De volta à história: uma proposta de conciliação de Pós-modernidade e Teoria Crítica a partir da Estética de T. Adorno

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De volta à história: uma proposta de conciliação de Pós-modernidade e Teoria Crítica a partir da Estética de T. Adorno

Prof. Dr. Ronel Alberti da Rosa PUCRS e IDC Faculdade de Filosofia Porto Alegre, Brasil

Este artigo trata de um dilema: o estatuto da obra de arte contemporânea no tocante à sua historicidade. O vocábulo “contemporânea” já traz consigo ressonâncias de historicidade; é contemporâneo aquilo que pertence ao mesmo instante no tempo, aquilo que compartilha as tensões de um momento histórico delimitado. Já aqui se faz necessária uma opção, se é que se crê na existência de objetos contemporâneos e outros não (contemporâneos): a opção pela ferramenta com a qual se pretende trabalhar no objeto deste estudo. O dilema apresenta-se quando da decisão de examinar a arte atual, pós-moderna, contemporânea – ou como a pudermos definir – empregando conceitos da Estética adorniana. A Escola de Frankfurt, esta a crítica que sofre amiúde, seria tributária de um momento específico da história, quando a dialética materialista marxiana, para afirmar-se frente ao totalitarismo de direita e de esquerda, fez a opção por uma crítica interna ao sistema de Marx. Com a pós-história, não seria supostamente mais possível tomar como parâmetro as balizas críticas vigentes no início do século XX, dado que o progresso do material estaria suspenso em um limbo atemporal. Para demonstrar que este é um falso dilema, e que é possível, sim, servir-se da dialética negativa adorniana para uma aproximação à obra de arte atual, é necessário fazer algumas postulações, que seguem nos parágrafos abaixo. O processo de semiurgia, criador de símbolos, é distintivo daquilo que se convencionou chamar de Pós-modernidade. Apoiada por uma base técnica que utiliza o virtual para reapresentar o mundo material por meio do filtro de uma estética cibernética, a hiperrealidade disputa os loci sociais com os meios tradicionais de informação – a literatura escrita e a imagem analógica. A filosofia da arte, confrontada com as questões da arte contemporânea, tem, frequentemente, recusado o uso de ferramentas dialéticas derivadas das teorias da história de Hegel, Marx e da crítica da Escola de Frankfurt. A questão da obra de arte construída por elementos históricos – cujo material é história sedimentada – propõe uma escolha atual e que, como no início do século XX, também configura uma escolha ética: a de se é possível – e se é mesmo necessário resistir à sedução da hiperrealidade e dos efeitos especiais. Esse dilema, que tem suas raízes no conflito específico da modernidade – entre as vanguardas e a reação neoclássica -, continua a condicionar o debate contemporâneo acerca de arte e seu papel na sociedade. O diagnóstico de Menke e Rebentisch, de que se está vivendo em uma sociedade de sensações, fora do alcance do processo

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histórico da dialética e da materialidade, tem sido um dos responsáveis pelo ceticismo reinante a respeito da possibilidade de uma abordagem sócio-histórica da arte contemporânea. Este artigo pretende demonstrar que esse argumento é falho, e que é possível obter-se resultados convincentes, no respeito à experiência estética contemporânea, com o emprego de conceitos como o de Verfransung der Künste – enodamento das artes -, cunhado pelo filósofo frankfurtiano Theodor Adorno. Seu significado é que as artes possuem um substrato comum, o qual une todas as suas manifestações na categoria da linguagem, o que tem por consequência um longo e constante processo de aproximação de seus significados. As franjas (Fransen) devem ser entendidas, aqui, como a face visível dos objetos, a parte que avança e invade outros campos do existir. O objetivo deste artigo é também demonstrar que a arte contemporânea pode preservar seu caráter crítico e conscientizador, e que não é necessário renunciar à universalidade nem à utopia da reconciliação de material e história. Ademais, pretende mostrar que é possível chegar a uma avaliação crítica do tratamento do material sem abrir mão de ferramentas históricas marxianas. O enodamento das artes, inimigo de um ideal de harmonia, e que, por assim dizer, pressupõe relações ordenadas no interior dos gêneros como garantia de sentido, desejaria escapar ao aprisionamento ideológico da arte, aprisionamento este que se estende até sua constituição como arte como esfera autárquica do espírito. É como se os gêneros artísticos, ao negar o delineamento claro de sua forma, se pusessem a roer o próprio conceito de arte. O princípio de montagem, que surgiu após a primeira grande Guerra por meio da explosão do Cubismo e – totalmente independente disso – por meio de experimentadores como Schwitters e também do Dadaísmo e do Surrealismo, foi a manifestação primeira do 1 enodamento das artes .

