\"Desafio ao malandro\". Entrevista concedida à Eliane Brum.

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Desafio ao malandro ELIANE BRUM Em 1970, Antonio Candido, possivelmente o maior crítico literário do Brasil, publicou A Dialética da Malandragem ­ uma interpretação inovadora da formação social brasileira a partir da leitura do romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida. No ensaio, a figura do malandro, com sua habilidade de tirar vantagem das mais diversas situações, com sua ginga e seu charme, reduz a possibilidade de conflitos sociais. Nesse modo peculiar de negociar diferenças, a sociedade brasileira se forma mais pelo acordo que pela ruptura, mais pela conciliação que pelo conflito. A partir da produção cultural das periferias brasileiras na última década, o crítico literário João Cezar de Castro Rocha desenvolveu um novo conceito: a Dialética da Marginalidade. Nessa análise, as desigualdades sociais seriam superadas pelo confronto direto, em vez da conciliação. Pela exposição da violência, e não pela sua ocultação. Isso não significa o fim do malandro – “basta ver os acontecimentos em Brasília”. A novidade é que, pela primeira vez, o malandro estaria sendo desafiado. Nas margens das grandes cidades, uma novíssima figura estaria disputando simbolicamente a representação do brasileiro.

João Cezar: "Passamos décadas idealizando o malandro. Mas não existe nenhuma possibilidade de idealização da figura do marginal"

Doutor pela Stanford University, atualmente João Cezar é professor de Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Autor de Nenhum Brasil Existe e O Exílio do Homem Cordial, entre outras obras, ele começou a preparar a Nova História da Literatura Brasileira. Prevista para 2010, será publicada pela University of Massachusetts­Dartmouth. João Cezar deu a seguinte entrevista a Época: ÉPOCA – Como surgiu a Dialética da Marginalidade? João Cezar – Esse conceito estabelece um diálogo e propõe uma distância ao ensaio extraordinário de Antonio Candido. A Dialética da Malandragem criou uma imagem tão forte da nossa cultura – e uma auto­imagem tão forte do que o brasileiro é – que se tornou muito mais do que um ensaio acadêmico. Tornou­se um espelho onde nos reconhecemos. Mas nos últimos 10, 15 anos, há uma produção cultural no Brasil, realizada pelos próprios excluídos, que traz algo novo. Minha hipótese, a Dialética da Marginalidade, surgiu a partir da leitura muito cuidadosa desse material. Percebi que estava acontecendo uma transformação importantíssima. ÉPOCA – Por que você escolheu o “marginal” para contrapor ao “malandro”?  João Cezar – O malandro não quer mudar nada. O impulso principal do malandro é ser cooptado. Uma parte considerável da cultura brasileira insiste em apresentar o país como sendo o país da malandragem. Mas uma parte cada vez maior e mais consistente diz que não. Nós não somos o país do malandro simpático. Nós somos o país do malandro aproveitador de um lado – e do marginal do outro. O termo marginal é muito importante porque tanto pode ser aquele que está à margem quanto pode ser o criminoso.

ÉPOCA – Na sua interpretação, o malandro é uma figura conservadora. No imaginário da população, o malandro é um cara simpático, sedutor... João Cezar –Nossa imagem do malandro é uma figura sobretudo simpática, um tanto rebelde. Mas jamais imaginaríamos o malandro como conservador. Minha hipótese básica é a seguinte: o malandro é uma das figuras mais conservadoras da cultura brasileira. Quando o malandro tem de preparar um golpe, o malandro realiza esse golpe contra o chefe de polícia? Não. Contra o poderoso de plantão? Também não. Quem o malandro em geral achaca, quem em geral o malandro enreda na sua lábia, na sua trama? Seu vizinho. Mais que isso. O malandro é a promessa de uma falsa ponte entre a ordem e a desordem, entre o pobre e o rico. Quando o malandro tem de optar, ele não escolhe o pobre, escolhe o rico. ÉPOCA – Pela sua hipótese, o malandro é a figura que permite que as coisas continuem sendo como sempre foram. É isso? João Cezar – Exatamente. O malandro é sempre individual. Só o que importa é ele: o lustro da roupa, o lustro do sapato, a elegância. Ele sempre se preocupa consigo mesmo, não com o outro, muito menos com os outros da sua classe. Muito pelo contrário. Por isso digo que é uma falsa ponte. Porque uma ponte verdadeira tem duas vias. Ela vai, mas ela também vem. No caso do malandro, a ponte é uma rua de mão única. O malandro não convida seus vizinhos do morro para comer caviar. Ele vai comer sozinho. É preciso, em alguma medida, reavaliar criticamente a figura do malandro. É preciso deixar claro que o malandro é conservador, é uma figura que não tem nenhuma preocupação com o universo ao qual pertence.

