de lágrimas somos: o processo criativo a partir de nosso campo sensorial

September 26, 2017 | Autor: Amilton de Azevedo | Categoria: Performance Studies, Teatro, Processos Criativos, Rudolf Laban, Viewpoints
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ESCOLA SUPERIOR DE ARTES CÉLIA HELENA AMILTON MONTEIRO DE OLIVEIRA FILHO

de lágrimas somos: o processo criativo a partir de nosso campo sensorial

SÃO PAULO 2014

AMILTON MONTEIRO DE OLIVEIRA FILHO

de lágrimas somos: o processo criativo a partir de nosso campo sensorial Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização em Direção Teatral da Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH) sob orientação do Prof. Dr. Vinicius Torres Machado

SÃO PAULO 2014

Às duas mulheres fundamentais.

AGRADECIMENTOS À minha mãe e mestra, Sônia Machado de Azevedo, por tudo que não precisa ser dito e por tudo que já foi e ainda será ouvido, e à minha companheira, Rebecca Catalani, pelos sorrisos, pela nossa trajetória e por ter me transformado. Sem elas, este trabalho nunca teria sido escrito. Ao meu orientador, amigo, professor e mestre, Vinicius Torres Machado, por ter aparecido em minha vida em momentos e de formas tão diferentes e essenciais, sempre com sua generosidade ao ensinar e sensibilidade ao ouvir. À Escola Superior de Artes Célia Helena e toda sua equipe técnica e pedagógica, pelo acolhimento e por encontros proporcionados desde minha chegada, em 2011, e os que ainda virão. Aos performers de afeto-instante-encontro, pelo coração aberto e a escuta atenta. Dali veio a semente para este trabalho. Aos atores que semearam suas sensibilidades e tornaram a pesquisa possível: Bruno Camargo, Juliana Tedeschi, Letícia Rodrigues e Rafaela Perticarrari. Mais do que parceiros de trabalho, parceiros de uma comunhão. Toda minha gratidão.

“La vida, sin nombre, sin memoria, estaba sola. Tenía manos, pero no tenía a quién tocar. Tenía boca, pero no tenía con quién hablar. La vida era una, y siendo una era ninguna. Entonces el deseo disparó su arco. Y la flecha del deseo partió la vida al medio, y la vida fue dos. Los dos se encontraron y se rieron. Les daba risa verse, y tocarse también.” Eduardo Galeano

RESUMO O presente trabalho realiza uma reflexão sobre o projeto prático da construção cênica “de lágrimas somos”. Estabeleço uma relação do conceito de experiência – como apresentado por Jorge Larrosa Bondía – e conceitos sobre a provocação dos sentidos em processos criativos, utilizando a pesquisa de Stephen Di Benedetto. Como ferramenta prática e ponte entre tais conceitos e a sala de ensaios, trabalho a partir das ações básicas do movimento, estudadas por Rudolf Laban juntamente com os pontos de atenção do sistema Viewpoints, de Anne Bogart e Tina Landau. O objetivo é a compreensão e aplicação dos conceitos estudados, tendo-os como norte no processo criativo. Trata-se de uma cena que possui como dramaturgia o fragmento “De lágrimas somos”, presente no livro “Espelhos” do autor uruguaio Eduardo Galeano e como estímulo principal o sentido do toque.

Palavras-chave: Experiência. Toque. Laban. Viewpoints. Processo criativo.

ABSTRACT The present paper reflects about the practical project of the scenic construction of “de lágrimas somos” (“of tears we’re made”). It is established a relation between the concept of experience – as presented by Jorge Larrosa Bondía – and concepts regarding the provocation of the senses in creative processes, using Stephen Di Benedetto’s research. As a practical tool and a bridge between those concepts and the rehearsal room, the work starts from the basic actions of movement, studied by Rudolf Laban, and the Viewpoints system, of Anne Bogart and Tina Landau. The objective is to comprehend and apply the studied concepts, taking them as the north in the creative process. It is a scene that has as dramaturgy the fragment “De lágrimas somos” (“Of tears we’re made”); present in the book “Espelhos” (“Mirrors”) by Uruguayan author Eduardo Galeano and as the main stimuli the sense of touch.

Keywords: Experience. Touch. Laban. Viewpoints. Creative process.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------- p.9 1. FIRMANDO A TERRA SOB MEUS PÉS: CONCEITOS ---------------------------- p.13 1.1. A experiência como potência teatral ------------------------------------------- p.14 1.2. Algo além do racional: a recepção sensível --------------------------------- p.17 2. SEMEANDO A TERRA: FERRAMENTAS ---------------------------------------------- p.22 2.1. As dinâmicas do movimento no corpo, voz e discurso -------------------- p.23 2.2. Desenhar paisagens em um processo de descoberta -------------------- p.27 3. RUMO À PRIMAVERA: CONSTRUÇÃO ------------------------------------------------ p.34 3.1. Abrir a escuta pra perceber a si mesmo -------------------------------------- p.37 3.2. Compor com o mundo: o outro, o espaço, o texto ------------------------- p.40 3.3. Um outro olhar: registros de dentro -------------------------------------------- p.43 4. A COLHEITA: CONCLUSÕES ------------------------------------------------------------- p.45 4.1. A criação é um devir --------------------------------------------------------------- p.45 REFERÊNCIAS ----------------------------------------------------------------------------------- p.47

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9! ! INTRODUÇÃO Laban afirma que todo movimento nasce de um interesse. Em alcançar algo, pegar algo, chegar à algum lugar1. Em arte – e falando especificamente no teatro – é perceptível que tudo nasce de um interesse muitas vezes abstrato. É possível afirmar que nasce de um desejo. Assim, parece óbvio começar este trabalho falando sobre o desejo que o originou. No entanto, é complicado determinar o momento em que este surgiu em minha trajetória. O presente trabalho, da forma que se apresenta, é resultado de diversos fatores, circunstâncias e acasos. Eduardo Galeano, por exemplo, é fonte dramatúrgica por ter surgido em minha vida de forma tão intensa durante a faculdade; estudando Teatro Latinoamericano, conheci a nossa América vizinha e um de seus grandes poetas. Em “Espelhos” – assim como em outras obras – Galeano fala sobre origem e criação. Do mundo, da natureza, do ser humano. Rudolf Laban, por outro lado, entrou em minha trajetória antes mesmo de eu existir. Minha mãe realizou sua pesquisa de mestrado enquanto eu habitava sua barriga – e a confluência de caminhos que me faz citá-la em um trabalho acadêmico é um motivo de grande orgulho – e nela, referência obrigatória para os estudantes de artes cênicas interessados em seus corpos presentes, Laban é um dos muitos pesquisadores cujo trabalho é analisado2. Voltei a me encontrar com a pesquisa de Laban novamente mediado por minha mãe. Nas aulas de Expressão Corporal, no início de meu Bacharelado em Teatro na Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH), vivenciei o estudo das dinâmicas do movimento durante o ano de 2011. Posteriormente, passei a pesquisar por conta própria as ações básicas em algumas experiências e processos criativos. O texto “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, de Jorge Larrosa Bondía é outro objeto de estudo recorrente em meus caminhos. Bibliografia e texto de apoio para algumas disciplinas na minha graduação, reencontrei o artigo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 1!LABAN,!1978,!p.19! 2

“O papel do corpo no corpo do ator”, publicado pela Perspectiva em 2002, é a pesquisa de mestrado de Sônia Machado de Azevedo, defendido em 1989 na ECA-USP.

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10! ! em momentos diversos da minha vida. O texto parece cada vez mais atual e necessário nos tempos de hoje, com minha leitura se renovando a cada retomada. O Viewpoints, de Anne Bogart e Tina Landau, está disseminado entre professores e diretores; foi ao encontrar seu livro para escrever este trabalho que notei o quanto já trabalhei com conceitos e exercícios apresentados pelas autoras. Um sistema que se propõe à pesquisa do ator dentro das circunstâncias concretas de tempo e espaço se tornou uma ferramenta importante para ancorar este processo criativo. A provocação dos sentidos no teatro contemporâneo, pesquisa de Stephen Di Benedetto, foi-me indicada pelo meu orientador, Prof. Dr. Vinicius Torres Machado. Não poderia ser diferente: importante parte da inspiração deste trabalho veio da parceria com ele, no primeiro semestre de 2014, como parte do Programa de Intervenção Supervisionada da Especialização em Direção Teatral da ESCH, que permitiu que eu acompanhasse o professor na disciplina Poéticas da Atuação, no 5º semestre do Bacharelado em Teatro. O trabalho do professor com os alunos me chamou muito a atenção. Havia uma relação de escuta, generosidade e, principalmente, uma sensibilidade muito apurada. Muito era falado sobre afecções, afeto, campo do sensível; havia um momento de experimentação dentro do processo de trabalho que muito me interessou: a criação partia de estímulos diversos que muitas vezes prescindiam de elaborações racional-analíticas. Buscando compreender como eu operaria trabalhando a partir de tais conceitos cheguei a concepção da performance afeto-instante-encontro. Tal performance foi apresentada no Encontro de Propostas Artísticas (EPA-ESCH) do primeiro semestre de 2014. Ela consistia em cerca de uma dúzia de performers que se relacionariam individualmente com seus públicos; ou seja, cada performance seria o encontro entre um performer e um receptor. Pré-selecionei textos de dois livros de Eduardo Galeano (“Memórias do Fogo I – Os Nascimentos” e “Espelhos”) e cada performer escolheu um para trabalhar. Todos os textos se relacionavam com a criação do mundo, de animais, do ser humano – eram lendas indígenas e de diversos povos, poetizados por Galeano. Assim, estabelecia-se um universo comum para o trabalho. A orientação era de que !