A superposição de limites de que trata o conceito de ‘enodamento das artes’ expressa um fenômeno de supressão das fronteiras projetadas pela vanguarda histórica sobre os materiais e as linguagens. Essa superposição marca o início de um movimento em direção a um intercâmbio mais intenso dos significados. Essa mudança, no momento em que se concretiza, desvela o fundamento comum de todas as artes. O Verfransung – o enodamento, ou superposição - apresenta-se como uma previsão das diferentes direções tomadas pela arte pós-moderna; ela abre a possibilidade de um diálogo entre a filosofia da arte e as práticas contemporâneas de criação. A partir daí, surge a possibilidade de assimilar objetos do mundo físico – como, por exemplo, construções que 1

Die Verfransung der Künste, feind einem Ideal von Harmonie, das sozusagen geordnete Verhältnisse innerhalb der Gattungen als Bürgschaft von Sinn voraussetzt, möchte heraus aus der ideologischen Befangenheit von Kunst, die bis in ihre Konstitution als Kunst, als einer autarkischen Sphäre des Geistes, hinabreicht. Es ist, als knabberten die Kunstgattungen, indem sie ihre festumrissene Gestalt negieren, am Begriff der Kunst selbst. Urphänomen der Verfransung der Kunst war das Montageprinzip, das vor dem Ersten Krieg in der kubistischen Explosion und, wohl unabhängig davon, bei Experimentatoren wie Schwitters und dann im Dadaismus und im Surrealismus hochkam. ADORNO: Die Kunst und die Künste, in Kulturkritik und Gesellschaft, 450.

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existam exteriormente à esfera estética. Da mesma forma, tornar-se-ia possível permitir à arte tomar parte no mundo sem a necessidade de imitá-lo. Participar do mundo sem o imitar preserva, para a obra de arte, a possibilidade de seguir desenvolvendo seu potencial crítico, mesmo que esta admita a inclusão de materiais históricos pregressos. O enodamento das artes acompanha, quase sempre, uma apreensão dos constructos em direção à realidade extra-estética. Ele é, pois, estritamente contrário ao princípio de sua própria representação. Quanto mais enodamento um gênero acolhe [...] mais ele participa daquilo que nele é estranho e coisificado, ao invés de imitá-lo. A arte tornar-se-á virtualmente coisa entre coisas, tornar-se-á algo que não sabemos o que seja. Esse 2 não-saber confere à arte uma expressão inevitável.

De acordo com isso, existiria um movimento de aproximação e entrelaçamento, que se deu ao longo do processo de sedimentação histórico; porém, enquanto o processo histórico teleológico diferenciou as artes e as linguagens, o processo de entrelaçamento seguiu uma lógica inversa, unificandoas a partir de bases comuns. O ‘enodamento’ tem uma meta: dirigir-se a cada indivíduo ‘não-idêntico’ com uma linguagem ‘não-idêntica’; mesmo que não a atinja, isso permanecerá como o destino utópico de toda obra de arte. Em seus primeiros escritos sobre filosofia da música, Adorno enfatiza a exigência de consistência na escolha do material. Essa seria a única forma de valorar com justeza e coerência uma obra de arte: analizando-a ‘tão concretamente quanto possível com base em sua própria linguagem e sem importar critérios alienígenas à sua esfera específica’ (ADORNO: Current of Music – Elements of a Radio Theory, 479). A simples inclusão da improbabilidade histórica na obra de arte, agora por força de um impulso imediato, aproxima os laços de arte e história, e, nas palavras de Lydia Goehr, ‘cumpre sua tarefa de fazer com que a história viva em nós na forma de um presente constante’ 3. Normalmente, poder-se-ia objetar que a aproximação desses dois planos – arte e história – elevaria o risco de dissolver também os limites entre arte e mundo, roubando à arte a possibilidade de manter-se como reserva ética em meio à barbárie. Essa reserva tivera sempre a missão de representar o conteúdo de verdade - que preservaria sua condição de não-idêntica - e sua atitude crítica para com a sociedade. De acordo com a filosofia da arte dialética de Adorno, falar de verdade em arte é falar de sua inverdade na sociedade, tanto quanto da dialética que opõe verdade e inverdade4. Contudo, a inclusividade do material e sua aleatoriedade precisariam ingressar na obra de arte pós-moderna não de forma 2

