Depoimento nos 40 Anos de Independência de Moçambique

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Depoimento na Jornada Comemorativa dos 40 anos de Independência de Moçambique (Sessão na Faculdade de Letras, Lisboa, 29.10.15) José Pimentel Teixeira

Sou bloguista, coisa de escrita fútil, catártica também, desinteressada, vício quotidiano de mais de uma década, e nele já várias vezes escrevi, em fascículos dizia-se antes, o meu depoimento sobre isto de ter chegado, ficado e depois partido de Moçambique. Há alguns dias, sobre outra temática, a abrasiva política portuguesa, alguém comentou um texto meu nestes termos: “cada um diz o que lhe apetece. Poucos leem, quem lê esquece e o autor fez o gosto ao dedo e divertiu-se“. A intenção era crítica mas falhada, pois é exactamente esse o espírito da escrita blogal e como tal a digo desinteressada. E é por isso que sublinho o meu agradecimento à Fátima Mendonça por este convite para aqui estar presente, decerto que provocado por não se ter ela esquecido de tudo o que fui botando ao longo dos anos. Assim é esse o meu registo hoje. Apenas uma breve e despretensiosa memória sobre como foi viver em Moçambique entre os meus 30 e 50 anos, decerto os 18 anos mais significantes da minha vida 1

activa. Como durante eles fiz o “meu” Moçambique, um registo individualista dado que dele não retiro extrapolações pois não me faço exemplo, seja do que seja e menos ainda do “um português em Moçambique”. E como estamos numa sessão comemorativa da independência do país faço-o através de uma memória biográfica mas falando de política, pois é também esta, acima de tudo esta, que aqui celebramos.

Começo esta minha ladainha evocadora pelo fim, por hoje. Estou ali, no cartaz, anunciado como exconselheiro cultural em Moçambique, algo que fui com muito prazer e mesmo com o orgulho de ter servido a minha República. Mas foram breves três anos e … no milénio passado. Não nego que me influenciou, convocando a atenção para uma panóplia muito alargada de assuntos no país, e que me possibilitou grande abrangência de contactos. Mas eu olho-me de modo diferente, como um imigrante antropólogo, cruzando vários trabalhos e, mais do que tudo, como um tipo que foi durante década e meia professor na Universidade Eduardo Mondlane. É essa a minha identidade, sou esse eu que falo, não tanto um mero antigo funcionário com estatuto diplomático. Continuo pelo meio. Sempre me apropriei de um belo título de um livro do célebre antropólogo LéviStrauss, “O olhar distanciado”, como se fazendo-o transitar de um pressuposto metodológico para um manual existencial. Por ele entendendo-me aquilo a que os atenienses clássicos chamaram “meteco”, o estrangeiro com direito de residência mas sem cidadania. Não se trata de desatenção, muito menos de desinteresse, mas de um filtro inibidor do fervor crítico, até fel, este que em alguns momentos me subjuga nas coisas do meu país. Pois sempre entendi que ser estrangeiro em terra estrangeira inibe alguma acutilância crítica ("ouça lá, se está mal mude-se", será sempre a resposta possível e irrebatível às argumentações mais acaloradas) e, em assim sendo, também deslegitima grandes adesões. Muitas vezes ilustro isso com um pequeno episódio. Há mais de uma década conversava com uma colega amiga, mulher de fortes convicções ideológicas e biografia revolucionária, que criticava veementemente alguns factos de então. Eu ouvia-a, plácido, algo que a terá incomodado, e tanto que me convocou à opinião “Então, Zé Teixeira, e você não diz nada!”. Era um dia soalheiro, estávamos diante da baía, daquele todo azul-marinho, à nossa frente no jardim do parque uma acácia rubra bem florida e a ela encostada um monte de lixo, já exsudando de tão cansado de esperar por alguém que dali o levasse. E, sob essa visão quase torpor, a mim ocorreu-me o “V. é moçambicana, eu sou estrangeiro, V. olha o lixo, eu olho a árvore”. Era uma meia-verdade, ela sabia-o, e dali saiu algo desagradada na rota do seu almoço.

