Descaminho, Lavagem de Capitais e Organização Criminosa: Comentários ao Habeas Corpus 108.715/RJ

September 30, 2017 | Autor: Alessandro Lopes | Categoria: Direito Penal, Processo Penal, Lavagem de capitais
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Descaminho, Lavagem de Capitais e Organização Criminosa: Comentários ao Habeas Corpus 108.715/RJ

Alessandro Maciel Lopes1 Yuri Felix2

Área do Direito: Penal, Processual Penal

Resumo: Cuida-se de escorreito comentário acerca de decisão exarada pela Suprema Corte nacional (STF), onde figura como Relator o Ministro Marco Aurélio, decano da Primeira Turma deste Colegiado. Tem-se algumas questões centrais deste acórdão que merecem grande esmero, atenção e cuidado. A primeira - questão processual - diz respeito a (in)admissibilidade de Habeas Corpus substitutivo de Recurso Ordinário dirigido ao Supremo Tribunal Federal, contra ato do Superior Tribunal de Justiça, ou dirigido a esta última corte, contra ato de Tribunais Estaduais ou Regionais Federais. A segunda, traz a lume alguns aspectos de relevo atinentes à Lavagem de Capitais na legislação pátria. E, por fecho, o tormentoso debate que têm como figura a Organização Criminosa. Evidente, tendo como premissa a complexidade da matéria e a própria dinâmica não somente do Direito mas, também, do mundo da vida, não se pretende assentar uma posição totalizadora e definitiva, mas sim promover o debate de relevantes questões jurídicas nacionais.

Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal - Habeas Corpus- Lavagem de Capitais Organização Criminosa - Recurso Ordinário Constitucional

Sumário: A) Acórdão - B) Comentário 1

Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Delegado de Polícia Federal. Especialista em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura de São Paulo. Professor universitário. 2 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Pós-graduado em Ciências Penais. Presidente da Comissão de Direito Penal e Direito Processual Penal da 40º Subseção da OAB/SP. Professor e palestrante com artigos publicados em revistas especializadas. Advogado Criminal em São Paulo.

A) Acórdão

HC 108715 / RJ - RIO DE JANEIRO HABEAS CORPUS Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO Julgamento: 24/09/2013 Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação PROCESSO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 28-05-2014 PUBLIC 29-05-2014 Parte(s) PACTE.(S) : REBECA DAYLAC IMPTE.(S) : NILSON PIRES VIDAL DE PAIVA E OUTRO(A/S) COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Ementa HABEAS CORPUS – JULGAMENTO POR TRIBUNAL SUPERIOR – IMPUGNAÇÃO. A teor do disposto no artigo 102, inciso II, alínea “a”, da Constituição Federal, contra decisão, proferida em processo revelador de habeas corpus, a implicar a não concessão da ordem, cabível é o recurso ordinário. Evolução quanto à admissibilidade do substitutivo do habeas corpus. TIPO PENAL – NORMATIZAÇÃO. A existência de tipo penal pressupõe lei em sentido formal e material. LAVAGEM DE DINHEIRO – LEI Nº 9.613/98 – CRIME ANTECEDENTE. A teor do disposto na Lei nº 9.613/98, há a necessidade de o valor em pecúnia envolvido na lavagem de dinheiro ter decorrido de uma das práticas delituosas nela referidas de modo exaustivo. LAVAGEM DE DINHEIRO – ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E QUADRILHA. O crime de quadrilha não se confunde com o de organização criminosa, até hoje sem definição na legislação pátria.

B) Comentário Trata-se da impetração de remédio constitucional - Habeas Corpus - advindo do Estado do Rio de Janeiro, em que a paciente deseja ver rechaçada parcela da r. decisão emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, onde foram mantidas as

acusações relativas ao cometimento - em tese - lavagem de dinheiro e de participação em organização criminosa. Inicialmente, no que tange à negativa de admissibilidade da via eleita impetração de Habeas Corpus junto ao Supremo Tribunal Federal em substituição a Recurso Ordinário - de logo, pode vir a representar uma séria restrição de exercício deste remédio, não obstante todas as considerações de suposta banalização da medida expedita e do agravamento do volume de demandas que batem as portas do Judiciário. O remédio constitucional do Habeas Corpus sempre foi utilizado no país para a mais vasta série de situações, como exemplo, o seu manejo em casos, comumente denominados, como trancamento da ação penal, o que seria tecnicamente mais adequada a denominação de trancamento do processo sob exame. Ainda, observa-se que o fio condutor da linha de argumentação deste giro jurisprudencial abrange desde a taxatividade das disposições constitucionais, com relação ao próprio Habeas Corpus, até mesmo a sobrecarga de ações que a tradicional prática de substituição do Recurso Ordinário acarretou. No entanto, o Habeas Corpus é um pilar de defesa da liberdade, e conforme trazido no texto constitucional - art. 5º, LXVIII, CF - deve ser manejado sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência/coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou mesmo abuso de poder, não interessando ser cabível outra forma recursal. Além disso, insta destacar o próprio entendimento do Ministro Marco Aurélio, ao julgar o HC. n. 110.328, na medida em que pondera sua decisão passada, que ensejou a consolidação deste entendimento jurisprudencial de obstar o Habeas Corpus substitutivo do Recurso Ordinário, de maneira que apontou que a essência constitucional disposta no art. 5º, LXVIII, deveria prevalecer, devendo a impetração do remédio substitutivo ser admitida, no momento em que existir efetiva ofensa à liberdade individual. No que tange ao crime de lavagem de capitais, não é de hoje que este sempre suscitou debates doutrinários relacionados ao seu reconhecimento, tipificação e hipóteses de incidência. Parte das discussões foram neutralizadas pela edição da Lei nº 12.683/12. Mas parcela ainda permanece, por não ter sido adequadamente