Die Verfransung der Kunstgattungen begleitet fast stets einen Griff der Gebilde nach der außerästhetischen Realität. Er gerade ist dem Prinzip von deren Abbildung strikt entgegengesetzt. Je mehr eine Gattung von dem in sich hineinläßt, [...] desto mehr partizipiert sie am ihr Fremden, Dinghaften, anstatt es nachzuahmen. Sie wird virtuell zum Ding unter Dingen, zu jenem, von dem wir nicht wissen, was es ist. Solches Nicht-Wissen verleiht einem der Kunst Unausweichlichen Ausdruck. ADORNO: Die Kunst und die Künste, in Kulturkritik und Gesellschaft, 450. 3 Ver GOEHR, Lydia: Über Fortschritt und den musikalischen Werkbegriff, in MENKE u. REBENTISCH, 107. 4 Ver ADORNO: Ästhetische Theorie, 363.

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icônica, simbólica ou imutável. Se o material historicamente determinado não é mais capaz de levantar demandas, a arte também se torna incapaz de responder aos desafios estéticos e morais que lhe são propostos pelo mundo. É necessário que o material saia do estado de repouso natural, que empreenda um movimento, abandonando seu estado bruto. Ele precisa se mover rumo ao tratamento que a forma lhe dispensará, já que sua existência material bruta se reduz a um existir metafísico, engessado como um ícone. O artista empregará o material para expressar aquilo que ele – se permanecer não transformado - não poderia mais dizer, e isso será sempre recuperar o seu Ursinn, o seu sentido primevo, aquele sentido que todos os materiais, hoje exauridos, possuíram um dia. O resgate, porém, não se pode dar por meio de uma recuperação pura e simples do passado, mas por um salto frente, na sequência da história. Esse é o impulso que a obra de arte pós-moderna precisa para superar a racionalidade, alavancando sua criticidade não mais no progresso do material, e sim no tratamento. A autossuperação da razão advogada por Adorno (Selbstüberschreitung der Vernunft) deve ser entendida como uma ultrapassagem da unilateralidade da ratio, como exposto na obra Dialética do Esclarecimento. No conjunto dos escritos sobre filosofia da arte de Adorno, a porção que trata do ‘enodamento’ das artes tem sido largamente relevada, o que é um equívoco. A abertura de poros unindo arte e história confirmaria a existência de um movimento que aproxima estéticas anteriormente separadas por conceitos irreconciliáveis, tais como contingência e determinação, inclusividade do material e domínio da forma. Ademais, encontra-se aqui o cerne da questão da técnica. Primeiro de tudo, progresso é uma categoria que se emprega na valoração de obras de arte. É a categoria que mede a fricção entre o velho e o novo 5. É proveitoso examinar um exemplo paradigmático da relação dialética que sempre distinguiu a arte mais ou menos progressiva em um livrinho publicado em Florença, na Itália, ao final do século XVI. Trata-se do Dialogo della musica antica et della moderna, escrito por Vincenzo Galilei (pai do cientista Galileu Galilei), em 1581. Ali, o autor contrasta antigo e moderno e discorre sobre a excelência da nova concepção de música de sua época. Suas características: canto monofônico (ao contrário do estilo polifônico então ainda em vigência), aliado a uma concepção vertical e harmônica de composição (contrariando a concepção horizontal e contrapontística de combinação de sons). O fundamento teórico de que Galilei faz uso, porém, extrai suas regras de um movimento singular e paradoxal: a assimilação do estilo e da técnica dos antigos, a saber, dos gregos da era clássica. Peço que me escuteis, pois então conhecereis sua perfeição [da música dos gregos antigos] e a imperfeição da nossa, apesar de que Zarlino, no primeiro capítulo e no 49º. de suas Instituições [Instituições Harmônicas], diz o contrário, afirmando que a atual é absolutamente perfeita e que a outra é imperfeita. Aquela, 5

Ver MENKE u. REBENTISCH: Einleitung: die Gegenwart des Fortschritts, 11.

