Deleuze, Guattari e Celso Furtado. Pensar o Brasil. Uma introdução

Share Embed


Descrição do Produto

Deleuze, Guattari e Celso Furtado Pensar o Brasil

A aposta deste trabalho é que a crítica deleuzo-guattariana ao capitalismo nos permitiria repensar noções criadas por Celso Furtado para explicar nossa condição histórica de país subdesenvolvido e a sua singularidade definidora: a dependência econômica e cultural. O que há de interessante no pensamento de Celso Furtado é que ele rompe a diferença estruturante do pensamento marxista até então: a relação superestrutura-infraestrutura. Um problema fundamental porque nos coloca diante da tarefa de repensar o modo de organização da vida social, não mais com base numa relação causal simples. É sabido que Foucault desempenhou um papel fundamental na construção da micropolítica deleuziana, mas o que dizer da relação entre a crítica ao neoliberalismo feita por Foucault nos anos de 1978-1979 e a crítica do capitalismo presente em Mille Plateaux. Aparentemente, Foucault teria se deixado tentar por uma crítica ideologia neoliberal, enquanto Deleuze e Guattari optaram por uma crítica do funcionamento do capitalismo em sua história e na atualidade. Celso Furtado, como Foucault, também tratou da crítica à racionalidade econômica chamada por ele de “racionalidade instrumental”. Para Celso Furtado, a ideia de que vivemos um tempo em que a racionalidade econômica foi transferida para todas as esferas da vida social é de “escassa valia” para compreendermos a natureza do subdesenvolvimento e o papel do Estado na sua construção e manutenção. Como Deleuze e Guattari, Celso Furtado vê no Estado um capturador de excedente. Neste sentido, Celso Furtado poderia, com Deleuze e Guattari nos ajudar a construir não apenas uma crítica do neoliberalismo e sua racionalidade econômica no interior da vida social, mas também a natureza da racionalidade do capitalismo neoliberal e as relações de dependência entre Estados. A noção de subdesenvolvimento é tratada em Deleuze e Guattari a partir de uma perspectiva econômica e também geográfica. A filosofia política de Deleuze e Guattari é uma arte concreta e primeira de ocupação da terra e organização da vida social, uma arquitetura ou construtivismo e uma geopolítica. Por isso, a História em Deleuze e Guattari é contada a partir dos Estados nações e suas conquistas territoriais, ou do “modo de produção asiático” de Marx. O Estado asiático não se enquadra nos cinco estágios, comunismo primitivo, cidade antiga, feudalismo, capitalismo, socialismo; por isso o marxismo não sabia o que fazer com ele. Para Deleuze e Guattari, ele é a formação de

base que está presente ao longo de toda a História. 1 O Estado, como Urstaat, é o “estado despótico”, “asiático”, “originário”, o paradigma ou modelo do que o “Estado quer ser ou deseja”. Essa política conta a narrativa mítica e filosófica de constituição do Estado nação como Império colonial. O capitalismo tem sua origem com o século XVI, para Deleuze e Guattari e Foucault, o século das grandes navegações, da descoberta da América, de um novo mundo, momento também de descoberta ou invenção do Brasil. Ao descrever a máquina territorial, Deleuze e Guattari afirmam “É um ato de fundação, no qual o homem deixa de ser um organismo biológico e se torna corpo pleno, uma terra, na qual seus órgãos se penduram, atraídos, empurrados, miraculados, segundo as exigências do socius.” 2 No século XVI, O Estado se constitui como uma racionalidade governamental que Foucault chamou de razão do Estado, ela é a “forma” do Estado nação que Deleuze e Guattari criticariam. O Estado, neste caso, apesar de obedecer certo número de regras e princípios exteriores a ele, como leis divinas, morais ou naturais, gozava de relativa autonomia. O Estado “n’existe que pour lui-même et par rapport à lui-même.” 3 O Estado é um modo particular de “interioridade”, relação de si para consigo mesmo. Governar segundo este princípio significa tornar o Estado sólido e permanente, rico e forte diante das ameaças. 4 Um processo de fortalecimento do Um, da unidade, da integração nacional, de construção da forma Estado nação. Ele começa no período das grandes navegações, com as desaventuras da colonização. Este paradigma vigorou, digamos, até a segunda guerra mundial, mas se transformou consideravelmente com o advento do neoliberalismo. Esta transformação requer outra abordagem metodológica. Foucault anuncia que para analisar o neoliberalismo, ele não fará uma teoria do Estado, por duas razões: em primeiro lugar porque a história não é uma ciência dedutiva; a segunda razão, “mais importante” e “mais grave” é que o “Estado não tem essência”, ele não é um universal, nem sequer uma fonte autônoma de poder. O Estado, não é nada além do efeito, o perfil, o “corte móvel” (“découpe mobile” é um termo foucaultiano e muito deleuziano) de uma perpétua estatização. O Estado não é