Continuo pelo princípio. Esse que sempre vi como a minha vantagem como estrangeiro a pensar Moçambique. Pois não aterrei no Bairro Central, Ponta Gea, Matola-CMC ou mesmo Sommerschield, apresentei-me via “campo”, esse que tão erroneamente chamam “mato”, assim a impressionar-me para 2

sempre de uma outra forma. Cheguei em princípios do Outubro de 94, mesmo antes das eleições. Estive cinco meses, no Cabo Delgado, um trabalho de campo numa aldeia a 40 kms de Montepuez, a velha Namwenda, renomeada N'ropa após a independência, Foi uma experiência abissal, abri um bocado os olhos, alvoracei as certezas, destrambelhei as incertezas. Não tanto por causa das histórias camponesas ouvidas, que faziam parte do trabalho, sobre o ainda quase recente tempo colonial, a corveia (aquilo que em Moçambique se chama chibalo, nisso se julgando que é coisa só colonial), o imposto, a cultura forçada, a repressão, a chambocada, a prisão e a morte, narradas até já entresorrisos, a afastarem-me (se fosse necessário, e já não o era, por razões de formação académica e vivência intelectual familiar) dos mitos lusotropicais e da então recente “lusofonia”, essas lentes de tresler a história e o futuro. E também nem tanto devido às histórias sobre a guerra da Renamo, então ainda tão recente, aquilo dos raptados, refugiados - e tantos, a chegarem à aldeia com as suas parcas posses, e muito lembro a icónica imagem das famílias surgirem, mulheres ajoujadas com os embrulhos encapulanados na cabeça e os seus homens também assim trazendo as preciosas portas de anteriores casas -, de toda a desgraça acontecida. E não tanto por causa desse historial porque já lera, e bastante, sobre aquilo tudo, ainda que assim narrado de viva-voz, e só porque eu perguntava, tivesse tão mais efeito. Abissal porque rude, rudíssimo, não só no meu corpo, lesado em 26 quilos sem qualquer doença, abissal porque a partilha quotidiana da morte, da doença, da pobreza radical camponesa, uma coisa inimaginável. Abissal porque nisso tudo também a partilha de tantas mais coisas, aquilo do sentir, da infinita capacidade de sermos felizes ainda assim, daquele para mim paupérrimo modo. Abissal porque aprendendo a extraordinária capacidade de resistência “camponesa”, resiliência usam os académicos como se matizando porque lhes falta a vivência e não percebem que é mesmo de resistência que se trata às constantes intempéries da vida, à incessante labuta a que estão votados.

Ao longo das duas décadas seguintes, e tão intensas foram, muitas vezes me perguntaram se não tinha já a nacionalidade ou, entre sorrisos, me disseram “ah, V. já é dos nossos”, “já és moçambiquês”, ditos companheiros ou só simpática comunhão, algo de que sempre me afastei por imperativo epistemológico, e posso-o assim dizer pois aqui neste anfiteatro académico. Pois nesses momentos sempre regressei aos tempos de N’ropa, ao meu entendimento do como trabalhar. Nisto de sermos antropólogos pouco me repugna tanto como a habitual mistificação da transumância identitária, a pantomina dos colegas que procuram afirmar-se no seu meio profissional através da encenação da pertença aos contextos onde trabalham. Por isso não fiquei "macua", nunca disse "a minha aldeia", não fiz "ritos de iniciação" nem me filiei como curandeiro ou em grupo tradicional, não procriei por lá, não aderi às causas então ali vigentes, qual imediato compagnon de route, não me transformei "num deles" (nem digo "eles", já agora), nunca entrei nesse folclore tão usual entre antropólogos (e também nos missionários do desenvolvimento). Com isto quero sublinhar que não fiquei, minimamente que seja, 3

“dono da terra”. Pura e simplesmente, nunca mais fui o mesmo. Em suma, não fiquei "de lá". Mas, e para sempre, fiquei lá, algo de mim por lá ficou.