11! ! cada um decorasse e compreendesse a narrativa e o sentido do trecho de texto escolhido. O ato central da performance era o contato físico entre um performer e um receptor. Ao tocar a pessoa, de forma livre, o performer diria o seu texto, sem grande preocupação com entonações ou representações. A premissa era simples: toque uma pessoa e diga seu texto. O trabalho realizado em sala de ensaio foi um treinamento sobre a escuta e a percepção dos performers. As dinâmicas de Laban guiavam a pesquisa e exercícios de relação, de afetar e ser afetado, eram aplicados. Como o toque era central na pesquisa, os performers deveriam apurar cada vez mais seu sentido do tato, permitindo-se pesquisar suas transformações de estado interno a partir de estímulos relativos ao toque e também de outros relacionados à nossa pele: o vento, o calor, as texturas; até mesmo a ausência do toque era estímulo a ser experienciado. A apresentação no EPA foi extremamente satisfatória dentro das expectativas e ficamos todos, diretor e performers, muito felizes e tocados com o que havíamos realizado. Pelo evento estar com um público presente relativamente baixo – e contarmos com uma dúzia de performers – muitos dos que estavam lá foram receptores de mais de um performer, gerando comentários de experiências distintas. É a partir desta experiência que surge o desenvolvimento desta pesquisa. A performance, nos mesmos moldes que foi apresentada, será retrabalhada. Desta vez, se dará dentro do teatro, no espaço da plateia, e os 4 atores trabalharão apenas com um fragmento, que nomeia este trabalho – “de lágrimas somos”: Antes que o Egito fosse o Egito, o sol criou o céu e as aves que voam no céu e criou o rio Nilo e os peixes que pelo rio Nilo andam e deu vida verde às suas margens negras, que se povoaram de plantas e de animais. Então o sol, fazedor de vidas, sentou-se para contemplar sua obra. O sol sentiu a profunda respiração do mundo recém-nascido, que se abria diante de seus olhos, e escutou suas primeiras vozes. Tanta beleza doía. As lágrimas do sol caíam na terra e se fizeram barro. E esse barro fez as pessoas. (GALEANO, 2008, p. 14)

A meta é que todos os presentes passem pela experiência de ouvir a mesma fábula enquanto são tocados – mas serão tocados por atores diferentes e são todos únicos em suas individualidades; como será explorado no primeiro capítulo, a experiência é individual e intransferível. !

12! ! Como centro da pesquisa, porém, está um desenvolvimento do que havia sido feito na sala de ensaio: o encontro entre atores dentro do campo do sensório e a criação advinda desta relação, que tem a particularidade de preceder qualquer relação sociocultural estabelecida pela elaboração racional-analítica do que nos acontece. Este encontro entre os atores, o universo textual, o espaço e o tempo e, principalmente, com os estímulos gerados pelo toque, se afirmará como propiciador e catalisador de experiências. Será a partir de tais encontros que serão criados estudos cênicos diversos sobre um mesmo fragmento textual, a serem todos apresentados sequencialmente. Os estudos cênicos serão descobertos em processo, sendo preferível que a linguagem seja descoberta no próprio processo. Neste momento se torna claro o meu desejo em realizar esta pesquisa. Este trabalho foi feito para que eu possa compreender – ou vislumbrar – quem sou eu enquanto diretor teatral.

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13! ! 1. FIRMANDO A TERRA SOB MEUS PÉS: CONCEITOS ! Este

capítulo

busca

articular

dois

conceitos

fundamentais

para

o

desenvolvimento deste trabalho. Primeiro, sendo um objetivo da pesquisa gerar instantes de encontro entre performer e receptor, deve-se definir “encontro” como algo extraordinário; uma conexão real e possível entre alteridades. Levando-se em consideração a fugacidade do mundo contemporâneo, tal conexão não pode ser realizada dentro de uma lógica cotidiana. Assim, no anseio de alcançar tal objetivo, faz-se necessário analisar, articular e realizar o fazer artístico-teatral sob a ótica da experiência, como descrita por BONDÍA, 2002, p.21: A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.

Dessa forma, no processo criativo da cena de lágrimas somos, a ideia de experiência e saber de experiência serão centrais e norteadoras – pois mesmo que descritas por Larrosa Bondía dentro do campo da educação, sua fala pode ser dilatada para muito além da pedagogia, tratando, essencialmente, de questões inerentes ao mundo contemporâneo e, por consequência, ao teatro contemporâneo. E muito aplicada dentro de algumas áreas do teatro contemporâneo está a ideia de um processo criativo de pesquisa. Da mesma forma, não se pretende distinguir a experiência do ato teatral – enquanto encontro do público com a obra – da experiência do processo criativo e, nesse segundo caso, enquanto diversos encontros; entre diretor, atores, materiais e estímulos vários, principalmente relativos à sensação de tocar e ser tocado. Então, dentro das possibilidades de estímulos, chegamos ao segundo conceito a ser tratado neste capítulo: a recepção sensível. Lidando com a ideia de experiência, o processo e a obra buscarão gerar relações – entre atores e com o público de forma viva, orgânica, dentro do campo do sensório e não do racionalanalítico. Tal conceito é importante pois é a partir dele a escolha das diversas ferramentas de construção e apresentação da obra. Para um entendimento real do que estamos chamando de campo sensível da recepção, este capítulo dialogará com a obra de Stephen Di Benedetto (2010), onde !

14! ! o autor busca nos avanços da neurociência chaves de compreensão na recepção do espectador de uma obra teatral que, defende o autor, ressignifica e transforma nossa noção de realidade e visões de mundo. Apesar de existirem outras fontes mais diretas para estabelecer o diálogo entre neurociência e teatro, a escolha por Di Benedetto é por este já ter realizado a conexão entre tais assuntos pela ótica do teatro contemporâneo, tornando-o mais próximo e acessível para o presente trabalho. O estudo de Di Benedetto considera as bases fisiológicas do poder do teatro em afetar o comportamento humano. Tal compreensão torna-se necessária a partir do momento em que as artes abandonam a esfera da representação convencional e o público passa a não ter mais uma base comum para julgar – e até mesmo compreender – obras artísticas, dependendo da vivência e das experiências de cada um. Assim, a partir da conceituação de experiência e da reflexão sobre a recepção dos sentidos, a ideia de um instante de encontro real a ser construído, seja na sala de ensaio, seja no palco, se torna algo concreto e possível de ser trabalhado a partir das ferramentas a serem apresentadas no segundo capítulo e ao longo do trabalho e da potência da sensação do toque. 1.1. A experiência como potência teatral Esta pesquisa se propõe a observar, analisar e fazer teatro partindo do pressuposto de que este sempre busca ser propiciador de experiências, tendo como sujeito da experiência tanto o performer quanto o receptor. Jorge Larrosa Bondía define a experiência como o que nos acontece; a experiência teatral, ou, o teatro em si, será então definido pelos acontecimentos gerados nos encontros – sejam tais encontros em salas de ensaio, entre diretor e atores, no momento mais performático do de lágrimas somos ou na relação palco-plateia proposta pela construção cênica – e analisados a partir do saber gerado por estas experiências. Em uma sociedade constituída sob o signo da informação e o imperativo da opinião, onde “ser” é “ter opinião sobre”, permitir-se receptor de uma obra artística é uma tentativa – consciente ou não – de fuga desta lógica; cabe ao artista proponente, então, colaborar para este escape. !

15! ! É dar ao público a possibilidade de uma travessia, como o próprio estudo etimológico da palavra experiência (experiri) sugere: per, sua raiz indo-europeia, traz esta ideia; e o mesmo radical em latim, periri, faz a experiência relacionar-se com o perigo (periculum), seja de forma concreta, dentro de riscos reais como já vistos na história da performance art, sejam riscos subjetivos, metafóricos, narrativos. Tocar o outro, fisicamente, é convidá-lo ao risco. Na velocidade do cotidiano, tornamo-nos cada vez menos donos de nossos próprios corpos, em ônibus lotados e calçadas apertadas, esbarrando e sendo esbarrados a cada instante, recebendo estímulos por toda a parte e prontamente ignorando-os. Criar o momento de suspensão – um instante de abandono desta energia e atenção cotidiana – em que um estímulo é de fato recebido e, de alguma forma, processado, é essencial para a experiência de fato acontecer. A liturgia envolvida nas convenções teatrais tradicionais – a ideia de sinais, a luz apagada na plateia, a existência de um horário e espaço pré-definidos para o acontecimento – auxilia muito na construção desta suspensão. No entanto, a cada dia podemos verificar que ela, por si, já não é suficiente. Celulares ligados, conversas no público; parece que a sociedade já não encontra, dentro de seu cotidiano conectado, momentos para parar. Diversos métodos são vistos para evitar este “distanciamento digital”: da insistência de avisos, dentro e fora do projeto de encenação, antes e durante a peça à tentativas de interatividade. Se é papel do artista propiciar experiência, não deixa de ser função do público permitir-se sujeito de tal experiência. Não obstante, o proponente não pode apenas culpar seu receptor por não se envolver, tampouco exigir dele algum tipo de predisposição à obra; principalmente se não houve uma preocupação prévia real com este. No entanto, não existe “o público”; existem pessoas assistindo e se envolvendo com a obra, cada uma de sua forma específica. Aí reside a dificuldade na geração de um instante de encontro para pessoas tão diversas. Larrosa Bondía fala de um saber de experiência,

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16! ! (...) o que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da experiência não se trata da verdade do que são as coisas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece. (BONDÍA, 2002, p. 27)

E, por este se tratar do que nos acontece, é individual e único. É pela busca da construção deste saber de experiência que a cena se propõe ao contato individual com cada receptor e que a unicidade da experiência proporcionada pelo encontro apresente-se como um convite para uma função ativa do espectador na fruição do que virá a seguir, quando na relação palco-plateia. Permitir ao público este contato inicial com os atores e com a fábula, por assim dizer, dará a todos uma sustentação inicial em teoria igual – pela narrativa – mas extremamente diferente, seja pela relação com o ator pela forma que este irá lhe tocar ou pela forma que lhe contar, seja pela relação de cada um com a narrativa contada, seja pelo dia que tal pessoa estiver tendo. Pois “o acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular, e de alguma maneira impossível de ser repetida” (BONDÍA, 2002, p. 27). Paradoxalmente à esta preocupação com o público, de lágrimas somos se afirma e estabelece território como uma pesquisa processual da criação artística e da relação entre os criadores. Grotowski fala da comunhão necessária, do nascimento compartilhado entre diretor e ator e este trabalho buscará tais momentos de encontro e de experiência. A partir de estímulos diversos, a busca do diretor é de propiciar momentos de abertura para a experiência dentro da criação, tendo a própria experiência do fazer como norte ao invés de uma futura marcação cênica e espetacularização. De lágrimas somos se trata de atores compartilhando experiências de encontro com estímulos e materiais diversos – e isso já é uma missão assaz eloquente, pois, como afirma Bondía: A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a

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17! ! delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA, 2002, p. 24)

Se, como não poderia deixar de ser ao se afirmar teatro, a busca é por levar o público à cumprir todos estes “requisitos da experiência” quando no momento da apresentação, temos que, anteriormente, conseguir vivenciar ensaios sob a égide de tais requisitos. 1.2 Algo além do racional: a recepção pelo sensível Há um certo equívoco ao se falar em “recepção racional”. Por nossa fisiologia, a primeira resposta que temos a qualquer estímulo, seja ele interno ou externo, não pode se afirmar racional da forma que tendemos a compreender a palavra. Assim, a recepção nunca deixará de passar pelo campo do sensível pois é neste que é gerada qualquer elaboração. Se Bondía afirma que nossos pensamentos são, antes de qualquer coisa, palavra, Di Benedetto fala sobre a memória de trabalho, que rege a nossa voz e imaginário interior, uma memória que age no instante em que é construída e que acaba estando sempre em discrepância com a realidade: Nossa memória de trabalho é aquele domínio interior onde falamos com nós mesmos. É normalmente pensado para incluir a “fala interior” (o que você ouve você falando enquanto lê esta passagem silenciosamente) e o “imaginário visual” (o olho da mente, onde você imagina a sua mulher chegando em casa do trabalho e interrompendo a sua leitura). É apenas quando o foco da atenção se volta para um elemento da memória de trabalho que os conteúdos conscientes se revelam. (...) Nós temos que trabalhar para trazer à consciência nossas percepções viscerais de eventos mediados. (DI BENEDETTO, 2010, p. 9, tradução do autor)3

