Dentro ou fora? O lugar do Brasil na unidade latino-americana

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BRASA XII CONGRESS 2014 20-­‐23rd  August  2014 King’s  College  London Painel: “O Brasil visto de fora: olhares, interpretações, questionamentos”

Working Paper: “Dentro ou Fora? O lugar do Brasil nos Projetos Intelectuais de Unidade Latino-Americana” (“Inside or outside? The place of Brazil in the Intellectual Projects of Latin American Unity”)

Autor: André Kaysel (UNILA/USP)

 

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Resumo: este artigo tem por objetivo discutir o lugar ambíguo do Brasil nos projetos políticos e intelectuais de integração da América Latina, do período pós-independência ao primeiro terço do século XX. Minha hipótese é a de que, em que pesem as mudanças na identidade latino-americana, o Brasil não chegou a ser plenamente absorvido, com consequências duradouras para a política e o pensamento político latino-americanos ao longo do século XX. Para sustentar tal argumento, analisarei alguns projetos de unidade da América latina de intelectuais e líderes políticos hispano-americanos do século XIX e início do XX.

Palavras-chave: Brasil; América Latina; Unidade Continental

Abstract: This paper aims at discussing the ambiguous place of Brazil in the intellectual and political projects of Latin American unity, from the post-independence period to the first third of the 20th century. The main hypothesis is that, despite the many changes in the conceptions of Latin American identity throughout this period, Brazil was not fully absorbed in to any of the visions of continental unity, with lasting consequences in to 20th century's Latin American politics and political thought. In order to sustain this argument, I shall examine the images of Brazil in the projects of Latin American unity elaborated by Hispano-American intellectuals and political leaders from the 19th century and the early 20th.

Key words: Brazil; Latin America; Continental Unity

 

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Introdução

Nos últimos anos o Brasil tem desempenhado um papel de crescente importância como liderança política na América do Sul, em particular, e, em menor medida, no âmbito latino-americano. Esse protagonismo se expressa tanto em iniciativas como a ampliação do Mercosul, como também na criação de outros fóruns multilaterais, como a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a Comunidade dos Estados LatinoAmericanos e Caribenhos (CELAC). Até mesmo uma universidade, a Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), foi criada pelo governo federal em 2010 como parte da política brasileira de estímulo ao processo de integração regional. No entanto, a recente ênfase latino-americanista de nossa política externa contrasta com a pouca importância do intercâmbio político e cultural que o Brasil historicamente mantém com seus vizinhos. É comum ouvir os defensores brasileiros desta política enfatizarem, com razão, nosso pouco ou nenhum conhecimento a respeito do restante da América Latina, ou mesmo a imagem negativa que os meios de comunicação e outras parcelas do establishment cultural brasileiro difundem acerca da região. Se por um lado tal diagnóstico sobre a carência de conhecimentos e a hostilidade de parcelas das elites políticas e intelectuais brasileiras com relação aos países hispanoamericanos parece estar, no fundamental, correto, por outro lado seria possível indagar também quais seriam as imagens que nossos vizinhos têm produzido, ao longo do tempo, a respeito do Brasil. Uma forma possível de responder a esta pergunta é recorrendo a uma investigação das diversas interpretações acerca da “Unidade LatinoAmericana” produzidas por importantes políticos e intelectuais hispano-americanos, proposta que será levada a cabo no presente trabalho. Assim, nas páginas que se seguem, abordarei as visões sobre o Brasil que aparecem nas obras de alguns dos mais importantes políticos e intelectuais latino-americanistas, entre o século XIX e o primeiro terço do XX procurando demonstrar que, ao longo desse percurso, a ideia da unidade subcontinental se transforma, partindo da visão de uma unidade hispano-americana que claramente não inclui o Brasil, para a de uma unidade Latino-americana e/ou Indoamericana que passa a incluir o país, ainda que de forma marginal ou deslocada. Esta incorporação teria ocorrido devido a uma mudança nos termos segundo os quais a realidade continental era pensada, passando-se de uma chave “cultural” e/ou “racial” para outra “econômico-social”, o que permitiu que as ideias que norteavam o pertencimento dos países à Unidade se ampliassem para além das fronteiras linguísticas. Essa mudança de paradigmas teria ocorrido, sobretudo, na década de 1920, razão pela qual darei particular importância aos pensadores deste período.

1.Simón Bolívar e José Martí: a “Nossa América” e as dos outros

Os primeiros projetos de unidade continental surgiram no bojo das guerras de independência das antigas colônias espanholas nas Américas, travadas entre 1810 e

 

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1825.1 Durante esse período, o esforço político e militar comum para se emancipar da metrópole forjou em algumas lideranças do movimento separatista a ideia de que, uma vez lograda a Independência, os antigos vice-reinados e capitanias que compunham o Império espanhol deveriam formar um Estado confederado, sendo o venezuelano Simón Bolívar, o mais conhecido e lembrado porta-voz dessa proposta. Em sua conhecida “Carta de Jamaica” (1815), escrita quando o “Libertador” se encontrava exilado nesta ilha caribenha, Bolívar considerava, de modo cético, a “Confederação Americana”2 como um objetivo futuro e distante nos seguintes termos:

“É uma ideia grandiosa pretender fazer do mundo novo uma só nação, com um só vínculo que ligue suas diferentes partes entre si e com o todo. Já que tem uma origem, uma língua, costumes e uma religião, não deveria, por conseguinte, ter um só governo que confederasse os diferentes Estados que hão de formar-se? Mas não é possível porque climas remotos, situações diversas, interesses opostos e caráteres dessemelhantes dividem à América.” (Bolívar, 2009, p. 84)

Ainda que pessimista, esse trecho é revelador por enumerar os traços que unificariam, na visão do revolucionário venezuelano, os “americanos” como um embrião de uma eventual nacionalidade futura: “origem”, “língua”, “costumes” e “religião”. Assim, no pensamento de Bolívar, a condição de “americano” definia uma nacionalidade embrionária, delineada em oposição, tanto aos indígenas, habitantes originários do continente, como em relação aos espanhóis, “invasores”, como se pode ver em seu célebre “Discurso de Angostura”:

“(…) não somos europeus, nem somos índios, mas sim uma espécie intermediária entre os aborígenes e os espanhóis. Americanos de nascimento e europeus por direito, vivemos no conflito de disputar aos naturais os títulos de posse do território e de mantermo-nos no país que nos viu nascer, contra a vontade do invasor.” (Idem, 2009, p. 123)

Está claro, pois, que a confederação almejada se referia aos “hispanoamericanos”, então em pugna contra sua antiga metrópole. A relação íntima entre a unidade e o esforço bélico compartilhado fica ainda mais clara na seguinte passagem, na qual Bolívar assim se dirige a seu correspondente:

“Eu vos direi o que nos pode pôr em condições de expulsar os espanhóis e formar um governo livre: a união certamente. Mas essa união não nos virá de prodígios divinos, mas por efeitos sensíveis e esforços bem dirigidos.” (Idem, p. 86)                                                                                                                         1

Para uma apresentação a um só tempo sintética e aprofundada das guerras de libertação da América espanhola, cf. (Donghi, s/d, cap. 2). O referido texto permite vislumbrar até que ponto a Independência hispano-americana foi um processo unitário. 2 Durante o período das guerras de libertação os separatistas se autodenominavam “americanos” em oposição aos espanhóis ou peninsulares.

 

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Logo de início, fica patente o quão distante estava o Brasil desses primeiros esboços. Colônia de Portugal, o país viveu um processo de emancipação bastante diferente, marcado pelo fato de que, em 1808, a Família Real portuguesa, diante da eminência da invasão napoleônica, trasladou-se para o Rio de Janeiro, alterando a condição da colônia para “Reino Unido”. Tal mudança de estatuto e a presença da burocracia lusitana no Rio de Janeiro condicionaram uma transição negociada e, até certo ponto pacífica, que culminou com a criação de um Estado monárquico, cabendo a coroa ao herdeiro do trono português.3 Além disso, cabe lembrar que o novo Estado também herdava antigas disputas de fronteiras entre as duas metrópoles ibéricas, como é o caso notório da Guerra Cisplatina pelo controle da “banda oriental” do Rio da Prata, a qual só terminaria em 1828 com a independência do Uruguai. O fato de não ter participado do esforço militar comum, a adoção da forma monárquica e as contínuas disputas fronteiriças, não apenas afastavam o Brasil de seus vizinhos, como também faziam com que estes o vissem com desconfiança. Quanto à monarquia, a seguinte passagem de uma carta de Bolívar ao presidente da GrãColômbia, general Francisco de Paula Santander, é reveladora. Ao celebrar a morte do líder militar mexicano Agustín de Iturbide, o qual havia tentado coroar-se Imperador do México, o líder venezuelano faz o seguinte comentário:

