios defendidos nas abordagens mais recentes ao debate em questão. Tal propósito se justifica a partir do pressuposto, constatado em pesquisas anteriores, de que as parábolas de Jesus eram ferramentas didáticas baseadas na memorização, a fim de permitir que princípios complexos fossem memorizados, mesmo que ainda não compreendidos, para serem resgatados no futuro e, quando possível, apreendidos. Em suma, entende-se que as parábolas foram usadas para serem, desde o princípio, tradição oral. Entretanto, apesar deste caráter mnemônico acentuado, as parábolas de Jesus não aparecem em mais nenhum outro escrito do Novo Testamento além dos Evangelhos Sinóticos. Por isso, este estudo visa encontrar ferramentas que permitam identificar e validar alguma presença das parábolas nos escritos de Paulo, como ponto inicial de uma pesquisa mais ampla. Para tanto, a pesquisa se limitou em maior parte a artigos científicos de épocas diferentes, a fim de captar o fluxo da discussão iniciada em meados do século 19 e que continua até a atualidade. Assim, o primeiro capítulo deste trabalho visa identificar nestes artigos alguns extremos deste debate ao longo de sua história, na tentativa de traçar uma narrativa não tão linear que seja suficiente para reconhecer os caminhos tomados ao longo do desenvolvimento deste tema. Neste esforço, ao aproximar-se da atualidade, busca-se identificar alguns dos critérios usados na tentativa de conciliar a tradição de Jesus com os escritos de Paulo. Essa busca acaba por ressaltar algumas abordagens especificas e mais recentes no capítulo. Sobretudo a partir do artigo de James Dunn (2003), Achtemeier (1990) e os dois artigos de Wong (2001 e 2002), desenvolve-se os argumentos para a importância de um novo paradigma baseado na oralidade, sua aplicação direta nos materiais textuais do Novo Testamento e a análise prática de alguns paralelos de Jesus em Romanos e 1Coríntios como exemplos da forma como Paulo se apropriava da tradição de Jesus no campo ético.

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Tal aprofundamento no trabalho desses três autores da virada do século 20 para o 21 ajudam a delinear algumas tendências que regem o desenvolvimento atual deste debate. Com essas tendências em mãos, somadas com os critérios que definem a tradição oral, fortalecidos ao longo dos anos de debate, dispõe-se a aplica-los ao caso das parábolas, tentando encontrar uma correspondência entre as formas deste recurso pedagógico de Jesus com os elementos de uma tradição oral sobre Jesus. Feito isso, busca-se testar tal perspectiva das parábolas como tradição oral em um paralelo possível entre Paulo e Jesus encontrado em 1Tessalonicenses 5.2, na metáfora do “ladrão na noite”. Com este trabalho, espera-se abrir caminho para uma pesquisa maior e análises mais profundas e específicas acerca da repercussão das parábolas, enquanto tradição oral sobre Jesus, nos escritos não somente de Paulo, mas de todos os demais escritos neotestamentários além dos Evangelhos Sinóticos.

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1. ENTRE JESUS E PAULO: ABORDAGENS HISTÓRICAS DO DEBATE

Os estudos do Novo Testamento na atualidade têm recebido uma renovação em relação a alguns temas centrais de suas áreas de concentração. Como aponta Stephen Patterson, os muitos livros recentes que apresentam Jesus como um radical e suas repercussões no movimento que surgiu a partir de Jesus, mostram que estamos de novo diante de uma síntese da questão da influência e repercussão da tradição de Jesus nos primeiros cristãos (PATTERSON, 1991, 29). Esse tema, apesar de trazer novas roupagens como as novas perspectivas sociais sobre o Jesus histórico e a nova perspectiva sobre Paulo, é a continuação de um longo debate que abrange desde aspectos literários do cristianismo, em termos da influência da tradição de Jesus em Paulo ou vice-versa, até aspectos históricos, considerando se o Cristianismo realmente foi fundado por Jesus ou é, na verdade, um “Paulinismo”. Tal debate encontra suas raízes mais fortes em meados do século 19, quando nasce e se difunde a ênfase no Jesus Histórico.

1.1.Ênfase no Jesus Histórico

F. C. Baur foi um dos pioneiros de uma nova fase nos estudos do NT, caracterizada pelo intenso interesse na vida de Jesus em termos humanos, que ficou conhecida como a busca pelo Jesus Histórico (PATTERSON, 1991, 24). Baur focou seus estudos históricos nos Evangelhos Sinóticos, defendendo que os ensinos de Jesus não eram tão importantes quando a pessoa e atividades de Jesus. Ele foi seguido de perto por William Wrede, que contrabalanceou o debate com uma perspectiva extrema a respeito de Paulo. Para Wrede, Paulo já acreditava em uma entidade celestial e divina antes de conhecer Jesus, de forma que depois de sua conversão, ele simplesmente teria colocado Jesus no lugar da divindade que ele já adorava (FIENSY, 2010, 82). Segundo a perspectiva de James Moffatt, um contemporâneo destes pioneiros no debate, Wrede teria exagerado na independência de Paulo em relação a Jesus ao defender que até mesmo as qualidades éticas que o apóstolo destaca em Jesus seriam deduções baseadas em uma teoria pré-cristã acerca do Messias e não decorrentes de impressões tidas a partir 5

da personalidade do Senhor (MOFFATT, 1908, 169). Tal perspectiva, ressalta Moffatt, tirava os ensinos éticos de Paulo da linha de desenvolvimento do Cristianismo que se inicia em Jesus. Diante de tão intenso criticismo, Moffatt também ressalta um outro estudioso que parece tentar amenizar estes extremos no debate: Julius Kaftan. Segundo Kaftan, Jesus e Paulo teriam muito mais em comum que uma leitura superficial dos Evangelhos e das Epístolas poderia sugerir. Para Paulo, a ressurreição de Jesus teria sido a revelação divina de Deus e do mundo que estava por vir, cuja segurança de perdão e amor redentor foi reproduzida pelo apóstolo por meio de uma dialética característica de seu treinamento farisaico (MOFFATT, 1908, 171). Em última instância, a pregação de Paulo seria fruto dessa interação entre o apóstolo e o Salvador. Entretanto, o desenvolvimento do debate ainda estaria longe de se tornar ameno em seus exageros. Wilhelm Heitmüller, por exemplo, ao estudar os sacramentos em 1903, entendeu que Paulo importou suas ideias sobre batismo e ceia das religiões pagãs de mistério (FIENSY, 2010, 82). Moffatt avalia que o criticismo intenso do fim do século 19 considerou que o Cristianismo sofreu uma transformação rica e estranha ao passar pela mente de Paulo, assimilando axiomas farisaicos e assumindo Jesus como um exemplo ao invés do objeto da fé cristã (MOFFATT, 1908, 169-170). O movimento que se iniciou pelo fascínio pelo Jesus histórico parecia encontrar certa frustração na sua ausência nos textos do principal intérprete do cristianismo primitivo. O próprio Albert Schweitzer, que narrou essa busca pelo Jesus histórico, lamenta com certa frustração que Paulo nunca apelou às palavras e mandamentos do Mestre, mesmo quando isso seria a coisa mais natural de se fazer (FIENSY, 2010, 82). Apesar de não sugerir que Paulo foi influenciado pelo helenismo, Schweitzer reforçou com seu comentário que esta distância entre o Salvador e seus seguidores se encontrava, de modo geral, em toda a igreja antiga. Jülicher entra em cena na perspectiva de Moffatt ao reforçar que a interpretação da morte e ressurreição de Jesus não poderia ser fruto da especulação ou intuição de Paulo, mas a reprodução, ao seu modo, da tradição corrente e original das igrejas (MOFFATT, 1908, 171-172). Ele destaca que é preciso reconhecer que Jesus e Paulo ocuparam diferentes situações na história. Paulo teria dito muitas coisas que seriam irrelevantes para Jesus, diferenças que aparecem claramente no campo da ética. Os conselhos éticos de Paulo seriam substancialmente harmônicos com os do Senhor, de forma que as ideias morais de Jesus não sofriam perdas na interpretação do apóstolo (MOFFATT, 1908, 172). O próprio Moffatt parece se alinha com Jülicher ao defender que tanto Paulo quanto a igreja 6

primitiva consideravam a morte de Jesus o Cristo como a base de sua nova fé (MOFFATT, 1908, 172). Entretanto, com a Europa sofrendo com crises constantes, o otimismo do século 19 foi amenizando e o debate esfriando até que sofreu seu golpe final com a Primeira Guerra Mundial. (PATTERSON, 1991, 24). Mas antes mesmo do curto século 20 entrar em cena, Moffatt, em 1908, já afirmava que: “A perspectiva de que Paulo ou o Paulinismo afetaram os evangelhos sinóticos já não é mais defendida por um grande número de críticos e os que ainda mantém tal posição, já não o fazem com tanta confiança como antigamente. Seu clamor foi abatido recentemente” (MOFFATT, 1908, 168).