Deleuze e Guattari. L’Anti-Œdipe. Paris Minuit, 1972, p. 262. Idem., p. 173. 3 Foucault, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2004, p. 6. 4 Idem., p. 6. 1 2

mais uma espiral dialética, uma totalidade hegeliana, mas uma totalidade cujo movimento acelerado produz efeitos inéditos e de intensidades excessivas.

Uma perpétua estatização, ou perpétuas estatizações (no plural), transações incessantes que modificam, que deslocam, que transformam, que fazem deslizar insidiosamente, pouco importa, as fontes de financiamento, as modalidades de investimento, os centros de decisão, as formas e os tipos de controle, as relações de poder locais, autoridade central, etc. Breve, o Estado não tem entranhas (“entrailles”), ele penetra toda a vida social, sobretudo a economia, e também a libido, o corpo, nossas tripas, “nós sabemos, prossegue Foucault, não simplesmente porque ele não tem sentimentos, nem bons nem maus, mas ele não tem entranhas porque ele não tem interior. O Estado, não é nada além de um efeito móvel de um regime de governamentabilidades múltiplas”. Tanto o conceito de nomadismo, quanto o conceito de corpo sem órgãos já estão presentes aqui. Este movimento de dobra que Foucault realiza consiste em produzir o Estado como forma de interioridade, Estado nação, em si mesmo e por si mesmo, para em seguida efetuar a passagem, para uma forma de Estado que é mobilidade de cortes móveis. O corpo sem órgãos é esta nova forma do Estado que não tem interior, mas se duplica e se multiplica, se espalhando pelo espaço, nômade. O capitalismo ocupa a terra e não cessa de ocupá-la e distribuí-la.5 Assim, haveria uma outra economia política, que não procura estabelecer quais são os direitos originários que fundam a governabilidade, mas quais os efeitos reais da governabilidade e de seu exercício.6 O que a análise foucaultiana do neoliberalismo tem em comum com as análises econômicas do capitalismo empreendidas por Deleuze e Guattari é que elas visam evidenciar as práticas, discursos e técnicas através dos quais o Estado cria sua própria legitimação. Daí a necessidade de uma filosofia da História, tanto em Foucault quanto em Deleuze e Guattari. Esse pensamento da História seria composto de um duplo movimento crítico: a crítica da pretensão estatal em funcionar como o fundamento da vida social e a crítica do processo de legitimação do Estado. 5

Idem., p. 79. Aqui a fobia do Estado, a angústia do Estado, problema corrente segundo o filósofo em seu tempo, aparece sob uma nova luz. Haveria, portanto uma crítica do Estado que procura vencer seu desmantelamento, sua perda de essência, atribuindo-lhe uma essência. Uma espécie de tendência fascista que assombra ainda as democracias. 6

