De \"partes (de África)\" não se faz um todo

Share Embed


Descrição do Produto

88

vozes consonantes ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA BROWN UNIVERSITY

Das “partes (de África)”

não se faz um todo

1

Veja-se, a título de exemplo, como no romance Vícios e Virtudes tudo acontece com figuras e situações supostamente ficcionais que correspondem muito à situação real do autor. 2

Helder Macedo, Partes de África. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 160.

“We love stories as much as we need them, but a funny thing happened to departments of literature. The study of literature as an art form, of its techniques for delighting and instructing, has been replaced by an amalgam of bad epistemology and worse prose that goes by many names but can be summed up as Theory“ Rebecca Newberger Goldstein, “Theory, Literature, Hoaz, Essay“, The New York Times Book Review, May 9, 2010

“Um olhar crítico sobre a epistemologia do suposto ‘reconhecimento do desconhecido’” poderia servir de subtítulo a este ensaio, a explicitar melhor o seu objetivo. Há muito que venho escrevendo sobre textos supostamente críticos, sobretudo do campo da literatura, que se embrenham pelos labirintos de problemáticas filosóficas. Sem que a filosofia pertença a qualquer domínio privado, possui todavia as suas regras e uma infindável produção ao longo de dois milénios e meio que não pode ser ignorada por quem, vindo de outras áreas, decide debater sobre tábua rasa velhas questões carregadas de uma história pejada de complexas posturas e agudos debates. Estes são sempre abertos e apenas se requer a quem faz incursões por qualquer campo que, no mínimo, se inteire das questões e dos argumentos em circulação. É óbvio que qualquer pessoa pode intervir e contribuir independentemente do campo de onde provém. Esta é uma entrada generalista, tal como a epígrafe que encabeça estas considerações, e só de leve se aplica ao romance que aqui gostaria de trazer para análise de algumas páginas. O seu autor, um vernáculo cultor da língua, responsável por pelo menos um excelente romance da literatura portuguesa do século XX – Pedro e Paula –, é um respeitabilíssimo interventor na cena da crítica literária lusófona, com estudos lapidares, como por exemplo o seu trabalho sobre Menina e Moça de Bernardim Ribeiro. A escolha de Partes de África para cobaia de um escrutínio analítico prende-se com o facto de o autor, conhecido já pela inserção nos seus romances de informação retirada da vida real, se bem que com a intenção irónica de a usar metaforicamente1, transcrever aí quase por inteiro uma comunicação apresentada num congresso no Brasil. Para nos apercebermos da linguagem referencial direta e unívoca do autor, será necessário citar por inteiro a introdução ao texto que aqui me proponho analisar: Estava eu assim de novo nestas cumplicidades estóicas [a leccionar sobre Bernardim, Cesário, Camilo Pessanha e António Nobre] quando o Fernando Gil me veio desencaminhar com um projecto para repensarmos juntos as percepções do real e do imaginário na literatura quinhentista portuguesa, as relações entre a verdade que se dá como ficção e a ficção que se dá como verdade. Fiquei devidamente em pânico, até que percebi que se calhar a proposta dele era relacionarmos alhos com bugalhos, o que me deixou logo muito mais descansado porque afinal para isso até me estive aqui a treinar sem o saber. E como por essa altura também chegasse um convite para ir a um congresso no Rio de Janeiro falar dos Descobrimentos, eu gosto sempre de lá ir e o convite era da Cleonice, aproveitei para completar o treino com uma comunicação em forma de fivela, atando aquilo que já disse nestas minhas já quase concluídas partes de África àquilo que talvez de novo irei dizer diferente na história quinhentista do porvir, para reconhecer o desconhecido.2