Pensando na divisão temporal possível nos dias de hoje, a distância entre a realidade e a ação de torna-la consciente a partir da memória de trabalho é mensurável e, portanto, nossa realidade já é elaboração do nosso cérebro, seja no campo sensível ou racional; não obstante, os mecanismos que dividem estímulos !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 3

“Our working memory is that inner domain in which we talk to ourselves. It is usually thought to include ‘inner speech’ (what you hear yourself saying while silently reading this passage) and ‘visual imagery’ (the mind’s eye, where you imagine your wife coming home from work and interrupting your reading). It is only when the spotlight of attention focuses on an element in the working memory that the conscious contents reveal themselves. (…) We need to work to bring to consciousness our visceral perception of mediated events.” (DI BENEDETTO, 2010, p. 9)

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18! ! advindos da ficção e do real são basicamente os mesmos e não é mentiroso afirmar que nossa realidade é representação. Mais do que representação, nossa realidade está submetida aos limites de nossa consciência. A memória de trabalho possui uma capacidade limitada de analisar estímulos e percepções externas, fazendo com que a consciência seja como uma luz acesa no centro de um palco enquanto há toda a escuridão em seu entorno – ela existe, mas nossa consciência não abarca o todo que nos ocorre e nos cerca. Nossa capacidade de responder conscientemente aos estímulos – que são constantes e, por uma questão de sobrevivência, em grande parte ignorados – é extremamente limitada; dessa forma, quando uma obra artística se propõe a falar aos sentidos, às sensações, há de se ter uma grande responsabilidade acerca de como falar com este território – seja de forma pré-cognitiva, seja com o que se pretende tornar consciente. Cada

experiência

pessoal

é

dependente

de

condicionamentos

pré

estabelecidos pelo nosso sistema neurológico de acordo com vivências, nossa bagagem cultural e o contexto social no qual estamos – ou já estivemos – envolvidos. Dessa forma, propor-se a falar aos sentidos, à pré-cognição, é um terreno tão ou mais arenoso do que a – aparentemente – simples comunicação. A ideia de tornar tangíveis sensações tão abstratas e caras para cada indivíduo é a base de onde se constrói a dita magia da obra teatral; ao mesmo tempo, estudos modernos demonstram que é possível falar à áreas do cérebro onde a realidade e a ficção estão extremamente próximos, e referenciar-se à uma memória ou ação é, para o cérebro, realizar tal ação: Nossos cérebros respondem como se estímulos, sejam reais, imaginados ou lembrados, estivessem ocorrendo agora. Nossos cérebros registrarão dor ouvindo sobre uma joelhada na virilha que um atleta experienciou durante uma falta, ou do tapa que o ator recebe no palco. (DI BENEDETTO, 2010, p. 11, tradução do autor)4

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“Our brains respond as if stimuli, whether real, imagined, or remembered, are occurring now. Our brains will register pain hearing about a knee to the groin that an athlete experiences during a foul, or from the slap the actor receives on stage.” (DI BENEDETTO, 2010, p. 11)

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19! ! Se isso se aplica ao aprendizado de sobrevivência, também é válido no que diz respeito à nossa sensibilidade. “Depois de um evento teatral nós nunca poderemos ser os mesmos”5. Não faltam relatos de experiências transformadoras relacionadas ao envolvimento em algum evento artístico-performático – Di Benedetto utiliza como exemplo o festival Burning Man6. Muitas vezes não sabemos colocar algo em palavras – novamente, indo contra Bondía, pois o ser humano também é imagens, sensações – mas apenas sabemos que algo nos aconteceu – indo na direção da definição de experiência de Bondía – e não houve alguma elaboração racional intrínseca à vivencia. É só depois que se consegue deixar a experiência decantar – e assim, criando o “saber de experiência”, um aprendizado ou sensação gerado por ela – que é possível analisar o que aconteceu. Em última instância, se aceitarmos que a estimulação sensual altera o cérebro, então esta é a meta de toda estimulação artística e o efeito potencial que o nosso cérebro plástico nos permite. Enquanto experienciamos o mundo, nossas sensações formam e moldam nossos cérebros e colorem nossas percepções do mundo. Arte é prazerosa, e o cérebro é conducente a estímulos que são prazerosos, portanto a arte pode influenciar profundamente o modo como o cérebro é estruturado. Estudos cerebrais recentes provaram que nossas memórias de eventos ativam as mesmas partes do cérebro que o evento real ativou – lembrar é reviver, e portanto é experiência. Como interpretamos tais experiências dá o sentido delas. (DI BENEDETTO, 2010, p. 22, tradução do autor)7

Mesmo assim, tal análise costuma passar longe de uma compreensão racional e tende a se referenciar em aproximações imagéticas, analogias e metáforas que buscam explicar algo indizível: “Enquanto as imagens geradas

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“After a theatrical event we can never be the same.” (DI BENEDETTO, 2010, p. 29) Festival anual realizado no meio do deserto de Nevada, nos Estados Unidos. O evento reúne centenas de performances e outras manifestações artísticas que ocorrem incessantemente por dias. 7 “Ultimately, if we accept that sensual stimulation changes the brain, then this is the aim of all artistic stimulation, and the potential effect that our plastic brain allow us. As we experience the world, our sensations shape and mold our brains and color our perceptions of the world. Art is pleasurable, and the brain is conducive to stimuli that are pleasurable, thereby art can deeply influence the way that the brain is structured. Recent brain studies have proven that our memories of events activate the same parts of the brain that the actual experience did – to remember is to relive, and therefore it is experience. How we interpret these experiences gives the experiences meaning.” (DI BENEDETTO, 2010, p. 22) 6

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20! ! durante a performance podem desaparecer da memória, um semblante da experiência vai continuar na memória do espectador”8. É o interesse por esta experiência que não necessita se justificar racionalmente que move a presente pesquisa. A partir dos sentidos dos atores, estimulados por diversas fontes, externas ou internas, de materiais concretos ou abstratos – pois fisiologicamente somos capazes de criar estados diferentes a partir de estímulos abstratos – vivenciar experiências e organiza-las enquanto processo artístico. O foco estará no sentido do toque, compreendendo ele como o mais amplo dos sentidos – e não isolando-o, pois nossos sentidos operam em rede, capturando estímulos por diferentes receptores e compreendendo-os como um todo – e essencial e diretamente ligado à nossa evolução e à nossa existência: O toque é dez vezes mais forte do que o contato verbal ou emocional, e afeta praticamente tudo que nós fazemos. Nenhum outro sentido pode te provocar como o toque. Nós sempre soubemos disso, mas nunca percebemos que havia uma base biológica. Se o toque não fosse bom não haveriam espécies, parentesco ou sobrevivência. A mãe não iria tocar seu bebê do jeito certo a menos que a mãe sentisse prazer neste fazer. Se nós não gostássemos da sensação de nos tocar e dar tapinhas, nós não faríamos sexo. Aqueles animais que se tocaram mais instintivamente tiveram uma prole que sobreviveu e teve mais energia, e então passou adiante sua tendência ao toque que se tornou mais forte. Nós esquecemos que o toque não é apenas básico para nossa espécie, mas a chave para ela. (FIELD, 2003, apud DI BENEDETTO, 2010, p. 70, tradução do autor)9

O trabalho que dialogue entre sensibilidades precisa ser apurado até que, em ensaios, estejamos reagindo de forma a nos conectar com um estímulo primário; pois é a compreensão de como este estímulo adentra a nossa consciência que nos

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“While images generated during the performance may fade from memory, a semblance of the experience will remain within the memory of the attendant” (DI BENEDETTO, 2010, p. x) 9 “Touch is ten times stronger than verbal or emotional contact, and it affects damned near everything we do. No other sense can arouse you like touch. We always knew that, but we never realized it had a biological basis. If touch did not feel good, there would be no species, parenthood, or survival. The mother would no touch her baby in the right way unless the mother felt pleasure in doing it. If we did not like the feel of touching and patting one another, we would not have had sex. Those animals that did more touching instinctively produced offspring which survived and had more energy, and so passed around their tendency to touch which became even stronger. We forget that touch is not only basic to our species, but the key to it.” (FIELD, 2003, apud DI BENEDETTO, 2010, p. 70)

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21! ! conduzirá à ressignificação de nossas interpretações sobre o material levantado em processo de uma forma livre de nossas expectativas habituais. Se no momento inicial de de lágrimas somos os atores tocarão de fato os espectadores, o trabalho tem como foco determinar – e, porque não dizer, treinar – a qualidade deste toque. A pele é o maior órgão do ser humano e está sujeita, assim, a ser a maior receptora de estímulos no dia a dia – desde a roupa que nos toca e os pelos repousados nos braços, as mudanças de temperatura, o vento, os outros. Dessa forma, há de se criar uma percepção afiada de tantos micro estímulos quanto possível nos atores para que estes estejam abertos para os estímulos a serem gerados no encontro entre eles e o público. O toque é o sentido mais social; é o único que, no geral, não se dá individualmente, mas apenas em relação. Sendo assim, é também dos mais íntimos. A responsabilidade envolvida na comunicação entre sensibilidades se apresenta mais imediata neste momento. Apesar de todos possuirmos os mesmos mecanismos biológicos para recebermos estímulos do mundo, são nossas vivências e contextos culturais que determinam como vamos, de fato, recebe-los. Ao escolher tocar o público, escolhemos tocar em mentes totalmente desconhecidas para nós; o cuidado é fundamental. Ao escolher trabalharmos coletivamente em um processo onde o acesso à estímulos tão primais é um norte, a abertura, a paciência e a compreensão são fundamentais.