Assim, durante o início do século 20, o debate acerca de Paulo e Jesus ficou adormecido. Diante do iminente fim do mundo, poderia ser dito que Jesus e Paulo estavam de acordo. Porém, a questão não estava resolvida. “O coração do problema”, resume Moffatt, “é se Paulo, ao apresentar Jesus como um objeto da fé cristã, era Paulinista ou Cristão”. Para ele, a questão se resumia à pergunta: “a experiência religiosa de Paulo teria sido resultado direto das impressões feitas por Jesus ou não?” (MOFFATT, 1908, 173)

1.2.Ênfase na teologia paulina

O debate volta à cena em meados do século 20, agora com uma nova abordagem e um novo extremo, desta vez tendendo para Paulo. Rudolf Bultmann e a escola de crítica da forma são os responsáveis por este retorno do debate entre Jesus e Paulo. Patterson (1991, 25) ressalta que enquanto a busca dos liberais enfatizou o que eram os ensinos morais autênticos de Jesus e deixou de lado a pregação cristológica de Paulo, Bultmann reverteu o quadro. Para Bultmann, o conhecimento histórico sobre Jesus não influenciava a decisão a que Jesus chamou com o emergir escatológico do reino de Deus. Para os críticos da forma, o conhecimento histórico de Jesus não era necessário ou auxiliador nesse ato de fé. Bultmann, por sua vez, não estava desconecto do acalorado debate no fim do século 19. Ele concorda com Heitmüller e defende que os ensinos do Jesus histórico não têm papel algum em Paulo (FIENSY, 2010, 83). Tal perspectiva parece recuperar força diante das novas ênfases em crítica da forma, sobretudo com a concretização do documento Q enquanto tema e objeto de estudo. John Kloppenborg, por exemplo, argumenta que o 7

documento Q originalmente compilou uma série de discursos sapienciais que serviriam para propósitos kerigmáticos e apontariam para a natureza radical do reino de Deus, como a camada mais antiga tradição em Q (PATTERSON, 1991, 28). Kloppenborg, à semelhança de Bultmann, se propôs a remover as camadas da tradição reunida em Q a fim de alcançar a camada original desta tradição. James Dunn (2003, 146) comenta que, apesar de lidar com questões recentes envolvendo a oralidade, tal perspectiva compartilhada por Kloppenborg com Bultmann reforça a noção da oralidade desenvolvida em um processo de edição e redação, semelhante a um documento escrito.

1.3.Tentativas de conciliação

Se houve extremos e exageros ao longo deste debate, houve também tentativas de conciliar os dois lados, Jesus em Paulo. Heirich Paret, por exemplo, em 1858 responde a Baur por meio da pesquisa de fatos sobre a vida de Jesus e alusões às suas palavras nas cartas de Paulo (FIENSY, 2010, 83). Essa reação aos extremos dos teólogos liberais alcançou seu auge, tornando-se um novo extremo, com Alfred Resch em 1904, que identificou mais de mil alusões de Paulo a Jesus. Com 261 alusões às palavras de Jesus em Romanos, 215 em 1Coríntios, 98 em 2Coríntios, 78 em Gálatas, 63 em 1Tessalonicenses, 58 em Filipenses e 10 em Filemom, contabilizou-se um total de 783 paralelos entre as epístolas não disputadas de Paulo e os Evangelhos Sinóticos. Acrescentando as epístolas disputadas de Paulo e os discursos paulinos em Atos, alcançou-se a marca de 1096 ecos das palavras de Jesus nas cartas paulinas. Incluindo Hebreus, alcançou-se a marca de 1261 alusões às palavras de Jesus no Novo Testamento (FIENSY, 2010, 83). A pesquisa de Resch, apesar de marcante para sua época, não teve boas repercussões. Mesmo os estudiosos que rejeitavam as perspectivas de Baur, Wrede e Heitmüller não consideraram a lista de Resch sustentável (FIENSY, 2010, 84). Outras iniciativas, como a Fowler, ao defender a partir do pressuposto que a fonte Q era um indicativo das ideias que foram enfatizadas na pregação e instrução dos convertidos na igreja de Jerusalém, que os ensinos de Paulo e da igreja de Jerusalém estavam se movendo teologicamente em sentidos diferentes ao invés de universos hostis de discurso (FOWLER, 1924, 12-13), mostrou uma tentativa de seguir com o debate por outras vias. Apesar da má recepção à 8

pesquisa de Resch, a busca por encontrar as alusões de Paulo a Jesus se fortaleceu entre outros estudiosos da época. W.D. Davies, em sua publicação de 1948, encontrou 31 alusões às palavras de Jesus nas cartas paulinas, mesmo rejeitando a vasta maioria dos paralelos de Resch (FIENSY, 2010, 84). Atualmente, destaca Fiensy (2010, 85), dificilmente algum estudioso toma posturas extremistas como Wrede e Resch. Para ele, o debate divide-se, de modo geral, em dois campos: os otimistas e os minimalistas. Fiensy assume que Paulo tinha acesso a uma coleção das tradições de Jesus que poderia citar, o que significa que ele trabalhou a partir de uma fonte das palavras de Jesus e, portanto, estava intencionalmente incorporando ensinos de Jesus em suas cartas (FIENSY, 2010, 87). Com este pensamento, Fiensy faz sua própria lista, com 39 citações e alusões de Paulo a Jesus, o que, como ele mesmo destaca, o coloca no meio termo entre os extremos do debate (FIENSY, 2010, 91). Para confeccionar sua lista de alusões paulinas, Fiensy usou quatro critérios para selecionar seus paralelos (FIENSY, 2010, 92): o primeiro é quando há ao menos duas palavras gregas idênticas entre o texto paulino e os Evangelhos sinótico, assume-se que Paulo está aludindo às palavras de Jesus. O segundo, quando há uma palavra aramaica idêntica usada do mesmo modo único que Jesus, cujo único caso seria da palavra “abba”. O terceiro é quando há uma sequência de ideias similares ou de palavras gregas similares nos Evangelhos Sinóticos, indicando que Paulo está ecoando as palavras de Jesus. O quarto critério consiste na presença de um conceito incomum, mas central de Jesus é encontrado também em Paulo índia que Paulo está relacionando-se à tradição de Jesus. Fiensy conclui com sua lista que a maioria das alusões e citações está em Romanos (13 alusões) e em 1Coríntios (12 alusões). Apesar dos esforços de listar e sistematizar os paralelos entre Paulo e Jesus, Patterson aponta que encontrar os paralelos entre Paulo e a tradição de Jesus não resolverá o problema do relacionamento entre eles (PATTERSON, 1991, 41). Tal consciência parece estar em harmonia com o trabalho de Gerd Theissen e Annette Merz, que propõem explicações ao silêncio relativo de Paulo às palavras de Jesus por meio de três aspectos: pessoal; teológico; e a junção da crítica da forma com aspectos histórico-sociais. Eric Wong expande esses aspectos para quatro ao separar a crítica da forma dos aspectos histórico-sociais (WONG, 2001, 261). Wong também divide os paralelos entre Paulo e Jesus em intertextualidades intencionais e não-intencionais (WONG, 2001, 245).