“Passamos décadas idealizando o malandro. Mas não existe nenhuma possibilidade de idealização da figura do marginal. Na palavra marginal está presente tanto o lado solar quanto o lado noturno, o bem e o mal.”   ÉPOCA – Em que medida a literatura produzida nas periferias do Brasil, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, desafia a figura do malandro? João Cezar –Em Cidade de Deus, Paulo Lins produz uma sinonímia entre os seguintes termos: bandido, bicho solto, marginal, malandro. No romance, a mesma palavra que designa o criminoso que rouba pessoas da própria comunidade é a palavra que designa o malandro. Paulo Lins realiza uma crítica radical da figura idealizada do malandro na cultura brasileira. Para Paulo Lins, o malandro é apenas mais um que explora e aproveita a desigualdade. Passamos décadas idealizando o malandro. Mas não existe nenhuma possibilidade de idealização da figura do marginal: na palavra marginal está presente tanto o lado solar quanto o lado noturno, o bem e o mal. Você pode ser marginal porque está à margem e quer adquirir a sua voz. Mas você pode ser o marginal porque coloca o revólver no bolso e assalta alguém. ÉPOCA – Qual é a grande diferença entre a obra de Carolina Maria de Jesus, em 1960, um caso isolado de favelada que expressa sua voz pela palavra escrita, e essa geração de escritores periféricos ou marginais desse início de milênio?  João Cezar – A Carolina Maria de Jesus expressa a voz dela como favelada, negra, mulher. Era ela e apenas isso. O que não era pouco. Mas o que tem mudado de maneira notável na produção cultural dos últimos 15 anos é que não se trata mais unicamente de uma solução individual. É um projeto coletivo. Não se trata mais da expressão de uma individualidade privilegiada. Eis aqui essa pobre favelada que durante o dia cata papel e à noite escreve nos papéis que catou. De fato é uma belíssima história, mas é rigorosamente individual. Quando você vê a produção do Ferréz, do Paulo Lins, dos Racionais MCs, da Cooperifa e de trabalhos semelhantes em todo o Brasil, percebe que é um projeto coletivo. E isso é muito mais importante que uma voz individual. ÉPOCA – Você percebe diferenças também no conteúdo? João Cezar – Na obra de Carolina de Jesus há uma revolta e uma denúncia da desigualdade social. A palavra que domina o Quarto de Despejo e O Quarto de Bitita é a palavra fome e todas as palavras associadas à escassez e à necessidade. Sempre falta algo. A própria falta – falta. Falta tudo, até o sentimento de que falta