Para o pensamento de Deleuze e Guattari, a questão política é a mesma que movia Foucault, no exame da doença, da loucura, da delinquência, da sexualidade : “Trata-se de mostrar por quais interferências toda uma série de práticas – a partir do momento em que elas são coordenadas por um regime de verdade (regime de relação representativo, onde vigora a relação entre o fundamento e o fundado), por que interferências esta série de práticas podem fazer que o que não existe (a loucura, a doença, a delinquência, a sexualidade etc.) se torne alguma coisa, alguma coisa que continua a existir”. 7 Ou seja, não basta pensar o “determinismo econômico estatal” com sua causalidade renovada, era preciso pensar o modo de reprodução da vida social, como o que não existia e passou a existir e continua existindo. Este será o território da crítica à psicanálise, como discurso de produção de modos de subjetivação. No mesmo ano em que Foucault apresentou no Collège de France seu curso sobre a Biopolítica, Celso Furtado publicou Ensaios de opinião. Nele encontramos “O desenvolvimento do ponto de vista interdisciplinar”. Examinando este texto poderemos observar que o que Foucault chama de biopolítica, Celso Furtado, que também conhecia muito bem a tradição weberiana alemã, chamou de racionalidade instrumental.

A penetração do capitalismo na organização da produção pode ser interpretada como uma ampliação da área social submetida a critérios de racionalidade instrumental. O capitalista, que antes tratava com senhores de terras, com corporações detentoras de privilégios, ou entidades similares, passa a lidar com “elementos da produção”, que podem ser considerados abstratamente, comparados, reduzidos a um denominador comum, submetidos ao cálculo. A partir desse momento,

a

“esfera

das

atividades

econômicas”

pode

ser

concebida

independentemente das demais atividades sociais. Essa concepção do econômico como uma esfera autônoma reflete a visão que tem o capitalista da realidade social, a qual, por seu lado, está marcada pela ascensão da posição que ele ocupa na estrutura do poder. Ora, esse avanço da “racionalidade” não é outra coisa senão a ampliação da área das relações sociais submetida aos critérios da organização mercantil.8

7

Idem., p. 21. Furtado, Celso. “Subdesenvolvimento e dependência: as conexões fundamentais.” In: Celso Furtado Essencial. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 201 8

Para Celso Furtado, a racionalidade instrumental “é de escassa valia”9 para compreendermos a natureza da economia nos países subdesenvolvidos. No ano seguinte Deleuze e Guatarri publicam Mille Plateaux, e suas análises irão como as de Celso Furtado, evidenciar o caráter parcial ou limitado do neoliberalismo e de sua crítica. Um dos argumentos principais de Deleuze e Guatarri é que as economias desenvolvidas, como as subdesenvolvidas, as totalitárias ou as economias burocráticas do leste europeu, só podem ser compreendidas umas em relação com as outras, a partir de uma análise de sua dependência, como argumentava justamente Celso Furtado, no que diz respeito as economias subdesenvolvidas. Assim, se há de fato uma brasilianização10 do mundo, se o mundo desenvolvido hoje tem em seu próprio território populações vivendo como cidadãos de segunda classe numa periferia ou gueto; se a racionalidade capitalista está cada vez mais cínica ou próxima da nossa malandragem, isto pode ser explicado não pelo cinismo neoliberal, não pelo discurso do poder ou da ideologia, mas pelas práticas do próprio capitalismo, que na periferia como no centro, se desenvolve a partir de relações de dependência, reproduzindo simultaneamente processos de flexibilização de normas e criação de novos limites e restrições. Assim a crítica deleuziana do capitalismo visa justamente compreender a ambiguidade da normatividade capitalista, ou seja, a miséria e a desigualdade ou a precariedade brasileira que parece se espalhar cada vez mais pelo mundo desenvolvido não é apenas ambiguidade ou cinismo no discurso, ela é também duplicidade ou ambiguidade das práticas no interior do capitalismo. A biopolítica ou Vitalpolitik, se define, segundo Foucault, e a partir dos ordoliberais alemães, como “une politique économique ou une politique d’économisation du champ social tout entier, de virage à l’économie du champ social tout entier”.11 Ela se confundiria com a afirmação de Celso Furtado, de que não há separação entre infraestrutura e superestrutura? Haveria uma única racionalidade operando em toda a vida em sociedade, em todas as suas esferas? A separação entre superestrutura e infraestrutura é aniquilada pela noção que Celso Furtado tem da economia dos países subdesenvolvidos: “O subdesenvolvimento tem suas raízes numa conexão precisa, surgida em certas condições históricas, entre o processo interno de exploração e o processo externo de 9