normatizada ou por se referir a fatos pretéritos resultantes de condutas praticadas antes da vigência das últimas alterações sofridas pela Lei nº 9.613/98. Questão importante reside na preexistência de uma conduta típica. A redação original do caput do art. 1º da Lei de Lavagem listava 6 (seis) espécies de crimes antecedentes (tráfico de drogas, terrorismo, tráfico internacional de armas e munições e extorsão mediante sequestro, crimes contra a administração pública e crimes contra o sistema financeiro nacional) e duas modalidades de conduta (praticado por organização criminosa ou praticado por particular contra a administração pública estrangeira). A redação atual amplia o rol taxativo de crimes para o gênero “infração penal” e suprime aquelas modalidades de conduta. A exigência de que o capital objeto da lavagem seja proveniente de uma conduta típica permaneceu inalterada, pois é própria do crime de lavagem. No caso ora analisado a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça “trancou a ação penal” que apurava o crime de descaminho, e deu prosseguimento à apuração dos crimes de formação de quadrilha (art. 288 do Código Penal) e lavagem de dinheiro (art. 1º, V e VII da Lei nº 9.613/98). Aportado o HC no STF, a Primeira Turma, por maioria, deferiu ordem de ofício para trancar o processo no tocante ao crime de lavagem de dinheiro, pois não havia, até o momento da decisão do Relator (Min. Marco Aurélio de Mello) tipificação do crime de organização criminosa. No mérito, divergência do Ministro Luiz Fux, para quem a figura organização criminosa seria gênero definido pela Convenção de Palermo (Dec. 5.015/04), norma já internalizada em nosso ordenamento. Não podemos nos furtar de dizer, com a maxima venia, que temos por equivocada a decisão e os fundamentos da Sexta Turma do STJ no que concerne ao tratamento do delito de descaminho. Esse órgão entende que, nesses casos, a constituição definitiva do crédito tributário é condição objetiva de procedibilidade da ação penal. Portanto, a denúncia oferecida antes do encerramento do processo administrativo-fiscal haveria de ser rejeitada. Sustenta seu entendimento na natureza do crime de descaminho, que seria, na sua essência, um crime tributário e, como tal, sujeito às condições inerentes a esse tipo de delito.

Em que pese o delito de descaminho possuir, em maior ou menor grau, o gene dos delitos afetos ao fisco, de antemão, não parece que essa seja a posição mais acertada. Isso porque o descaminho difere dos demais delitos tributários em um ponto fulcral: depois que a mercadoria deixa a área aduaneira não há mais a possibilidade de pagamento do tributo. Logo, não há que se falar em constituição do crédito, pois nessa oportunidade não há mais crédito a ser constituído. A mercadoria internalizada é apreendida pelo órgão fiscal e se torna objeto de perdimento, conforme previsto no Decreto de nº 1.455/76. Em síntese, na importação ilícita de mercadorias lícitas, após sua passagem pela área aduaneira, não há mais oportunidade de regularização por meio de pagamento do tributo. Não obstante, o andamento processual foi sustado e é o que agora importa no que se refere ao crime remanescente e à presente análise jurisprudencial. A Corte Suprema já havia se manifestado em outras oportunidades em relação à organização criminosa, firmando posição na atipicidade da conduta. Podemos citar o caso da Igreja Renascer (HC 96.007), a tentativa de definição de organização criminosa pelo Estado de Alagoas (ADI 4.414), o Caso "Mensalão" (AP 470), entre outros. Foi com base nessa jurisprudência da Corte o Min. Marco Aurélio concedeu a ordem de ofício, afastando o crime de lavagem de dinheiro em razão da conduta não estar definida na legislação pátria. Nessa ótica, é inviável a prática de lavagem com fundamento no art. 1º, VII da Lei 9.613/98 por atipicidade da conduta de organização criminosa. Divergente, o Min. Luiz Fux, para quem a expressão “organização criminosa” seria gênero, definida art. 2º da Convenção de Palermo (grupo criminoso organizado) e cujas espécies estariam tipificadas no 2º da Lei nº 2.889/56 (associação para o crime de genocídio), no art.35 da Lei nº 11.343/06 (associação ao tráfico) e no art. 288 do Código Penal (bando ou quadrilha). Tratar-se-ia, portanto, de norma penal em branco que reclamaria integração legislativa dos textos ora citados. Em que pese as posições dos Ministros e, mais ainda, a decisão de trancamento pelo delito de lavagem, os fundamentos podem não ser os mais acertados. O âmago