algo, porque a precariedade é absoluta. Num romance como A Hora da Estrela, a Clarice Lispector tematiza precisamente a dificuldade que nós, eu e você, teríamos de incorporar e realmente compreender a psicologia de um personagem “sem psicologia”. Se a sua precariedade é tão grande, não há tempo nem disposição para divagações psicológicas e existencialistas. Esta é a Macabéa. A novidade agora é que, além de um projeto coletivo, não se trata apenas da expressão individual de uma precariedade, mas da tentativa de compreensão de que essa precariedade não é individual, é sistêmica. Trata­se do esforço de compreender a desigualdade social a partir de suas causas – e não apenas a partir dos seus efeitos, que é a violência e a precariedade do uso da linguagem. ÉPOCA – Como isso põe em xeque a sociedade brasileira? João Cezar – Me parece que, com a Dialética da Marginalidade, pela primeira vez na cultura brasileira “os excluídos” estão promovendo uma radiografia do verdadeiro dilema da sociedade brasileira: de um lado, a desigualdade que permanece, e, de outro, a incomum capacidade que o poder político tem de corromper a todos. O cenário político atual mostra que a desigualdade social permanece apesar de quem está no poder – e a corrupção permanece e é atuante apesar de quem está no poder. Isso é espantoso. Na Dialética da Marginalidade não é eu, professor universitário, ou você, jornalista, mas eles, os “excluídos”, que pela primeira vez estão propondo uma interpretação radical da desigualdade no país. Isso é importantíssimo. ÉPOCA – Mais do que uma proposta estética, há uma ação política... João Cezar – Mas é uma ação política que parte do princípio de que se você não mudar a sua vizinhança, você não muda o bairro, o município, o país. Ao contrário do discurso de uma certa classe média que nunca passou fome, ao contrário do discurso da esquerda, que é sempre totalizante. Você certamente viu manifestações estudantis que começavam pedindo bandejão e terminavam solicitando o fim da guerra do Iraque. Na Dialética da Marginalidade o discurso nunca é totalizante. Para o Ferréz, o primeiro passo é mudar o Capão Redondo. Do contrário não muda município, estado, país. Para o Paulo Lins, o que importa é uma reflexão série, dura, sobre Cidade de Deus. A reflexão principia pelo dado imediato, não pela maneira abstrata, como nós sempre fizemos. Alguns exemplos. O brasileiro é: o homem tipicamente cordial; Sérgio Buarque de Holanda. O brasileiro é: o resultado da miscigenação; Gilberto Freyre. Não interessa para a Dialética da Marginalidade se o homem é cordial, mas se os homens concretos se definem pela cordialidade. Isso me parece uma distinção muito importante.

“O capitalismo globalizado não funciona sem o acesso imediato e simultâneo de informações. Só que as pessoas estão usando a tecnologia para, pela primeira vez, expressar, pela sua própria voz, os aspectos de sua condição de excluídos. Os intelectuais não se deram conta, mas essas pessoas usam a tecnologia de maneira notável.” ÉPOCA – Por que isso só começou a acontecer a partir dos anos 90?  João Cezar – O modelo de desenvolvimento brasileiro começou a entrar em colapso com a crise do petróleo, em 1973, porque dependia do investimento de capital externo. Com a crise do petróleo, os países que haviam emprestado dinheiro com juros razoáveis precisavam compensar as perdas de alguma maneira. Tornaram a dívida externa insolúvel. Nos anos 80, chamados na América latina de década perdida, não há crescimento, não há possibilidade de redistribuição de renda e, sobretudo, não há possibilidade dos famosos benefícios sociais que, desde Getúlio Vargas, seguravam a desigualdade no país. Nos anos 80 há um recrudescimento da violência porque há um recrudescimento da desigualdade social. E, sobretudo, não há perspectiva clara de desenvolvimento. Esse é o problema central. Do ponto de vista brasileiro, mas que também é latino­americano, os anos 80 e 90 apresentam para a região um problema que ainda hoje o Brasil não conseguiu resolver. Qual é o grande discurso do governo Lula – e também a crítica que se faz a ele, além da corrupção? O crescimento. O Brasil e a América Latina não conseguiram encontrar um modelo alternativo de crescimento. Não há crescimento, não há redistribuição de renda, não há incorporação de novas gerações no mercado de trabalho. É, portanto, uma crise generalizada.