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Um aspecto social encontraria razão para o silêncio em 2Coríntios 5.16. Durante a defesa ao seu apostolado contra falsos apóstolos que devem ter conhecido Jesus, Paulo estabelece um princípio que se antes conhecemos Cristo segundo a carne, já agora não o conhecemos deste modo. O aspecto teológico encontra outra explicação no fato do judaísmo monoteísta não permitir a adoração a um homem, mesmo se lhe fosse dada dignidade divina às suas palavras e ações. Portanto, os ensinos de Paulo enfatizam a cruz e a ressurreição, destacando que Deus exaltou o Cristo crucificado por meio de suas ações. Já a crítica da forma aponta que o gênero epistolar no início do cristianismo não costumava citar a tradição de Jesus. Sequer as epístolas de João, que pressupõe o Evangelho de João, citam o quarto evangelho. Por fim, os aspectos histórico-sociais levam em conta que a tradição itinerante e carismática não se adequa à vida das comunidades cristãs assentadas em um Sitz im Leben muito diferente. (WONG, 2001, 262-263) Apesar das tentativas de listagem e explicação, o único grupo de passagens do Novo Testamento em que Paulo se refere às palavras do Senhor se reduz a seis: 1Coríntios 7.1011, 25; 9.14; 11.23-26; 14.37; e 1Tessalonicenses 4.15-17. Dentre as seis, três são confirmadas como tendo paralelos nos Sinóticos: 1Coríntios 7.10-11 com paralelo em Marcos 10.11-12 em questões de divórcio; 1Coríntios 9.14 com paralelo em Lc 10.7 em questões apostólicas; e 1Coríntios 11.23-26 com paralelo em Mc 14.22-25 na instituição da ceia. 1Tessalonicenses 4.15-17, que aborda um cenário escatológico, seria, segundo Wong, completamente diferente da tradição Sinótica dos ensinos de Jesus (WONG, 2001, 245-246).

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2. ABORDAGENS RECENTES AO DEBATE

Com quase um século e meio de debate, é curioso observar como tal tema central nos estudos do Novo Testamento está experimentando um renascer. Como Patterson destaca, a nova ênfase no debate foca no “movimento de Jesus”, refletido especialmente nas tradições mais antigas das palavras de Jesus (PATTERSON, 1991, 26). Essa ênfase busca, sobretudo, encontrar alguma continuidade entre Jesus e os primeiros estágios de seu movimento após sua morte. Nesta perspectiva, Jesus assume posturas sociais radicais. Diferente dos primeiros estágios do debate, a questão atual parece ter firmado alguns pontos em relação à posição de Paulo e da tradição de Jesus. Considerando os relatos bíblicos sobre a vida de Paulo, Fiensy (2010, 85-86) ressalta que “ao menos é plausível considerar que Paulo teria perguntado a Pedro, Barnabé, Tiago e João acerca dos eventos e ensinos do Jesus histórico”, uma vez que Paulo dá sinais de que conhecia e que repassou informações acerca do Jesus histórico, como suas palavras e história (1Co 11.2, 23; 15.3; 2Co 3.6; 1Ts 4.1, 2; 2Ts 2.15; 3.6; Cl 2.6). “Se Paulo foi o recipiente de partes da tradição da igreja primitiva”, complementa Fiensy, “certamente havia entre elas algumas palavras de Jesus” (FIENSY, 2010, 85). Tal noção dos conhecimentos básicos de Paulo se mostra senso comum, como Fiensy reforça: “Como muitos já observaram, Paulo conhecia ao menos que Jesus nasceu como um judeu da linhagem de Davi; que ele tinha ao menos dois irmãos, um dos quais se chamava Tiago; que ele teve doze discípulos e mais tarde foi traído; que ele foi crucificado; e que ele foi visto vivo após isso. É razoável concluir que Paulo foi ensinado sobre esses eventos, mas não, ou quase nada, sobre os ensinos?” (FIENSY, 2010, 86)

Patterson (1991, 30) embasa tal posição de Fiensy ao entender que seria inconcebível dizer que Paulo entrou no movimento de Jesus sem contato algum com a tradição preservada e usada pelos primeiros cristãos. Ao defender tal tese, o próprio Patterson reconhece que se coloca em oposição a autores como Theissen. E esse conhecimento básico de extrapolaria até mesmo a porção de tradição de Jesus que foi relatada nos Evangelhos Sinóticos, como 1Tesslonicenses 4.15-17 mostra, quando Paulo se refere a uma tradição que não aparece nos Sinóticos. Fiensy traz para seu lado a forte figura de James Dunn, o qual defende um conhecimento maior da vida e ensinos de Jesus por Paulo do que ele apresenta em suas cartas (FIENSY, 2010, 84). De acordo com Dunn, ressalta Fiensy, a existência de evangelhos canônicos 11

mostra que os primeiros cristãos, incluindo Paulo, tinham grande interesse no Jesus histórico (FIENSY, 2010, 85). Esse grande interesse reflete-se na nova atenção que tem sido dada ao documento Q agora enxergue por outras óticas, como Hollander (2000, 350) resume: “A composição do documento Q é um fato importante na história da tradição oral e transmissão escrita da igreja primitiva. Isso nos ajuda a perceber que os dizeres de Jesus foram transmitidos em um estágio primário na história do Cristianismo antigo. (...) A composição de Q não é uma coletânea aleatória de dizeres, mas uma coleção de ditos sapienciais, incluindo também dizeres escatológicos”.

A composição de Q não é uma coletânea aleatória de dizeres, complementa Hollander (2000, 350), mas uma coleção de ditos sapienciais, incluindo também dizeres escatológicos. Trazendo em conta uma noção maior do universo oral em que surgiu a tradição de Jesus e inserindo uma abordagem mais temática ao material paralelo de Paulo e Jesus, é valido aqui observar algumas abordagens que esclarecem e fortalecem essa nova etapa do debate.

2.1.Uma nova configuração padrão

Não há como negar que James Dunn é um dos principais estudiosos do Novo Testamento na atualidade. Em seu artigo “Altering the default setting: Re-envisaging the early transmission of the Jesus tradition”, publicado em 2003, Dunn explicita que há uma “configuração padrão” na mente moderna e pós-moderna que considera todo documento, de certo modo, escrito. Tal configuração padrão seria incoerente com a noção de oralidade que se fortalece cada vez mais nos estudos do Novo Testamento, de forma que “o reconhecimento das características da tradição oral requer que mudemos a configuração padrão de forma de pensar tipicamente literária e reconhecer que a transmissão inicial da tradição de Jesus se deu em uma cultura oral e como tradição oral” (DUNN, 2003, 155).

Para James Dunn, as discussões entre o conhecimento da tradição de Jesus por Paulo são normalmente limitadas pela inescapável interdependência literária que se busca nos documentos bíblicos (DUNN, 2003, 146-147). Ele aponta como isso afeta os estudos do Novo Testamento, por exemplo, quando se procura as relações de Paulo e Jesus em Marcos ou Q e não as encontra, considera-se que elas não podem ser estabelecidas, desconsiderando-se o uso de outras tradições, caracterizadas por processos diversos e 12

fluídos de transmissão. Assim, apesar de muitos aceitarem a transmissão oral nos estágios iniciais da tradição do evangelho, Dunn diagnostica que o papel da tradição oral é normalmente reduzido a formas fragmentárias (DUNN, 2003, 145). Quando isso não acontece, Dunn ressalta que a fonte oral é, então, abordada como uma versão fixa de alguma tradição de Jesus usada pelos evangelistas, como quem usa um documento escrito. Diante desta trava nos estudos do Novo Testamento, Dunn reforça que só será possível apreciar como seria viver e operar em uma sociedade oral se conseguirmos “nos livrar da pressuposição inconsciente que molda a forma que enxergamos o problema sinótico e a transmissão da tradição de Jesus” (DUNN, 2003, 148). O primeiro passo para isso, indica Dunn, é reconhecer o contexto da Palestina nos tempos de Jesus. A maioria dos judeus na época de Jesus conheciam a Torah por ouvi-la ao invés de lê-la. É bem provável que, inclusive, a maioria dos discípulos de Jesus fosse analfabetos funcionais e, talvez, apenas um ou outro discípulo fosse apto a escrever, de forma que a tradição de Jesus, desde o princípio, foi transmitida de boca a boca, segundo o uso e transmissão oral (DUNN, 2003, 148). O cenário que Dunn quer que imaginemos é algo que existe ainda hoje: “Nas vilas e pequenas cidades da Galileia, quando o dia terminava e o sol se punha, o que mais havia para fazer senão sentar e conversar, compartilhar notícias, contar histórias, relembrar assuntos importantes da comunidade? Kenneth Bailey sugere que o tradicional encontro noturno nos vilarejos Oriente Médio para ouvir e recitar a tradição da comunidade, o haflat samar, é a continuação da prática que remete aos tempos de Jesus e além” (DUNN, 2003, 149).