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22! ! 2. SEMEANDO A TERRA: FERRAMENTAS Com o objetivo de transpor e trabalhar tais conceitos na prática da pesquisa, foram selecionadas duas ferramentas principais que servirão de fios condutores para as improvisações. Este capítulo visa uma articulação entre elas, a proposta teórica e conceitual do trabalho assim como sua viabilidade e aplicação nos ensaios. A primeira ferramenta são as dinâmicas do esforço apresentadas por Rudolf Laban em seu estudo do movimento na forma mais primitiva – as ações básicas10 – que, nesta pesquisa, serão usadas como forma de tomada de consciência do ator quanto a qualidade do movimento gerado por estímulos diversos e vice-versa; na compreensão de como uma qualidade de movimento altera seus impulsos internos. Tal trabalho permitirá ao ator perceber como um pensamento que se dá em movimento e não em palavra se relaciona com seu estado, com sua relação com o outro, com o espaço, com o material dramatúrgico e com estímulos diversos. Também visando a relação entre os estímulos, nossos corpos, o tempo e o espaço, serão discutidos e utilizados exercícios do sistema Viewpoints, proposto originalmente pela coreógrafa Mary Overlie e adaptado para o teatro por Anne Bogart e Tina Landau. ! ! !

Viewpoints é uma filosofia traduzida em uma técnica para (1) treinamento de performers; (2) construção de conjunto; e (3) criação de movimento para o palco. Viewpoints é um conjunto de nomes dados à certos princípios do movimento através do tempo e do espaço; estes nomes constituem uma linguagem para falar sobre o que ocorre no palco. Viewpoints são pontos de percepção que um performer ou criador se utiliza enquanto trabalha. (BOGART; LANDAU, 2005, p. 7-8, tradução do autor)11

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As ações básicas são as formas elementares de organização do movimento a partir de sua função objetiva e de sua sensação; tratam da articulação entre as possibilidades-limite dentro dos fatores de movimento (Peso, Espaço, Tempo e Fluência). (LABAN, 1978, p. 112115) 11 “- Viewpoints is a philosophy translated into a technique for (1) training performers; (2) building ensemble; and (3) creating movement for the stage. - Viewpoints is a set of names given to certain principles of movement through time and space; these names constitute a language for talking about what happens onstage. - Viewpoints is points of awareness that a performer or creator makes use of while working.” (BOGART; LANDAU, 2005, p. 7-8)

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23! ! Tanto a técnica de Laban quanto os Viewpoints são utilizados principalmente como vocabulário comum entre diretor e atores, como um solo fértil à ser semeado em pesquisa. São formas de se estruturar e falar sobre o que está sendo feito e descoberto. 2.1. As dinâmicas do movimento no corpo, voz e discurso Uma representação vital quase sempre decorre do reconhecimento do fato de que os meios visíveis e audíveis da expressão do artista são exclusivamente compostos por movimentos. (...) O movimento humano com todas as suas implicações mentais, emocionais e físicas é o denominador comum à arte dinâmica do teatro. (LABAN, 1978, p. 28-29)

Compreendendo

o

teatro

como

uma

arte

presencial

que

se

dá,

essencialmente, no fazer visível o invisível pelo trabalho do ator e somando a essa compreensão aos conceitos apresentados no primeiro capítulos – a ideia do processo de criação e da obra teatral como experiência e os estudos relativos ao nosso campo dos sentidos e como este rege a nossa recepção – a pesquisa de Rudolf Laban surge como base prática para o trabalho. A busca é, portanto, de compreender tais movimentos e como eles agem sobre atuantes e espectadores, em processo e em apresentações. Laban chama de esforço os impulsos internos que motivam nossos movimentos – segundo ele, todos os movimentos partem de desejos: O homem se movimenta a fim de satisfazer uma necessidade. Com sua movimentação, tem por objetivo atingir algo que lhe é valioso. É fácil perceber o objetivo do movimento de uma pessoa, se é dirigido para algum objeto tangível. Entretanto, há também valores intangíveis que inspiram movimentos. (LABAN, 1978, p. 19)

A ideia de que nosso movimento pode ser gerado por valores intangíveis pode ser compreendida de maneiras distintas. Por um lado, há valores intangíveis que pertencem ainda a um campo racional-analítico do nosso pensamento e, portanto, organizados – como emoções e valores morais que, mesmo sendo abstratos, possuem nomes, por exemplo. No entanto, tal inspiração pode partir de valores que se encontram além da nossa consciência – que, como explorado no primeiro capítulo, não abarca toda a realidade que nos cerca – e anteriores à organização racional-analítica; puro desejo. !

24! ! A pesquisa de como seriam os movimentos gerados por esta potência subjetiva não articulada à palavras e como entrar em contato com esta inspiração nos remete novamente ao capítulo anterior, no que diz respeito aos impulsos que nos cercam, tanto os interiores quanto os exteriores ao nosso corpo, e como eles podem vir a nos mobilizar e como se traduzem externamente12. É precisamente esse ponto, a construção da ponte entre o nosso caldeirão interior da subjetividade e o mundo externo, que a presente pesquisa busca apoio nos escritos de Rudolf Laban. Ao compreender esforço como impulso interno e a forma como decorrente dos movimentos corporais dos atores, surge a necessidade de encontrar a conexão esforço-forma (E -> F). A partir desta necessidade, é o próprio Laban quem esquematiza o movimento em oito ações básicas, sempre em relação à três elementos ou temas: Peso, Espaço e Tempo. Por Peso, pode-se pensar a quantidade de energia implicada na realização de um movimento; com o tônus corporal envolvido. Ou seja, relaciona-se com a intensidade dele, compreendendo como conceito desde o extremo da leveza até a mais pesada resistência. Tal fator do movimento pode ser visto como o mais subjetivo, pois, apesar de tão visível quanto os outros, está mais ligado ao esforço do ator do que a um dado concreto. Por Espaço, a relação do movimento com sua dinâmica de deslocamento – se é um movimento com uma trajetória retilínea, com um início e um fim precisos, ou se é um movimento que possui mais flexibilidade, realiza mais curvas e não possui uma trajetória estabelecida. Por Tempo, há tanto a relação com a velocidade com que o movimento é executado quanto com sua duração e prontidão. Movimentos súbitos e breves até os mais longos e lentos. De uma forma semelhante à ideia da construção do saber de experiência apresentada anteriormente, Laban contrapõe um raciocínio analítico que ele nomeia palavra-pensamento à uma compreensão física chamada pensamento-movimento. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 12

A ideia de impulsos subjetivos gerados pela relação de distância entre os corpos, objetos e o espaço também vai de encontro, ainda que de outra forma, ao Viewpoint chamado resposta cinestésica, que será explorado mais adiante neste capítulo.

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25! ! Ou seja, o ator deve explorar sua relação com o Espaço, por exemplo, não através da organização racional de um pensamento, mas através da experiência do corpo em ação. Assim, a partir destes três temas – e incluindo também a Fluência como um quarto elemento, este sendo compreendido através da relação entre os outros três e sua organização – Laban elenca oito ações básicas do movimento. Os esforços, ou ações básicas que compõem a dinâmica do movimento são oito: deslizar (movimentos leves, diretos e lentos), flutuar (leves, flexíveis e lentos), socar (fortes, diretos e súbitos), empurrar (fortes, diretos e lentos), torcer (fortes, flexíveis e lentos), chicotear (fortes, flexíveis e súbitos), pontuar (leves, diretos e súbitos) e sacudir (leves, flexíveis e rápidos). Essas ações básicas devem ser treinadas pelo ator; este treino auxilia-o a perceber a origem interior e a forma exterior de seus movimentos. (AZEVEDO, 2008, p. 66)

Entre parênteses, as três qualidades do movimento que dizem respeito aos três temas: leve e forte são intensidades do Peso; direto e flexível, do Espaço; lento e súbito (ou rápido), do Tempo. Não só as ações básicas se relacionam com estes três temas, como também a pesquisa do dançarino – ou, como no caso desta pesquisa, o ator – passa por sua relação com cada um destes elementos, separadamente ou se acumulando. É só depois da compreensão de como o corpo se relaciona com estes temas que se inicia o estudo sobre as ações básicas. Apesar dos nomes serem específicos e sugerirem ações concretas, as ações básicas não se limitam à execução de seu nome. Devem ser compreendidas, no entanto, como sugestões para a pesquisa do ator, sendo mais importante entender como cada uma se relaciona com sua combinação específica de Tempo, Espaço e Peso. Fazer com que o ator invista toda a atenção de seu esforço nessa combinação entre os três temas permite à ele pesquisar de fato o caminho E->F (esforço -> forma) e como este é alterado pelas diferentes combinações realizadas. Essa compreensão é fundamental para o presente trabalho. Se, conforme colocado no primeiro capítulo, o norte do trabalho é a experiência e a busca é pela relação entre os estímulos sensórios e a criação, é fundamental que o ator !

26! ! experiencie como seu próprio material, corpo e voz, pode ser trabalhado antes mesmo de buscar estímulos exteriores. Diferentes dinâmicas do movimento tendem a gerar sensações e estados diferentes em cada ator. Àqueles mais agitados, de pensamentos e fala rápida, por exemplo, podem se sentir incomodados com dinâmicas como o deslizar, por sua leveza, lentidão e suavidade. Outros, mais contidos e tranquilos, ao realizar movimentos dentro da dinâmica do socar, por exemplo, podem descobrir estados explosivos dentro de si que não costumam visitar. As dinâmicas são, portanto, ferramenta fundamental da pesquisa individual de cada ator para que este experiencie e busque compreender como seu estado interior dialoga com formas de movimento distintas e, com essas percepções, consigam utiliza-las a seu favor dentro da criação. Assim, as dinâmicas podem ser utilizadas como ferramenta de criação cênica e de estabelecimento de um discurso. Estudar um texto ou uma ideia a partir de um esforço específico pode dar a ele cores novas; assim como coloca-los em oposição. Um texto agressivo acompanhado de uma movimentação construída no flutuar, por exemplo, pode ressignificar uma cena e abrir possibilidades de leitura. Também tais dinâmicas podem ser pensadas na voz, tanto na pesquisa de sons a partir das oito ações básicas para que o ator descubra novas possibilidades sonoras, quanto na aplicação prática no estudo do texto. Atores muitas vezes possuem vícios na fala; intenções marcadas, palavras valorizadas demais, enfim. Estudar o texto definindo dinâmicas distintas para cada palavra, frase ou trecho pode permitir aos atores desprender-se das leituras óbvias e superficiais, descobrindo novos sentidos ou mesmo subvertendo-os. Assim, no presente trabalho, as ações básicas são utilizadas como forma de pesquisa e descoberta individual dos atores, vocabulário comum para os ensaios e improvisações, possibilidade de construção de discurso cênico (no movimento e também na voz) e ferramenta para o estudo do texto e transposição dele para a cena.