ÉPOCA – Aumentou a desigualdade, aumentou a violência, mas como isso se traduz em produção cultural? João Cezar ­ Um fenômeno realmente interessante do capitalismo globalizado é que, pela primeira vez, os meios de produção estão sendo distribuídos de maneira massiva. Em outras palavras: se a crítica marxista tradicional ao capitalismo era uma crítica em que se fazia uma distinção clara entre os que possuíam os meios de produção e os despossuídos, aqueles que só podiam oferecer o próprio trabalho, nos últimos 15 anos essa crítica perdeu validade. Hoje, se você possui uma pequena câmera digital, você pode fazer o filme que quiser. Hoje, no Capão Redondo, um sujeito que tem um computador antiqüíssimo, uma conexão a pulso, pode criar um blog e ser estudado por um acadêmico de Harvard. Há 15 anos não havia condições objetivas para isso. Me parece que a Dialética da Marginalidade é um extraordinário aproveitamento de uma potencial contradição do capitalismo globalizado. Qual é a contradição? O capitalismo globalizado não funciona sem o acesso imediato e simultâneo de informações. Mas para que funcione, um número cada vez maior de pessoas precisa ter acesso à tecnologia, precisa possuir os meios de produção. Só que as pessoas estão usando a tecnologia de outra forma. Estão usando para, pela primeira vez, expressar, pela sua própria voz, os aspectos de sua condição de excluídos. Os intelectuais – e principalmente os acadêmicos – não se deram conta, mas essas pessoas usam a tecnologia de maneira notável.  ÉPOCA – Você tem acompanhado esse fenômeno em outros países? João Cezar – Guardadas as questões específicas do Brasil, é o mesmo fenômeno em várias partes do mundo. Isso vem acontecendo no Brasil, na América Latina, nas periferias do mundo inteiro. Comecei a perceber esse fenômento no México, mas há em toda parte. As comunidades muçulmanas em Londres só sobrevivem porque têm domínio de uma tecnologia que não tinham. O maior problema do governo chinês hoje é a internet. No passado, para organizar uma grande manifestação, era necessário uma semana. Hoje, as pessoas só precisam consultar seus emails um pouco antes do horário para saber qual será o local. O aparato repressivo não consegue se organizar para reprimir em 10, 15 minutos. Em todo o mundo, qualquer ato excessivo dos estados são geralmente fiscalizados pelos cidadãos, que usam seus celulares para tirar fotografias, fazer pequenos filmes. Quantos casos têm sido resolvidos dessa maneira? A Dialética da Marginalidade aproveita ao máximo essa potencialidade da nova tecnologia. Numa comunidade, se 50 pessoas se reunirem, conseguem criar um estúdio de gravação. Se cinco pessoas se reunirem, criam uma editora. Basta um computador velho, com pdf, para fazer um livro. Isso é muito diferente da literatura marginal dos anos 70, que era de classe média, onde era charmoso ser precário. Os marginais de hoje não querem ser precários. Querem fazer um belo livro e divulgar a idéia que têm. Eu não quero parecer ingenuamente otimista nem um apóstolo da internet, o que seria ridículo. O que estou dizendo é que todos esses meios de comunicação foram criados para facilitar o capitalismo financeiro globalizado. Mas os excluídos, muito mais do que nós, que somos muito bem comportados com a internet, usam isso para produzir vídeos que contestam a ordem vigente.

“Na América latina, desgraçadamente, a cultura letrada sempre esteve a serviço da dominação, da preservação do poder. A educação foi sempre uma barreira para o acesso à cultura letrada. Dominar a cultura letrada é virar pelo avesso a lógica da dominação.”   ÉPOCA – A grande novidade dessa produção cultural da periferia é a apropriação da palavra escrita, historicamente um código da elite no Brasil. O que significa essa transformação pela letra? João Cezar – Isso é importantíssimo. Uma parte considerável da crítica literária brasileira, da vida universitária no Brasil, parece esquecer que, na Europa, a cultura letrada foi uma cultura de libertação e de emancipação do homem. Mas na América Latina, a cultura letrada foi sempre uma cultura da dominação, da manutenção do poder. Você não consegue pensar na Revolução Francesa sem pensar na Encyclopédie. Você não consegue pensar na grande arrancada da cultura alemã no século XVIII e XIX sem pensar que era uma cultura do livro. Não existiria a revolução protestante sem o livro. Na América latina, desgraçadamente, a cultura letrada