onésimo teotónio almeida

vozes consonantes

Dificilmente se poderá usar linguagem mais referencial, convenhamos. As figuras nomeadas são reais e conhecidas, altamente respeitáveis do pensamento e das letras lusófonas: Fernando Gil e Cleonice Berardinelli. Helder Macedo abre uma secção diferente com esse mesmo título específico de “Comunicação” e começa precisamente por dizer que o título dela – “Reconhecer o desconhecido” – “pressupõe um paradoxo frequentemente manifestado nos primeiros encontros entre povos de civilizações diferentes, a razão dos ilusórios entendimentos e dos equivocados desentendimentos que estiveram na origem da construção dos impérios.” 3 Prossegue anunciando que, porque vai falar dos Descobrimentos, vai “procurar ilustrar através de três ou quatro exemplos a maneira como os pioneiros da aventura imperial reconheciam o que não conheciam, projectando nas coisas e nos povos que foram encontrando os seus próprios desejos, medos, ideais, fantasmas, superstições – em suma, o seu imaginário.” E acrescenta: “A palavra latina ‘invenire’, que significa ‘encontrar’ ou ‘descobrir’, é também a raiz da palavra ‘inventar’”.4 Um pouco mais adiante, Helder Macedo faz uma outra afirmação inquestionável: “os pioneiros europeus levaram consigo a sua língua e, dentro dela, os seus conhecimentos, as suas metáforas, as suas crenças”.5 Mais ainda: “Quando o que se lhes deparava excedia os limites dos conhecimentos, recorriam às metáforas; quando estas ameaçavam subverter a ordem da razão estabelecida, sempre havia a fé para bloquear os abismos do ininteligível.” 6 Após abonar esta última afirmação com versos de Camões, prossegue: Mas até para Camões, até também para Mendes Pinto que, de par com Camões, foi o mais universalista dos portugueses da primeira diáspora imperial, a percepção do desconhecido acaba sempre por voltar a ser um reflexo do conhecido.7 O ensaísta-romancista explica que Camões, ao trazer a diferença para dentro da norma literária que era o platonismo, o faz ainda com os olhos de Petrarca, esclarecendo embora: “Ambos chegaram ao ponto de ruptura, o que já foi mais longe do que podia ser”.8 Temos que prosseguir com uma leitura muito ao pé da letra, sempre corroborada pela citação, a fim de que o pensamento do autor fique justamente reproduzido antes de esboçarmos qualquer comentário crítico. Assim, “[a]s fronteiras entre o observado e o imaginado são sempre muito ténues”, “colocando tanto o que havia quanto o que não havia no mesmo plano da imaginação em que a expectativa precede o conhecimento, a interpretação se sobrepõe à observação e a analogia neutraliza a diferença.” 9 “Pois não é verdade que ainda hoje chamamos ‘índios’ aos originais habitantes das américas onde agora estamos, mesmo quando não? Negada a expectativa, o nome continuou a registá-la, como nos mapas as ilhas imaginárias.” 10 O autor prossegue apresentando outros exemplos sempre dentro das mesmas coordenadas teóricas, que na segunda parte desta leitura serão objeto de escrutínio. Mas não sem um prévio comentário geral à guisa de introdução. Na verdade, para nos situarmos melhor, será oportuno principiarmos mesmo por uma declaração de caráter teórico que explique ao que vêm os meus comentários. As análises do teor desta incluída em Partes de África não estão propriamente erradas, apenas acentuam uma única face da moeda. É que o conhecimento humano – e não é só com os portugueses e os imperialistas que assim aconteceu, mas também com os nativos e com seja quem for – avança por um processo dialético, entre a experiência e as ideias feitas, através do qual a mente aborda a realidade. Não é necessário entrarmos aqui pela velha questão em que tanto se empenhou Karl Popper sobre se, ao criar uma hipótese, um cientista estará completamente entregue à experiência, ou se a interrogação que faz ao real será já fruto de uma dúvida que a sua mente formulou11. Nunca mais daí sairíamos porque a análise confirmaria que cada caso é realmente um caso, mas têm todos algo em comum: o processo cognitivo desencadeia-se num diálogo recíproco, labiríntico, no entanto, sempre dialético entre a experiência e a mente. O velho debate entre os empiristas e os racionalistas – os primeiros, sobretudo de tradição inglesa, apontando para o papel primordial da experiência – e os racionalistas, defendendo a primazia da mente e da razão no processo cognitivo – está de há muito ultrapassado. Hoje a ciência estabelecida aceita o chamado empirismo racionalista ou racionalismo empírico, como a fusão dos dois, não como resultado de um compromisso político mas como reconhecimento de que é de facto assim que o conhecimento avança, nessa interação constante entre a experiência e a razão.