“A morte de Iturbide é o terceiro tomo da história dos príncipes americanos. Dessalines, Cristobal e ele se igualaram pelo fim. O Imperador do Brasil pode segui-los e os aficionados aprenderem com o exemplo.” (Bolívar, 2009, p. 220)

Tendo isso em vista, não foi por acaso que o Brasil, assim como os EUA, não tenha sido convidado a participar do chamado “Congresso do Panamá” (1826), o qual reuniu representantes dos Estados hispano-americanos recém-libertados para discutir os planos de confederação que fortaleceriam e dariam estabilidade aos novos países4. Aos olhos de Bolívar, e daqueles que apoiavam seus planos de unidade continental, o Brasil era um “outro” da América hispânica, que ficava de fora, portanto, dos planos unitaristas. Essa visão perdurará por longo tempo, mesmo quando, por influência de intelectuais franceses do Terceiro Império de Luís Bonaparte – o qual pretendia contrabalançar a influência inglesa nas Américas –, o termo “América Latina” passou a figurar ao lado dos vocábulos originários “Hispano-américa” ou América Espanhola, substituindo-os aos poucos. No entanto, ainda que a ideia de “latinidade”, cada vez mais aceita, tivesse passado a incluir o Brasil e o Haiti, a origem bolivariana das propostas de unidade continental continuaram a preservar seu vínculo com uma concepção mais restrita de “hispanidade”, mesmo entre autores bastante críticos do legado colonial.                                                                                                                         3

É bom lembrar que a Independência brasileira assumiu caráter insurrecional na Bahia, no Pará e em algumas outras regiões. Todavia, o caráter negociado e “pelo alto” do conjunto do processo parece ser inegável. Para uma discussão das diferentes teses sobre a Independência e suas diferentes ênfases sobre as continuidades e rupturas com o período colonial, cf. (Costa, 2005). 4 Para a conferência foram convidados representantes do México, da Guatemala (que reunia então as atuais repúblicas centro-americanas, com exceção do Panamá), da Grã-Colômbia (atuais Venezuela,   Colômbia, Equador e Panamá), do Peru (atuais Peru e Bolívia), das Províncias Unidas do Prata (Argentina, Uruguai e Paraguai) e do Chile. Cf. (Bolívar, 2009, p.225).  

 

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Como se sabe, Bolívar faleceu na Colômbia em 1830, pobre e esquecido. A GrãColômbia, Estado por ele fundado há apenas onzes anos, se dividira em três, o que também ocorreu com os demais antigos vice-reinados e capitanias que constituíam o Império espanhol, dando origem a cerca de 20 repúblicas independentes, e logo as ideias de união ou confederação hispano-americanas foram deixadas de lado por um longo período. Foi apenas ao final do século XIX, quando a crescente intervenção econômica, diplomática e militar dos Estados Unidos começou a chamar a atenção de alguns intelectuais e políticos hispano-americanos, que a proposta de uma confederação como forma de resistir a um vizinho mais poderoso foi reavivada. Nesse sentido, um dos mais importantes pensadores provavelmente foi o escritor nacionalista e líder revolucionário cubano José Martí. Martí dirigia sua pregação contra o velho colonialismo espanhol, uma vez que as ilhas de Cuba e Porto Rico não acompanharam o movimento geral de emancipação ibero-americano nas duas primeiras décadas do século XIX, permanecendo como colônias espanholas, e, ao mesmo tempo, alertava para as ameaças do “neocolonialismo” estado-unidense, afinal, à medida em que cresciam as pressões emancipacionistas, os EUA deixavam mais claro seu intuito de apoderar-se de ambas as ilhas, dado sua localização estratégica, muito próximas ao território norteamericano e na entrada do Golfo do México. Essa combinação transparece claramente em seu mais conhecido ensaio, intitulado, não por acaso, “Nuestra América” (1891). Logo de saída, o autor adverte:

“Crê o aldeão vaidoso que todo o mundo é sua aldeia e com quanto ele fique como alcaide, ou mortifique aquele que lhe roubou a noiva, ou cresçam no cofre seus proventos, já dá como boa a ordem universal, sem saber dos gigantes que levam sete léguas nas botas e que podem por-lhe a bota em cima, ou da luta entre os cometas que vão pelo ar adormecidos engolindo mundos. Tudo que reste de aldeia deve desaparecer na América.” (Martí, 2005b, p. 31)

Nessa passagem o autor se refere, de modo alegórico, ao provincianismo que caracterizaria a vida política e intelectual das repúblicas hispano-americanas, cujas elites, preocupadas com disputas de campanário ou com seus interesses imediatos não estariam atentas para os perigos que ameaçariam o conjunto do subcontinente. Martí também se diferenciava destas elites que, influenciadas por uma combinação de positivismo, evolucionismo e determinismo biológico, culpavam as massas populares ou suas origens indígenas, ou negras, pelos problemas latino-americanos:

“Não há ódio de raças, porque não há raças. Os pensadores caniços, os pensadores de lâmpadas, requentam as raças de livraria que o viajante justo e o observador cordial buscam em vão na justiça da natureza, onde ressalta no amor vitorioso e no apetite violento, a identidade universal do homem.” (Idem, p. 38)

Para o revolucionário cubano, a raiz dos males da região estaria na inclinação de suas elites e círculos dirigentes em copiar fórmulas políticas e filosóficas importadas da França, Inglaterra ou dos EUA, sem se preocupar com sua adequação à realidade social e política de seus respectivos países. Tal atitude, que hoje poderia ser denominada como “colonialismo mental”, implicaria, não apenas em um grande desconhecimento da  

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realidade nacional, mas também em um profundo divórcio entre as instituições políticas e a realidade social. Esse raciocínio é expresso em uma fórmula, de inspiração rousseauniana, claramente endereçada ao escritor e político argentino Hugo Faustino Sarmiento. Se para este último, o dilema de seu país se exprimiria na fórmula “civilização ou barbárie”, em que a primeira se identificaria com o “europeu”, ao passo que a segunda remeteria ao “americano”, Martí responde que:

“Os homens naturais venceram os letrados artificiais. O mestiço autóctone venceu o criollo exótico. Não há batalha entre a civilização e a barbárie, mas sim entre a falsa erudição e a natureza.” (Idem, p. 33)5

Mas afinal, quem seriam os gigantes e quais seriam os cometas que passariam inadvertidos pelos “aldeões vaidosos”? Adiante, o autor esclarece que:

“O desdém do vizinho formidável, que não a conhece, é o perigo maior de Nossa América, e urge, porque o dia da visita está próximo, que o vizinho a conheça, a conheça logo, para que não a desdenhe.” (Idem, p. 38)

Nessa passagem, fica claro que Martí se refere aos EUA e às suas pretensões expansionistas, sustentadas em uma mistura de desconhecimento e desprezo em relação aos países hispano-americanos. Nesse sentido, é bom lembrar que, muito antes da “Guerra Hispano-americana” (1898) e das diversas intervenções militares do início do século XX, os EUA já haviam tomado metade do território mexicano na guerra de 1846-1847, fatos, aliás, diversas vezes reiterados pelo autor. Tendo isso em vista, quando foi celebrada em Washington a 1ª. Conferência Panamericana, de novembro de 1889 a janeiro de 1890, sob os auspícios do secretário de Estado norte-americano James Blaine, e com o pretexto de reforçar os laços entre os países do continente e impulsionar suas relações comerciais, no espírito da “doutrina Monroe”, contra ensaios de intervencionismo europeu, Martí, que cobriu o evento como correspondente do diário La Nación, de Buenos Aires, assim definiu o que realmente estaria em jogo:

“Jamais houve, na América, da Independência até hoje, assunto que requeira mais sensatez, nem obrigue a mais vigilância, nem peça exame mais claro e minucioso que o convite que os Estados Unidos, potentes, cheios de produtos invendáveis e determinados a estender seus domínios na América, fazem às nações americanas de menor poder, ligadas pelo comércio livre e útil com os povos europeus, para ajustar uma liga contra a Europa e cerrar tratos com o resto do mundo. Da tirania da Espanha soube salvar-se a América espanhola e agora, depois de ver com olhos judiciosos causas e fatores do convite, urge dizer, porque é a verdade, que chegou a hora para a América espanhola declarar sua segunda independência.” (Martí, 2005a, p. 57)                                                                                                                         5

A polêmica implícita entre Martí e Sarmiento é reveladora dos dilemas latino-americanos do século XIX. Afinal, ao contrário de outas regiões periféricas, como a Rússia ou o Japão, as elites intelectuais latino-americanas tinham dificuldade de se diferenciar culturalmente do ocidente. Cf. (Morse, 1996, pp. 8-9).