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[a dos gregos antigos] preservava virtude, domava a ferocidade [...] e pode-se finalmente dizer que ela livrava as pessoas da morte, entre outros efeitos 6 admiráveis que se encontram descritos em numerosos livros das autoridades.

Assim, desde cedo, o progresso passou a constituir uma categoria histórica e técnica, sem, contudo, cristalizar-se como uma categoria conclusiva. Nas palavras de Adorno, em seu texto chamado justamente Progresso, ‘ele (o progresso) não deseja triunfar em si mesmo, apenas deseja deter o mal radical 7. A música dodecafônica, por exemplo, teria sido um passo inevitável e já ultrapassado da senda do progresso do material. Na Filosofia da nova música, lêse: “… só podemos ter esperança de ultrapassar o inverno se a música também conseguir emancipa-se da técnica dodecafônica” 8. De acordo com sua natureza, a arte, bem como seu material – o qual é história sedimentada – não pode se realizar como Utopia, pois isso significaria o seu fim. Restaria a pergunta pela possibilidade de, na atualidade, haver uma interação dialética entre obra e material. Já que ambos, arte e material, são permeáveis, nenhuma obra pode existir em completo isolamento. Isso desloca a atenção para o problema da subsistência do processo dialético. Para tentar responder a isso, faz-se necessário examinar primeiro um dos aspectos mais evidentes da arte pós-moderna: o processo de assimilação e citação de estilos do passado (da história da arte). Esse processo, contudo, seria estéril, se a utilização do material resgatado pretender apenas evocar reminiscências históricas. Apesar de não evidentes, técnica e progresso continuam a pulsar na obra de arte, mas de uma forma convencional, cuja consequência é a perda da tensão e da autonomia. A desterritorialização 9 precisa se dar mantendo o formato intercontextual, a fim de materializar sua identidade para com a diversidade inerente tratando e transformando os materiais brutos. Isso significa, em última análise, libertar a identidade da obra da inerente diversidade dos materiais ao mesmo tempo integrando-os e modificando-os e desenvolvendo-os.

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Aqui a descrição completa, em que Galilei enumera os maravilhosos efeitos que a boa música – a moderna – exerce sobre os ouvintes (tradução pelo autor deste artigo): Di gratia attendete, perche da esse conoscerete la sua perfettione, & l’imperfettione di questa nostra; quantunque il Zarlino nel capo primo, & 49 della seconda parte delle sue institutioni dica il contrario, che questa è perfettissima, & imperfetta quella. Conservava la pudicitia; faceva mansueti i feroci i inanimiva i pusillanimi; quietava gli spiriti perturbati, inscutiva gli ingegni; impieva gli animi di divino furore, racchetava le discordie nate tra i popoli, generava negli huomini un’ habito di buon costumi, restituiva l’udito a’ sordi, ravvivava gli spiriti smarriti, scacciava la pestilenza i rendeva gli animi oppressi lieti & giocondi, faceva casti i lussuriosi, racchetava i maligni spiriti, curava i morsi de’ serpenti; mitigava gli infuriati & ebbri; scacciava la noia presa per le gravi cure, & fatiche & con l’essempio d’Arione possiamo ultimamente dire (lasciandone da parte molti altri simili) che ella liberava gli huomini dalla morte; oltre alle altre ammirabili sue operationi di che son pleni i libri d’autorità. GALILEI, 86. 7 Ver ADORNO, Fortschritt, 638. 8 ADORNO: Philosophie der neuen Musik, 110. 9 Aqui na acepção antropológica do termo, não como proposto por Deleuze e Guattari em seu AntiOedipus.