89

3

Ibidem, p. 160.

4

Ibidem, p. 161.

5

Ibidem.

6

Ibidem.

7

Ibidem.

8

Ibidem, p. 162.

9

Ibidem.

10

11

Ibidem.

Karl Popper, no seu Conjetures and Refutations, por exemplo, escreveu magníficas páginas sobre esta problemática do confronto entre as hipóteses preconcebidas e a sua refutação pela experiência. As refutações da experiência empírica acabam por se impor e as hipóteses iniciais são descartadas.

vozes consonantes

90

12

Veja-se o meu “Science during the Portuguese maritime discoveries – a telling case of interaction between experimenters and theoreticians”, in Daniela Bleichmar, Paula De Vos, Kristin Huffine and Kevin Sheehan, (eds.), Science in the Spanish and Portuguese Empires, 1500-1800. Palo Alto, CA: Stanford University Press, 2008, pp. 78-92, 348-351. 13

Helder Macedo, op.cit., p. 162.

14

Ibidem, p. 162.

15

Ibidem, pp. 162-163.

onésimo teotónio almeida

No caso dos Descobrimentos portugueses estamos em presença de um grupo de marinheiros liderados por uma pequena elite conhecedora que dirige o processo e que é detentora de informações herdadas dos antigos, misturadas com crenças de toda a ordem provindas do imaginário popular. Obviamente que eles carregam consigo a mente repleta dessas imagens, formatadas dentro de um paradigma medieval. Ao serem, porém, confrontados com experiências novas, reagem procurando assimilar a nova informação fazendo sentido dela à luz dos conhecimentos que têm, mas são também impressionados pelo novo, que registam e acumulam, o que aos poucos acaba por alterar profundamente a visão recebida que com eles viajava. Em situações que de todo não conseguem entender, chegam a anotar os dados para depois em terra apresentarem os novos problemas aos “matemáticos” que ficaram atrás, embora envolvidos no processo12. Obviamente que isso não acontecia com todos os marinheiros. Alguns deles tinham trabalhos tão menores como tirar água do fundo do barco, e mal viam a luz do dia. É claro também que não eram diariamente confrontados com novas informações capazes de pôr em causa alguma faceta do seu imaginário. Vejamos, por exemplo, o caso da narrativa de Pêro Vaz de Caminha ao descobrir terra brasileira. Sobre ele diz Helder Macedo que, “tal como Américo Vespúcio na carta a Lorenzo Pier Francesco de Medici, a sua mente recorre à tradição mítica europeia sobre a Idade de Oiro ou o Jardim do Paraíso para poder lidar com a visão que se apresentou aos seus olhos deslumbrados”.13 Pois evidentemente. Mas ele não inventou uma visão paradisíaca. Foi rebuscar no arquivo da sua memória algo com que pudesse comparar a nova experiência, para que os que não viram tal espetáculo pudessem fazer dele uma ideia. Mais ainda: trata-se de uma visão inesperada. Estava longe de enfrentar algo capaz de o impressionar assim tanto. Quer dizer, tivesse Caminha deparado com uma visão horrífica não teria recorrido à imagem do Éden mas a outra passagem da Bíblia para transmitir as suas impressões. Ora isso só confirma ter ocorrido uma impressão do real sobreposta à expectativa e não o inverso, como pretende o narrador de Partes de África. Mas prossigamos com o mesmo exemplo. Helder Macedo escreve: “a prosa funcional de Caminha eloquentemente sugere uma perplexidade moral mais profunda” que a de Vespúcio; trata-se de saber “como reconciliar a sua visão do mundo baseada na ideia do pecado com o que julga ser a evidência de que havia nesse mundo uma inocência anterior ao pecado. O tempo mítico em que a terra paria sem dor tinha-se ali tornado espaço.”14 E Helder Macedo cita o próprio Caminha: Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi, nem vaca, nem ovelha nem galinha, nem outra nenhuma alimária que costumada seja ao viver dos homens; nem comem senão desse inhame que aqui há muito e dessa semente e fruitos que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que não o somos nós tanto quanto trigo e legumes comemos.15 Afinal, estamos em presença de um relato de algo completamente novo e que não poderia fazer sentido dentro da cosmovisão de Caminha, para quem Adão e Eva eram os pais de todo o género humano cujo pecado original tinha sido castigado pelo trabalho e sofrimento para eles e seus descendentes. E, no entanto, ali estava um grupo humano não sujeito à ira divina. Pêro Vaz de Caminha relata com fascínio essa novidade. Quando sugere que o rei mande o clero para converter aquela gente, fá-lo porque a sua fé católica era algo que lhe exigia partilhá-la (proselitamente, está visto) com todos os seres humanos. Todavia não se pôs a inventar maneiras de ajustar a Bíblia ad hoc, inventando maneiras de provar que aquela gente devia de algum modo estar também a sofrer à conta do pecado de Adão. Aceitou mesmo que “eles” nada tivessem a ver com isso. Quer dizer, uma vez mais estamos em presença de uma experiência nova a desafiar os conceitos trazidos na mente, o paradigma recebido confrontado com novos dados. O recurso ao imaginário feito de noções acumuladas constitui o processo natural de aquisição de novos conhecimentos. Comparamos informação nova com a anterior que levamos connosco. O termo de comparação de que se serviam os navegadores era o que levavam consigo. Quando falam em terra mais árida ou mais verde obviamente que tomam as referências de que dispunham para estabelecer relações analógicas. Esse é o modo normal de os seres humanos alargarem a sua experiência. E, no entanto, Helder Macedo, na continuação da análise desta passagem, que prossegue com o espanto de Caminha perante