A partir dessa percepção dos tempos de Jesus, Dunn destaca cinco características que aparecem na transmissão oral da tradição e que merecem atenção. A primeira é que uma performance oral não é como ler um texto literário, isto é, enquanto um texto escrito pode ser revisto ou editado quando se quiser, isso é impossível com a tradição oral. A tradição oral transmite-se via performances e uma performance oral é um evento que logo acaba e desaparece. A tradição oral não está lá para se checar, revisar ou editar, pois não é uma coisa ou um artefato como o texto literário (DUNN, 2003, 150). Assim, o conhecimento geral do texto dependia da recuperação do que foi ouvido durante a leitura para a congregação e não da análise pessoal do texto, como estamos habituados atualmente. Dunn conceitua tal fenômeno como “oralidade secundária”, em que um texto escrito é conhecido apenas por meio de sua performance oral (DUNN, 2003, 151). Esse aspecto comunitário é a essência da tradição oral e a segunda característica que Dunn apresenta (DUNN, 2003, 151). A preservação e transmissão da tradição depende 13

diretamente da comunidade, pois ela é apresentada com maior ou menor regularidade segundo a importância nos agrupamentos das comunidades e mantida viva pelos anciãos, líderes ou aqueles que conhecem a sua performance. Dunn arremata ao dizer que “em uma cultura oral, tradição é memória coletiva” (DUNN, 2003, 171). Craig Blomberg reforça como a noção de memória social é importante para a preservação e transmissão da tradição oral (BLOMBERG, 2012, 115). Segundo ele, a memória social pode prover estabilidade que a inevitável falta de memória de uma única pessoa sozinha não pode oferecer. A pessoa publicamente reconta a história de algo importante da experiência de outros no presente e eles tendem a corrigir o contador da história se certos detalhes estão errados. Blomberg desmistifica a desconfiança da memória coletiva por conta dessa sua pluralidade ao dizer que ela oferece uma confiança especial aos eventos únicos e incomuns, pois as testemunhas se envolvem emocionalmente, compartilhando até detalhes irrelevantes, com repetições frequentes em um curto período de tempo. Como é de interesse de Blomberg, ele ressalta que esses elementos podem ser encontrados em abundância nas parábolas de Jesus (BLOMBERG, 2012, 116), um dos principais elementos da tradição oral de Jesus, como veremos mais à frente. Não é a toa que Dunn afirma que “tradição oral é memória oral; sua função primária é preservar e recontar o que é importante do passado” (DUNN, 2003, 154). O elemento da memória social traz à tona a importância do comunicador dessas tradições, o qual deveria perceber se alguma tradição já era conhecida pela comunidade, pois isso fazia parte de sua performance. “O comunicador poderia fazer alusões às tradições já conhecidas pela comunidade e relacionar a performance com o todo, diz Dunn (2003, 151). Com isso, a terceira característica se ressalta: a presença na comunidade um ou mais pessoas reconhecidas e responsabilizadas por manter e compartilhar as tradições da comunidade. No mundo antigo, alguns ofícios como o dos cantores, dos bardos, dos anciãos, dos professores e dos rabinos assumiam tal função. No Novo Testamento, ressalta Dunn, os apóstolos proviam o que era chamado de fundamentos da tradição das igrejas que eles fundavam e os professores ganhavam proeminência nas comunidades serem confiados com a repositores dessas tradições (DUNN, 2003, 152). Albert Lord aprofunda o assunto e mostra que os compositores da tradição oral pensavam em termos de blocos ou séries de tradição. Dunn (2003, 152) encontra exemplos disso nos agrupamentos de parábolas (Mc 4.2-33), de histórias de milagres (Mc 4.35-5.43; 6.32-52), de ensinos de Jesus sobre temas específicos como exorcismo (3.23-9) ou 14

discipulado (8.34-37), e de sequências de eventos como um dia na vida de Jesus (1.2138). Lord mostra como tais blocos eram algo extremamente acessível e dentro das capacidades mnemônicas das pessoas dos tempos de Jesus ao apresentar a capacidades dos profissionais da memória: “Cantores populares do passado e do presente poderiam guardar histórias de até 100.000 palavras na memória. Não obstante, eles poderiam variar algumas palavras e sequências em suas apresentações em até 40% da história de uma performance para outra. Da mesa forma, os sinóticos podem ser explicados como o resultado de um processo flexível de transmissão dentro de limites fixos. Alguns recursos poderiam variar conforme a história fosse recontada, mas o núcleo de cada episódio permanece inviolado” (LORD apud BLOMBERG, 2012, p.111-112).

Essas variações possíveis abrem caminho para a quarta característica da tradição, que é a impossibilidade de uma ideia de versão original (DUNN, 2003, 153). Considerando que cada performance da tradição oral não está relacionada ao seu predecessor ou sucessor, explica Dunn, cada uma delas são, propriamente falando um “original”. Ao apresentar essa característica, Dunn não nega a existência do que ele chama de “impulso original do qual nasceu a tradição”, mas afirma que não há tradição original, visto que a tradição do dito não é o dito em si. “Ela é no máximo uma testemunha do evento e, assim como houve diversas testemunhas, há diversas tradições ou versões das tradições a partir do primeiro”, explica Dunn. Portanto, segundo Dunn, poderíamos falar de um evento que originou a tradição, mas não de tradição original do evento, pois a tradição marca o impacto do evento em parte dos expectadores originais. Essa noção é melhor compreendida ao considerar a quinta característica, que ressalta a tradição oral como a combinação de rigidez e flexibilidade, estabilidade e diversidade. Essa combinação traz embutido, segundo Dunn, o princípio oral de “variação dentro do mesmo” (DUNN, 2003, 154). Como ele explica: “O princípio oral de ‘variação dentro do mesmo’ não é sinal de degeneração ou corrupção. Ao contrário, isso nos coloca diretamente em contato com a tradição em seu aspecto vivo, como foi ouvida pelos primeiros grupos cristãos e igrejas e ainda pode ser ouvida e respondida hoje” (DUNN, 2003, 175).

A proposta de mudança na “configuração padrão” no pensamento acadêmico moderno, de um pressuposto literário para uma prerrogativa oral, não descarta as pesquisas que seguiram essa dificuldade que Dunn diagnostica. Ele mesmo diz que “não há problemas em reconhecer a probabilidade de interdependência literária entre os Evangelhos Sinóticos”, mas não esconde sua preocupação de que se “essa hipótese é suficiente para explicar toda a correlação de informações entre as tradições dos Evangelhos” (DUNN, 15

2003, 160). Dunn vai além da crítica e das preocupações e dá uma noção de como essa nova configuração padrão funcionaria no estudo do problema sinótico: “A partir das características da performance oral, talvez pudéssemos imaginar Mateus e Lucas recontando a história conhecida por Marcos de modo oral, como contadores de histórias e não como editores. Tomar Mateus e Lucas não como evidências de redação, mas de oralidade secundária” (DUNN, 2003, 163).