 

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Essa passagem contrapõe duas Américas: de um lado, a anglo-saxã, e, de outro, a “espanhola”. Em diversos outros momentos, o autor se refere a estas “duas nacionalidades” nas quais se dividiria o Continente. Nesse sentido, caberia aqui perguntar qual seria então o lugar reservado ao Brasil? Martí assim se refere a respeito dos representantes brasileiro no Congresso de Washington:

“Do Brasil têm assento no congresso Lafayette Rodrigues, presidente da junta de arbitragem dos reclamos daquela guerra na qual não se pode pensar sem dor, Amaral Valente, que em Nova Iorque não era desconhecido para os que sabem de direito internacional, e Salvador Mendonça, o culto cônsul, amigo de quadros e de livros, que diz em poucas palavras o que tem de dizer e sabe aproximar amigos para sua pátria e seu Imperador.” (Idem, p. 48)

Nesta passagem, aparentemente neutra, já se podem perceber duas referências negativas. Em primeiro lugar, a “guerra na qual não se pode pensar sem dor”, se refere, provavelmente, à “Guerra do Paraguai” (1864-1870), ainda que esta última não seja explicitamente citada. Em segundo lugar, a menção ao cônsul hábil em “ganhar amigos para sua pátria e para seu Imperador”, me parece uma referência irônica ao autoisolamento do Brasil em relação aos demais países latino-americanos, reforçada por sua forma monárquica de governo. Desse modo, têm-se mais uma vez os dois elementos que suscitavam, desde os tempos de Bolívar, desconfianças: um suposto expansionismo e o regime monárquico. Nesse sentido, uma referência mais claramente negativa à participação brasileira nos debates do congresso pode ser encontrada no seguinte trecho:

“Mas a seção memorável da Conferência porque revela talvez seu pensamento cardinal (…) foi aquela em que, em uma reunião de delegados para objetos especiais, fora da órbita usual e à parte de toda diplomacia, propôs um dos delegados norte-americanos o ato diplomático e estranho à conferência, por mais que grato a toda mente liberal, de reconhecimento, na forma de uma saudação da conferência, aos Estados Unidos do Brasil, a república acelerada pela decisão do general Fonseca nos domínios, ameaçados pela clerezia, do magnânimo D. Pedro II.” (Idem, p. 82)6

Diante da resistência de muitos delegados, os quais alegavam que aquela assembleia não era o lugar para um tal reconhecimento e de que seus países não lhes haviam dado mandato para tanto, Hederson, um dos representantes norte-americanos, teria dito que, qualquer momento seria propício para saudar a adoção por um país da forma republicana. Mais adiante o autor narra o resultado da votação:

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A referência ao golpe com o qual o Marechal Deodoro da Fonseca proclamou a República e a “questão eclesiástica” que, ao lado da campanha abolicionista, agitou os últimos anos do Império, mostram que Martí estava razoavelmente informado do que se passava no Brasil.

 

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“Dois delegados votaram por Hederson, mas todos, todos, com suas credenciais renovadas pela república, os delegados do Brasil romperam uma vez e outra em aplausos.” (Idem, p. 83)

Martí ridiculariza não apenas o desvio que os EUA faziam em relação às finalidades do fórum e a submissão da diplomacia brasileira, mas também a própria república do Brasil, improvisada da noite para o dia e que renovava as credenciais de delegados que, até a véspera, representavam um Império. É curioso contrastar essa apreciação da delegação brasileira – vista como alinhada aos EUA – com os elogios reiterados à delegação argentina, a qual teria se destacado como contraponto aos anfitriões, razão pela qual os norte-americanos a estigmatizariam como “pró-britânica” (Idem, pp. 80-81). Pelas passagens das obras aqui abordadas, fica claro que, para o revolucionário cubano, a “Nossa América” referir-se-ia à América “espanhola”, em oposição, sobretudo, aos EUA. Porém, não haveria nesse “nós” lugar para o Brasil, país cujas instituições iam na contramão do republicanismo americano e que, mesmo após terem sido recém-modificadas, fariam o jogo dos “vizinhos do norte”. Desse modo, ainda que formulado em um contexto histórico muito diferente do de Bolívar e, portanto, com referências intelectuais e problemas objetivos distintos, o projeto de unidade latinoamericana pensado por Martí se aproximava muito do venezuelano por circunscrever-se aos países herdeiros do antigo Império espanhol.

2.Ugarte e Vasconcelos: da latinidade em perigo à latinidade “cósmica”

Já no início do século XX, a inquietação com o perigo representado pelos EUA se exprimiu por meio da ideia de um conflito cultural entre “anglo-saxões” e “latinos”, consagrada em “El Ariel”, do uruguaio José Enrique Rodó. Nesse conhecido ensaio, o autor, recuperando o tema shakespeariano do conflito entre “Ariel” e “Caliban”, aludia à oposição entre uma “cultura do espírito” – da qual os povos ibero-americanos seriam herdeiros – e uma “cultura materialista”, representada pelos norte-americanos (Rodó, s/ d.). Para o sociólogo francês François Bourricaud, em “Ariel”, Rodó oporia a “sociedade”, entendida como associação guiada pela persecução dos interesses materiais de seus membros, e a “cidade”, forjada pela comunhão “espiritual” entre os cidadãos e orientada pelos valores mais elevados da “beleza” e da “cultura”. Ainda que o desprezo de Rodó pela indústria e a técnica tenha sido objeto de crítica de gerações posteriores, a oposição “sociedade/cidade”, associada à rejeição do modelo de sociedade anglo-saxão, teria tido grande persistência entre a intelectualidade latino-americana, seja ela revolucionária ou humanista-cristã (Bourricaud, 1972, p. 122)7. A despeito disso, não seria possível classificar a obra de Rodó como “anti-imperialista”, qualificativo que, por sua vez, caberia ao intelectual argentino Manuel Ugarte, primeiro formulador e divulgador de um pensamento propriamente anti-imperialista na região. Ugarte, que travou contato com escritores de outras partes do subcontinente a partir de sua vivência na Europa, adotou uma forte posição em favor da unidade latino                                                                                                                         7

Para um bom panorama da influência de Ariel na intelectualidade hispano-americana e seus sinais ideológicos contraditórios, cf. (Hale, 2001).

 

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americana. Assim, ao longo das duas primeiras décadas do século, o autor argentino iniciou uma série de viagens proferindo conferências, nas quais defendia a confederação dos Estados latino-americanos como única forma de contrabalançar o “perigo yankee”, e, em um de seus artigos, alertava:

“Contemplemos com a imaginação o mapa da América. Ao norte, bulhem 100 milhões de anglo-saxões febris e imperialistas, reunidos dentro da harmonia mais perfeita em uma nação única; ao sul, se agitam 80 milhões de homens hispano-americanos, de cultura e atividade desigual. Divididos em 20 repúblicas que em muitos casos se ignoram ou se combatem. Cada dia que passa, marca um triunfo dos do norte. Cada dia que passa registra uma derrota dos do sul. É uma avalanche que se precipita.” (Ugarte, 1987, p. 10)

A única forma de resistir e contrabalançar essa tendência seria, como propunha Martí, a partir da formação de uma unidade continental. Porém, ao contrário do cubano, Ugarte fala claramente em “unidade latino-americana”, em oposição à “América inglesa”:

“Só os Estados Unidos do Sul podem contrabalançar em força aos do Norte. E Essa unificação não é um sonho impossível. Outras comarcas mais opostas e mais separadas pelo tempo e os costumes se hão unido em blocos poderosos e duráveis. Bastaria recordar como se consumou a poucos anos a unidade da Alemanha e da Itália. A ameaça da intervenção estrangeira se encarregaria de desvanecer as prevenções.” (Idem, pp. 4-5)

Estes “Estados Unidos do Sul”, aparentemente, incluiriam o Brasil por ser um país geograficamente meridional e culturalmente latino. No entanto, a questão da ambiguidade do lugar do país lusófono parece persistir, e uma evidência curiosa disso pode ser identificada na seguinte passagem:

“A América Espanhola é suscetível de ser subdividida em três zonas que poderíamos delimitar aproximadamente: a do extremo sul (Uruguai, Argentina, Chile e Brasil) em pleno progresso e independente de toda influência estrangeira; a do centro (Peru, Bolívia, Equador, Venezuela e Colômbia) relativamente atrasada e roída pelo clericalismo ou pela guerra civil e a do extremo norte (México, Guatemala, Honduras, Nicarágua, São Salvador e Costa Rica) submetida indiretamente à influência moral e material dos Estados Unidos.” (Idem, p. 3)