Idem., p. 234. Ver Arantes, P. « A fratura brasileira do mundo ». In: Zero à esquerda. São Paulo, 2004. 11 A presença alemã na invenção do neoliberalismo torna ainda mais evidente o problema da transição do nazismo ao neoliberalismo, ou a relação entre ambos. Foucault, M. Naissance de la biopolitique. Paris : Gallimard, 2004, p. 218. 10

dependência.” Dependência que é econômica e cultural. 12 Isso não significa que apenas o exame crítico da ideologia nacional da dependência, no plano cultural seria suficiente para compreendermos a natureza de nosso subdesenvolvimento. Já que “o exame das vinculações entre as relações exteriores e as formas internas de dominação social nos países subdesenvolvidos lança luz sobre a natureza do Estado nesses países”. 13 Porque o Estado tem um papel constituinte na dependência, a História brasileira, em diacronia ou sincronia, não cessa de se repetir. O que se transforma com o neoliberalismo contemporâneo é a capacidade do Estado de proliferar seus axiomas, visando incorporar demandas distintas, visando atender diversos setores da vida social. 14 Os países subdesenvolvidos não são como os unicórnios das enciclopédias borgeanas nem ornitorrincos, elo perdido de uma história natural. Os países subdesenvolvidos não são exteriores ao processo de construção do capitalismo, mas sim parte integrante e fundamental, fonte de energia, matéria-prima e força de trabalho barata. Nós somos ainda colonizados ou dependentes de países externos para a determinação de nossa economia, importando os bens de consumo produzidos por eles, fornecendo matéria-prima desejada a baixo custo, às custas da exploração da força de trabalho de sua população. O capitalismo atual, tem segundo Deleuze e Guattari, como um dos seus axiomas fundamentais a relação entre mercado interno e mercado externo. A economia dos países subdesenvolvidos se constitui, segundo Celso Furtado, como a divisão internacional do trabalho, produzindo matéria-prima e o excedente desta produção é destinado ao consumo das elites, os bens importados. Nossa relação de dependência é cultural, estrutural, porque nossa elite quer viver como a corte portuguesa, banhada em mar de privilégios. Dependência histórica15 que determinou e continua estruturante na nossa realidade social.

Furtado, Celso. “Subdesenvolvimento e dependência: as conexões fundamentais.” In: Celso Furtado Essencial. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 201. 13 Idem., p. 232. 14 Assim, o lulismo seria mais do que um acordo entre elite e governo que visa ao mesmo tempo, diminuir a exploração e gerar riqueza, seria uma nova política que visa equilibrar interesses contraditórios múltiplos, já que quando falamos em interesses da elite em um país subdesenvolvido, estamos falando ao mesmo tempo, das elites nacionais e internacionais, cujos interesses não são os mesmos. Equacionar crescimento interno e equilíbrio fiscal é justamente uma tentativa de obedecer esses interesses contraditórios. Ver Paulani, L. Brasil delivery: servidão econômica e estado de servidão econômico. São Paulo: Boitempo, 2008. 15 Ver Chauí, M. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. P. 95 12