2.2.Uma nova perspectiva literária

Diante da abordagem de Dunn, não podemos descartar as pesquisas literárias, mas precisamos. Como Dunn diz, “o que precisamos refletir não é uma questão de o que olhamos, mas de como olhamos” (DUNN, 2003, 157). Uma outra abordagem para os materiais literários no estudo do Novo Testamento poderia seguir a dica que Dunn deixa, ao afirmar que “a tradição oral transcrita e a tradição escrita em si se parecem uma com a outra” (DUNN, 2003, 150). Hollander parece compartilhar dessa perspectiva de Dunn ao reconhecer que, apesar da tradição ter sido a primeira forma de comunicação face-a-face e oral no Cristianismo antigo, em algum momento houve a transição para a textualidade de forma gradual (HOLLANDER, 2000, 355). Essa transição gradual teria gerado um ambiente em que a tradição oral e transmissão textual dos ditos de Jesus coexistiram por um longo tempo. Considerando que a função da escrita não é apenas preservar a tradição oral, Hollander destacou como a transmissão escrita não substituiu a tradição oral. Uma vez que a tradição oral continuou mesmo após a morte dos apóstolos e que a transmissão escrita já existia mesmo durante o movimento apocalíptico, que considerava desnecessário a escrita diante do fim iminente, essas duas vias de preservação da tradição de Jesus não ocupavam o mesmo lugar na história. Segundo Hollander (2000, 356) “a razão primaria para a escrita da tradição seria a necessidade crescente de padronizar as instruções aos novos membros das igrejas”. Cerca de dez anos antes de Hollander manifestar sua opinião e de James Dunn escrever seu artigo, Paulo Achtemeier publicou um artigo chamado “Omne verbum sonat: The New Testament and the Oral Enviroment of Late Western Antiquity” (1991), que trazia uma perspectiva oral aos materiais literários do mundo antigo e, consequentemente, do 16

Novo Testamento. Achtemeier observa a partir de pesquisas recentes que algumas técnicas mnemônicas da transmissão oral deixaram suas marcas nas formas escritas da tradição, uma vez que foram transmitidas oralmente. A partir disso, ele destaca como os textos escritos na antiguidade estavam intimamente ligados à transmissão oral. Além da tendência cultural de privilegiar a oralidade em lugar da escrita, Achtemeier ressalta que a própria apresentação do texto escrito na antiguidade clássica dificultava a leitura e contribuía para a dependência cultural da oralidade na comunicação. Com a falta de pontuação e espaço entre as palavras e de indicações de estruturas de sentença e parágrafo, sem respeitar a estrutura de palavras nas quebras das linhas, não havia auxílio algum para a leitura. A dificuldade de se ler um manuscrito antigo mostra que os leitores tendiam a memorizar conforme liam, o que teria dado, segundo Achtemeier, validade contínua aos auxílios mnemônicos e impedido que estes fossem eliminados (ACHTEMEIER, 1990, 7). As formas escritas da antiguidade estavam ligadas à oralidade dominante. Não havia, por exemplo, escrita que não fosse vocalizada, tanto em casos de ditados, como quando se escrevia de próprio punho. Achtemeier aponta um exemplo disso em Lucas 1.63, que descreve Zacarias escrevendo o nome de seu filho. Neste episódio, é o ato de escrever que prova que sua fala foi restaurada. “Em última instância”, reforça Achtemeier (1990, 15), “o ditado era a única forma de escrita. A única questão era se ditava-se a outro ou a si mesmo”. Não apenas a escrita era baseada na oralidade, mas a leitura também. Um jeito comum de se ler na antiguidade clássica era ouvir alguém lendo. No caso dos ricos, normalmente um escravo. Isso permitia que alguém “lesse” em companhia de amigos, durante uma refeição, no banho ou durante uma viagem. Até mesmo viajantes solitários lendo para si mesmos, liam em voz alta (ACHTEMEIER, 1990, 16). Exemplo disso é quando Filipe ouve o eunuco lendo Isaías. Ao ler em voz alta, o etíope estava apenas seguindo os costumes antigos. Com as formas escritas vinculadas às práticas da oralidade, de forma que a própria estrutura textual dependia de um conhecimento oral do texto, a transmissão escrita não se apresenta mais tão eficiente como comumente assumimos. Achtemeier aponta que uma forma de transmitir informação de modo organizado e compreensível era ter alguém que conhecesse o conteúdo escrito na carta e os propósitos do autor para entrega-la e 17

transmitir as informações escritas (ACHTEMEIER, 1990, 17). Isso é facilmente reconhecido no Novo Testamento, com o apóstolo Paulo enviando junto a suas cartas seus colaboradores, como Timóteo e Tito. Diante disso, é preciso reconhecer que as cartas de Paulo foram lidas apenas por alguns poucos, pois para a maioria dos destinatários, ela foi ouvida ao invés de lida (DUNN, 2003, 150). Ainda assim, isso não prejudicava a compreensão a e assimilação das informações, nem desprestigia a importância da escrita. Como Hollander ressalta, a escrita permitia o envolvimento amplo de indivíduos que viviam por todo o mundo, mas nunca se encontraram. Com isso eles podiam se reunir, ler, ouvir e discutir com sua “literatura privada” (HOLLANDER, 2000, 356-357). O trabalho de Achtemeier mostra que “todo material na antiguidade era feito para ser ouvido” (ACHTEMEIER, 1990, 18). Com tamanha dependência da oralidade, a alternativa para indicar organização e significado nos escritos era incluir marcas de oralidade nos textos, como repetições e paralelismos para evidenciar a partes importantes, ou o uso de uma palavra ou frase idêntica para iniciar cada novo tema a ser desenvolvido (ACHTEMEIER, 1990, 17-18). Reconhecendo que os documentos do Novo Testamento também se enquadram nessa perspectiva, sendo orais em sua essência, desde sua criação até sua performance (ACHTEMEIER, 1990, 19), encontrar algumas marcas de oralidade no texto se mostra necessário. Achtemeier (1990, 22-24) destaca que aliterações no grego e jogos de palavras com dois significados em sequência são recursos encontrados nas epístolas. Repetições e paralelismos também seriam instrumentos importantes para assegurar a atenção e reconhecimento dos argumentos nos textos escritos. O uso de textos poéticos, como as bendições de 1Pedro 4.11 e os hinos de Paulo em Romanos 11.33-36, segundo Achtemeier, eram formas de indicar o fim de um argumento e início de outro. Dunn (2003, 167) acrescenta a essas marcas de oralidade mais alguns elementos, como o discurso ritmado, bem como as variações e padrões de três, isto é, histórias construídas em três episódios e ilustrações (parábola do Grande Banquete, por exemplo). “Em resumo, a organização de materiais escritos dependerá do som em vez da visão para sua efetividade” (ACHTEMEIER, 1990, 19). Achtemeier reconhece que tal percepção dos textos antigos pode geral algum desconforte nos estudiosos modernos, como a dificuldade gerada pela oralidade no Novo Testamento de se identificar as fontes usadas (ACHTEMEIER, 1990, 23). Tal dificuldade decorre da prática que o ambiente dominado pela oralidade e a natureza física dos documentos 18

escritos geravam, isto é, referências eram normalmente cotadas a partir da memória em vez de copiadas de uma fonte escrita (ACHTEMEIER, 1990, 27).

2.3.Sitz im Leben como fator determinante

Enquanto as duas abordagens recentes anteriores lidavam com o paradigma da oralidade e suas aplicações ao debate das influências da tradição de Jesus em Paulo por meio da questão da tradição em si, a abordagem a ser tratada agora volta à essência do debate para tentar identificar como Paulo se apropriou dessas tradições. “As demandas de Jesus aos seus seguidores são mais radicais que as de Paulo”, afirma Eric Wong (2001, 245) A partir de dois artigos com títulos semelhantes, um escrito em 2001 e outro em 2002, Wong se propõe a identificar como Paulo “desradicalizou” a tradição de Jesus em Romanos e 1Coríntios. Segundo Wong, o radicalismo da tradição de Jesus levou Paulo a uma emenda substancial, amenizando o radicalismo da tradição de Jesus, especialmente em questões éticas, para adequá-la ao novo Sitz im Leben. (WONG, 2001, 245) Como Patterson já havia comentado, “Paulo compartilhou com o movimento de Jesus seu radicalismo social; ele simplesmente não chegou lá pela mesma rota. Para eles, o reino de Deus estava presente na palavra falada; para Paulo, o Reino se tornou real somente quando alguém aceitava a cruz como sua própria morte para o mundo” (PATTERSON, 1991, 39-40).