onésimo teotónio almeida

vozes consonantes

a nudez dos índios, comenta: “ao procurar pensar o impensável, reconheceu o desconhecido.” Ora este oxímoro “reconheceu o desconhecido” significa propriamente o quê? Afinal Caminha o que reconheceu foi que, mesmo com as pinturas sobre a sua pele, eles estavam nus. E isso era uma novidade. Reconheceu isso de onde? Dentro desta ordem de ideias, recorde-se o caso de Leonor, no “Naufrágio de Sepúlveda”, da História Trágico-Marítima (não mencionado em Partes de África). Sem nos determos em grandes pormenores, basta frisarmos aqui uma diferença entre as reações de Leonor que, por a terem deixado nua e isso ser gravíssimo na sua moral de mulher cristã, se deixou ficar inerte numa cova, coberta com os seus próprios cabelos até à morte. Em contrapartida, vários dos companheiros de Caminha apreciam o nu das mulheres a ponto de alguns deles fugirem do barco e irem ter com elas. E, no entanto, levavam na cabeça a ideia religiosa de que isso era pecado. Que conclusões retirar daqui? Caminha, recorda Helder Macedo, sugeriu como solução “vestir a inocência, distribuir camisas aos homens e panos às mulheres; salvar a inocência, ensinar a esses homens e mulheres os rendimentos da fé cristã”. Exato. Terão sido essas as suas sugestões porque a sua moral não poderia ter mudado em função do que viu. Todavia Caminha não deixou de ver algo completamente diferente apesar da receita moral por ele recomendada. Viram homens e mulheres nus, um cenário bem distinto do que levavam no seu imaginário. Helder Macedo funde aqui factos e valores. Por mais difícil que seja destrinçá-los, são duas realidades distintas e analiticamente distinguíveis. Do ponto de vista empírico e epistemológico, Caminha encontrou realidades desconhecidas e não deixou de vê-las por serem inesperadas ou por levantarem sérios problemas face a conceções fundamentais da sua fé e da doutrina que aprendera. Mas procurou ao mesmo tempo ressalvar alguns valores, para ele fundamentais na sua moral, como o de cobrir a nudez. Em psicologia cognitiva, essa tentativa de ajustamento da mente a novas situações é referida como um processo interativo de adaptação e assimilação. Algo do novo entra na mente e algo do que está na mente permanece e tenta interpretar, assimilar16. Ora isso é diferente da unilateralidade sugerida nas considerações teóricas iniciais de Helder Macedo, quando dá a entender que os navegadores viram apenas o que levavam na sua própria mente. Uma palavra sobre o caso das ilhas imaginárias. O narrador de Partes de África escreve: E não poucos são os mapas que registam ilhas imaginárias com a legenda debaixo do nome “imaginárias”. O que era imaginável, era melhor registar assim colocando tanto o que havia quanto o que não havia no mesmo plano da imaginação em que a expectativa precede o conhecimento, a interpretação se sobrepõe à observação e a analogia neutraliza a diferença. Pois não é verdade que ainda hoje chamamos ‘índios’ aos originais habitantes destas américas onde agora estamos, mesmo quando não? Negada a expectativa, o nome continuou a registá-la, como nos mapas com as ilhas imaginárias.17 Aqui os pressupostos teóricos do narrador relativamente ao processo cognitivo (explicitados bem claramente no início da sua comunicação) acabam ironicamente por ser confirmados, mas apenas na medida em que os factos são por ele interpretados de modo a ajustarem-se por completo às suas teorias. Por isso vamos esmiuçar um pouco mais esse caso das ilhas imaginárias que estavam inscritas em mapas. Primeira observação: quem escreveu nos mapas que essas ilhas eram imaginárias e porquê? Os cartógrafos, naturalmente. Porque os navegadores, ao voltarem das suas viagens sem as terem encontrado no lugar onde estavam indicadas nos mapas, disso informavam os cartógrafos. Esses mapas tinham sido elaborados com base em informações recolhidas de livros, do folclore ou do imaginário popular. Ora, como os marinheiros não confirmavam o que levavam em mente, acabavam por chamá-las ‘imaginárias’. Sinal evidente de que sabiam distinguir as ilhas cuja existência não podia ser confirmada das que tinham sido ou descobertas ou confirmadas no lugar indicado nos mapas. Perfeito exemplo da preponderância da experiência sobre o paradigma recebido, precisamente o contrário do que ditam as conceções teóricas do conferencista Helder Macedo em Partes de África. Como pode dizer-se que tanto as ilhas imaginárias como as reais “estavam no mesmo plano”, porque “a expectativa precede o conhecimento”? Estavam no mesmo mapa, é certo,