Se o polo do Estado “socialdemocrata” opera criando axiomas, o polo do Estado “totalitário” opera restringindo-os. Se o Estado socialdemocrata privilegia o desenvolvimento do mercado interno, o Estado “totalitário” privilegia exclusivamente o mercado externo, procura atrair capital estrangeiro, a indústria é voltada para exportação de matéria prima e de produtos alimentares ou agrícolas. O Estado totalitário não é um máximo de Estado, mas um Estado mínimo, Estado mínimo que Paul Virilio chamou, ao caracterizar a economia chilena, de anarco-capitalista. No limite, os únicos axiomas retidos são: o equilíbrio do setor externo, a taxa de inflação e o nível das reservas. O segundo aspecto da axiomática capitalista que nos interessa é o da saturação. O capitalismo é orientado por dois processos: afrontamento e deslocamento de limites. A questão que este axioma coloca é: é possível distribuir duas tendências inversas esperando que a saturação provoque uma inversão? Não, toda saturação é sempre relativa. O capitalismo se confronta com seus próprios limites quando provoca a depreciação periódica do capital ou a formação de um novo capital, em indústrias com altas taxas de lucro. Podemos citar o exemplo do nuclear, na França após o primeiro choque do petróleo. Se Marx pensou o capitalismo como axiomático foi justamente pela ideia da baixa tendencial na taxa de lucro. Assim a tendência totalitária coloca, erige limites enquanto que a tendência socialdemocrata desloca. Deleuze e Guattari citam o Brasil como modelo híbrido ou ambíguo, como uma economia que adota ao mesmo tempo dois parâmetros: totalitário e social democrata. Se o polo do Estado “totalitário” atua promovendo o setor externo, atraindo capital estrangeiro, com uma indústria voltada para exportação em detrimento do mercado interno, o Estado socialdemocrata não restringe, mas desloca os limites do capitalismo privilegiando o mercado interno. Portanto, um modelo econômico híbrido como o brasileiro, funciona como paradigma local do funcionamento global do capitalismo. Pois, como afirmava Celso Furtado:

O subdesenvolvimento tem suas raízes numa conexão precisa, surgida em certas condições históricas, entre o processo interno de exploração e o processo externo de dependência. Quanto mais intenso o influxo de novos padrões de consumo, mais concentrada terá de ser a renda. Portanto, se aumenta a dependência externa, também terá que aumentar a taxa interna de exploração. Mais ainda: a elevação da taxa de crescimento tende a acarretar agravação tanto da dependência externa como da exploração interna. Assim, taxas mais altas de crescimento, longe de reduzir o

subdesenvolvimento, tendem a agravá-lo, no sentido de que tendem a aumentar desigualdades. 16 Ou seja, quanto mais brasileiros consomem sem moderação em Miami, mais brasileiros trabalham, quando possível, apenas para tentar sobreviver. Como este processo de modernização das periferias que se acelerou nas últimas décadas se reflete no centro? A polaridade entre axiomas de subtração e de adjunção são um esquema geral que concerne os movimentos próprios do centro, mas como explicar as novas relações centro-periferia neste contexto? Para isso é preciso levar em consideração um outro axioma, do terceiro excluído que concerne a desigualdade das relações centro-periferia. A taxa de crescimento, gerada pela alta indústria europeia que se instala na periferia ou pela alta mecanização da agricultura transforma o centro, que não apenas desloca e substitui suas atividades produtivas, agora centradas nos setores de serviço ou pósindustriais, mas que passa a ter sua própria periferia, suas zonas subdesenvolvidas, suas periferias interiores. O trabalho se dissemina em duas direções: subtrabalho intensivo que não passa mais pelo trabalho (trabalho escravo, semiescravo, clandestino ou informal), trabalho extensivo, precário ou flutuante (contratos de curta duração, sem direitos trabalhistas).

17

Ou seja, se na periferia o investimento estrangeiro gera exploração,

porque o excedente da produção é revertido em benefício da elite e seus altos padrões de consumo, elite que precisa do excedente gerado pela produção para manter seu padrão de consumo, a produção da periferia sustenta o consumo do centro, mas um consumo que perde seu vigor a partir do momento em que a produção já não gera mais os benefícios que permitiram o desenvolvimento do mercado interno europeu. Quando a produção se desloca para a periferia, o mercado consumidor europeu composto por trabalhadores com padrão de consumo que sustentava as indústrias antes nacionais, perde seu poder de consumo, e assim são criadas condições que favorecem a precarização do trabalho. Começa o tempo das políticas de “inserção”. No caso da periferia, as “políticas de inserção”, são usadas para suprir ou gerenciar desigualdades seculares. Mais uma vez, a adoção de hábitos, práticas e ideias europeias é deslocada, o acesso ao consumo não se dá pela melhoria das condições de trabalho ou redução, mesmo que mínima, da exploração, com melhoria nas condições de vida e acesso a serviços públicos, mas via uma política de “contenção de danos” e “gerenciamento” da pobreza. É importante