Essa “desradicalização” seguiria os princípios introduzidos pelas duas abordagens recentes acima, em que o apóstolo aplicaria a tradição de Jesus a um contexto inédito. Dunn embasa tal perspectiva ao notar que a passagem de vilas para cidades, aramaico para grego, introduziu outros fatores que influenciaram a pregação, contação e performance da tradição de Jesus. Segundo ele, o essencial da tradição era preservado em meio à diversidade de suas performances (DUNN, 2003, 171). Paulo considerava os ensinos éticos de Jesus um de seus principais presentes para a igreja (FIENSY, 2010, 98), de forma que Wong é preciso ao afirmar que o uso de termos diferentes pelo apóstolo não afetou o conceito das palavras de Jesus (WONG, 2001, 250). O primeiro tema ético que Wong trabalha se encontra em Romanos 12.14. O texto paulino é paralelo ao comando de Jesus de “amar os inimigos”, encontrado em Mateus 5.45-47, porém o apóstolo não se utiliza do termo “amor aos inimigos” propriamente dito. Wong 19

(2001, 251) observa que tal terminologia não trazia uma ideia comum para os não-cristãos e o conceito não poderia ser praticado entre pessoas comuns. Segundo ele, se Paulo quisesse concretizar tal conceito, ele não usaria terminologias propriamente cristãs para estabelecer um relacionamento entre a comunidade cristã e o mundo externo, mas palavras como “bom” e “mau”, que são comuns desde a antiguidade (Rm 12.2, 17, 21; 13.3). A construção de tal conceito passaria pelo conhecimento de suas implicações e exigências, bem como o impacto disso nos destinatários. Escrevendo a cidadãos romanos, Wong reconhece que Paulo precisaria identificar um inimigo antes que os cristãos pudessem falar em “amor aos inimigos” e, considerando o contexto recente de expulsão de judeus e cristãos da capital do império, seria muito intenso identificar o imperador romano ou o governo diretamente como inimigos da comunidade cristã. Assim, Wong (2001, 251) aponta que Paulo substituiu cláusulas afirmativas por negativas. Ele identificou seis delas em Romanos 12.14-21, sendo que quatro delas serviriam como um entendimento mínimo e concreto de “amor aos inimigos” ou do conceito de amor: não amaldiçoe, não pague o mal com o mal; não se vingue; e se deixe tomar pelo mal. Apesar do argumento sólido, Wong precisa de evidências para afirmar que esse texto paulino realmente é paralelo à tradição dos Evangelhos Sinóticos. Para isso, ele mostra como a perícope inteira é repleta de paralelos: em Romanos 14.13, em que o comando para não julgar os outros refere-se a Mateus 7.1-2, além de relembrar as palavras de Jesus em Marcos 9.42-50, Mateus 18.6-7 e Lucas 17.2. Também aponta que a definição de reino de Deus em Romanos 14.17 é um contraste de Mt 8.11. Wong conclui que com tantas alusões a Jesus neste trecho recluso da carta de Romanos, é provável que o paralelo ético em questão também seja (WONG, 2001, 258). Se na questão do “amor ao inimigo” Paulo se mostrou sensível aos cristãos romanos, Wong aponta que ao analisar a questão dos alimentos puros ou impuros (Rm 14.14) o apóstolo demonstra uma simpatia pelos judeus cristãos ao espiritualizar a questão da alimentação em sua aplicação aos judeus cristãos em Roma (WONG, 2001, 259). Ele ameniza a qualidade objetiva de que todos os alimentos são puros, o que colocava os judeus cristãos em uma situação difícil em relação à manutenção de seus hábitos culturais. Para isso, “Paulo um conceito subjetivo aos hábitos culturais, criando um espaço que acomoda diferenças entre diferentes pessoas” (WONG, 2001, 260). Entretanto, Wong ressalta que antes de Paulo introduzir um conceito de relatividade em relação às normas 20

alimentares, ele o insere diretamente sob uma condição antecedente: não julgar uns aos outros (Rm 14.13). Assim, o apóstolo muda a qualidade objetiva dos alimentos em qualidade subjetiva. Apesar de Paulo aparentar privilegiar os cristãos em lugar da tradição de Jesus, é preciso levar em conta que Fiensy ressalta que Paulo trata os dizeres de Jesus da mesma forma que trata as citações e ecos do AT e que pode citá-lo quase exatamente, ou com variações, parafraseá-lo, ou simplesmente como um pequeno eco (FIENSY, 2010, 97). Wong destaca que o mais importante é que Paulo não poderia tirar a ideia de “amor pelos inimigos” de nenhuma outra fonte a não ser Jesus (WONG, 2001, 249) e que a forma com que Wong demonstrou a prática de Paulo em relação à tradição de Jesus estaria de acordo com o que James Dunn chama de tradições vivas, isto é, tradições orais adaptadas conforme seu uso em diferentes comunidades (DUNN, 2003, 166). Para alcançar seus objetivos, Paulo precisava levar em conta mudanças básicas no Sitz im Leben das palavras de Jesus para suas congregações. A aludir à tradição de Jesus, Paulo as tornou concretas e aplicáveis ao Sitz im Leben da comunidade de cristãos em Roma. Wong encontra na ausência de referências diretas a Jesus uma forma de legitimar sua prática, uma vez que o anonimato das tradições de Jesus ajudaria a torná-las aplicáveis. “É mais fácil modificar uma tradição ética anônima do que palavras de autoridade do Senhor”, diz Wong (2001, 261), e Paulo se justifica ao adaptar suas próprias palavras de acordo com suas intenções. Tal postura de Paulo se morta clara na análise de Wong de outro paralelo ético entre o apóstolo e o Salvador. Em 1Coríntios 7.10-40, Paulo diferencia entre a autoridade do Senhor e a autoridade de sua própria aplicação das palavras de Jesus a uma situação concreta. A palavra de Jesus, que é explicitamente atribuída ao Senhor no texto (1Co 7.10-11; 9.14; 11.23-26), deve ser preservada. Uma tradição anônima em que as palavras não são especificadas como vindas da boca do Senhor pode ser facilmente modificada de acordo com a situação, mesmo se os cristãos de Corinto as considerassem uma tradição de Jesus (WONG, 2002, 194). O caso de 1Coríntios 7.10-40 mostra como essa adaptação conforme o Sitz im Leben era uma questão de necessidade. Como Wong (2002, 187) ressalta, essa tradição de Jesus acerca do divórcio não era detalhada ou especifica o suficiente para solucionar todos os problemas enfrentadas pelos cristãos de Corinto. Desse modo, ao expandir a perspectiva do ensino de Jesus, Paulo consente apenas com o divórcio iniciado pela parte não-cristã. Então Paulo faz uma exceção ao divórcio, o que a tradição de Jesus em Marcos não 21

permite. O apóstolo aceita o novo casamento limitado a cristãos se o cônjuge morreu (1Co 7.39), o que corresponde a sua preocupação com as tentações dos desejos sexuais. Tamanha tensão, e a necessidade de tantas adaptações surgem do fato que, independentemente do relacionamento entre o casal ser recíproca ou assimétrica, a tradição de Jesus sobre o divórcio não cobre todas as possíveis situações de vida. Hollander (2000, 357) diz que a situação de constante mudança que a Igreja teve de enfrentar exigiu modificações nos dizeres e demandas de Jesus, transmitidos antes e para a criação de novos. A conclusão de Wong é perspicaz em justificar tal postura de Paulo diante da tradição de Jesus: “Jesus não estabeleceu uma comunidade formal para fins sociais, mas Paulo o fez. Algumas regras de comunidade seriam necessárias para estabelecer a disciplina e ordem” (WONG, 2002, 192).