91

16

Basta remontar um pouco apenas a Piaget para nos embrenharmos numa infindável bibliografia sobre o processo da assimilação/acomodação da mente frente ao novo que na sua interação com o real se desenrola. E Piaget insere-se numa bem longa e respeitável tradição.

17

Helder Macedo, op. cit., p. 162.

vozes consonantes

92

18

Desenhadas em linhas mais retas ou muito curvas, sem o recorte minucioso da costa, como acontecia com terras já conhecidas. Muitas vezes até aparecem delineadas em cor diferente. (Sobre ilhas imaginárias escrevi “Plutarco como possível origem do nome das Ilhas Santanazes do mapa de 1424”, Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira. vol. XLVII (1990), pp. 75-84). 19

Embora uma ilha denominada Brasil ainda apareça em mapas muito posteriores a 1500, como se alguém cresse ser possível descobrir aquela inicialmente referida na Idade Média como existindo perto da Irlanda. Colombo e os seus companheiros poderão ter morrido convencidos de que tinham chegado à Índia, mas isso porque a experiência imensa que adquiriram parecia confirmar as teorias nas suas mentes trazidas de Espanha. Com efeito, não havia nenhuma ilha ali em mapa algum e, portanto, a Hispaniola só poderia ser a Índia, dado que, segundo os cálculos dos especialistas, a terra era bem menos bojuda do que hoje sabemos que é.

20

Helder Macedo, op. cit.

21

Ibidem.

22

Ibidem, p.160.