Mas isto tem corolários quanto à atitude política. Os investigadores com luxúria identitária, esses que, de súbito, já são um pouco aqueles outros com os quais trabalham, estão sempre predispostos para assumir as causas que encontram. Logo se tornando militantes porta-vozes, naquilo do “vá lá dizer na Nação” que tanto nos é pedido durante as estadas nos longínquos e depauperados distritos moçambicanos e, até, em periferias urbanas. Nisso, nessa auto-valorização estratégica (na universidade, na ong, na sociedade civil, em suma, lá na verdadeira casa), nessa vontade nada ingénua de participarem, tornam-se os investigadores incapazes de olhar os enquadramentos, os nexos interrogativos mais pertinentes. Em suma, de perceberem. Certo que eu muito despreparado, sem saber como trabalhar num contexto estranho, coisa do ensino no "meu tempo" de estudante: a gente ia investigar para o terreno sem verdadeira formação, sob o mito da vocação, do improviso, como se fossemos "especiais", por isso pujantes, predispostos ao simples "contacto" significante, quanto muito com apenas umas "dicas" da moda, aquilo do investigador pós-moderno. Tudo isso que, realmente, nos apateta. Alguns de nós desapatetamo-nos, outros nem tanto. Gosto de imaginar, vaidoso, que o consegui. Em 1994 em N’ropa esperava-se ansiosamente a chegada de um curandeiro que andava na região a retirar os feitiços das aldeias. Era um afamado namparama, aqueles guerreiros espontâneos que tinham combatido a Renamo armados apenas das suas posses mágicas, um movimento surgido na Zambézia (Nicoadala). Após a paz alguns deles tinham recebido permissão (“credenciais” dizia-se) para serem curandeiros, naquilo que julgo ter sido um passo fundamental para se perceber a história da Ametramo e da ligação do poder com a medicina tradicional e as culturas populares. Ele estivera já na aldeia mais próxima, Kolokoha, uma sessão de dois dias a que eu assistira, mas partira desagradado por razões ligadas ao pagamento dos seus trabalhos (cobrava honorários especulativos, convém lembrar). Demorava a sua chegada à aldeia, os rumores diziam que o presidente da aldeia lhe pagara imenso para que lá não fosse (um milhão de meticais velhos, uma quantia assombrosa para então). Eu tinha que assistir à sua visita, assistir aos seus trabalhos, considerava fundamental para o meu trabalho. O tempo arrastava-se, a minha angústia crescia pois o pouquíssimo dinheiro que tinha escoava-se. Um dia fali, restavam-me 35 mil meticais para o chapa entre Montepuez e Pemba, onde amigos me albergariam, alimentariam e transportariam ao aeroporto. Em Maputo decerto que o meu irmão mais velho seria mano mais velho. Por tudo isso ainda que falido decidi ficar, esperando o curandeiro, com a meia dúzia de latas de conservas que restavam. Dispensei o meu intérprete, no bazar comprei um naco de tabaco (soni), que enrolaria com as páginas dos meus cadernos e continuei. No dia seguinte de manhã 4

Albino, o meu intérprete, chegou a minha casa tão cedo como de costume, vinha trabalhar sem receber. Correra já na aldeia que o “nkunya” (o branco) não tinha dinheiro, claro. Logo de seguida a vizinha, a jovem 2ª esposa do comandante Mituto – um maconde antigo guerrilheiro da Frelimo, e como se sabe diz-se que os macondes não gostam dos portugueses … - bateu o seu “odi, odi” e entrou no quintal com três belas maçarocas de milho cozidas. Na hora do sol a pique José Cruz surgiu com uma nota de dez mil meticais, para que comprasse eu três maços de tabaco (“Yes”, do Malawi) – eram três dias do seu salário de mecânico dos poços de água melhorados! Fiquei mais dez dias, depois tive mesmo que partir, o namparama não viera entretanto. Mas, como é óbvio, isso não fora o importante.

Termino pelo quase fim. Pela consciência do ser estrangeiro e ainda por cima português. Sempre estive ciente de que falar sobre política em Moçambique nessa condição poluiria a interpretação do que eu escrevesse. Resmungar-se-ia o meu "tuguismo" ["expulse-se do país, de preferência para um país onde lhe cortem a cabeça", escreveu há anos sobre mim o então secretário-geral da Associação de Escritores Moçambicanos, no portal dessa organização, diante do radical silêncio dos seus pares de letras; "actualmente todos os intelectuais e pedagogos portugueses são aldrabões e colonialistas", botava há tempos um conhecido "jornalista de investigação"; "todos os portugueses são malcriados", sublinhava um ilustre jurista e agora "fazedor de opinião" local]. Mas também dos meus patrícios. Botasse eu sobre política moçambicana e estou certo que teria tido o choque de opinadores patrícios dali oriundos, um núcleo sempre constante e lesto na crítica radical a todos os itens do processo nacional moçambicano, como se este ontologicamente ilegítimo [ainda assim, apesar dos meus cuidados, fui recebendo a imputação de "frelimista". E também a de "detentor de interesses em Moçambique"].

Mas friso a liberdade de expressão. Professor numa universidade pública moçambicana, durante anos escrevi no "Canal de Moçambique", um jornal conotado com a Renamo ou o MDM (invectiva que varia consoante o locutor). É certo que escrevi sobre temas não políticos (livros, viagens, locais de Maputo, quotidiano, etc.). Mas ainda assim é muito significativo que ninguém, alguma vez, me tenha alfinetado em relação a isso.

Dito isto. Não falava sobre política moçambicana. Mas ia pensando, claro, e ainda hoje. De maneira algo diferente dos então meus vizinhos, que isto de ser estrangeiro poupava-me ao abrasivo, aquilo do prós e contras. E da dos meus patrícios em tempos já recuados de lá partidos, também eles maioritariamente abrasivos, pelo menos os que foram e vão escrevendo sobre o processo nacional.