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27! ! Não obstante, elas também surgem como possibilidades de proporcionar estímulos sensórios específicos ligados à qualidade de cada uma delas, potencializando a criação a partir do contato físico e do sentido do toque. 2.2. Desenhar paisagens em um processo de descoberta A escolha pela utilização do Viewpoints nesta pesquisa se dá por este se apresentar como um sistema prático de trabalho que vai muito em direção dos conceitos apresentados. Trabalhar com Viewpoints é trabalhar no tempo presente, com a escuta atenta e o corpo aberto para os estímulos que vierem. “Ao invés de forçar e fixar uma emoção, o treinamento em Viewpoints permite que sensações indomadas surjam da situação física, verbal e imaginativa real onde os atores se encontram juntos.”13 (BOGART; LANDAU, 2005, p. 16, tradução do autor). Para se pesquisar o processo de criação à partir de estímulos sensórios e da relação entre os atores, o espaço e o material; o Viewpoints serve como um organizador para que a experiência possa acontecer – se as técnicas de Laban nos ajudam a compreender a relação e o caminho entre esforço e forma, este sistema colabora na inserção destas descobertas no espaço e na relação entre os atores a partir da concretude do tempo presente, fornecendo uma instrumentalização possível para uma criação que prescinde da representação. Originalmente, foram seis os Viewpoints criados pela coreógrafa Mary Overlie na década de 1970: Espaço, Forma, Tempo, Emoção, Movimento e História. Sua ideia era a de estruturar a improvisação na dança dentro do tempo e do espaço14. Anne Bogart conheceu Mary e seu trabalho no final da década de 1970 e notou que essa abordagem poderia ser aplicada ao trabalho do ator. Em 1987, Anne conhece Tina Landau e por dez anos trabalharam e desenvolveram os Seis Viewpoints até chegarem em nove Viewpoints Físicos e cinco Viewpoints Vocais.

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“Instead of forcing and fixing an emotion, Viewpoints training allows untamed feeling to arise from the actual physical, verbal and imaginative situation in which actors find themselves together.” (BOGART; LANDAU, 2005, p. 16) 14 “Mary immersed herself in these innovations and came up with her own way to structure dance improvisation in time and space – the Six Viewpoints: Space, Shape, Time, Emotion, Movement and Story.” (BOGART; LANDAU, 2005, p. 5)

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28! ! Os Viewpoints Físicos são divididos em Viewpoints de Tempo e Viewpoints de Espaço: Viewpoints de Tempo: • Tempo – A velocidade com a qual um movimento ocorre; o quão rápido ou lentamente algo acontece no palco. • Duração – Por quanto tempo um movimento ou uma sequência de movimentos dura. Duração, em termos do trabalho de Viewpoints, se relaciona especificamente com quanto tempo um grupo de pessoas trabalhado junto se mantém em uma mesma seção do movimento antes que ele se altere. • Resposta Cinestésica – Uma reação espontânea ao movimento que ocorre fora de você; o momento em que você responde à eventos externos de movimentos ou sons; o movimento impulsivo que ocorre de uma estimulação dos sentidos. Por exemplo: alguém bate uma palma na frente do seus olhos e você pisca em resposta; ou alguém bate uma porta e você impulsivamente levanta de sua cadeira. • Repetição – A repetição de algo no palco. Repetição inclui: (1) Repetição Interna (repetindo um movimento de dentro do seu próprio corpo; (2) Repetição Externa (repetir a forma, o tempo, o gesto, etc., de algo exterior à seu corpo). Viewpoints de Espaço: • Forma – O contorno ou esboço que o corpo (ou os corpos) fazem no espaço. Toda Forma pode ser quebrada em (1) linhas; (2) curvas; (3) uma combinação de linhas e curvas. Portanto, no treinamento de Viewpoints nós criamos formas que são curvas, formas que são angulares e formas que são uma mistura dessas duas. Ainda, a Forma pode ser (1) estacionária; (2) se movendo através do espaço. Por último, a Forma pode ser feita em uma destas três maneiras: (1) o corpo no espaço; (2) o corpo em relação à arquitetura fazendo uma forma; (3) o corpo em relação à outros corpos fazendo uma forma. • Gesto – Um movimento envolvendo uma parte ou partes do corpo; Gesto é Forma com um início, meio e fim. Gestos podem ser feitos com as mãos, os braços, as pernas, a cabeça, a boca, os olhos, os pés, o estômago ou qualquer outra parte ou combinação de partes que podem ser isoladas. Gesto é dividido em: 1. Gesto Comportamental. Pertence ao mundo físico e concreto do comportamento humano que observamos na nossa realidade diária. É o tipo de gesto que você vê no mercado ou no metrô: coçar, apontar, acenar, fungar, reverenciar, saudar. Um Gesto Comportamental pode dar informações sobre o caráter, período histórico, saúde física, circunstâncias, clima, roupas, etc. É normalmente definido pelo caráter da pessoa ou o tempo e local onde vivem. Também pode ter um pensamento ou intenção por trás. Um Gesto

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Comportamental pode ser ainda mais dividido e trabalhado em termos de Gestos Privados e Gestos Públicos, distinguindo entre ações realizadas na solidão e aquelas feitas com a consciência ou com a proximidade de outros. 2. Gesto Expressivo. Expressa um estado interior, uma emoção, uma ideia ou um valor. É abstrato e simbólico ao invés de representacional. É universal e atemporal e não é algo que você normalmente veria alguém fazendo no mercado ou no metrô. Por exemplo, um Gesto Expressivo pode ser a expressão de, ou significar, emoções como “alegria”, “pesar” ou “raiva”. Ou pode expressar a essência interna de Hamlet como um ator específico a sente. Ou, em uma produção de Tchekhov, você pode criar e trabalhar com Gestos Expressivos de ou para “tempo”, “memória” ou “Moscou”. Arquitetura – O ambiente físico no qual você está trabalhando e como a percepção dele altera o movimento. Quantas vezes nós vimos produções onde há um luxuoso e complicado cenário cobrindo o palco e mesmo assim os atores se mantém no centro baixo, dificilmente explorando ou usando a arquitetura que lhe cerca? Trabalhando a Arquitetura como um Viewpoint, aprendemos a dançar com o espaço, a dialogar com a sala, a permitir que o movimento (especialmente Forma e Gesto) se desenvolva a partir do entorno. Arquitetura é dividida em: 1. Massa Sólida. Paredes, pisos, tetos, móveis, janelas, portas, etc. 2. Textura. Se a massa sólida é madeira ou metal ou tecido vai mudar a forma de movimento que criamos em relação a eles. 3. Luz. As fontes de luz na sala, as sombras que fazemos em relação à essas fontes, etc. 4. Cor. Criar movimento a partir das cores do espaço; por exemplo, como uma cadeira vermelha no meio de tantas pretas iria afetar a sua coreografia em relação àquela cadeira. 5. Som. Som criado por e pela arquitetura; por exemplo, o som de pés no chão, o ranger de uma porta, etc. Adicionalmente, trabalhando com a Arquitetura, criamos metáforas espaciais, dando forma à sensações como eu “estou contra a parede”, “pego entre as fendas”, “preso”, “perdido no espaço”, “no umbral”, “alto como uma pipa”, etc.



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Relação Espacial – A distância entre as coisas no palco, especialmente (1) um corpo e outro; (2) um corpo (ou corpos) e um grupo de corpos; (3) um corpo e a arquitetura. Qual é a gama completa de distâncias possíveis entre as coisas no palco? Que tipo de grupamentos nos permitem ver uma figura mais clara no palco? Que grupamentos sugerem um evento ou emoção, expressam uma dinâmica? Tanto na vida quanto no palco tendemos a nos posicionar em uma distância segura de um ou meio metro de alguém com quem

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estamos falando. Quando nos tornamos conscientes das possibilidades expressivas das Relações Espaciais no palco, começamos a trabalhar com distâncias menos educadas mas mais dinâmicas de extrema proximidade ou extrema separação. Topografia – A paisagem, o padrão de piso, o desenho que criamos no movimento pelo espaço. Ao definir uma paisagem, por exemplo, podemos decidir que a parte baixa do palco tem uma alta densidade e é difícil de se mover, enquanto a parte alta tem uma densidade menor e então permite maior fluidez e tempos mais rápidos. Para entender padrões de piso, imagine que as solas dos seus pés estão pintadas de vermelho; quando você se move pelo espaço, a imagem que se desenvolve no piso é o padrão de piso que surge ao longo do tempo. Ainda, encenar ou conceber uma performance sempre envolve escolhas sobre o tamanho e a forma do espaço que vamos trabalhar. Por exemplo, nós podemos escolher trabalhar em uma faixa estreita de um metro ao longo do palco ou em uma forma triangular gigante que cobre todo o piso, etc. (BOGART; LANDAU, 2005, p. 8-12)15

Há uma relação clara entre os Viewpoints e o trabalho de Rudolf Laban. Se Laban elenca suas oito ações básicas do movimento a partir de três temas (Peso, Espaço e Tempo), Bogart e Landau elaboram nove atenções a partir de dois destes temas, sendo que o Peso também está presente em algumas delas – na Forma e no Gesto, por exemplo; o Peso determina como estas são realizadas. Dessa forma, entre os Viewpoints de Tempo, pode-se pensar Tempo, Duração e Repetição como inclusas na pesquisa dos atores das oito ações básicas: apesar das duas primeiras serem, de certa forma, estruturantes das ações básicas – se um deslizar abandona o tempo lento e a duração longa e se torna muito rápido e súbito, ele deixa de ter tal qualidade e se torna, por exemplo, um socar – há um enorme campo de micro variações entre tais Tempos e Durações; a Repetição torna-se fundamental, então, não apenas para a fixação de um movimento e a pesquisa intrínseca a ele, mas também para a descoberta de tais micro variações em ação. Já a Resposta Cinestésica possui a particularidade de não depender do próprio ator, mas sim da relação dele com o espaço e com os outros. É, portanto, um desenvolvimento na pesquisa; uma possibilidade do ator se abrir para os !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 15

Pela ausência de tradução publicada no Brasil do “Viewpoints Book” (BOGART; LANDAU, 2005), o autor decidiu incluir no capítulo a tradução feita por ele da definição de cada Viewpoint.

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31! ! estímulos externos – indo ao encontro com o objetivo deste trabalho. É a partir do treinamento sobre a Resposta Cinestésica, da apuração da escuta do outro e do mundo, que é possível nos conectarmos aos nossos instintos mais primitivos – nossos reflexos espontâneos independem da elaboração racional-analítica a partir do estímulo recebido. Entre os Viewpoints de Espaço, para a presente pesquisa são ressaltados dois: Forma e Gesto, por estes estarem mais relacionados aos objetivos do trabalho16. Assim como os Viewpoints de Tempo, a Forma também possui uma relação direta com as ações básicas de Laban. Se a busca era pelo caminho esforço – forma, neste momento a atenção vai para o segundo. A Forma, como Viewpoint, pode ser pesquisada tanto como algo estacionário, parado, como também em movimento; na pesquisa com as dinâmicas, as formas são mais relacionadas ao movimento e não a uma imagem estática. Além disso, as Formas também podem ser criadas em conjunto com outros corpos e o espaço, em relação ou em oposição à eles. Dentro das possibilidades de construção no processo criativo, o Viewpoint de Gesto vem com grande importância. Se, para o presente trabalho, não há interesse no estudo do Gesto Comportamental – pela compreensão de que este se relaciona com convenções socioculturais e, sendo assim, se afasta das respostas mais sensoriais de nossos corpos – a ideia do Gesto Expressivo ganha força. Com apenas um texto curto como dramaturgia escrita, um caminho viável para a criação é a improvisação a partir de Gestos que expressem imagens, ideias, sensações que o universo textual – e por consequência, cênico – nos fornece. O Gesto Expressivo pode vir a se tornar a manifestação em movimento dos valores intangíveis citados por Laban como inspirações de movimentos e também ele próprio criador de tais valores.