Poderiam existir muitas objeções possíveis à essa proposta de classificação, mas a mais óbvia seria incluir o Brasil, ao lado dos países do Cone Sul, na “América Espanhola” sem a menor problematização. A subsunção pura e simples do Brasil no conjunto hispano-americano é reforçada por uma outra passagem de um texto anterior, no qual Ugarte aponta quais os elementos comuns que fariam do subcontinente uma “pátria” única em potencial:

 

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“Eu conservo fervorosamente o culto do país em que nasci, mas minha pátria superior é o conjunto de ideias, de recordações, de costumes, de orientações e esperanças que os homens de mesma origem, nascidos da mesma revolução, articulam no mesmo continente, com ajuda da mesma língua.” (Idem, p. 2)

Aqui é possível reencontrar os elementos já apontados cerca de um século antes por Simón Bolívar para sustentar o projeto de uma América Espanhola unificada: a origem comum, o esforço de Independência compartilhado e o idioma único. Dessa maneira, ainda que as formulações ugarteanas, com sua ênfase na latinidade, pretendessem incluir o Brasil em uma “pátria grande” que deveria unificar-se para contrabalançar o “perigo yankee”, a remissão desse ideal a uma identidade cultural e a uma história “hispano-americana” compartilhadas, bloqueava na prática essa inclusão. Essa identificação do “latino-americano” com o “hispano-americano” pode também ser explicada por um fator apontado pelo próprio Ugarte: o grande desconhecimento mútuo, reforçado pela precariedade de vias de comunicação e transporte, que caracterizava a região no início do século XX. Dessa maneira, o primeiro passo a ser dado no caminho da unidade seria, segundo o autor argentino, um maior interesse pela vida política dos vizinhos:

“É um contrassenso que as palpitações da América Espanhola cheguem à América Espanhola depois de terem passado pela Europa ou por Washington. Nossa curiosidade não deve deter-se no Peru, ou no Brasil, devemos abarcar todo o continente.” (Idem, p. 6)

Porém, se a ignorância mútua seria a regra, no caso do Brasil, país que não tomava parte na comunidade linguística e cultural conformada pelos países que falam a língua castelhana, a superação do desconhecimento se fazia mais difícil. Não por acaso, no trecho acima, o país é, mais uma vez, subsumido de modo indistinto na “América Espanhola.” Nesse sentido, são um tanto diferentes as propostas, formuladas mais de uma década mais tarde, pelo escritor e político mexicano José Vasconcelos. Parte de uma geração que procurou contrapor-se ao positivismo, então dominante, por meio de um idealismo e um irracionalismo exacerbados, Vasconcelos foi o único dos membros do “Ateneo de La Juventud”8 que aderiu abertamente à Revolução Mexicana de 1910. Durante o governo do general Alvaro Obregón, Vasconcelos ocupou o ministério da educação, empreendendo um vasto e importante mecenato cultural no país, forjando, assim, uma nova identidade para o México pós-revolucionário. Além disso, o novo ministro também se preocupava com o tema da unidade continental, razão pela qual empreendeu uma série de viagens pelo subcontinente, incluindo em seu roteiro o Brasil.                                                                                                                         8

O “Ateneu de la Juventud” fundado no México em 1910 reunia jovens intelectuais e escritores que viriam a ter grande destaque na vida cultura mexicana e latino-americana, tais como, além de Vasconcelos: Antonio Caso, Alfonso Reyes e Jose Enrirques Ureña. Cf. (Hale, 2001).

 

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Seu mais conhecido ensaio sobre a identidade latino-americana é “La Raza Cósmica” (1925), o qual marcou profundamente o pensamento político-social latinoamericano da época. Esse texto, cuja escrita situa-se a meio caminho entre um ensaio histórico-sociológico e a literatura, propõe que a unidade da América Latina seria cultural, caracterizada pela mestiçagem racial, condição peculiar que dotaria a região de uma missão singular na história universal. De acordo com Vasconcelos, se os anglosaxões teriam tido a tarefa histórica de “mecanizar” e unificar o globo, aos iberoamericanos caberia o destino de promover uma síntese superior das “raças” humanas. Assim, contrastando tais “missões”, o autor afirma que:

“O objeto do continente novo e antigo é muito mais importante. Sua predestinação obedece ao desígnio de constituir o berço de uma quinta raça, na qual se fundirão todos os povos para substituir as quatro que isoladamente têm forjado a história.” (Vasconcelos, 1992, p. 96)9

Assim, a América Latina, cuja colonização ibérica, ao contrário da anglo-saxã ao norte, teria praticado a mestiçagem entre europeus, índios e negros, possuiria a tarefa de fundir todas as raças em uma “raça síntese”, que representaria o início de uma nova fase da história universal singularizada, não pelo império dos “apetites” materiais ou do “racionalismo”, mas sim da espiritualidade e dos ideais de beleza (Idem, pp. 105-106). Porém, para que a mestiçagem biológica pudesse se converter em mescla “espiritual” seria preciso deixar de lado as ideologias imperialistas que afirmavam a existência de “raças superiores” e “inferiores”, substituindo-as por ideias próprias:

“Nós nos educamos sob a influência humilhante de uma filosofia idealizada por nossos inimigos, se se quiser, de uma maneira sincera, mas com o propósito de exaltar seus próprios fins e anular os nossos. Desta sorte nós mesmos chegamos a crer na inferioridade do mestiço, na irredenção do índio, na condenação do negro, na decadência irreparável do oriental.” (Idem, p. 110)10

Daí a necessidade de uma “rebelião das consciências” que completasse a “rebelião das armas”:

“A rebelião das armas não foi seguida pela rebelião das consciências. Nos rebelamos contra o poder político da Espanha e não advertimos que, junto com a Espanha, caímos na dominação econômica e moral da raça que tem sido senhora do mundo desde que                                                                                                                         9

Ainda que de modo bastante ambíguo, o uso do termo “raça” no texto do autor mexicano se refere mais a uma unidade “cultural” do que biológica. Daí o lema que Vasconcelos fez inscrever no escudo da Universidad Nacional Autonoma de México (UNAM) e que até hoje figura no timbre da instituição: “Por mi raza hablara el espirito” 10 Ainda que se possam encontrar passagens racistas no texto do autor mexicano e que sua trajetória posterior o tenha afastado de posições revolucionárias, tendo em vista sua aproximação do catolicismo ultramontano e falangista, nunca é demais sublinhar o apelo progressista de uma passagem como esta, ainda mais em um momento no qual o racismo científico gozava de boa reputação nos meios científicos internacionais.  

 

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terminou a grandeza da Espanha. Sacudimos um jugo, para cair sob outro novo.” (Idem, p. 110)

Mais uma vez, aparece a associação entre o projeto de unidade e o ideal bolivariano. Como se viu na primeira sessão, o próprio Bolívar já havia caracterizado a Hispano-América a partir da mestiçagem, e Vasconcelos não deixa de reivindicar explicitamente o prócer venezuelano como seu principal precursor:

“No próprio período caótico da Independência, que tantas censuras merece, se advertem, sem dúvida, vislumbres desse afã de universalidade que já anunciam o desejo de fundir o humano em um tipo universal e sintético. Desde cedo, Bolívar, em parte porque se deu conta do perigo em que caíamos repartidos em nacionalidades isoladas, e também por seu dom de profecia, formulou aquele plano de federação Ibero-americana que alguns néscios ainda hoje discutem.” (Idem, p. 97)

Ainda que esta passagem remeta a unidade continental e à luta militar contra o domínio espanhol, é preciso frisar que Vasconcelos, em comparação com os autores até aqui abordados, foi aquele que mais atenção deu ao Brasil, como, por exemplo, ao apresentar, de modo algo imaginativo e fantasioso, as formas arquitetônicas que seriam desenvolvidas pela futura civilização mestiça:

“O panorama do Rio de Janeiro atual, ou de Santos, com a cidade e sua baía, podem nos dar uma ideia do que será esse empório futuro da raça cabal que está porvir.” (Idem, p. 102)

A viagem de Vasconcelos pelo Brasil parece ter deixado no mexicano uma forte impressão. Afinal, se sua projeção de um futuro grandioso para a América Latina baseava-se, sobretudo, no dado da mestiçagem de diferentes etnias, o Brasil, país onde a mestiçagem de brancos, negros e indígenas era notória, fornecia um exemplo bastante ilustrativo para sua argumentação, inclusive porque, além de mestiça, a nova civilização da “raça cósmica” – ou síntese de todas as raças – seria “tropical”, ou seja, transferiria o centro geográfico da história do hemisfério norte para a região dos trópicos. Assim, a condição de possibilidade do advento da “raça cósmica” seria um desenvolvimento tecnológico que possibilitasse a “conquista do trópico” pelo homem moderno, conquista essa que encerrava uma imensa potencialidade, sendo que o Brasil, em uma curiosa versão moderna da lenda do “El Dorado”, aparece no centro da “zona de promissão” que abasteceria com seus enormes recursos naturais a uma modernidade renovada:

“Suposta, pois, a conquista do trópico por meio dos recursos científicos, resulta que virá um período no qual a humanidade inteira se estabelecerá nas regiões cálidas do planeta. A terra de promissão estará então na zona que compreende o Brasil inteiro, mais a Colômbia, Venezuela, Equador, parte do Peru, parte da Bolívia e região superior da Argentina. (…) Com os recursos de semelhante zona, a mais rica do globo em tesouros

 

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de todo gênero, a raça síntese poderá consolidar sua cultura. O mundo futuro será de quem conquiste a região amazônica.” (Idem, Ibidem)

Com Vasconcelos, a ideia de uma latinidade cujo principal traço distintivo em relação aos anglo-saxões seria a propensão à mestiçagem cultural possibilita um maior alargamento da identidade latino-americana, incorporando o Brasil de modo mais efetivo em seu imaginário unificador. Todavia, as referências de Vasconcelos, por se situarem em um terreno sobretudo cultural, permanecem fortemente hispanistas. A década de 1920, entretanto, testemunharia ainda, no interior do pensamento latino-americano, o início da transição de um paradigma em que o subcontinente era pensado pelo prisma da cultura, para outro, no qual os problemas latino-americanos passaram a ser formulados em termos econômicos e sociológicos. É para os primeiros passos dessa mudança e os projetos unitaristas que deles resultaram que me voltarei a seguir.

3. Mariátegui e Haya de La Torre: América Latina ou Indo América?

A década de 1920 foi um período crucial na história das ideias no subcontinente. Para François Bourricaud o decênio, no plano especificamente intelectual, teria testemunhado uma ruptura mais drástica do que o período da Independência, podendose mesmo falar em uma “conjuntura latino-americana” (1972, p.110-111). De acordo com a historiadora argentina Patrícia Funes, em uma caracterização mais precisa, os anos 1920 podem ser lidos como um momento crucial de transição em que, de um lado, a velha ordem liberal-oligárquica encontrava-se em crise e, por outro, as respostas a essa crise apenas começavam a se delinear (Funes, 2006). Assim, a efervescência política e intelectual que caracterizou o período deve ser entendida pela confluência de quatro grandes acontecimentos, ainda que não imediatamente relacionados: a 1ª. Guerra Mundial, a Revolução Russa, a Revolução Mexicana e o movimento da Reforma Universitária. Enquanto a Guerra Europeia rompeu com a imagem, cara à visão de mundo liberal-oligárquica, do velho continente como repositório da civilização, a Revolução de Outubro forneceu pela primeira vez um exemplo de ruptura com o capitalismo, ainda mais atraente na medida em que vinha de uma região periférica (Godio, 1983, pp. 3233). Já a Revolução Mexicana, não apenas foi a primeira revolução social da América Latina, como a primeira de todo o século XX, exercendo grande influência sobre os intelectuais que buscavam um “caminho próprio” para a região. Estes três acontecimentos tiveram influência destacada no movimento político-cultural que assinalou a ruptura dos intelectuais de classe média com o establishment ideológico das oligarquias: a Reforma Universitária. Iniciado em 1918 na Universidade de Córdoba (Argentina), o movimento reformista logo se disseminou pelos países da região. Influenciados por intelectuais da chamada “geração de 1900”, como Manuel Ugarte, José Ingenieros e Alfredo Palacios, os estudantes defendiam um ideário que, apesar de genérico, combinava elementos anti-oligárquicos, democráticos e latino-americanistas. Este último aspecto fica patente na seguinte passagem do famoso “Manifesto Liminar”, veiculado pelo movimento estudantil cordobês em 21 de junho de 1918:

 

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“Na Universidade Nacional de Córdoba e nesta cidade não se hão presenciado desordens: se contemplou e se contempla o nascimento de uma revolução que, em breve, há de agrupar sob uma bandeira a todos os homens livres do continente” (FEC, 2009, p. 5)

Assim, fica patente que, desde o primeiro momento, a Reforma Universitária tinha a pretensão de ir “para além dos muros” da universidade, como se tornou praxe dizer, e impactar a esfera política, tanto em âmbito nacional como continental. Porém, fossem quais fossem as intensões dos estudantes reformistas, sua capacidade de incidir efetivamente na arena política de seus países variava muito. Paradoxalmente, na Argentina – país no qual o movimento se iniciou – uma sociedade mais complexa e um sistema político mais democrático, então representado pelo presidente radical Hipolito Yrigoyen, acabaram absorvendo as demandas estudantis e impedindo sua convergência com as de outros grupos sociais como, por exemplo, a classe operária. Já no Peru, país onde uma estreita oligarquia mantinha um rígido monopólio político e cultural, a reforma deu seus mais apreciáveis frutos políticos e ideológicos (Portantiero, 1979). Afinal, as mobilizações estudantis confluíram efetivamente com as operárias entre 1918-1919, convergência esta que resultou na criação das Universidades Populares “Manuel Gonzalez Prada” (UPGP).11 O convívio entre estudantes radicais e sindicalistas nos cursos livres da universidade popular cimentará uma aliança de longa duração que se exprimirá por meio da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), primeiro e principal partido de massas do Peru (Stein, 1982). Foi justamente no contexto das mobilizações operário-estudantis de Lima e da criação das UPGP que emergiriam os dois intelectuais que polarizaram o espectro da esquerda peruana, atingindo também relevância continental: Victor Raúl Haya de La Torre e José Carlos Mariátegui. Antes de abordar as obras dos dois autores peruanos, cabe destacar como o Brasil se manteve relativamente ao largo de todo esse movimento de ideias. É verdade que a 1ª. Guerra Mundial e a Revolução Russa não deixaram de ter um grande impacto na vida política brasileira, como já demonstrou a historiografia que estuda a industrialização e a formação da classe operária. Também é verdade que a década de 1920 assinala uma grave crise da dominação oligárquica, com destaque, no plano político, para as rebeliões da jovem oficialidade militar e, no plano cultural, para o modernismo, cujo marco foi a Semana de Arte Moderna em São Paulo (1922). Porém, é notória a ausência de influência da Revolução Mexicana de 1910 e da Reforma Universitária. Não apenas o país não conheceu movimentos camponeses de expressão nacional nesse período – restringindo-se estes a movimentos messiânicos em nível local - como sequer possuía universidades para serem reformadas. Além disso, a presença escassa do Brasil nas obras dos autores que serão examinados deve-se também ao fato de estes serem ambos peruanos e de que o país andino, voltado para o pacífico, era particularmente distante e excêntrico para os brasileiros e vice-versa.                                                                                                                         11

Manuel Gonzalez Prada (1844-1918), poeta e ensaísta peruano, notabilizou-se por suas duras críticas ao legado colonial espanhol, à Igreja Católica e à oligarquia peruana. Além disso, é considerado, ao lado da romancista Clorinda Matto de Turner, o pai do indigenismo peruano, defendendo que o indígena do altiplano seria o autêntico fundamento da nação peruana.

 

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José Carlos Mariátegui, após um período de exílio na Europa (1919-1923), retornando a seu país, desenvolveu importante atividade política e cultural orientada pelo socialismo e pelo marxismo, os quais absorvera durante sua estada no velho continente. Além de ministrar conferências na UPGP (1923-1924), fundou a editora Amauta (1925) e, no ano seguinte, a revista de mesmo nome, a qual congregou os principais nomes da vanguarda artística e política do Peru. A vasta obra mariateguiana, escrita sobretudo entre 1923 e 1930 (ano de seu falecimento), aborda uma grande variedade de temas: indo da literatura e da crítica de arte, à conjuntura política internacional e à formação social peruana. Entre estes, destacam-se os ensaios sobre a América Latina, publicados sobretudo em duas revistas limenhas: Mundial e Variedades.12 Para o autor peruano, haveria entre os países da “América Espanhola” uma comunidade de destinos que não seria mero produto da retórica da literatura americanista, mas sim de uma história compartilhada, moldada primeiro pela conquista espanhola dos povos indígenas e, posteriormente, pelo esforço comum de libertação da metrópole (Mariátegui, 1990, p. 13). Assim, frustrado o ideal unitarista da geração libertadora, as sociedades hispano-americanas teriam vivido um processo de crescente diferenciação:

“Acontecia, ao mesmo tempo, que alguns povos se desenvolviam com maior segurança e velocidade que outros. Os mais próximos da Europa foram fecundados por suas migrações. Se beneficiaram de um maior contato com a civilização ocidental. Os países hispano-americanos começaram assim a diferenciar-se.” (Idem, p. 14)

Porém o que dividiria os países do subcontinente não seria exatamente esse diferencial de desenvolvimento. Para entender a fragmentação da América Indoespanhola, o autor procura apoiar-se explicitamente no método marxista:

“Por mais escasso crédito que se conceda à concepção materialista da história, não se pode desconhecer que as relações econômicas são o principal agente da comunicação e da articulação entre os povos. Pode ser que o fato econômico não seja anterior nem superior ao fato político. Mas, ao menos ambos são consubstanciais e solidários.” (Idem, p. 15)

Nesse sentido, a resposta para a ausência de unidade entre os Estados hispanoamericanos seria sua comum condição subordinada no mercado mundial e de economias primário-exportadoras, cujas estruturas produtivas não se complementariam, mas sim competiriam pelos mercados dos países capitalistas industrializados:

“Entre estes países não existe quase comércio, não existe quase intercâmbio. Todos eles são, mais ou menos, produtores de matérias primas e de gêneros alimentícios que enviam à Europa e aos Estados Unidos, de onde recebem, em troca, máquinas,                                                                                                                         12

 Conferir  a  apresentação  dos  editores  em  (Mariátegui,  1990).  