onésimo teotónio almeida

porque alguns cartógrafos em terra insistiam que se não estavam no lugar anteriormente indicado bem poderiam estar noutro. E por isso houve ilhas “imaginárias” que perduraram, desenhadas por sinal de modo diferente das outras18, e que foram movidas de um lado para o outro dos mapas. Tal acontecia porque os navegadores sempre que as não encontravam onde supostamente deveriam estar, simplesmente as retiravam dali porque sabiam, com saber de experiência feito, que não pertenciam a esse lugar, se bem que pudessem eventualmente estar noutro. É assim que a “ilha” do Brasil aparece no século XIV num mapa junto à Irlanda e vai descendo até que alguém, depois de quase um século de tentativas frustradas, passando-a de um lado para o outro, acabou apostando que afinal a ilha do Brasil devia ser a terra de Vera Cruz. Aconteceu também assim com várias ilhas do arquipélago dos Açores (S. Jorge e Corvo, por exemplo) e com as Antílias. Os nomes antigos colados ao imaginário persistiram, mas a realidade, isto é, o referente ou significado (em linguagem saussuriana) impôs-se ao significante anterior à descoberta, no caso apenas um nome, pois a experiência é que acabou determinando o que ele a partir de então passou a significar. Ninguém mais, depois do século XVI, tentou sequer insistir em que o imenso Brasil, por se chamar Brasil, era uma ilhota ao pé da Irlanda.19 Estamos aqui em presença do mais natural processo de evolução semântica de termos em que um nome (o significante) permanece inalterado, mas a realidade por ele designada (o significado) muda por completo consoante a experiência. Com efeito, o sentido ou significado de um termo provém do uso ou da aplicação que se faz do significante, como sabemos pelo menos desde Wittgenstein. Ou, se quisermos ser rigorosos, desde Juan de Vives, já no século XVI. O quarto e último caso sugerido por Helder Macedo em abono da sua teoria epistemológica tem a ver com a arte da guerra. Um caso de desajustamento cultural é descrito em que a tradição de guerra indiana levava as suas tropas a repousarem: Ao pôr-do-sol suspendiam os ataques, recolhiam os mortos, tratavam dos feridos, e iam todos dormir. Ao amanhecer recomeçavam. Ora quanto aos portugueses, numa proporção numérica ínfima, sabemos pelas suas crónicas que a surpresa era a sua força principal, muitas vezes interpretando a sólida e lenta organização das forças do inimigo como sintoma de indecisão. Atacavam quando os outros não estavam prontos e até à noite, enquanto eles dormiam. Transformaram assim inevitáveis derrotas em plausíveis vitórias, fazendo inimigos imaginar por detrás das poucas dezenas de homens que corriam para eles brandindo armas, reservas militares de facto inexistentes. E que a sua estratégia não era das mais elaboradas pode-se depreender desta citação compósita de várias possíveis: “E com muitas gritas dos nossos, e muitas Avé Marias e brados a Santiago, nos fomos a eles, que ficaram tão assombrados que as carnes lhes tremiam de medo, e rijo se lançaram daqueles oiteiros e se caíram no mar, e os nossos acabaram ali de matar a todos às zargunchadas, sem um só ficar vivo.20 Helder Macedo conclui: “De mal-entendidos são os impérios feitos.” E prossegue desenvolvendo as suas conclusões: Quando os mal-entendidos começaram a esclarecer-se, quando o desconhecido deixa finalmente de ser reconhecido por aquilo que não é, e a norma da diferença se integra na norma que diferencia, então é porque já chegou o tempo do fim dos impérios, quando o pós-imperialismo se pode tornar consciência positiva de ter havido impérios.21 Estas duas citações merecem de per si uma longa análise. Cingir-me-ei, contudo, apenas a uma questão de fundo: levou então aos exércitos indianos quinhentos anos a perceberem que a estratégia militar portuguesa era o ataque de surpresa e de noite? Da lógica exibida nas duas citações anteriores, é isso que se depreende. Tudo não passou de um equívoco cultural nas cabeças dos indianos, por um lado, cujo paradigma mental não os tinha preparado para o ataque surpresa; e, por outro, dos portugueses, que tiveram a sorte de funcionar num paradigma mental que os levava a agir pelas costas, de surpresa e de noite.