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O que não significa, no entanto, que os demais não foram utilizados e pensados dentro do trabalho prático. A Arquitetura e a Relação Espacial dialogam claramente com a construção de uma escuta atenta ao que nos cerca e sensações advindas desta pesquisa; a Topografia permite ao ator criar novos espaços dentro da Arquitetura real onde está inserido para verificar como a elaboração de limites ficcionais transforma a pesquisa.

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32! ! Bogart e Landau também falam sobre os “presentes” que o Viewpoints nos dá. Entre eles, permitir que algo ocorra no palco ao invés de fazer algo ocorrer e, essencial para este trabalho, a ideia de Plenitude: Viewpoints acorda todos os nosso sentidos, tornando claro o quanto e quanto tempo nós vivemos apenas em nossas cabeças e vemos apenas por nossos olhos. Através do Viewpoints aprendemos a ouvir com todo o nosso corpo e ver com um sexto sentido. Recebemos informações de níveis que nem tínhamos a consciência que existiam, e começamos a nos comunicar de volta com a mesma profundidade.17 (BOGART; LANDAU, 2005, p. 20, tradução do autor)

Uma tomada de consciência frente à recepção sensória dos estímulos do mundo que nos cerca e um aprendizado de como estabelecer uma comunicação com a mesma intensidade e potência; deixando de lado as percepções convencionais e as tentativas de resposta racional-analíticas frente a um universo que não se organiza necessariamente dessa forma. Outro ponto fundamental para o trabalho é o que Bogart e Landau chamam de “soft focus”. Em tradução livre, uma “atenção suave”. É um estado físico onde permitimos que nossos olhos relaxem e que nossa percepção venha da escuta de todo o corpo e não apenas de uma visão focada em algo. Dessa forma, focamos a atenção no todo que nos cerca. Para isso, é preciso não ter um desejo específico a ser concretizado – pois ao estabelecermos um objetivo a ser alcançado, nossa visão acaba sendo limitada pelo que diz respeito à este objetivo. Visando a criação cênica a partir de estímulos que ocorrem no tempo presente, dentro e fora de nós, este “esvaziamento” de objetivos e desejos internos – que muitas vezes, tentam conduzir o trabalho com ideias e movimentos pré-concebidos – deve ser o ponto de partida dos ensaios, deixando todos os artistas abertos para o que virá. Também existem os Viewpoints Vocais. São todos os Físicos, excetuando-se apenas a Topografia, e mais cinco: Tom, Dinâmica, Aceleração e Desaceleração, Silêncio e Timbre. O trabalho sobre a voz na presente pesquisa, como apresentado no item 2.1., se dará pela descoberta das possibilidades para além da conotação de

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“Viewpoints awakens all our senses, making it clear how much and how often we live only in our heads and see only through our eyes. Through Viewpoints we learn to listen with our entire bodies and see with a sixth sense.” (BOGART; LANDAU, 2005, p. 20)

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33! ! cada palavra e sim para as informações e a expressividade presente nos sons em si18. Um trabalho onde as duas ferramentas apresentadas neste capítulo se sobrepõem pode ser rico para a compreensão não apenas do caminho E->F mas de seus dois extremos. Uma Forma estática, por exemplo, pode ser o resultado de um esforço mas também ser trabalhada como geradora de novos e; um Gesto Expressivo pode ser articulado a partir das ações básicas que o compõe e pode ele próprio sugerir novas ações. A pesquisa se retroalimenta e se mantem em movimento. Dessa forma, é a partir das ações básicas de Rudolf Laban e das atenções propostas por Bogart e Landau que de lágrimas somos busca se afirmar como gerador de experiências e construir uma cena a partir de estímulos sensórios e do texto de mesmo nome de Eduardo Galeano.

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O trabalho sobre os Viewpoints Vocais se dá neste sentido. A pesquisa com atenção ao Tom é para descobertas e percepções sobre o alcance vocal de cada um; a atenção à Dinâmica diz respeito ao volume da voz e como um volume diferente altera a percepção e a recepção de cada palavra; a atenção ao Timbre é uma pesquisa das sonoridades do nosso próprio corpo, emitindo-os através de diferentes caixas de ressonância; Aceleração e Desaceleração determinam a velocidade com a qual falamos e emitimos sons; e a última atenção, o Silêncio, nos remete à ideia de John Cage de que um som é tão alto quanto o silêncio que o circunda – é imprescindível incorporar o silêncio ao trabalho. Muitas vezes estamos quietos, em pouquíssimas nos calamos.

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34! ! 3. RUMO À PRIMAVERA: CONSTRUÇÃO !

Este capítulo visa registrar o processo prático de pesquisa e construção da

cena apresentada. Para tanto, utilizarei anotações próprias e também dos atores. Pela natureza deste trabalho – e, na minha compreensão, de todo trabalho que envolva a criação artística – vou iniciar o registro onde compreendo que tal prática começou a ser organizada no meu ser. Como citado na introdução, foram diversos elementos que me trouxeram até esta pesquisa. Dois deles, de ordem prática e ocorridos no início de 2014, foram fundamentais e basais. Dentro do primeiro – a assistência para o Prof. Dr. Vinicius Torres Machado na disciplina Poéticas de Atuação do Bacharelado em Teatro da ESCH – fui mais conduzido pelo processo do que condutor. Talvez por isso tenha resolvido iniciar o segundo – a performance afeto-instante-encontro. Voltando às Poéticas da Atuação, a turma em questão era, por acaso, uma com a qual eu já havia realizado um trabalho anteriormente. Durante minha graduação, dentro do programa de Monitoria da ESCH, acompanhei-os na disciplina Fundamentos da Interpretação I19. Assim, foi um reencontro interessante; estávamos todos mais maduros, de alguma forma. O primeiro dia que cheguei na sala de aula foi extremamente marcante. O professor aplicou um exercício e me convidou para participar. O exercício consistia nos alunos posicionados em dois círculos, um inserido no outro, estando todos sempre de frente para uma pessoa. A orientação era a de se relacionar com a pessoa em nossa frente de três formas: um toque, um texto20 e um beijo. Tais ações eram extremamente concretas, assim como a forma como o estado daquele que agia e do receptor eram alterados. Nas anotações deste dia, muito registrei a respeito de renovar o olhar sobre o outro, redescobrir relações a partir deste afetar e ser afetado. Consta em meu diário !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 19

Fundamentos da Interpretação I é uma disciplina do primeiro semestre do Bacharelado em Teatro da ESCH. Os alunos possuem disciplinas de interpretação em todos os semestres; em Poéticas da Atuação, no quinto semestre, o trabalho se dá sobre possibilidades de atuação compreendidas no âmbito do teatro contemporâneo. 20 “A noite pouco antes das florestas”, de Bernard-Marie Koltès, havia sido lido na semana anterior pelos alunos e viria a ser o escolhido para a montagem do semestre.

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35! ! de processo: “afetos que nos absorvem ou nos absortam; nos preenchem esvaziando ou esvaziam preenchendo (...) somos todos corpos carentes com a sensibilidade aflorada. a pesquisa em cada cm de pele.”. Só agora, olhando para trás, consigo ter o discernimento para afirmar que foi já naquele momento que esta pesquisa foi apontada. A potência deste encontro que prescindia de qualquer fábula ou articulação racional para acontecer me interessou profundamente. Entre eu e um outro, algo se transformava por um olhar, um toque, um texto. Em outro exercício, feito em duplas, onde uma pessoa deveria tentar se levantar e a outra impedir tal ação, registrei ideias que também dizem muito respeito à esta pesquisa: “o objetivo é o norte mas esticar a trajetória é o barato; tensionar o arco. (...) abrir mão de desejos para se abrir para o desejo do outro.”. A palavra mais repetida em meu diário é “afeto”. Talvez pelo trabalho continuamente despertar sensações diversas em mim, mero observador em muitos momentos; e desta observação surgir a percepção de como os alunos-atores também se transformavam durante os exercícios e ao longo do processo. O professor me deu a oportunidade de conduzir um trabalho em um dia; uma proposta a partir das dinâmicas do movimento de Laban. Primeiro, os alunos deveriam experimentar todas as dinâmicas, transitando entre elas de forma conduzida e, depois, livre. Passado este momento de retomar21 as ações básicas, o texto deveria ser inserido e a pesquisa se daria com as dinâmicas no corpo e na voz, em harmonia ou em oposição. A partir destas experimentações, os alunos deveriam passar a fixar o material levantado, verticalizando a pesquisa e posteriormente organizando-a em uma partitura. A ideia deste trabalho era permitir aos alunos experienciar formas diversas de criação dentro de um mesmo processo, e serviu bem ao seu propósito: muitos alunos claramente esgotaram seus repertórios, desconstruindo vícios e deixando para trás sua zona de conforto22.

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Os alunos da graduação estudam as dinâmicas do movimento de Laban no primeiro ano do curso, nas disciplinas Expressão Corporal I e II. 22 Importante ressaltar, também, que materiais levantados durante este exercício acabaram servido de base para cenas apresentadas no resultado final do processo.

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36! ! Escrevi, durante a observação de um momento da aula onde os alunos trabalhavam o aquecimento vocal a partir de uma cantiga de roda, um poema. Ele, mesmo específico e extremamente conectado com aquele instante, serve como um registro poético da minha compreensão do processo coletivo de criação: navegar junto por novos ares-horizontes-mares desconhecido balanço do abismo à margem dele; a profundidade da mirada e a distância do salto-onda fossa abissal somos seres de água com torrentes interiores à transbordar; sê represa sê barragem domina o fluxo e faz dele rio-mar navegável; chame o público para a travessia. marinheiros sós, marinheiros sois. marinheiros-sóis cria-se o instante-espaço para as coisas poderem só acontecer e só é muito.