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A teoria da arte da primeira metade do século XX viu nesse processo apenas uma tentativa de preservar o conceito modernista de dialética do material de seu previsível esgotamento técnico e histórico. Não surpreende, já que a categoria do progresso fora o ponto central da estética modernista. O conceito de ‘enodamento’ das artes, entretanto, ganhou impulso no início da década de 1960, quando ficou claro que o entrelaçamento das técnicas era um fenômeno que existe entretecido no próprio processo do desenvolvimento do material. Assim precisa ser entendida a ideia de Adorno, de acordo com a qual o ‘enodamento’ das artes é um falso ocaso da arte 10. Como a fênix que renasce de suas cinzas, a revivificação das artes precisou passar pela sua ‘morte’, a qual trouxe consigo, na primeira metade do século XX, o desaparecimento da arte bela e, na segunda metade, o fim do progresso técnico do material. Isso tudo, finalmente, confirma que a arte não tem como permanecer autônoma, se separada de seu projeto emancipatório. A solução para essa aparente contradição foi dada pela absorção dos desenvolvimentos técnicos vindos de fora da obra de arte. Isso, porém, pode frequentemente resultar em um emprego meramente superficial, em especial pela indústria midiática de autocriação de signos (semiurgia): a obra de arte contemporânea sofre de um abuso de técnicas novas, em sua maior parte através de processamento cibernético de dados. O desenvolvimento que se estabeleceu resultou em uma assimilação meramente tecnocrática dessas tecnologias, incapazes de interagir com o núcleo formal da obra. Essas novas técnicas, assim, apenas cobrem sua superfície, abandonando o conteúdo à repetição de fórmulas historicamente desgastadas e apenas travestindo-as com a aparência de serem ‘avançadas’. A entronização da hiperrealidade é a consequência desse processo, em um nível ficcional que não pretende separar-se do mundo empírico, onde a realidade é ‘embelezada’ e intensificada: nasce daí uma realidade que é mais ‘real’ e interessante que aquela que lhe deu origem. Como passo definitivo de um desenvolvimento que tem como seu objetivo final a totalidade, a mídia estetiza, com o uso de novos e persuasivos ingredientes midiáticos, guerras e massacres incitados, em última análise, por ela mesma. Walter Benjamin, em seu A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, apontava, já em 1936, para as consequências de uma arte separada de seu telos emancipador: "Fiat ars – pereat mundus", diz o fascismo e, como Marinetti reconhece, espera que a guerra forneça a satisfação artística da percepção dos sentidos alterados pela técnica. Isto é, evidentemente, a consumação da "l'art pour l'art”. A humanidade que, outrora, com Homero, era um objecto de contemplação para os deuses no Olimpo, é agora objecto de auto contemplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assistir à sua própria destruição, como a um prazer estético de primeiro plano. É isto o que se passa com a estética da política,

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Die Verfransung der Künste ist ein falscher Untergang der Kunst.” ADORNO: Kulturkritik und Gesellschaft I/II: Die Kunst und die Künste.

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praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte.11

Hans Magnus ENZENSBERGER, em seu livro Guerra civil 12, transfere essa constelação de problemas para o cerne da produção artística, com o propósito de discutir o estatuto de obras de arte produzidas em meio e pela guerra: ars in tempore belli. Para ele, a arte combate em seu próprio terreno contra criações cujo objetivo não seja outro senão reforçar a cultura do massacre como entretenimento de massa. O transe gerando pela assimilação da mídia não é explicável por uma relação mimética, mas pelo feedback direto que se instaura entre o imagético e o real. A futilidade de qualquer cultura após Auschwitz exprime o impasse de falar do e mesmo criticar o genocídio servindo-se da mesma ferramenta – a racionalidade – que foi responsável pela sua implementação. Na guerra da Pósmodernidade, porém, vale tudo: tanto quanto pseudo-histórias sobre assassinos seriais, o Holocausto já foi produzido e apresentado em várias versões de programas de televisão e em filmes premiados pela academia de Hollywood. Para Rüdiger Kunow, em seu texto Emotion Recollected in Tranquility? Representing the Holocaust in Fiction, a tensão entre os eventos e sua estrutura estética impede que a ficção seja um veículo adequado para a memória cultural. Ele cita Elie Wiesel, que afirma que „quanto mais um romance sobre esse tema é um ‘bom romance’ tanto menos ele será verdadeiro. Por definição, Auschwitz nega a arte e coloca-se além da linguagem” 13. O transe mencionado por Enzensberer – resultado do feedback imediato de imagem e realidade – é um sintoma capaz de ser anulado, desde que a tensão entre sujeito e mundo possa ser recuperada. Para existir essa tensão, contudo, é preciso que exista um sujeito, isto é, a questão diz respeito ao resgate da subjetividade individual, a qual existe hoje em estado atomizado. Mas não apenas o sujeito precisa ser recuperado, também precisa existir mundo, porque a permeabilidade entre sujeito e o mundo desconstruído – com intercambiáveis sujeito e mundo – não permite uma abordagem crítica (dialética), em consequência da carência (1) de um ponto de partida como referência (centro subjetivo) e (2) de um telos (mundo). A arte pode servir de ponto de partida para um movimento de restauração da tensão entre mundo e sujeito. Pessimistas já predisseram a exaustão dessa referência crítica da arte. Porém, a sempre crescente interação de linguagens e técnicas, graças à absorção de realidades complexas externas à esfera estética faz com que a obra autônoma possa recuperar as peças do quebra-cabeça que o mundo propõe aos homens. Em suma, a arte traduz a história na linguagem da natureza (do mundo).