sempre esteve a serviço da dominação, da preservação do poder. Um exemplo bem concreto e chocante: dois anos depois da Proclamação da República, a primeira constituição republicana determinou que para votar e ser votado era preciso ser alfabetizado. Nada mais brutal. Mas na Dialética da Marginalidade, a produção não é apenas textual. É uma produção mais ampla. O Ferréz participa do hip­hop. O Paulo Lins escreve roteiro para cinema, já fez poesia e tem grande interesse em música. Uma parte considerável da produção cultural da Dialética da Marginalidade tende à convergência de diversas formas artísticas. ÉPOCA – Mas o próprio rap é letra... João Cezar – Uma vez que a cultura letrada entre nós não foi nunca uma cultura de libertação, mas uma cultura de dominação, é muito importante o domínio da letra. Dominar a letra, em alguma medida, é inverter o próprio processo cultural. Escrever seus livros, produzir seus poemas, escrever letras para o rap é importantíssimo. A educação foi sempre uma barreira para o acesso à cultura letrada. Dominar a cultura letrada é virar pelo avesso a lógica da dominação. ÉPOCA ­ Como dimensionar a importância desse movimento cultural que está acontecendo agora, nesse momento? João Cezar – Se minha hipótese estiver correta, esse fenômeno pode vir a produzir modificações fundamentais no Brasil daqui a uma ou duas décadas. Nós não podemos nunca deixar de reconhecer que esse é um dos momentos mais felizes da história brasileira. Nós de fato temos democracia. É uma democracia sólida. Temos inúmeros problemas de corrupção, mas temos hoje algo que nunca tivemos na História do Brasil. Isso também permitiu o desenvolvimento do que chamo de Dialética da Marginalidade. A esperança que eu tenho é a seguinte: a Dialética da Marginalidade parece sugerir um certo desencanto e um certo cansaço com as formas tradicionais do fazer político. Se o Ferréz conseguir mudar um pouco o Capão Redondo, se alguém conseguir mudar um pouco a Cidade de Deus, se o trabalho do AfroReggae mudar um pouco Vigário Geral, e sabendo que existem trabalhos como os deles no país todo, em 20 anos nós poderemos ter um Brasil diferente. Em lugar de um discurso onipresente, totalizante, do tradicional discurso da esquerda, o que a Dialética da Marginalidade deseja é adquirir sua própria voz, é que a relação com seu vizinho melhore, que seu bairro tenha água encanada, eletricidade, educação, que as crianças tenham acesso à internet. No espaço de uma, duas décadas, isso pode vir a mudar o país dentro da normalidade. Sabe como? É muito simples. Vamos votar melhor. A esperança é que a Dialética da Marginalidade possa provocar um conjunto de microrrevoluções culturais, que, num espaço de 10 ou 20 anos, transformem o país pela via democrática. ÉPOCA – Nesse sentido, o movimento cultural das periferias seria a melhor chance de transformação do país? João Cezar – Se você pensar no processo político recente, o grande desencanto de uma geração como a minha, que nasceu nos anos 60, é que o poder no Brasil tem mecanismos de corrupção tão entranhados que, mesmo num partido em que tínhamos tanta esperança, como o PT, não houve uma prática ética e transparente no poder. Se de fato a corrupção no poder é intestina, então a possibilidade que nós temos a médio e a longo prazo é uma transformação cultural realmente radical. Para essa transformação cultural, o estado brasileiro nunca investiu, as escolas públicas são lamentáveis – e não eram há 30, 40 anos atrás. O governo Fernando Henrique Cardoso não fez nenhum investimento sério na educação brasileira, nem o governo Lula está fazendo. Do ponto de vista do Estado, o nosso horizonte é desértico, como sempre foi na historia brasileira. Nós não temos um projeto cultural, não há um projeto educacional para o país. Mas no momento dessa entrevista há uma importantíssima transformação acontecendo no país. Essa é a esperança que eu tenho de uma real transformação. Determinados dilemas do Brasil só poderão ser resolvidos quando forem enfrentados. O malandro não enfrenta nada, o malandro dribla, o malandro sai de banda. Quem enfrenta é o marginal. Então a Dialética da Marginalidade, me parece, é um esforço sério de um enfrentamento radical desses dilemas brasileiros.