O texto escolhido para o trabalho, um monólogo de Koltès, não possuía uma linha de ação dramática tampouco havia um desenvolvimento de ações. Dessa forma, muito da organização das cenas se dava pelo ritmo – e suas rupturas – da fala. Ao mesmo tempo, a compreensão de que o texto era o que iria unir aquelas mais de vinte figuras23 dentro de um mesmo espaço-situação proposto trazia um cuidado com ele. A construção de sentido muitas vezes brincava a partir não do sentido lógico do texto, mas de sua sonoridade e dos outros elementos cênicos. Esta relação entre a significação do texto e dos demais elementos da cena na recepção do público me inspirou para a concepção de afeto-instante-encontro. Com a possibilidade de apresenta-lo no Encontro de Propostas Artísticas (EPA) da ESCH, decidi convidar alunos da instituição através de uma convocação em um mural. Com cerca de uma dúzia de artistas, realizamos alguns encontros até a data do EPA. Neles, foquei por um trabalho pré-expressivo, de descoberta. O foco era, principalmente, desnudar-se de construções representativas para o momento da

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Os 26 alunos construíram figuras a partir de leituras próprias do texto, de algum trecho específico ou de personagem citada, além de propostas outras, como o encontro aleatório de objetos e adereços nas ruas e a inserção de notas dissonantes dentro da composição estética da figura.

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37! ! abordagem do outro e permitir-se aberto ao encontro entre as potências existentes em cada um. Assim, eram propostos trabalhos relacionados à atenção suave, à percepções das sutilezas do olhar, do toque físico e dos estímulos advindos de tais ações. Massagens como forma de conscientização corporal, improvisações a partir de ações básicas pré-estabelecidas, construção de relação a partir de um número limitado de ações – um toque, uma palavra – ou a partir do universo sugerido pelo texto foram meios utilizados. A performance foi realizada por cerca de uma hora durante o evento, com um alcance amplo – quase todos os presentes fizeram parte da experiência de um ou mais performers – e uma resposta positiva. Depois de tais experiências, cada uma transformadora à sua própria maneira, é que este trabalho se deu. A escolha pelo convite à atores que haviam participado da performance se deveu pela compreensão de de lágrimas somos se organizar como a continuidade de uma semente que acabara de ser plantada. Dessa forma, tais atores já estariam familiarizados com minha forma de trabalhar e com a ideia do projeto. 3.1. Abrir a escuta para perceber a si mesmo deitados no chão. o cotidiano, as trajetórias, o repertório. a preocupação é ser quem for – agora. não há preocupação cênica (sempre há…)24.

No primeiro ensaio com os quatro atores, uma pesquisa individual sobre o sentido do toque. Sem que lhes fosse orientado, todos deitaram no chão. Iniciei o trabalho, então, a partir da pesquisa de cada um com a relação do peso do seu corpo no chão, buscando inicialmente um abandono total do corpo para então partir para uma tomada de consciência. redescoberta da pele. o toque. acordar o toque descobrindo o corpo. lugares em si mesmo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 24!Ao longo do capítulo, serão inseridos trechos do diário de bordo do pesquisador, da forma que foram escritas.

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38! ! A orientação seguinte foi a de que pesquisassem a própria pele. A partir de pequenos movimentos, tatear o piso, suas roupas, a si próprio, o ar. Cada um deles seguiu para rumos diversos da pesquisa e eles tiveram a liberdade para tal durante algum tempo. Minhas interferências eram os estímulos musicais escolhidos (na maioria, músicas instrumentais) e provocações faladas (“como é tocar uma parte do seu corpo que você gosta muito?”, por exemplo). Os

atores,

circulando

livremente

pelo

espaço

de

olhos

fechados,

pesquisavam individual e coletivamente; duplas se formavam e se desfaziam, trazendo um novo universo de possibilidades dentro do sentido do toque. Haviam cócegas, apertões, carícias, agressões… Ao mesmo tempo, havia a orientação de que se surpreendessem: partissem dos clichês, do óbvio, dos movimentos compreendidos dentro do repertório de cada um e de suas relações pré-estabelecidas. A partir do que já lhes era esperado, passar a observar o que mais poderia surgir daquela base conhecida. Posteriormente, passei a insistir mais na radicalização da pesquisa – na intensidade e velocidade do toque, principalmente – e comecei a pedir para que um ou outro ator falasse o texto sem parar o que estava fazendo. Nesse momento já surgiram partituras – ainda que não fixas – interessantes e, agindo como um primeiro receptor, já estabeleci uma série de leituras sobre o que estava sendo feito. Dessa forma, pude perceber a potência do ator presente em pesquisa, descobrindo o que estava fazendo no instante em que o fazia, em um claro exercício do pensamento-movimento proposto por Laban. Dando sequência ao trabalho, orientei aos atores que passassem a pesquisar com os olhos abertos para o mundo – resgatando a ideia da atenção suave do Viewpoints, um olhar ainda mais do corpo do que da visão – e, assim, passei a observar a potência da relação estabelecida. Nos ensaios seguintes, mantive a pesquisa relativa ao toque e inseri orientações referentes à diferentes dinâmicas do movimento, definindo o campo da pesquisa para cada ator – uma ou algumas ações básicas de Laban – a partir da minha observação. Cada ator é o sujeito de sua própria experiência; foram suas vivências que o formaram como pessoa e moldaram quem ele é hoje. Desta forma, a

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39! ! partir da observação deles no cotidiano e, de forma mais intensa, em trabalho, é possível ter a clareza das diferentes “energias” de cada um. Estas “energias” estão conectadas às personalidades e trajetórias de vida, em sintonia ou oposição, de cada ator. Indicam tendências de comportamento e, ainda que possam soar abstrata, tais percepções se dão de forma muito concreta ao observarmos a velocidade na qual o ator costuma trabalhar, o plano onde ele se mantém a maior parte do tempo, a amplitude de seus movimentos. A pesquisa se enriqueceu quando passei a, partindo da minha percepção sobre a energia de cada um, tentar tirá-los de suas zonas de conforto. Por mais que não costume ser agradável para o ator, parece que é quando mergulhamos no desconforto que as maiores descobertas podem acontecer. Foi a partir desta percepção, por exemplo, que passei a orientar uma atriz a trabalhar em movimentos grandes, já que sua tendência era focar em movimentos mínimos do corpo; outro, que passava grande parte do trabalho investindo em movimentos com o Peso forte, foi orientado a pesquisar em lugares mais solares e leves. há uma tendência da minha condução levar p/[ara o] euzinho

Importante notar, também, a minha energia e como ela transformava e guiava o trabalho. Desde a seleção de músicas até a entonação da voz utilizada em minha voz de comando, era tudo muito sutil: a pesquisa ficava, por vezes, ensimesmada. Há, sim, o momento de ensimesmar-se no trabalho; é quando o ator volta sua atenção para si. No entanto, o que acontecia é que o ator não apenas ficava em si como também diminuía este ser, como se não estivesse integrado à todo o universo a sua volta. Assim, eu também buscava sair da minha própria zona de conforto e também deixar um pouco de lado minhas expectativas, me mantendo primariamente no aquiagora a fim de conduzir a pesquisa a partir do que de fato está acontecendo a minha volta, escutando os atores e suas propostas; ser condutor mas ao mesmo tempo permitir que o trabalho conduza o meu olhar.

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40! ! Dentro do campo já conhecido pelos atores também havia a criação a partir de um estímulo novo – tocar-se e tocar ao outro abriu um campo nunca explorado (ao menos, não com tal objetivo) para a pesquisa. Fui insistente quanto a ideia de compreender os exercícios e dinâmicas como experiência, afim de desvincular, assim, a busca pela expressividade, tão natural para o ator. Dessa forma, a expressividade se manifestava a partir de outro viés: o do corpo presente em estado de descoberta. Tal estado, construído em sala de ensaio desde o primeiro momento, a partir dos exercícios de chegada e das músicas selecionadas, se mostrou extremamente eficaz. Sem a preocupação de criar cenas propriamente ditas, os atores, mais soltos, acabavam por, enquanto experienciando sensações, criar formas expressivas sem uma elaboração prévia destas. Com o saber de experiência construído não apenas da trajetória artística de cada um, mas principalmente da participação dos atores na performance afetoinstante-encontro, o processo já se iniciou com um alicerce construído. A escuta corporal já estava atenta e a possibilidade de aflorar a sensibilidade, deixando-a literalmente à flor da pele se tornou um dado concreto rapidamente. Organicamente

a

pesquisa

individual

gerou

partituras

corporais



acompanhadas ou não da dramaturgia – que foi trabalhada diversas vezes a fim de se organizar enquanto material cênico. Tal material fez parte de de lágrimas somos. 3.2. Compor com o mundo: o outro, o espaço, o texto A pesquisa individual já se dava em relação ao espaço e ao texto. No entanto, o outro era apenas corpo de passagem, não mais do que um encontro ao acaso devido ao trabalho de olhos fechados, mas também nunca ignorado; pequenas relações surgiam destes micro encontros – no entanto, rapidamente cada um voltava à pesquisa individual. Neste momento, houve uma relação clara do trabalho com o Viewpoint Relação Cinestésica: a pesquisa era transformada pela proximidade do outro, percebida não pela visão mas pelo toque. Uma grande dificuldade do trabalho foi realizar a transição do individual para o coletivo: como já apontado, ao estabelecer relações, mesmo de olhos fechados e se intensificando quando do contato visual, os atores tendiam a rapidamente !

41! ! construir uma fábula. Tal construção, em si, não seria um problema tendo em mente a experiência e o toque como nortes da pesquisa; é possível que uma fábula se construa a partir das sensações geradas pelos estímulos que se dão no tempo presente. No entanto, a tendência observada era de que a fábula sempre acabava se dando em um mesmo registro: um tipo de representação naturalista, de registros vocais e entonações engessadas, que acabava por levar toda a improvisação para esta linguagem. Os atores, então, passavam a analisar e decidir o que fazer a seguir a partir desta elaboração de linguagem, o que, dentro desta proposta, diminuía a potência do encontro real. A perda era nítida na qualidade do trabalho; com a escuta atenta, os atores rapidamente passaram também a perceber quando isso ocorria, chegando a prescindir da minha orientação para buscarem outra relação. Era a partir destas outras relações estabelecidas que surgiram as experiências que vieram a se tornar material cênico. Diversas questões foram levantadas, na prática, pelo grupo. A primeira foi a relação do toque versus ausência. Como é estar recebendo um estímulo, seja ele de afeto ou de agressão, e subitamente deixar de recebe-lo. Também, a mudança súbita do estímulo: sentir os dedos de outro ator deslizando sobre sua pele e, em um instante, o deslizar se tornar um empurrar25 firme; a alteração de estado era imediata. Depois, o “quase-toque”: Uma atriz fez menção de tocar as costas de um ator – que não notou por algum tempo. O estímulo do toque se deu pela proximidade entre os corpos26. Também, o toque em quem não está inserido na pesquisa, em relação direta com a performance afeto-instante-encontro. A minha figura, apesar de presente e próxima, não estava inserida no mesmo contexto de pesquisa dos atores e, por algumas vezes interferir fisicamente no trabalho, via meu toque como mais um

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Deslizar e empurrar, aqui, são ações básicas do movimento descritas por Rudolf Laban. Ver capítulo 2. 26 Ver Viewpoints: Relação Cinestésica, no capítulo 2.