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BENJAMIN: Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, in Medienästhetische Schriften, 383. 12 ENZENSBERGER, Hans Magnus: Aussichten auf den Bürgerkrieg. Frankfurt: SUHRKAMP, 1993. 13 Elie Wiesel apud KUNOW, 250.

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Nesse movimento, linguagens e técnicas se apoiam mutuamente, e todas juntas recuperam as técnicas e cada uma das obras de arte que ficaram no passado. Mesmo assim, para evitar que esse processo se esgote em um espetáculo autofágico de criação de símbolos, os complexos materiais absorvidos para dentro da obra de arte precisam servir imanentemente à forma; é necessário que se tornem parte constitutiva de sua própria técnica. Aqui se pode ver por que a ratio permanece parte da obra de arte: os elementos originalmente exteriores à obra de arte e que se tornam não meramente parte dela, mas arte e si – em forma e em técnica, transcendendo o material – só podem completar esse processo se auxiliados pela ratio, por uma ‘boa racionalidade’ – boa porque mediada pela fantasia. Para concluir, a expulsão da obra de arte pós-moderna da lista de expressões capazes de resistir às tendências reacionárias da globalização deve ser revertida para que ela recupere seu status de autonomia, um status que a arte, desde sua dessacralização, vem aprofundando: sua oposição à sociedade. A falta de uma diferenciação, característica da contemporaneidade, aboliu tanto a tensão entre sujeito e objeto como uma outra, a oposição crítica entre arte e a vida cotidiana, negando sua missão mais importante, que é a de colocar “caos na ordem” 14. Permeada pelo cotidiano e pelo exercício da interatividade, a mídia fortemente apoiada por tecnologia rapidamente embarcou na senda tecnológica para recriar o mundo com sensações estetizadas e reforçadas, sem se dar ao trabalho de comentá-lo. A tentativa de retornar à arte bela, contudo, produziu apenas um sem número de deformações kitsch de objetos que um dia foram obras de arte. A arte contemporânea tem sido criticada como reacionária: ela teria silenciado acerca do debate sobre a chamada terceira fase do capitalismo. A arte pós-moderna careceria, assim, de uma plataforma a partir da qual ela possa continuar a exercer sua negatividade para com o mundo empírico 15. Mesmo em períodos históricos em que o potencial do material acusa fadiga não há razão para declarar o fim do progresso, e passar logo a repetir-se constelações estéticas já gastas. O Ursinn [em alemão, significado primevo] é o ponto zero do impetus criativo, a partir de onde se desdobra o progresso do material. Depois de sua primeira manifestação, ele não tem mais como ser recuperado. O progresso pode ser obtido através de um aparente recuo, em um movimento para recuperar o Ursinn, o ponto inicial do significado. Isso atesta a negatividade da estética pósmoderna – mas não pós-histórica -, a qual necessita de um impulso igualmente pós-moderno para escapar à estagnação. A inclusão de elementos exteriores à Estética seria, assim, necessária pra que a arte renasça de suas cinzas, desde que esses elementos ingressem na corente da preparação e do tratamento do material, e não seja apresentados como 14

ADORNO: Minima Moralia, 222.

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Every work of art is an uncommitted crime. ADORNO: Minima Moralia, 111.