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3. PARÁBOLAS DE JESUS E SEUS ECOS EM PAULO

Ao considerar a tradição de Jesus, falamos de histórias dos feitos e palavras do próprio Jesus que seriam contadas e recontadas entre os primeiros cristãos. Dentre as palavras de Jesus, as suas parábolas provavelmente foram um dos elementos mais fortes desta tradição oral. Como John Buckham afirma, “os dois métodos pelos quais Jesus desvendou os mistérios do reino de Deus, parábola e paradoxo, são essencialmente métodos místicos de ensino da verdade. Ambos sugerem um significado muito mais profundo” (BUCKHAM, 1913, 310).

Dentre os ensinos de Jesus, as parábolas seriam não apenas as mais memoráveis, como proporcionavam uma interação profunda com seus receptores. Manson (apud BAILEY, 1995, 13) expressa bem isso ao dizer que “a verdadeira parábola (...) não é uma ilustração para ajudar a esclarecer uma discussão teológica; pelo contrário, é uma forma de experiência religiosa". Diante das abordagens diversas à tradição de Jesus e suas aplicações nos textos paulinos, é válido aqui submeter alguns aspectos das parábolas à análise conforme os qualificativos da tradição oral vistos acima.

3.1.Parábolas como material da tradição oral sobre Jesus

Antes de submeter as parábolas a uma avaliação enquanto material para a tradição oral sobre Jesus, é preciso deixar para trás alguns preconceitos acerca de seus usos. D.A. Carson é claro ao criticar os dois lados tradicionais na interpretação das parábolas: “É ingênuo dizer que Jesus contava parábolas para que todos pudessem apreender a verdade com muito mais facilidade e é simplista dizer que a única função das parábolas para os de fora era condená-los. Se Jesus queria apenas esconder a verdade dos de fora, ele nunca precisaria ter contado parábolas para eles” (CARSON, 2010, 366)

Aqui, assumiremos um ponto de vista bem resumido por Francisco Cook, em seu livro tradicional sobre a vida de Jesus: “Cristo usou as parábolas a fim de pôr em forma compacta e fácil de lembrar as verdades que enunciava. As pessoas que as escutavam, em sua maioria, eram pessoas de pouca instrução, de modo que não lhes teria sido fácil lembrar as verdades espirituais, se estas houvessem sido expostas em termos abstratos e teológicos. Porém, como foram apresentadas daquela maneira, com facilidade eram recordadas. E havia também a seguinte vantagem – mesmo que não

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fossem entendidas em toda a profundeza de seu significado, a princípio, ficando elas gravadas na memória, era fácil continuar meditando nelas para, assim, mais tarde, entendê-las plenamente. Sobretudo, era uma maneira muito eficaz de apresentar verdades que eram capazes de ofender o público, não preparado, moral e espiritualmente, a recebê-las” (COOK, 1990, 146).

Gerd Theissen, um dos principais autores no que diz respeito à história da busca pelo Jesus histórico, expandiu a noção como a memorização pode ter ocorrido muito não intencionalmente, conforme os discípulos viajavam com Jesus. Conforme Jesus encontrava ouvintes diferentes, ele teria reusado boa parte do mesmo material de ensino, especialmente as parábolas, ressalta Blomberg (2012, 111), repetidamente, de forma que apenas ouvir os mesmos ensinamentos tão frequentemente teria gravado a essência deles na mente dos seguidores de Jesus. Assim, quando foram enviados dois a dois (Mt 10 e paralelos), eles provavelmente repetiam as palavras e histórias de Jesus, isto é, a tradição que já se tornava corrente. E essa repetição contínua da mesma tradição teria fortalecido ainda mais a memorização. Ao ir em pares, se um discípulo transmitisse algo que não correspondesse ao sentido original de Jesus, o outro poderiam e deveria corrigi-lo. Não só as parábolas devem ser vistas como materiais ricos para a tradição oral, como elas se mostram alguns dos trechos de ensino de Jesus mais propícios a tornar-se tradição, enquanto performances de rememoração coletiva. As marcas de oralidade que tanto Achtemeier como Dunn ressaltaram são encontradas, em ricas quantidades, nos relatos das parábolas nos Evangelhos Sinóticos. Scholz (1999, 83) diz que as parábolas são regidas pela lei da concisão e da simplicidade, enquanto linguagem oral transmitida à nível popular e para ser memorizada. Stiller (2005, 10) complementa que a parábola era curta justamente para ser lembrada, assim como uma piada. Em um contexto que os profissionais da memória, como Lord apontou e relatamos acima, podiam memorizar até 100 mil palavras, a brevidade das parábolas eram ideais para o aprendizado, com grande efetividade considerando que a cultura da Palestina do primeiro século tinha como forma principal de ensino a memorização. Sendo, normalmente, histórias concretas e não abstratas (STILLER, 2005, 10), cheias de exageros, hipérboles, inversões e situações atípicas que aumentavam o impacto de suas mensagens (ZUCK, 1994, p.234), sem falar em suas construções literárias com sequências de três, como a parábola do Grande Banquete (Lc 14.15-24) apontada acima, as parábolas enquadram-se de modo ideal como materiais da tradição oral sobre Jesus. A questão que permanece é se tal tradição oral foi usada, citada, incorporada ou aludida de alguma forma nos textos paulinos. 24

3.2. Jesus, Paulo e o “ladrão na noite”

Fiensy, ao elaborar sua própria lista de alusões de Paulo a Jesus, ressalta que as alusões, enquanto as alusões de 1Coríntios estão espalhadas por todo o livro, as de Romanos estão reunidas nos capítulos 12 a 14 e as de 1Tessalonicenses nos capítulos 4 e 5. Segundo ele, a razão disto está na diferença da estrutura das cartas. 1Coríntios é quase exclusivamente ética, enquanto que Romanos e 1Tessalonicenses seguem o padrão clássico paulino de doutrina seguida de ética e, uma vez que as alusões a Jesus tendem a ser éticas em sua natureza, o agrupamento destas alusões faz sentido, visto estarem em sessões de cunho ético nas epístolas em questão (FIENSY, 2010, 93). Dentro deste trecho de 1Tessalonicenses, Fiensy identifica duas paráfrases de Jesus por Paulo: a “palavra do Senhor” em 4.15-17, quando Cristo vem com anjos e trombetas, e o “ladrão na noite” (5.2), que, conforme Fiensy afirma, “é um sumário de uma das parábolas de Jesus” (FIENSY, 2010, 97). A referência ao “ladrão na noite” de 1Tessalonicenses 5.2 nos é interessante aqui, pois seria um eco dos dizeres de Jesus relatados em Mateus 24.4344 e Lucas 12.39-40, um ensino escatológico em forma de parábola. A partir dos aspectos selecionados por Gerd Theissen e Annette Merz, citados no fim do capítulo 1, para explicar a posição de Paulo em relação às alusões a Jesus, podemos firmar 1Tessalonicenses como uma alusão plausível a uma parábola de Jesus. Buckham diz que “a escatologia de Paulo, por exemplo, é fortemente contrabalanceada por seu misticismo cristão” (BUCKHAM, 1913, 312), o que somado ao caráter místico que ele mesmo acusou, conforme citado acima, nas parábolas de Jesus, a alusão a uma parábola de Jesus em um ensino escatológico baseado no misticismo de Paulo encontraria sua justificativa pessoal. Carson reforça tal perspectiva ao dizer que “todas as parábolas, na verdade, pressupõem necessariamente alguma forma de escatologia realizada a fim de fazer com que suas exigências éticas tenham sentido” (CARSON, 2010, 364), o que justificaria, em termos teológicos, a opção por uma alusão a Jesus em uma questão escatológica com aplicações éticas. Para uma justificativa histórico-social, com relações com a crítica textual, a citação a seguir de Joachim Jeremias parece propícia:

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“Jesus vivia na expectativa da grande catástrofe, da tentação do fim dos tempos, da última crise da história, que sua morte haveria de introduzir. A Igreja das origens via-se, à medida que o tempo ia passando, no meio entre duas crises, das quais uma pertencia ao passado, e a outra, ao futuro. Nesta situação entre a cruz e a parusia, a Igreja se interroga acerca das orientações de Jesus e as encontra, entre outras, na medida em que ela toma as parábolas de Jesus que tinham a intenção de acordar a multidão diante da seriedade da hora, tirando delas orientações para a conduta da vida da comunidade, vergando-as de sua acentuação escatológica para a parenética” (JEREMIAS, 2004, p.41).