onésimo teotónio almeida

vozes consonantes

E assim se resume toda a história da construção de impérios coloniais? Do português e (o plural é do narrador de Partes de África) dos demais. Tudo resultou, nada mais nada menos, de meros “equivocados desentendimentos” 22 mentais. E tanta tinta se gastou em vão na escrita de história das guerras coloniais e das lutas militares e políticas para afinal a chave se encontrar assim tão simplesmente: tudo uma questão de reconhecimento e (não-reconhecimento) do desconhecido. Quer dizer: a questão aqui nem sequer é apenas filosófica mas também histórica. Será desnecessário avançarmos para as considerações finais sobre a língua, segundo Helder Macedo, o que resta dos impérios. A minha questão aqui foi desde o início, e permaneceu até ao fim, a de tentar desconstruir uma proposta epistemológica de entendimento do real que se pauta por uma absoluta unilateralidade (o processo do conhecimento é todo mental e não se sai nunca daí), pelo menos quando aplicado à compreensão do fenómeno português dos Descobrimentos e da criação do seu império. Ora, na verdade – e vai sendo cada vez mais claro para o autor destas linhas –, o grande contributo português para a história do pensamento está precisamente na sua abertura à experiência do novo, que pouco a pouco, nas mentes mais atentas e capazes, foi fazendo com que fossem ruindo os velhos modelos em que assentava uma visão autoritária do saber. Porque tenho escrito abundantemente sobre esta matéria noutros lugares, abstenho-me de repetir-me aqui23. Até Camões – e cito o vate porque Helder Macedo o cita também nesse mesmo texto – participava desse processo inescapável. Umas linhas após a citada passagem, em que afirma que os pioneiros europeus levavam dentro da sua língua “os conhecimentos, as metáforas, as suas crenças”, acrescenta: É Camões quem o diz, na mais ambígua das profissões de fé: Cousas há ‘i que passam sem ser cridas e cousas cridas há sem ser passadas, mas o melhor de tudo é crer em Cristo.24 Aqui também os factos estão longe de serem assim tão unilaterais. Camões, com toda a sua visão do mundo fundida numa osmose de catolicismo da Contra-Reforma e humanismo renascentista, escreveu o Canto V d’ Os Lusíadas que é indubitavelmente a prova provada de que também o poeta se rendeu à evidência do novo e utilizou os seus sólidos conhecimentos experimentais, adquiridos numa viagem à Índia, inserindo-os no seu relato poético da homérica viagem de Vasco da Gama. É um canto cheio de pormenores recolhidos da experiência do que passa a ser conhecido. Não é um reconhecimento, pois trata-se de facto de algo completamente inédito a ponto de causar espanto e entusiasmo25 (às vezes é mesmo temor) antes de ser abertamente recebido e assimilado26. Apesar da sua formação profundamente clássica, a sua inteligência permitiu-lhe, como de resto aos seus contemporâneos Duarte Pacheco Pereira, Garcia de Orta, Pedro Nunes e D. João de Castro, aceitar as mudanças e deixar-se permear pelo fascínio do novo. Concluindo: em boa verdade e justiça, convenhamos que o conferencista no romance de Helder Macedo (caso se queira insistir em que se trata apenas de um romance)27 foi coerente consigo próprio e interpretou os factos da história à luz dos seus conceitos epistemológicos. Assim sendo, e como o que escreveu não pretende ser mais do que um romance, a interpretação histórica que propõe não passa disso mesmo: ficção.

Uma nota final: Este texto foi escrito numas férias após a leitura de Partes de África. Apesar de toda a legitimidade de tomar a referida “conferência” como um ensaio e não como ficção – e isso pelas razões atrás apontadas –, tive o cuidado de investigar um pouco na Internet, o único meio disponível no local onde me encontrava. Para que não restem dúvidas sobre a representatividade dessa conferência no pensamento de Helder Macedo, aqui ficam estas afirmações do autor num diálogo com o público após uma sua intervenção no Brasil. À pergunta “E o “Reconhecer o desconhecido”, foi mesmo uma comunicação em congresso?”, Helder Macedo Respondeu: Sim, foi uma comunicação que fiz no Brasil, numa das vezes que vim a convite de Cleonice Berardinelli. Escrevi esse ensaio à época em que já estava escrevendo Partes de África e, portanto, o tom não é talvez

93

23

De entre os vários escritos meus sobre esta problemática, o mais recente é “Experiência a madre das cousas – experience, the mother of things – on the ‘revolution of experience’ in 16th century Portuguese maritime discoveries and its foundational role in the emergence of the scientific worldview”, in Karl Enenkel, Alicia Montoya and Maria Berbara (eds.), Portuguese Humanism in the Republic of Letters. Leiden, Holland: Intersections Book Series, Brill (no prelo). 24

Helder Macedo, op. cit., p. 161.