da questão não estaria na tipificação da organização criminosa e ausência de definição legal, mas na condição de preexistência de crime cujo lucro fora objeto de lavagem. Na posição do julgamento exposta pelo Ministro Marco Aurélio há de se apontar que a ausência de tipificação e definição legal não seriam aplicáveis ao caso. A bem da verdade, a jurisprudência do Tribunal em que o Ministro se baseia, notadamente as decorrentes do HC 96.007, da AP 470 e da ADI 4.414 não corresponderiam simetricamente ao caso ora analisado. Nas duas primeiras ações estava em jogo o reconhecimento do crime de organização criminosa que, de fato, não existe e, por isso, atípico. Na última, era analisada a possibilidade de normas procedimentais estaduais definirem “organização criminosa”. Quanto à linha de entendimento do Ministro Luiz Fux, devemos dizer que não poderíamos admitir a associação para o crime de genocídio, a associação para o tráfico e a figura da quadrilha como espécies do gênero organização criminosa basicamente por um motivo: a organização criminosa requer um mínimo de organização. Característica esta que não reside em nenhum desses crimes. Ao que parece, o julgador estaria confundindo a expressão “grupo criminoso” (este sim, gênero) com “organização criminosa” (uma das espécies de grupo criminoso). Como dito, o ponto cego da divergência não seria a existência do crime de organização criminosa mas a efetiva necessidade de preexistir um crime de onde se obteve o capital a ser lavado. Retomamos a redação original da lei de lavagem. Os incisos do art. 1º traziam 6 espécies de crimes e duas formas de cometê-lo. A condição para do delito de lavagem estaria fundada no crime antecedente como um daqueles arrolados nos incisos do art. 1º (rol taxativo de crimes). Outra hipótese seria que o crime fosse praticado por organização criminosa, independentemente de estar arrolado nos incisos anteriores. Sendo mais claro: não importa a espécie do crime antecedente, desde que ele seja praticado por organização criminosa. Apenas a partir daqui questionaríamos a necessidade de definição (e não tipificação) de organização criminosa. A lei não define de forma satisfatória o que seja organização criminosa, mas a Convenção de Palermo, internalizada pelo Dec. nº

5.015/04 traz no art. 2º a moldura conceitual para que o magistrado possa reputar um grupo criminoso como organizado[1]. Dito isso, deve-se retomar novamente ao caput do artigo para perceber que só há lavagem de dinheiro se houver lucro resultante do crime praticado pela organização criminosa. Indo um pouco além: não havendo crime antecedente, sequer haverá organização criminosa, pois é inerente ao seu conceito a prática de condutas tipificadas como crime. Se é certo que para a caracterização da conduta da lavagem de dinheiro não é necessária a condenação do crime antecedente – sendo suficiente o fumus comissi delicti (art. 2º, §1º da Lei 9.613/98) – também é certo que a ausência de elementos que autorizem a propositura da ação implique em afastar a incidência da lavagem de dinheiro. Significa dizer: há impossibilidade lógica e jurídica de branquear valores que não sejam fruto de lucros obtidos a partir de infrações penais. E se a ação do crime principal não pode ser ajuizada, é porque não há indícios suficientes da existência do crime antecedente. Portanto, quando o Superior Tribunal de Justiça declara que não subsistem os elementos mínimos autorizadores para o oferecimento da denúncia porque seriam, até esse

momento

inexistentes,

não

haveria

como



nem

porque



admitir

processualmente a figura da organização criminosa e, consequentemente, a lavagem de dinheiro. Em superficial lógica, ausente o fumus comissi delict de determinada infração, ausente também estará o branqueamento dos capitais originários dessas condutas, pois não se vislumbra, ainda, um delito que origine um dinheiro sujo a ser lavado. A lavagem não subsiste por si só. Aliás, o próprio art. 2º, §1º da Lei de Lavagem impediria a propositura da ação penal. Assim, reputamos acertada a decisão de mérito do HC 108.715 ao impedir o prosseguimento do processo no que tange à lavagem de dinheiro, embora equivocados tenham sido os seus fundamentos. Com isso, constata-se que a reflexão exercitada nos Tribunais Superiores, acerca dos temas, ainda tem ocorrido de forma introdutória e muitas vezes superficial.

Bibliografia ANSELMO, Marcio Adriano. Lavagem de Dinheiro e Cooperação Jurídica Internacional. São Paulo: Saraiva, 2013. BALTAZAR JR., José Paulo. Crime Organizado e Proibição de Insuficiência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A Organização Criminosa e a Lei de Lavagem. Disponível

em

http://www.conjur.com.br/2012-set-25/direito-defesa-organizacao-

criminosa-lei-lavagem-dinheiro. Acesso em 03/07/14. GOMES, Rodrigo Carneiro. Crime Organizado na Visão da Convenção de Palermo. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

[1] Art. 2º “Para efeitos da presente Convenção, entende-se por: a) Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.

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