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42! ! estímulo, porém distinto. E, talvez o mais interessante, a contenção de reações como possibilidade catalisadora de esforços27. Em um dado momento, um dos atores foi orientado à não reagir aos estímulos gerados. “Ataque sem defesa!”, anotei em meu diário. Duas atrizes o pressionavam contra o chão, prendendo seus braços, espremendo seu rosto, enfim, estímulos fortes e, de certa forma, agressivos. O ator se conteve durante todo o processo, até que as duas pararam. À ele, então, foi dada a orientação de fazer o que o corpo estava pedindo; liberar tudo que havia condensado. O resultado foram movimentos pesados, tensos, de uma libertação física e energética. O ator empurrava, socava, talhava o chão. A partir destas observações e experiências, o material cênico passou a se estruturar de uma forma ao mesmo tempo orientada e orgânica. Enquanto havia, sempre presente, minha voz de comando, uma condução que limitava, dava liberdade, provocava, tranquilizava; também interferências físicas, quando eu tocava os atores a fim de aprofundar a pesquisa ou leva-la para outro lugar, enfim, a figura de um diretor que observava, conduzia, provocava e selecionava momentos, imagens, narrativas e afetos, os atores, enquanto corpos em pesquisa, fluíam dentro de tais conduções, não cabendo a eles esta preocupação de tornar cena as pulsões humanas. O texto se tornou, portanto, mais uma camada de leitura; nos forneceu um universo comum para o trabalho, mas não foi necessariamente norte ou nuclear. Nos forneceu subterfúgios imagéticos, pontos de partida; a preocupação em ensaios não era conta-lo como normalmente se compreende contar uma história. Havia a narrativa que Galeano escreveu. Havia a narrativa das nossas compreensões e imagens a partir do que Galeano escreveu. Haviam narrativas sonoras e a narrativa do silêncio. Havia a narrativa de corpos solitários e de corpos em comunhão. Havia a narrativa do movimento e a narrativa da forma estática. E todas elas nos interessavam igualmente.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! 27

Esforço, aqui, está compreendido dentro da pesquisa de Rudolf Laban. Novamente, ver capítulo 2.

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43! ! 3.3. Um outro olhar: registros de dentro Como uma possibilidade de observar como foi o processo, seguem citações extraídas do registro escrito dos ensaios realizadas pelos atores. Durante os ensaios, haviam momentos específicos para tais anotações e a orientação era a de que os atores à passassem para mim da forma que elas foram realizadas28. Eu sou a sutileza Eu não quero que me vejam Eu não quero que me toquem Eu não quero relações Eu não quero o outro Eu quero eu Eu quero eu De mim para mim O instante sou eu e só eu A vida só sou eu O respiro sou eu O toque sou eu Mas eu não sou eu Sutilmente abafada, amassada e calada dentro do “não sou eu”. O instante é a sutileza Eu sou o instante. (...) Os olhos fechados me impedem de ver o que eu sou obrigada a aceitar Assim, eu vejo o mundo de verdade: com o coração.

Ainda é mistério p/ mim como só o movimento pode levar a algo (...) [no ensaio seguinte:] Estou tentando achar o lugar (...)

Chão, frio, pele, nariz, boca, quadril, chão, frio, pé, encontro, mão, mão no pé, pé na mão, chão, chão, frio, pé no pé, pé no quadril, pé na mão, giro no chão, chão, frio, engatinhar, encontrar, perna na mão, puxão, cadeira, adeus, solidão, sentado, andando, de pé, dançar, brincar, cócegas, adeus, solidão, ir e vir, querer e não ir, tato, cadeira, pensar, lembrar, chão, chão, chão, nada, nada, nada, encontrar, perna na mão, puxão, girar, segurar, cócegas, torturar! [no ensaio seguinte:] Antes de tudo leveza. Caminhar leve, ser leve, quebrar leve, torcer leve. Espaço, ar, caminho. Leveza. Então caminhar, caminhar,

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Todos estão cientes de que suas citações poderiam vir a ser utilizadas dentro deste trabalho. Por opção do autor, cada citação se manterá anônima.

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44! ! caminhar, correr, caminhar, caminhar, caminhar, correr, encontrar. Encontro forte, dor, opressão, prisão, fuga, luta, força. Empurrar, largar e segurar, fugir e encontrar, temer e procurar. Braço, força, tensão, segurar, dizer. Ficar ali, estar junto, força e junção, encontro e prisão. Depois sentir, sentir tocar, sentir, assoprar, sentir falar, sentir cuidar, depois incomodar, toque invasivo, cabelo puxado, não soltar, não querer ficar, não poder sair, reagir, lutar, tentar sair, não poder ficar, falar, lutar, tentar sair, não poder ficar, falar, lutar, tentar sair, sair, sair, sair. Provocar, provocar, fazer sentir, fazer falar, cutucar, incomodar, prender, machucar, segurar, torturar, empurrar, ofender, magoar, oprimir, acarinhar, segurar, sustentar, apoiar, oprimir, torturar, provocar e abandonar.

O tempo inteiro somos tocados e não sentimos mais. (pra evitar a loucura?) Quente. Frio. Macio. Duro. Onda. Pelos... Desespero em tocar. Desespero em reconhecer através do toque. (Re)conhecer. Cada toque, em cada lugar, uma memória inconsciente. Eu já vivi esse toque ou sonhei que vivi? Essas memórias são de fato minhas ou vieram por esse ar, por esse chão, por esse pele, por esse cheiro com o toque? O que reverberou veio de onde? Toque. Por que a gente não se deixa tocar? [no ensaio seguinte:] (...) E o contorcer me levou pra algo já visitado no outro encontro, um contorcer, esfregar, a pele. E também acabei sendo direcionada para retomar de fato o que havia sido descoberto no encontro anterior. Dessa vez acabou vindo um tanto mais agressivo e desesperado essa busca por deixar a pele sentir, abrir os poros. A mudança com o flutuar, o deixar abrir, leve, acabou vindo menos dessa vez. Mas também quando trouxe o texto para a fala, acabou se gerando um significado diferente do da semana passada. Também tinha um desespero. Mas era um desespero mais "leve". Havia o desespero, mas também tinha um lugar de "contação de história" que ainda não sei explicar bem. Quando o texto acabou, um desespero mais pesado voltou, porém, quando o Amilton encostou na minhas costas, foi uma coisa muito impactante, porque instantaneamente, com o toque de outra pessoa, meu corpo mudou completamente de ritmo. Ainda havia tudo que já estava construído ali, mas agora em sintonia com o novo toque que chegou. E que reverberou. Que causou um encontro. Um pequeno acontecimento.

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45! ! 4. A COLHEITA: CONCLUSÕES Nomeei os capítulos deste trabalho no momento em que escrevi o seu préprojeto. Desde então, o nome da pesquisa e muitos subtítulos foram alterados, mas mantive a analogia com a ideia de um campo a ser semeado e os frutos colhidos ao final do processo. Seria impossível chegar ao final com conclusões assertivas, ligando todos os pontos e fechando o significado de tudo que foi discutido e construído no processo. Sendo assim, esta é a colheita de frutos desconhecidos. E talvez estes sejam o que verdadeiramente interessam. Vislumbro, então, a potência destes frutos desconhecidos. Vislumbro quatro atores em cena realizando o desafio de ser e de vir a ser. Quatro seres vivos, existindo inteiramente e reagindo ao leve arrepio da pele. Os quatro, em momentos particulares, desenhando narrativas próprias. Os dois, três ou quatro se relacionando para reinventar narrativas, desconstruir e falar o texto de formas impensadas e desorganizadas. Serão desenhos cênicos construídos a partir dos corpos no espaço, com a expectativa da relação ator-espectador ter sido ressignificada a partir da performance anterior à cena. 4.1. A criação é um devir Se propor pesquisar o momento da criação é se colocar sempre num presente potencial. Conectar a escuta atenta ao instante e ao mesmo tempo se deixar transformar pelo instante que virá. Dessa forma, o presente trabalho se prestou a compreender um dos possíveis vieses para a condução deste momento que está sempre por vir a ser. O interesse central, para além de uma pesquisa de linguagem ou de possibilidade cênica, foi o da criação a partir de estímulos sensórios. Neste sentido, foi possível observar, tanto na articulação de conceitos teóricos quanto na prática de trabalho, o quanto o campo dos sentidos, atualmente bastante explorado na recepção do público, é um solo fértil a ser semeado durante a criação em salas de ensaio. !

46! ! Esta pesquisa nunca pretendeu encerrar-se em si. Eu a vejo como um ponto de partida para a articulação do próximo desejo. Talvez, a aplicação desta experiência de criação no âmbito de uma prática de encenação, de forma que a pesquisa se elabore enquanto estética. Outra possibilidade é a utilização do campo sensorial como matriz para a criação de personagens. A própria performance afeto-instante-encontro, apesar de anterior à pesquisa e já retrabalhada, possui como nuclear a relação do toque entre performer e receptor, o que abre um leque de possibilidades de continuidade e novas apresentações à partir dos saberes de experiência que foram construídos pelos atores/performers e como isso transforma a relação com novos receptores. Realizar esta pesquisa, articulando conceitos e ferramentas, experimentandoos na prática, serviu para instrumentalizar um possível eu-criador. Dessa forma, a conclusão mais rica a ser extraída é estritamente pessoal. Como Laban afirma, na primeira citação deste trabalho, todo movimento nasce da necessidade de satisfação de um desejo. Não sei afirmar ao certo quando este “movimento” nasceu em mim, e tampouco acredito que meus desejos estejam plenamente satisfeitos; finalizei, porém, um ciclo dentro desta necessidade. E pude experienciar como é estar em um processo artístico-acadêmico dentro de uma sala de ensaio. À isso, sou grato.

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47! ! REFERÊNCIAS AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. 2a ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. BOGART, Anne; LANDAU, Tina. The Viewpoints Book: A Practical Guide to Viewpoints and Composition. New York: Theatre Communications Group, 2005. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. São Paulo: n. 19, p. 20–28, 2002. DI BENEDETTO, Stephen. The provocation of the senses in contemporary theatre. New York/London: Routledge, 2010. GALEANO, Eduardo. Espelhos – Uma história quase universal. São Paulo: L&PM, 2008. LABAN, Rudolf; ULLMANN, Lisa (Org.). Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1978. TORRES MACHADO, Vinicius. A matéria cênica e o tempo de sua percepção: uma proposta de agenciamento teórico. 2014. 196 f. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2014.

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