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ícones (do belo do nobre, do histórico) ou como citações não históricas. Afinal, não há progresso na obra, mas no material. É o seu tratamento que possibilita valiar o conteúdo de historicidade e de verdade ali presentes. Isso faz com que a sociedade esteja presente na arte, pois a história está sedimentada no material. A imanência da técnica na obra de arte destila, nesta era de transição, uma seiva que é tanto histórica (nascida das estéticas pregressas) quanto renovadora (ao incluir material antigo, mas agora liberado de significar o que fizera um dia). Esse movimento é o vertical, enquanto que o movimento horizontal – a busca pelo material bruto da obra de arte – é o entretecer de linguagens, artes e técnicas. Essa aproximação foi prevista por Adorno, em seu texto Die Kunst und die Künste. Na obra de arte crítica e autônoma, os parâmetros vertical e horizontal buscam o ponto de intersecção que Adorno identificou apropriadamente na música de J.S. Bach, a qual legitima um parâmetro (o horizontal, o contraponto) como função do outro (vertical, a harmonia) e vice-versa. O entrelaçamento das artes e das técnicas abre a possibilidade de reconstituir a tensão entre sujeito e mundo, tensão esta desintegrada pela dissolução política do sujeito na Pós-modernidade em um coletivo abstrato. Significaria a chance de construir pontos e aproximar territórios díspares, reconciliar momentos opostos. A obra de arte, assim, recebendo elementos do mundo e devolvendo essas partículas ao mundo transformadas pela racionalidade estética, assumirá seu papel na resistência à grande catarse pós-moderna. A sobreposição das franjas é o movimento que, em última análise, pode ser entendido como progresso. A dialética continuará mantendo sua tensão cada vez que o material for empregado para expressar parâmetros originalmente exteriores a ele. Isso acontece, por exemplo, quando música ‘expressa’ cor ou textura. Para concluir, a dialética renasce quando a obra de arte, que necessita de um meio material para existir, se bate contra seu próprio material, o qual resiste à espiritualização admitindo parâmetros estranhos a ela. Pelas razões expostas aqui, concluímos que o conflito com a modernidade talvez seja um elemento inerradicável da condição pós-moderna. A possibilidade de superar a razão, aguardada e prometida no século passado, é possível para as artes, e depende da máxima inclusividade de material sem que este desista de tratar a forma, configurando assim uma via de dois sentidos, recebendo e trocando técnicas com outras áreas da estética e da epistemologia. Nesse caso, a pósmodernidade pode ser definida como um projeto, como um desejo de superar, como um compasso de pausa sem sinais escritos. Sua exigência é o desafio para a copreensão de quanto a arte mudou, qual bagagem ela trouxe da modernidade e do que ela deixou pelo caminho.

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Bibliografia ADORNO, Theodor W.: Aesthetische Theorie. Frankfurt: SUHRKAMP, 1973. ___________________: Current of Music – Elements of a Radio Theory. Frankfurt: SUHRKAMP, 2006. ___________________: Die Kunst und die Künste in Kulturkritik und Gesellschaft I/II. Gesammelte Schriften (Hsg. Rolf Tiedemann). Frankfurt: SUHRKAMP, 1977. ___________________: Fortschrift. Gesammelte Schriften (Hsg. Rolf Tiedemann). Frankfurt: SUHRKAMP, 1977. ___________________: Minima moralia - Reflections from damaged life. London: NLB, 1974. ___________________: Negative Dialectic. Frankfurt: SUHRKAMP, 1980. ___________________: Philosophie der neuen Musik. Frankfurt: SUHRKAMP, 1978. BENJAMIN, Walter: Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit, in Medienästhetische Schriften. Frankfurt: SUHRKAMP, 2002. BURGER, Peter u. Christa (Hgg.): Postmoderne: Alltag, Allegorie und Avantgarde. Frankfurt: SUHRKAMP, 1987. ENZENSBERGER, Hans Magnus: Aussichten auf den Bürgerkrieg. Frankfurt: SUHRKAMP, 1993. FÜLLSACK, Manfred: Politische Kunst – Adorno im post-sowjetischen Kontext. Wien: PASSAGEN VERLAG, 1995. GALILEI, Vincenzo: Dialogo di Vincentio Galilei nobile fiorentino della musica antica, et della moderna. In Fiorenza, 1581. Appresso Giorgio Marescotti - in fol. di pag. 149 senza la tavola. (Com note manoscritte del cav. E. Bottrigari). KUNOW, Rüdiger: Emotion Recollected in Tranquility? Representing the Holocaust in Fiction, in Emotion in postmodernism. Heidelberg, Universitätsverlag C. Winter, 1997. MENKE, Christoph u. REBENTISCH, Juliane (Hsg.): Kunst, Fortschritt, Geschichte. Berlin: Kunsverlag Kadmos, 2006. WELLMER, Albrecht: Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne – Vernunftkritik nach Adorno. Frankfurt: SUHRKAMP, 1985.

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