 

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manufaturas, etc. Todos têm uma economia parecida, um tráfico análogo. (…). Entre os povos hispano-americanos não há cooperação, algumas vezes, pelo contrário, há concorrência. Não se necessitam, não se complementam, não se buscam uns aos outros. Funcionam economicamente como colônias da indústria e da finança europeias e norteamericana.” (Idem, pp. 14-15)

Nessa passagem, escrita em 1924, Mariátegui antecipa temas e problemas que só terão desenvolvimento décadas mais tarde, com as teorias econômicas da CEPAL e as chamadas “teorias da dependência”. Se na geração anterior, a realidade latino-americana ainda era definida predominantemente em termos “culturais”, agora ela passa a sê-lo em termos claramente econômico-sociais. Porém, o que as relações de produção dividiriam, o plano cultural contribuiria para aproximar:

“É absurdo e presunçoso falar de uma cultura própria e genuinamente americana em germinação, em elaboração. O único evidente é que uma literatura vigorosa reflete a mentalidade e o humor hispano-americanos. Esta literatura, poesia, romance, crítica, sociologia, história, filosofia não vinculam ainda os povos, mas vincula, ainda que parcial e debilmente, as categorias intelectuais.” (p. 17)

Contudo, as forças unificadoras mais promissoras seriam o ímpeto rebelde das juventudes estudantis e das massas populares, representadas, respectivamente, pelo movimento da Reforma Universitária e pela Revolução Mexicana. Assim:

“os brindes pacatos da diplomacia não unirão estes povos. Os unirão no porvir os votos históricos das multidões.” (Idem, p. 17)

A análise do texto de Mariátegui é reveladora das dificuldades de transcender o horizonte da “hispano-américa”. Veja-se, por exemplo, a fórmula “Indo-hispano”, presente no título e em passagens ao longo do texto. Se, por um lado, ela revela a intensão de superar a identidade ibérica, incluindo no plano simbólico o indígena como representante das camadas subalternas, por outro, tal solução se circunscreve ao mundo cultural andino, com a presença massiva de populações autóctones, não sendo muito representativo, por exemplo, do cone sul, onde o índio não teria o mesmo peso. Além disso, se a centralidade conferida às relações sociais e econômicas permite pensar o subcontinente em uma chave mais ampla do que a fornecida pela cultura, o fato de o autor buscar a unidade em movimentos culturais e políticos comuns acaba restringindo o âmbito de unificação à América hispânica. Dessa maneira, a economia fornece uma identificação puramente negativa, ao passo que a identificação positiva só se encontra em uma identidade compartilhada e em movimentos comuns de emancipação. Como o Brasil não fazia parte do mesmo circuito cultural, nem tampouco tomara parte no esforço de independência, ou era afetado pela Revolução Mexicana e pela Reforma Universitária, se compreende porque o país estivesse ausente das reflexões mariateguianas sobre a América Latina.

 

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É possível, todavia, encontrar algumas referências marginais ao país lusófono na obra do marxista peruano. Uma delas aparece em sua principal obra teórica: Siete Ensayos de Interpretación de La Realidad Peruana, publicada em 1928. No primeiro destes ensaios, discutindo a evolução econômica do Peru após a independência, o autor retoma e aprofunda a análise, acima citada, dos motivos que conduziram à diferenciação entre as sociedades sul-americanas:

“Tão logo estas nações se tornaram independentes, (…), buscaram no tráfico com o capital e a indústria do ocidente os elementos e as relações que o incremento de sua economia requeria. (…) Os países mais favorecidos por este tráfico foram, naturalmente, por causa de sua maior proximidade com a Europa, os países situados sobre o Atlântico. A Argentina e o Brasil, sobretudo, atraíram a seu território capitais e imigrantes europeus em grande quantidade. Fortes e homogêneos aluviões ocidentais aceleraram nestes países a transformação da economia e da cultura, que adquiriram gradualmente a função e a estrutura da economia e da cultura europeias. A democracia burguesa e liberal pode aí deitar raízes seguras, enquanto no resto da América do Sul o impediam a subsistência de tenazes e extensos resíduos feudais.” (Mariátegui, 2008, p. 12)

Obviamente o ponto de referência para um quadro tão otimista do desenvolvimento da sociedade burguesa brasileira, última a abolira a escravidão e a proclamar a República, é o próprio Peru. Aqui o Brasil aparece, de modo indistinto, ao lado da Argentina, como parte de uma América do Sul “atlântica” que, por seus vínculos mais estreitos com o sistema capitalista, foi capaz de desenvolver relações de produção e um Estado burgueses, tendo como contraponto uma América do Sul “andina”, deslocada dos fluxos principais do mercado mundial, a qual conservava relações de tipo feudal e padrões de dominação senhoriais. Uma apreciação similar pode ser encontrada no texto El Problema de Las Razas en América Latina (1929), enviado como contribuição à I. Conferência Comunista Latino-americana, celebrada em Buenos Aires em junho/julho daquele ano. Neste texto, procurando avaliar as formas variadas assumidas pela “questão racial” nas diferentes formações sociais latino-americanas, o autor contrasta o peso demográfico e a importância econômica e social dos indígenas nos países andinos e no México, com a relativa escassez e marginalidade das populações ameríndias nos demais. Após citar uma longa passagem de um dos delegados do PCB à referida Conferência, o qual afirmava a pouca importância da questão indígena no país, o autor peruano conclui:

“Creio que para muitos dos países da América Latina que incluem escassos grupos de índios silvícolas, o problema apresenta, aproximadamente, o mesmo aspecto do que no Brasil.” (Mariátegui, 1991, p. 232)

O país recebe maior destaque quando do tratamento da presença negra na América Latina:

 

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“Os países onde predominam são Cuba (grupo antilhano) e o Brasil. Enquanto a maioria dos índios está ligada à agricultura, os negros em geral se encontram trabalhando preferencialmente nas indústrias. Em todo caso, estão na base da produção e da exploração. O negro, importado pelos colonizadores não têm arraigo à terra como o índio, quase não possui tradições próprias, lhe falta idioma próprio, falando o castelhano, o português, o francês ou o inglês.” (Idem, Ibidem)

Após citar longamente outra passagem do mesmo delegado brasileiro à Conferência, o qual sustentava o caráter residual do preconceito racial na sociedade brasileira, o autor assim sintetiza:

“Em geral, para os países nos quais influem grandes massas de negros, sua situação é um fator social e econômico importante. Em seu papel de explorados nunca estão isolados, mas se encontram ao lado dos explorados de outras cores. Para todos se colocam as reivindicações próprias de sua classe.” (Idem, p. 233)

Dessa maneira, apoiando-se em formulações apresentadas pelos comunistas brasileiros, Mariátegui corrobora a ideia de que o problema do negro, ao contrário do dos indígenas nas sociedades andinas, se apresentaria fundamentalmente como problema de classe e não como questão propriamente racial. Hoje salta aos olhos o equívoco de tais juízos. Mas o que interessa sublinhar aqui não é tanto o erro dessas formulações – então compreensíveis – mas o fato de que o Brasil era uma realidade muito distante para alguém, como o marxista peruano, que via a América Latina pelo prisma andino. Como mencionado acima, a outra figura que se destacou na esquerda do Peru durante os anos 20 e que adquiriria proeminência continental seria Victor Raúl Haya de La Torre. Haya se projetou como o principal dirigente estudantil peruano, sendo o fundador das UPGP, razão pela qual adquiriu status de liderança popular. Obrigado a se exilar em 1923, o ex-líder estudantil fundaria em 1924 no México a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), concebida como “frente única de trabalhadores manuais e intelectuais” contra o imperialismo yankee. Seguindo a trilha já aberta por Martí e por Ugarte, o dirigente político e intelectual peruano associava intimamente a luta contra o imperialismo dos EUA e a necessidade de unificação do subcontinente. Essa relação fica ainda mais clara em outras passagens do manifesto de criação da APRA. Por exemplo, ao discutir os obstáculos à unidade continental, o autor formula o seguinte raciocínio:

“(…) como contra esta unidade conspiram, ajudando-se mutuamente, nossas classes governantes e o imperialismo, e como este ajuda àquelas, garantindo-lhes a manutenção do poder político, o Estado, instrumento de opressão de uma classe sobre outra, se torna arma de nossas classes governantes nacionais e arma do imperialismo para explorar nossas classes produtoras e manter divididos nossos povos. Consequentemente, a luta contra nossas classes governantes é indispensável, o poder político deve ser capturado

 

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pelos produtores, a produção deve socializar-se e a América Latina deve constituir uma federação de Estados.” (Idem, p. 74)

Neste texto, originalmente publicado na Inglaterra, o autor emprega o termo “América Latina”. Contudo, em intervenções posteriores preferirá usar o nome “IndoAmérica”, pelo qual se notabilizará. Para se entender a visão deste autor acerca da identidade continental, é interessante analisar os argumentos de Haya para o emprego deste vocábulo em detrimento de outros, como “América Latina”, ou “Ibero-América”. Polemizando com o escritor espanhol Jimenez de Azua, Haya justifica do seguinte modo a preferência pelo termo “Indo-américa”:

“Os vanguardistas, os apristas, os anti-imperialistas da América, inclinados à interpretação econômica da história, adotamos a denominação Indo-américa como expressão fundamental. As invasões das raças saxônicas, ibéricas e negras, como as asiáticas e do resto da Europa que nos têm chegado, nos chegam e nos chegarão, contribuíram e contribuem a costurar a América nova. Porém, sobrevive sob todas elas a força de trabalho do índio. Se em Cuba foi extinto e na Argentina ou na Costa Rica muito absorvido, o índio segue sendo a base étnica e sócio econômica da América.” (Haya de La Torre, 2008b, p. 26)

Dessa maneira, em que pese a diversidade étnico-cultural que caracterizaria a região, a escolha da denominação “Indo-américa” se justificaria pelo fato de os indígenas constituírem a maior parte da força de trabalho que moveria a economia.13 Para além de controvérsias demográficas, Haya sustenta que o indígena estaria impresso na “cultura”, ou no “espírito cósmico” que singularizariam os americanos ao sul do Rio Bravo (Idem, p. 37).14 Em outra passagem, o líder aprista vincula explicitamente a identidade indígena a seu programa revolucionário:

“Os que vivemos esta época lutamos contra o imperialismo capitalista yankee, como os que viveram a cem anos lutaram contra o imperialismo feudal espanhol (…). A nova revolução de nossa América será revolução de base e de sentido índios.” (Idem, p. 27)

Em síntese, o nome “Indo-américa” exprimiria, a um só tempo, uma reivindicação das raízes históricas e uma projeção para o futuro:

                                                                                                                        13

 Segundo  Haya  de  La  Torre,  dos  cerca  de  100  milhões  de  habitantes  da  Indo-­‐américa,  75  milhões   seriam  indígenas  (Idem,  p.  23).  Ainda  que  se  trate  de  um  evidente  exagero,  sem  qualquer  base  em   dados  demográficos  aceitáveis,  o  interessante  é  observar  como  o  autor  pretende  plasmar  um  projeto  de   identidade  continental  a  partir  da  realidade  do  Peru,  em  particular,  e  dos  países  andinos,  de  modo  mais   geral.   14  Aqui  fica  clara  a  influência  sobre  o  líder  aprista  da  obra,  acima  citada,  de  José  Vasconcelos,  o  qual  o   recebeu  em  seu  exílio  mexicano,  dando-­‐lhe  um  emprego  como  secretário  no  Ministério  da  Educação.  

 

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“Por tudo isso que já anuncia o espírito do que nossa pátria grande a de ser, Indoamérica é um nome de reivindicação integral, de afirmação emancipadora, de definição nacional.” (Idem, p. 40)

O que estas passagens deixam claro é que, assim como seu conterrâneo Mariátegui, Haya de La Torre também filtrava seu continentalismo a partir da experiência histórica andina, o que o levava a conferir centralidade ao elemento indígena como característico da identidade do subcontinente. Contudo, Haya também estava alerta para a grande diversidade histórico-social da região, como fica patente na seguinte passagem de sabor um tanto evolucionista: “Examinando o panorama social de nossos povos, encontraremos essa coexistência de etapas que deveriam estar liquidadas. Cada uma conserva vitalidade suficiente para gravitar sobre o todo econômico e político. Em Indo-américa sobrevivem os três estados que Engels adota da divisão de Morgan: ‘selvageria’, ‘barbárie’ e civilização’.” (Haya de La Torre, 2008ª, p. 202)

Assim, para estabelecer uma estratégia anti-imperialista continental, procura esboçar um diagnóstico das diferentes configurações sociais e econômicas Latinoamericanas e seus distintos modos de vinculação com o imperialismo. É nesse esforço de síntese que o autor escreve algumas observações sobre o Brasil. Por exemplo, ao abordar o caráter elitista dos grupos dirigentes das independências indo-americanas, na nota no. 81 a uma citação da obra do embaixador brasileiro nos EUA Manuel de Oliveira Lima, The Evolution of Brazil Compared With That of Hispanish and Anglo Saxo-America (1914), na qual o autor apontava o caráter restrito daqueles que advogavam pelos “direitos de liberdade e autogoverno” (Idem, p. 197).15 Mais adiante, na nota 97 aparece novamente citada a obra de Oliveira Lima, dessa vez contrastando o caráter “pacífico” da Independência brasileira, atribuída à existência de um “governo legítimo”, com o caráter “revolucionário” das Independências hispano-americanas. O país aparece ainda como ilustração da descaracterização dos ideais liberais após a emancipação política, com a preservação de relações sociais legadas pela colônia, como a escravidão:

“As ideias liberais e radicais francesas perderam seu valor subversivo uma vez instauradas as repúblicas indo-americanas. Os escravos não se libertam imediatamente em que pese o afã democrático. A escravidão dos negros subsiste no Brasil até 1880 e no Peru até 1860.” (p. 198)

                                                                                                                        15  Além  da  obra  de  Oliveira  Lima,  outros  livros  sobre  o  Brasil  citados  pelo  autor  (na  nota  98,  p.   211)  são:  The  History  of  Brazil…  de  John  Armitadge  (1836),  iHistory  of  Brazil,  de  Robert  Southey   (1819)  e  História  dos  Principais  Sucessos  Políticos  do  Império  do  Brazil,  de  José  da  Silva  Lisboa   (1826).    

 

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Em que pese a imprecisão cronológica desta citação, os conhecimentos de Haya sobre o Brasil parecem melhor alicerçados do que os de Mariátegui. Ao caracterizar a formação social brasileira e seu lugar na Indo-américa, o autor faz a seguinte observação:

“No Brasil coincidem, aparentemente, as fronteiras políticas e geográficas e linguísticas com as econômicas. Porém, a afirmação é relativa. O Brasil não implica em uma solução de continuidade em relação ao conjunto econômico indo-americano. Tampouco representa um problema de características homogêneas e na ordem político-econômica. O Brasil, organização federal, nos apresenta também o Estado como instituição em diversos aspectos ou momentos de seu desenvolvimento determinado por diversas condições econômicas.” (Idem, pp. 210-211)

É interessante observar a preocupação do autor de frisar que o Brasil não representaria uma “solução de continuidade” em relação ao conjunto da Indo-américa, afirmando seu pertencimento à região e ao projeto de unidade continental. Para tanto, o líder aprista procura relativizar a imagem, recorrente entre a intelectualidade hispanoamericana, de um país homogêneo. Essa ênfase na heterogeneidade como marca da sociedade brasileira aparece de modo ainda mais claro a seguir:

“Como em poucos países Indo-americanos, o Brasil nos apresenta grupos numerosos em todas as etapas da evolução humana. Desde o selvagem feroz, até o capitalista industrial que sonha, sonho que alenta maquiavelicamente nas oligarquias brasileiras a astuta política yankee, com a dominação total da América do Sul.” (p. 211)

Aqui reaparece a antiga preocupação bolivariana com as pretensões das elites brasileiras ao predomínio regional. Porém, dessa feita, elas são atribuídas às “manobras maquiavélicas” da política estado-unidense, ecoando as sugestões de Martí acima citadas. Contudo, o expansionismo megalômano é atribuído pelo autor peruano exclusivamente às elites, contrapondo-as a uma suposta consciência anti-imperialista dos trabalhadores e dos intelectuais:

“A ofensiva imperialista no Brasil é multiforme. Usa de vários métodos mas, sobretudo, adormece em sonhos vaidosos aos ultranacionalistas brasileiros, (…). Porém, em poucos países dos nossos como no Brasil a opinião anti-imperialista entre os trabalhadores manuais e intelectuais é tão profunda.” (Idem, p. 211)

É curioso indagar de onde o dirigente da APRA tirou a informação de que no Brasil a consciência “anti-imperialista” estaria mais avançada em comparação com o resto da região. Na realidade, o imperialismo só viria a se tornar no Brasil um tema de destaque no cenário político com a emergência do nacionalismo econômico, no bojo da campanha “O Petróleo É Nosso!”, em inícios da década de 50. O exagero talvez se

 

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explique se levarmos em conta que a obra em questão, El Antimperialismo y El APRA, ainda que tenha começado a ser escrita em 1928, só viria a ser concluída ao final de 1935. Este foi o ano de atuação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente antiimperialista com características similares à APRA anterior à ruptura entre Haya e a Internacional Comunista.16 Para finalizar a análise dos apontamentos de Haya de la Torre a respeito do Brasil, o autor peruano, de modo similar a José Vasconcelos, exalta o potencial representado pela região amazônica para uma futura Indo-américa unificada:

“É a terra inconquistada, colonizável, o grande acervo ainda ignoto da América do Sul. Sua reserva, sua dispensa para os séculos. Aí vivem as tribos selvagens em meio à natureza virgem. Naquela vasta região misteriosa e ubérrima, centro e coração do continente, se encerram riquezas insuspeitadas.” (Idem, p. 212)

De todos os autores aqui discutidos, Haya de La Torre parece ser aquele melhor provisto de informações e com uma visão um pouco mais matizada do país lusófono. Além disso, é quem mais claramente procura inserir o Brasil no quadro de uma proposta de unidade continental. Porém, como ficou claro na discussão a respeito da denominação do subcontinente, seus horizontes intelectuais e suas preocupações políticas, como as de seu compatriota Mariátegui, eram filtradas pelas experiências peruana e mexicana. Dessa maneira, o Brasil não deixava de ser uma realidade distante e de difícil encaixe na Indo-américa. Outro traço que aproxima as reflexões de Haya das de Mariátegui é a centralidade conferida as relações econômico-sociais para pensar a América Latina, como discutirei a seguir, talvez essa seja a mais importante contribuição do pensamento hispano-americano da década de 20 para que o Brasil pudesse ser, em gerações posteriores, melhor acomodado nas construções sobre a identidade regional.

Conclusão

Como se viu ao longo deste artigo, o lugar do Brasil em relação aos projetos de unidade latino-americana elaborados pela intelectualidade hispano-americana mudou sensivelmente entre o século XIX e as três primeiras décadas do XX. De uma clara relação de austeridade, se não mesmo de oposição, o país passou a ser percebido como parte integrante de uma futura unidade continental. Porém, como também procurei demonstrar, tal inclusão nunca chegou a ser completa, tendo o Brasil uma posição ambígua, hora percebido como parte integrante, hora como outro da “nossa América”. Essa ambiguidade pode ser explicada pelas próprias origens da ideia de unidade continental, sempre remetidas ao legado colonial compartilhado e ao esforço comum para emancipar-se da coroa espanhola, dos quais o Brasil não participou. Além disso, cabe destacar que as distintas propostas de união americana foram pensadas e reelaboradas no interior de um circuito intelectual – político e literário – proporcionado                                                                                                                         16

 Inicialmente  aliado  aos  comunistas,  Haya  romperiacom  estes  no  Congresso  Anti-­‐Imperialista  de   Bruxelas  (1927),o  que  levou  Mariátegui  a  romper  com  ele  no  ano  seguinte.  Cf.  (Aricó,  1987).  

 

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pela comunhão linguística entre as ex-colônias da Espanha, do qual o Brasil, evidentemente, também não tomava parte. Se assim foi, fica então a pergunta de por que o Brasil acabou sendo, ainda que parcial e contraditoriamente, absorvido nas concepções de unidade continental? A resposta reside, a meu ver, nas reelaborações da própria identidade compartilhada. Se, num primeiro momento, esta dizia respeito apenas aos “hispano-americanos”, em um momento posterior, na passagem do século XIX para o XX, ela passou a ser pensada como identidade “ibero-americana” ou “latino-americana”. Essa ampliação da “hispanidade” para a “latinidade” teria se dado pela combinação de dois fatores: a percepção da ameaça representada pelos EUA e sua política “pan-americana” e a reaçãoidealista ao predomínio ideológico do positivismo e do evolucionismo, representada pelo Ariel de Rodó. Na chamada geração “arielista”, a latinidade passou a ser identificada com os valores superiores do “espírito”, ao passo que os “anglo-saxões” eram vinculados ao apego à materialidade. Porém, a passagem decisiva teria ocorrido na década de 20, quando confluíram os primeiros movimentos de massas anti-oligárquicos e a ruptura ideológica representada pela Reforma Universitária. Estes dois fatores e a recepção crescente do marxismo teriam conduzido à transição de uma interpretação da América Latina em termos “culturais” ou “raciais”, para uma outra, calcada nas relações sociais e econômicas. Dessa maneira, temas como o imperialismo, que já tinham entrada na geração anterior, foram complementados por outros, tais como as classes sociais, as relações de produção e a revolução social. A importância dessa mudança nos fundamentos, temas e problemas do pensamento político-social latino-americano está em que abriu caminho para a ideia de que a identidade continental repousaria, não apenas sobre uma cultura compartilhada, mas também sobre uma comum condição “colonial” ou, como se dirá mais tarde, de “subdesenvolvimento” e “dependência”. Ainda que negativa, esta chave econômica se revelará muito poderosa, não apenas por incorporar países não hispânicos (como o Brasil), mas também por conferir bases “científicas” – históricas, sociológicas e econômicas – à ideia de unidade política da região. Todavia, este salto não chegou a se completar na década de 20. Em primeiro lugar, como dito acima, pela persistência do peso da “origem comum” e da revolução da independência. Em segundo lugar, porque os dois autores que mais se destacaram na proposição de uma base materialista para o latino-americanismo, os peruanos José Carlos Mariátegui e Victor Raúl Haya de La Torre, pensavam os problemas continentais a partir de um prisma andino, em particular, ou de países de condições semelhantes, como o México por exemplo. Isso fica particularmente claro no nome “Indo-américa”, adotado por ambos, e que dificilmente comporta um país como o Brasil. O salto, acima mencionado, prosseguiria apenas em 1949, quando é criada a Comissão Econômica Para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e seu primeiro diretor, o argentino Raúl Prebisch, publicaria o artigo “O Desenvolvimento da América Latina e Seus Principais Problemas” (Prebisch, 2000), o qual ficaria conhecido como “O Manifesto Latino-americano”. Com o estruturalismo cepalino, não apenas os temas do desenvolvimento e do subdesenvolvimento ganhariam difusão continental, como aumentaria a circulação de ideias entre economistas e cientistas sociais de diferentes países latino-americanos, ao longo dos anos 50. Esse processo se aprofundaria, ironicamente, com a crise das estratégias cepalinas, a Revolução Cubana de 1959 e o

 

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ciclo autoritário dos anos 60 e 70. Nesse momento, não apenas os exílios criam uma comunidade cosmopolita de intelectuais latino-americanos, da qual inúmeros brasileiros fariam parte, como também proveria a essa comunidade uma linguagem teórica comum: a da “dependência”. Foi esse conturbado período histórico que permitiu a Darcy Ribeiro escrever que:

“(…)No caso do Brasil, pode-se afirmar que seus numerosos exilados políticos estão amadurecendo para atuar como a primeira geração de brasileiros com postura latinoamericana.” (Ribeiro, 1983, p. 200)

O correlato dessa afirmação seria, evidentemente, que o Brasil também se incorporou de modo mais definitivo ao imaginário continentalista dos intelectuais hispano-americanos. Esta porém, como se costuma dizer, é outra história, que escapa ao âmbito deste trabalho. Procurei, nos limites deste artigo, rastrear as visões que tinham do Brasil alguns dos mais destacados defensores do latino-americanismo entre os séculos XIX e XX. Ainda que o Brasil nunca chegasse, nesse período, a fazer parte de modo pleno dos ideais unitaristas, procurei apontar como, em particular na década de 20, os próprios termos desse projeto foram sendo modificados, de modo a permitir que gerações posteriores ampliassem os limites da “pátria grande” para horizontes com os quais Bolívar sequer poderia sonhar.

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