“Eu não posso ler esses escritores com um instrumental teórico criado há mais de 30 anos, nas universidades. O que eles estão propondo e o que estão fazendo é algo realmente novo.”

  ÉPOCA – Você afirma que a crítica brasileira precisa criar novos instrumentos para analisar a produção literária das periferias. Como isso poderia ser feito? Que instrumentos seriam esses?  João Cezar – Só há uma possibilidade: ler Ferréz, Paulo Lins, Jocenir (Diário de um Detento: o livro), escutar Racionais MCs sem nenhum preconceito. Para descobrir quais são as questões que estão trabalhando. Se você lê Paulo Lins com cuidado, percebe que, de maneira claramente distinta da Carolina Maria de Jesus, o projeto não é individual, é coletivo. Como isso se expressa em termos de texto? Ao contrário de uma primeira pessoa que expressa suas dúvidas e sua personalidade, como Carolina em Quarto de Despejo, em Cidade de Deus há uma voz coletiva, anônima, e por isso mesmo fragmentada e complexa. Se você lê Capão Pecado e Diário de um Detento, você se dá conta de que há um traço de oralidade muito marcado. Mas que não pode ser explicado de maneira simples: eis a oralidade de alguém que não domina totalmente o código letrado, eis a oralidade típica do povo. Isso é tolice. Para dizer isso não precisa ler o livro. Isso é óbvio. Se você lê com cuidado o que estão produzindo, você percebe que se trata de uma geração – ou parte da população – cujo acesso à cultura, às informações, sempre ocorreu muito mais por outros meios que não a palavra impressa. Música, TV, cinema. A referência cultural fala de um outro mundo – e não do mundo da palavra impressa. Uma parte considerável da Dialética da Marginalidade é uma espécie de cruzamento entre a letra e outras formas de manifestações que geralmente são audiovisuais. ÉPOCA – Essas diferenças produzem também uma estética nova? João Cezar – A Dialética da Marginalidade supõe a superação definitiva dessa tolice que é ficar discutindo se uma literatura é metalingüística e inovadora ou é realista, se precisamos continuar a denunciar o naturalismo que domina a literatura. Uma parte considerável do que faz a Dialética da Marginalidade é trazer a reflexão sobre a realidade para o próprio dispositivo formal. É uma preocupação literária e é uma preocupação com a realidade. As duas coisas não estão distantes. Podem estar distantes e podem ser distintas para um determinado tipo de produção literária. Mas para Ferréz, Paulo Lins, Jocenir e Racionais MC,s as duas coisas desde sempre são uma. A produção artística que eles fazem jamais será um mero reflexo da realidade. Se fosse, eles simplesmente não produziriam porque seria a própria imagem da precariedade. Seria uma espécie de Macabéa (personagem de A Hora da Estrela, de Clarice Lispector) multiplicada ao infinito. A reflexão artística que eles produzem sobre a realidade desde sempre trata do cotidiano e desde sempre é artística. É uma superação total dessa falsa dicotomia. ÉPOCA – Quem define o que é literatura? João Cezar – Essa é uma questão central. Uma parte dos críticos não se faz essa pergunta porque tem certezas demais. O problema central é que precisamos ler com muito cuidado esses textos e sobretudo prestar uma atenção renovada a essa expressão cultural. Sem aprisioná­las num modelo teórico e crítico que é anterior à Dialética da Marginalidade. Eu não posso ler esses escritores com um instrumental teórico criado há mais de 30 anos, nas universidades. O que eles estão propondo e o que estão fazendo é algo realmente novo. Ou eu aceito o desafio de tentar dizer algo de inteligente sobre o que estão produzindo ou eu teria a falsa inteligência de alguns acadêmicos, colegas meus, que tem um discurso pronto para tudo. Aí você pergunta: mas você leu Paulo Lins, você leu Ferréz? E respondem: “Ah, isso não, porque não é alta literatura”. Se eles não querem ler Paulo Lins e Ferréz é uma opção que eu respeito. Mas então fiquem calados. ÉPOCA – Há quanto tempo não acontece no Brasil algo tão novo? João Cezar – O que seria comparável a esse momento, mas de uma forma muito distinta, seria a extraordinária vitalidade cultural do final dos anos 50 e da década de 60, com a explosão do concretismo em são Paulo, do neoconcretismo no Rio de Janeiro. A explosão da Bossa Nova, no final dos anos 50, da Tropicália, depois. Ressalvadas as diferenças, essa produção cultural que me parece inédita, única, vital, só tem paralelo com o que aconteceu nos anos 50 e 60. ÉPOCA ­ Mas no conteúdo político ela não vai mais além, se pensarmos que quem escreve até então nunca havia dominado o código com que hoje se