25

A famosa embaixada de D. Manuel ao Papa em 1515 é um exemplo eloquente do impacto do novo no imaginário português que quer partilhá-lo com a Europa.

26

Veja-se a investigação que estou a desenvolver sobre “Camões e o ‘saber de experiência feito’”.

27

E o autor poderá legitimamente fazê-lo. No entanto, os romances propõem leituras sujeitas a serem debatidas, como o autor deste, que também é ensaísta, faz e, em regra, muito bem. Se o ensaísta Helder Macedo é diferente do narrador Helder Macedo que o romancista Helder Macedo pôs a dissertar sobre o seu entendimento do modo português de fazer impérios, creio que isso é para aqui uma questão somenos.

vozes consonantes

94

28

SCRIPTA, Belo Horizonte, vol. 4, n.º 8, pp. 377-402, 1.º sem., 2001.

29

Helder Macedo, Fernando Gil, Viagens do Olhar. Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português. Porto: Campo das Letras, 1998.

30

Ibidem, pp. 203-212.

31

http://www.ich.pucminas.br/ cespuc/Revistas_Scripta/Scripta08/ Conteudo/N08_Parte06_art01.pdf

Nenhum dos livros de estudos sobre este romance de Helder Macedo toca em qualquer das questões aqui levantadas. Veja-se os livros: Teresa Cristina Cerdeira (org.), Helder Macedo. A Experiência das Fronteiras. Niterói, RJ: Universidade Federal Fluminense, 2002, com sete ensaios sobre Partes de África, de Laura Cavalcante Padilha, Margarida Calafate Ribeiro, Maria Fernanda Alvito Pereira de Sousa Oliveira, João Roberto Maia da Cruz, Phillip Rothwell, Simone Pereira Schmidt e Tania Franco Carvalhal; Marisa Corrêa Silva, Partes de África. Cartografia de uma identidade cultural portuguesa. Niterói, RJ: Editora da Universidade Fluminense, 2002. Há ainda um outro ensaio de Phillip Rothwell em Margarida Calafate Ribeiro e Ana Paula Ferreira (orgs.), Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português Contemporâneo. Porto: Campo das Letras, 2003, pp. 179186.

onésimo teotónio almeida

o da gravidade ensaística habitual. Talvez se sinta nele que o romancista estava contaminando o ensaísta. Aliás o que aí digo sobre a percepção de outros povos, outras culturas, é fulcral à minha apreciação política, social e até literária em Partes de África que é, essencialmente, uma obra sobre a consciência da diferença.28 Mais tarde, e já com acesso a livros, inclusivamente a um importante livro de ensaios que Helder Macedo publicou em parceria com Fernando Gil – Viagens do Olhar. Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento Português29, encontrei no capítulo II, na secção #3, intitulada precisamente “O engano do olhar”, da autoria de Helder Macedo, uma reprodução quase ipsis verbis da conferência incluída em Partes de África. Apenas as primeiras quatro páginas alargam o conteúdo das primeiras duas inseridas no romance. Nas restantes cinco, os dois textos são praticamente idênticos.30 Já agora, bastará uma simples viagem pela bibliografia passiva e pela Internet para nos apercebermos de como esta visão de Helder Macedo tem circulado com sucesso entre leitores seus e estudiosos.31

Resumo: Neste ensaio, projetamos um olhar crítico sobre o discurso “epistemológico” do “reconhecer o desconhecido” que o escritor ensaísta Helder Macedo reitera no seu romance Partes de África. Assim, analisamos o romance, assinalando o modo como a sua escrita decorre do pressuposto de que o olhar sobre o desconhecido está dominado pelo conhecido, resistindo à novidade, e o modo como a ficção incorpora a ensaística do próprio autor. Palavras-chaves: Helder Macedo, Romance, Partes de Africa, Conhecimento, Epistemologia.

Abstract: In this essay, we designed a critical discourse on the „epistemological“ to „recognize the unknown“ that the writer and essayist Helder Macedo reiterates in his novel Parts of Africa. Thus, we analyzed the novel, noting how his writing stems from the assumption that the look of the unknown is dominated by the well-known, resisting the new, and how the fiction embodies the author‘s own essay. Key-words: Helder Macedo, Novel, Parts of Africa, Knowledge, Epistemology.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.