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Tenho no país uma boa mão cheia de amigos "samoristas", cultores do nacionalismo desenvolvimentista e da personalidade carismática do primeiro presidente. Tenho alguns, menos, "guebuzistas", que frisam o empreendedorismo e a descentralização patrocinados pelo ex-presidente. Muitos conhecidos e alguns amigos estão na expectativa do MDM (não serão exactamente "simanguistas", não há neles uma pessoalização da adesão), crentes na democratização descentralizadora que patrocinará. Muito poucos no meu núcleo social são renamistas (alguns foramno, mas foram saindo nas purgas anti-urbanas e anti-intelectuais naquele partido).

Como já disse eu cheguei ao país em 1994. O país estava crispado, saído de uma devastadora (e como o foi ...) guerra, com a ameaça de fracturas regionais políticas. E estava paupérrimo, dos mesmo mais pobres do mundo: colónia sub-desenvolvida atravessara um regime de índole comunista e entrara naquilo que se chamava "Bretton Woods" com uma economia fragilíssima, sem capital, sem investimento estrangeiro, sem infraestruturas, sem recursos humanos para um mundo globalizado. E sem espaço para entrar no mercado mundial, que é coisa que a gente tende a esquecer. Sem uma cultura tradicional democrática e sem instituições com essa prática.

Assisti (ou pelo menos foi isso que os meus olhos entenderam) a um urdir das teias do país, uma pacificação interna. Dolorosa, por vezes errática. Conseguida. A uma democratização, passos a passos, ainda que com coisas que chocam a sensibilidade estrangeira (a desgraça de Montepuez em 2000 talvez a pior). A uma fabulosa inserção internacional, uma diplomacia moçambicana absolutamente brilhante nos múltiplos palcos bilaterais e multilaterais, isso também denotando a maleabilidade interna. Ao crescimento de uma burguesia nacional (a "classe média" do jargão, a "sociedade civil" de outro jargão), com os tiques da "compradora" (este termo de um jargão já mais fora-de-moda), apropriadora ("apropriação primitiva do capital", disse o teórico), mas necessária a uma "economia de mercado" (aquilo do capitalismo) nacional. À ascensão de uma componente tecnocrática do poder político, à qual eu sou muito sensível, apesar de antropólogo - não há desenvolvimento, ainda por cima partindo de tamanhas dificuldades, sem tecnocratas.

Nada disto foi perfeito, nada disto foi exemplar, nada disto é utópico ou exaltante, romântico. Foi, e será um processo. Com as maleitas da vida em sociedade. Pode ser sempre melhor, até muito melhor. Mas é. Um algo maiúsculo. É por isso, por ter conhecido Moçambique nesse período e tanto me ter surpreendido (e "engajado", apesar de mim-próprio) que ali sou um "chissanista". No respeito a um estadista democratizador, um construtor desta democracia, sempre saudavelmente imperfeita.

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(Sábado, 16 de Agosto de 2014. Esquina da Av. Julius Nyerere com a Av. 24 de Julho, Maputo: carro pertencendo a uma caravana de propaganda da Renamo)

Escrevi estes últimos três parágrafos poucas semanas antes de partir, neste meu tão português tornaviagem. Numa manhã de sábado bebera um café no "Nautilus", no cruzamento da Nyerere com a 24 de Julho, a 500 metros da residência do Presidente, a outros 500 metros dos serviços da Presidência. Inesperadamente ali passou uma caravana de propaganda política da Renamo, que fotografei da esplanada, a primeira que vi neste período pré-eleitoral. Isto um ano e meio depois de a Renamo, estuporadamente, ter encetado acções militares no centro do país. De ter ateado o medo da guerra. E pode agora manifestar-se mesmo no centro da capital do país. Apesar desse tudo ... É uma lição, para os críticos de todos os matizes. A paz e a democracia são necessárias. E são possíveis, apesar dessa irracionalidade política.

Há muita coisa a fazer no país? Há, com toda a certeza. Sou eu mais sensível à protecção ecológica e dos direitos dos agricultores (itinerantes) à terra - ameaçados pela vertigem da exploração dos recursos minerais e silvícolas, que recompõem modelos de exploração exógena. Mas mais importante é ter a consciência de que os instrumentos democráticos e democratizadores existem e a cultura de paz democrática também, como esta minha pobre fotografia tanto o demonstra. Para os manter, e fazer 7

crescer, será preciso que os críticos larguem os respectivos maniqueísmos. E, sem dúvida, que grasse um sentimento de "patriotismo", por este entendendo-se uma vontade, um propósito, até uma mania de repartição de recursos na sociedade.

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