expressa? João Cezar – Eu acho que sim. E as pessoas dizem assim: “Ah, mas o sujeito só escreve sobre Cidade de Deus. Ah, mas o cara só fala do Capão Redondo”. Meu Deus do céu, não é só. Isso pode ser muito mais complexo e muito mais difícil do que um discurso que começa com o bandejão da universidade e termina com a guerra do Iraque. Ou seja: eu começo com o discurso do bandejão e a exigência seguinte, para que a greve acabe, é a renúncia do George Bush. É muito bom, né? Muito mais revolucionário seria que se exigisse apenas o bandejão. Politicamente, a Dialética da Marginalidade pode ter um efeito mais duradouro e mais radical porque não se trata de espetáculo, não se trata da cultura da celebridade, não é uma festa, não é algo momentâneo. É algo que acontece no cotidiano, é uma transformação do cotidiano. E acho que é uma das mais fantásticas transformações potenciais da história da cultura brasileira.

“Uma das percepções mais notáveis é a compreensão de que a violência só favorece o sistema. Não estão promovendo a violência, nem dizendo que a transformação virá pela violência. Eles sabem que, quando se trata de violência, vão sempre perder. Sabem que o que precisam fazer não é desperdiçar energia com violência, mas concentrar energia na transformação cultural.”     ÉPOCA – Alguns críticos dizem que eles só conseguem escrever sobre violência, que precisam ampliar o repertório. O que você acha? João Cezar – Falar da violência me parece fundamental. E me parece mais fundamental ainda o que eles fazem com isso. Depois que eu terminei o Manual Prático do Ódio, eu fui reler Cidade de Deus e outros livros. Me dei conta de que não existe nenhuma glorificação do bandido. Nenhuma. Nos romances do Ferréz e do Paulo Lins os bandidos morrem sempre, o sistema sempre prevalece. Mas isso é moralismo inesperado? É uma aceitação paradoxal dos nossos critérios de classe média? De jeito nenhum. Isso é o que há de mais inteligente. Só nós glorificamos a violência, para ver num programa de TV. Não é parte do nosso cotidiano levar bofetada de policial. Mas é parte do cotidiano de quem mora nas comunidades. Você não tem problema de chegar em casa às 10, 11 horas da noite. Para eles é uma loteria, pode encontrar uma blitz e não conseguir subir. Uma das percepções mais notáveis da Dialética da Marginalidade é que eles compreendem perfeitamente que a violência só favorece o sistema. O sistema se fortalece com a violência, depende da violência. Nós só aceitamos a corrupção da polícia no Brasil porque consideramos que essa polícia é indispensável para fazer um cordão sanitário entre eles e nós. Então a violência só interessa ao sistema. Não estão promovendo a violência, nem dizendo que a transformação virá pela violência. Eles sabem que, quando se trata de violência, eles vão sempre perder. Não é moralismo insperado, mas a percepção mais aguda que fazem: de que a violência só favorece a preservação do sistema. O que eles precisam fazer não é desperdiçar energia com violência, é concentrar energia na transformação cultural. Isso é muito mais importante do que dar tiros.   ÉPOCA – A Carolina Maria de Jesus, citada por você, dizia que ninguém gosta de favela, mas precisa dela. Em que medida isso nos serve? João Cezar – Acho que hoje em dia não serve mais. A Dialética da Marginalidade adquire força quando essa frase da Carolina de Jesus não mais descreve a nossa realidade. Nós só precisávamos da favela quando podíamos idealizá­la. Imaginá­la como reduto do brasileiro, berço do samba, universo do malandro, paraíso das cabrochas... A partir do momento em que há essa crise do modelo econômivo brasileiro e as favelas passam a ser dominadas pelo narcotráfico, ninguém precisa dessa favela. A Dialética da Marginalidade, em certa medida, rompe também com esses clichês. ÉPOCA – Mas a periferia está na moda...  João Cezar – Um recurso é cooptar essa marginalidade e transformar todos em malandros. É quando a favela entra na moda. A resposta é deixar claro que nessa