16 17

Furtado, Celso. Celso Furtado Essencial. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 196. Deleuze e Guatarri se referem evidentemente ao trabalho de Negri.

lembrar que as políticas ditas na França “de inserção” não têm a mesma idade ideológica dos primeiros tempos de consagração da iniciativa empresarial enquanto fonte perene de inovação e riqueza18, elas visam conter os danos causados pela “divisão internacional do trabalho” que Celso Furtado colocava como responsável pela desigualdade entre os países, pois o processo de transferência das empresas europeias para a América latina ou Ásia é muito distinto. Na Ásia, a alta exploração do trabalho (como no Camboja) se combina com uma produção voltada para o consumo externo, já na América latina, as políticas de inserção visavam o desenvolvimento de um mercado interno. O diagnóstico deleuzo-guattariano, de que o Brasil seria um caso singular de modelo híbrido, onde vigoram axiomas tanto “totalitários”, quanto “social-democrata” parece se confirmar quando confrontadas com os diagnósticos de Celso Furtado, esse poderia ser um caminho possível para pensarmos a natureza do neoliberalismo brasileiro.

Considerações finais

O Brasil é também, ao mesmo tempo, a própria Urstaat incondicionada. O Estado Imperial que surge num passe de mágica mítico, a Terra, o novo mundo, a América. Nosso mito fundador é evidentemente os Lúsiadas, foi com as grandes navegações e seus mitos que tudo começou. A História da colonização é também o nascimento de uma mitologia, Édipo. A crítica da colonização ocupa um lugar central no projeto capitalismo e esquizofrenia. Ele está presente na crítica da economia libidinal do capitalismo e da história. A economia libidinal da história é movida por desejos samo-maquistas de conquista, dominação e controle. Estética do genocídio indígena. Política de gestão da população que é também economia da vida e da morte. O senhor de escravos dispõe de uma pessoa, como um consumidor de uma mercadoria com prazo de validade. O senhor dispõe da vida de seus escravos e decidia inclusive sua morte. Prática que fundou nossa polícia militar. Esta História de guerra civil que é a construção do Estado nação colonial orienta os mitos fundacionistas do Estado. O monstro que, como o tempo, devora seus próprios filhos. Esta História do Estado nação que se divide em dois momentos: as grandes navegações e a crise teológico política que eclode no século XVII (vinda da corte, barroco brasileiro) e a Revolução Francesa e o declínio do catolicismo teorizado por Nietzsche

18

Ver Arantes, P. « A fratura brasileira do mundo ». In: Zero à esquerda. São Paulo, 2004, p. 52.