Levando em conta o Sitz im Leben de 1Tessalonicenses, em uma situação de efervescência escatológica no início do desenvolvimento teológico de Paulo acerca da parousia, teríamos a terceira justificativa. Como confirmação da aceitação de 1Tessalonicenses 5.2 como uma alusão válida e reconhecida de uma parábola de Jesus, recorremos aqui à catalogação da lista de Fiensy. Segundo ele, a alusão do “ladrão na noite” foi considerada por N. Walters, um minimalista na identificação das palavras de Jesus em Paulo, como uma possível palavra de Jesus, mas sem conexões a ela feitas pelo próprio Paulo; pelo Seminário de Jesus (Jesus Seminar indicado na obra de R.W. Funk e R.W. Hoover) como ecos das palavras de Jesus; e, por fim, pelo próprio Fiensy como uma sequência de ideias similares entre o texto paulino e as palavras atribuídas as Jesus (FIENSY, 2010, 88). Explicitando o que foi dito acima, 1Tessalonicenses 5.2 seria um eco das palavras de Jesus em Mateus 24.43-44 e Lucas 12.39-40, sobretudo do termo “ladrão” e sua palavra grega correspondente (

), presentes nas três passagens. A confirmação da alusão

à parábola de Jesus se comprovaria pela metáfora da volta de Cristo como ladrão, a noção de chegada inesperada e a implicação ética na necessidade de vigilância, sobretudo em 1Tessalonicenses 5.4, outro eco da mesma parábola. Um outro aspecto textual que dá confiança neste eco da parábola de Jesus é a forma como Paulo o introduz tal ensino, afirmando o conhecimento prévio dos tessalonicenses acerca do assunto que Paulo estava para introduzir. Ele o faz ao dizer: “pois vós estais inteirados com precisão de que” (1Ts 5.2) e “mas vós, irmãos, não estais em trevas, para que” (1Ts 5.4). Assim, ao aludir à parábola escatológica do ladrão, Paulo não apenas está se apropriando de uma tradição de Jesus relatada nos Evangelhos Sinóticos, mas também se referindo a uma tradição recebida e conhecida pelos cristãos de Tessalônica, a qual o próprio Paulo deve ter transmitido a eles.

3.3. Parábolas como tradições comunitárias 26

A confirmação de 1Tessalonicenses 5.2 como eco das palavras de Jesus nos permite considerar que as parábolas faziam parte da tradição, por exemplo, que Paulo se refere em 2Tessalonicenses 2.15, que eram ensinadas aos cristãos tanto por palavras, como por epístolas. Neste caso, aparentemente, por palavra e por epístolas, via tradição oral e transmissão escrita. Apesar deste caso ter dado alguma resposta a questão de onde estariam as parábolas na tradição recordada pelas epístolas paulinas, ela ainda não resolve o problema, pois é apenas uma alusão ecoante e indireta das palavras de Jesus por Paulo. Entretanto, o caráter anônimo das tradições de Jesus, bem como a preservação da tradição oral em meio as comunidades, enquanto memória coletiva, possam servir como direções para encontrar o lugar das parábolas na preservação e transmissão da tradição de Jesus. Em última instância, ao considerar os Evangelhos Sinóticos como a transmissão escrita de uma forte tradição de Jesus nas comunidades cristãs do primeiro século, temos a forte presença das parábolas, compondo cerca de 35% dos ensinos de Jesus.

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CONCLUSÃO

A pesquisa aqui desenvolvida teve o objetivo de levantar abordagens históricas à questão da transmissão da tradição de Jesus por Paulo em suas epístolas, como forma de selecionar ferramentas e critérios de avaliação para identificar se as parábolas foram inclusas nessa tradição retransmitida pelos escritos de Paulo. De modo breve, passamos pelos extremos da história do debate, bem como as tentativas de conciliação entre Jesus e Paulo e seus critérios para identificação dos possíveis paralelos. A partir disso, construímos um pequeno referencial teórico com algumas abordagens mais recentes ao debate, sobretudo pelos trabalhos de James Dunn, Paulo Achtemeier e Eric Wong. A ênfase no trabalho destes três autores em relação ao debate em questão nos trouxe implicações que mostram os novos rumos em que segue. O incentivo de James Dunn de abandonar a hipótese de exclusiva dependência literária, coloca um fim ao anseio por traçar a tradição e história de vários ditos e acontecimentos com tanta confiança, uma vez que a noção de uma “única forma original” da tradição de qual todas as versões teriam decorrido não é coerente com o ambiente dominado pela oralidade em que tais tradições surgiram e foram transmitidas (DUNN, 2003, 172). A partir de Achtemeier foi possível inverter a ênfase, conforme sugere Dunn, de forma que o material textual depende totalmente da oralidade e o Novo Testamento é prova real deste fenômeno da Antiguidade Tardia. Por fim, a pesquisa de Wong e seu esforço para mostrar como Paulo “desradicalizou” os ensinos éticos, deu luz à necessidade de Paulo adaptar os ensinos de Jesus, especialmente aqueles sobre questões éticas, para se encaixarem em um novo Sitz im Leben (WONG, 2002, 182). Como Hollander conclui, “a tradição sempre serve o presente e é modificada de acordo com ele” (HOLLANDER, 2000, 354). Todos esses elementos foram utilizados para avaliar as parábolas como material coerente à cultura oral predominante e à preservação e transmissão da tradição de Jesus. As parábolas se mostraram não apenas coerentes com as características da tradição oral sobre Jesus, como se mostraram ideais para sua transmissão e conservação comunitária. Submetendo a alusão de Paulo a Jesus em 1Tessalonicenses 5.2, por meio da figura do ladrão, entendemos que as parábolas também têm respaldo na tradição transmitida por Paulo, mesmo que como um simples eco, mas o suficiente para projetar a presença das parábolas nas comunidades cristãs do primeiro século às quais Paulo escreveu. 28

Essa avaliação das parábolas como tradição de Jesus e referida nos escritos paulinos não teve a pretensão de esgotar o assunto. Pelo contrário, seu fim buscava abrir caminho para um investimento maior na pesquisa da presença e influência das parábolas de Jesus no Novo Testamento, além dos Evangelhos Sinóticos. Uma possiblidade seria a possível alusão que Fiensy aponta em 1Coríntios 13.2, acerca da fé que move montanhas como paralelo de Mateus 17.20 e Lucas 17.6, que trazem a figura do grão de mostarda e as possíveis relações com a parábola de Jesus, bem como se o paralelo, como indica Fiensy (2010, 90), com Marcos 11.23 for válido, trazendo à questão o ato parabólico da maldição à figueira, como conceitua Claiton André Kunz, que teria as mesmas propriedades que a palavra profética, as mesmas propriedades que o mundo bíblico reconhecia à Palavra (KUNZ, 2007, 12-13). Em suma, as parábolas são material valoroso para a tradição viva de Jesus e ainda carecem de maior pesquisa em relação aos seus ecos e alusões nos demais escritos do Novo Testamento além dos Evangelhos Sinóticos.

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CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER S.T.M. EM ESTUDOS BÍBLICO-HERMENÊUTICOS NO NOVO TESTAMENTO

DE JESUS PARA PAULO: UM BREVE PANORÂMA DO DEBATE ACERCA DOS ECOS DE JESUS EM PAULO E SUA RELAÇÃO COM AS PARÁBOLAS

POR DIOGO VERCELINO DA HORA

São Paulo, 2015 32

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