favela não há malandros, que de fato o que há é marginalidade. Nos dois sentidos: estar à margem e também a criminalidade. ÉPOCA – Ao se apropriar da própria voz, ao tomar conta da sua voz, ao dizer não é mais você que fala por mim ou em meu nome, os escritores da periferia colocam um impasse para quem sempre deu “voz aos excluídos”, como jornalistas, intelectuais, acadêmicos... João Cezar – Felizmente sim. O que é o mais importante nisso é que nada do que eu estou falando aqui tem a menor importância para o Ferréz ou para o Paulo Lins ou para a oficina cultural que estão fazendo agora no Piauí. O que realmente é importante na Dialética da Marginalidade é que eu deixei de ter importância enquanto porta­voz, enquanto instância externa, justificadora e legitimadora do que eles fazem. Eles vão fazer independentemente do que eu penso. Mas quando criamos pontes reais de diálogo – não mais a falsa ponte do malandro, mas um caminho de mão dupla, se eu vou eles vêm e vice­versa – aí, sim, nós podemos talvez imaginar um país diferente daqui a duas décadas. Só pode existir diálogo quando eu não preciso de você e você não precisa de mim. Caso contrário, não é diálogo, é imposição, é paternalismo, é demagogia. Para que haja de fato diálogo é preciso que existam dois sujeitos em pé de igualdade, que decidem dialogar a partir – e não apesar – de suas diferenças. Mas só podemos dialogar se nós tivermos diferenças. Se você pensar exatamente como eu não é diálogo, é monotonia. Para que haja diálogo entre a minha perspectiva e o que o Paulo Lins, o Ferréz e toda a Dialética da Marginalidade produz é indispensável que haja respeito recíproco e diferenças. Aí há diálogo. Mas aí a gente pode fazer um país melhor também. ÉPOCA – Isso também seria novo, na medida em que você diz que na cultura brasileira há um certo temor da diferença? João Cezar – Esse é um problema sério da cultura brasileira: há muito receio da diferença. As pessoas só conversam para reforçar seus próprios argumentos. As pessoas só se reúnem para confirmar o que já sabem. O que me surpreende é que não ficam entediadas. Passam 30 anos repetindo a mesma coisa e formam alunos para que repitam o que disseram. Só são amigos dos que pensam como elas. É um marasmo desesperador. Há um esgotamento real da crítica cultural brasileira. O surpreendente é que o tédio não tenha dominado de vez o paranorama cultural brasileiro. Porque para produzir conhecimento novo é preciso assumir riscos. Por isso o que eu imagino que possa se chamar de Dialética da Marginalidade, mas que podem dar qualquer outro nome, me anima muito. Porque é algo novo e porque eles não estão preocupados com essa repetição infinita de conhecimentos já produzidos.            

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