que culminaram na Independência forjada do país, acordo entre Estados nações, a família real portuguesa torna o país independente para conservar aqui a monarquia. Esta história é também a narrativa da morte do homem e vida de um super-homem nietzschiano que se tornou agora, sub-homem. Interioridade que se dobrou sobre si mesma, que se dobrou em direção às suas próprias entranhas e com a esquizofrenia de Artaud: se dilacerou. É a imagem de um corpo dilacerado que organiza a política deleuzoguattariana. Este corpo dilacerado é o desejo, o inconsciente, o modo de ser da multitudo, de um outro sujeito político, a massa revolucionária, a multiplicidade organizada. Uma imagem baconiana de deformação que é também experimentação e invenção de um novo corpo: a multitudo. O devir-revolucionário. Estamos diante de uma máquina com suas engrenagens angulosas, com sua plasticidade pastosa. Um outro inconsciente para uma noção reconfigurada de poder. Uma Micropolítica. O inconsciente como o poder é habitado e atravessado por linhas de força contingentes que produzem quando estão em relação singularidade-singularidade. Pensar o próprio do corpo, o que só pode ser sentido, é a tarefa da reconstrução deleuziana do campo empírico-transcendental. Do que só pode ser sentido Mille Plateaux nos colocará diante do imperceptível. O que ainda não foi pensado, que movia a síntese da Ideia se transfere para o campo do sensível com a escrita de Kafka. A escrita da despossessão de si, escrita que não pode mais dizer eu, que fala em nome de um “on”, de um impessoal. O conceito de menor é central na reconstrução desta História renovada do sujeito. Mas porque esta passagem pelas minorias políticas? O que é o menor? O menor começa a ser criado com o conceito de devir e linha de fuga. Em Kafka a saída está no devir animal. “Josefina ou o povo dos camundongos.” Esta é a linha de fuga que nos leva para fora do poder. O devir animal é como espíritos animais do Descartes, eles podem mudar a direção do movimento do nosso corpo. Quase uma operação mágica, extremamente misteriosa. O devir animal não se confunde com o instinto ou a libido, ele é o próprio desejo, o inumano ou um outro homem. Molecular, atravessado por afetados contingentes que não podem ser pressupostas, são diagramáticos, geográficos, correm à toda velocidade, escapando... O problema da organização política, ou da ligação das massas, como diria o mestre de Badiou, Mao Tse Tung, é também uma questão relevante para Deleuze e Guattari, porque significa pensar o que é colocar a anarquia no poder, coroando-a. Em Différence et répétition a “anarquia coroada” de Artaud designa ao mesmo tempo uma ontologia e

um nomos, um modo de repartição dos seres no espaço. Em chave política, anarquia é a ausência de Estado ou negação da arché como o próprio de uma sociedade. O próprio é o modo de organização social, a forma Estado-Capital de organização da vida social. O problema fundamental seria, portanto dissolver as fundações do Estado. Esse é o sentido da crítica deleuziana, descrever os mecanismos através dos quais o Estado produz sua legitimação, seu fundamento, e se dissemina. Destruir o Estado de fora significa criar formas de organização política não institucionais, não são tudo o que existe fora dos partidos, são as organizações que lutam contra e fora das instituições, como o GIP (Groupe Information Prison), do qual Foucault e Deleuze fizeram parte. Para Deleuze e Guattari a questão é construir linhas de fuga que durem, que se multipliquem que se transformem em rizoma e invadam todos os espaços da vida. Assim, o problema da organização política (da ligação das massas) e da consistência dos conceitos são um único e mesmo problema. O que nos coloca diante de uma série de questões: sobre a relação do saber e da política, do discurso filosófico e da vida pública, sobre o que é a produção de um saber. A história da filosofia no Brasil tenha talvez uma relação com maio de 6819 que ainda não foi pensada. O que faz com que Foucault, Celso Furtado e Deleuze e Guattari sejam contemporâneos? E o que faz de Foucault, Celso Furtado e Deleuze e Guattari nossos contemporâneos? Década de sessenta, década de oitenta? 64-80? 80-2013? Estaríamos diante do fim de um segundo ciclo neoliberal? E como será o novo ciclo que estaria se instaurando?

Se Deleuze e Guattari podem dizer que maio de 68 não aconteceu (Ver: Deleuze. “Mai 68 n’a pas eu lieu (avec Guattari). In: Deus régimes des fous. Paris: Minuit, 2003), talvez seja pelas mesmas razões que fizeram do golpe de 64, o fim de um “projeto” nacional. Chamamos de “projeto”, por falta de um termo mais apropriado, a necessidade de superação do desenvolvimento ou eliminação da miséria, um projeto que não era desenvolvimentista, já que Celso Furtado, como vimos, não defendia o crescimento da economia como condição sine qua non para a distribuição de renda. 19

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.