Descartes e Santo Anselmo: O Argumento Ontológico

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Leonel RIBEIRO DOS SANTOS, Pedro ALVES e Adelino CARDOSO (Coords.), Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL, 1998, pp.81-96.

DESCARTES E SANTO ANSELMO O ARGUMENTO ONTOLÓGICO Maria Leonor L. O. Xavier

O argumento ontológico é um legado medieval, uma tradição assídua e expoente mor do labor especulativo da filosofia ocidental, o que lhe terá valido a abertura de uma disciplina filosófica especial, a ontoteologia, por formal determinação, paradoxalmente, do mais célebre dos seus críticos. Ora a ontoteologia, cujo nascimento e morte Kant decretava concomitantemente, era constituída pela prova ontológica que o argumento cartesiano tipificava 1. De facto, o argumento ontológico teve em Descartes um dos seus principais proponentes, mas coube a Santo Anselmo o papel de fundador de uma tradição que encontrou no argumento do Proslogion motivo bastante de reflexão filosófica para não ficar indiferente e replicar com outros argumentos e objecções. Anselmo, Descartes e Kant são assim três marcos de primeira importância na tradição do argumento ontológico. Cabe, no entanto, perguntar se há um só argumento ontológico, o mesmo para Anselmo, Descartes, Kant e outros, ou se são irredutíveis entre si os argumentos anselmiano, cartesiano, kantiano e outros? Descartes e Anselmo tinham concepções diversas dos argumentos que expuseram: para Descartes, o argumento da "Quinta Meditação de Filosofia Primeira" é de certo modo o mais evidente entre os que haviam já sido avançados nas "Meditações" anteriores 2; para Anselmo, o argumento do Proslogion é o mais independente ou auto-suficiente, em comparação com os que havia produzido no Monologion 3. A consciência que ambos os filósofos exprimem acerca dos casos 1

Cf. KANT, Kritik der reinen Vernunft (KrV) B 660.

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"Or maintenant, si de cela seul que je puis tirer de ma pensée l'idée de quelque chose, il s'ensuit que tout ce que je reconnais clairement et distinctement appartenir à cette chose, lui appartient en effet, ne puis-je pas tirer de ceci un argument et une preuve démonstrative de existence de Dieu? Il est certain que je ne trouve pas moins en moi son idée, c'est à dire l'idée d'un être souverainement parfait, que celle de quelque figure ou de quelque nombre que ce soit. Et je ne connais pas moins clairement et distinctement qu'une actuelle et éternelle existence appartient à sa nature, que je connais que tout ce que je puis démontrer de quelque figure ou de quelque nombre, appartient véritablement à la nature de cette figure ou de ce nombre. Et partant, encore que tout ce que j'ai conclu dans les Méditations précédentes ne se trouvât point véritable, l'existence de Dieu doit passer en mon esprit au moins pour aussi certain, que j'ai estimé jusques ici toutes les vérités des mathématiques, qui ne regardent que les nombres et les figures" M5, 52, p. 472 (Méditation cinquième, texto da ed. de F. Alquié, in Descartes. Oeuvres philosophiques II (1638-1642), Paris, Garnier, 1996). 3 "Postquam opusculum quoddam velut exemplum meditandi de ratione fidei cogentibus me precibus quorundam fratrum in persona alicuius tacite secum ratiocinando quae nesciat investigantis edidi: considerans illud esse multorum concatenatione contextum argumentorum, coepi mecum quaerere, si forte posset inveniri unum argumentum, quod nullo alio ad se probandum quam se solo indigeret, et solum ad astruendum quia deus vere est, et quia est summum bonum nullo alio indigens, et quo omnia indigent ut sint et ut bene sint, et quaecumque de divina credimus substantia, sufficeret." Pr, Prooernium; 1, p. 93, 11.2-10 (Proslogion, texto da ed. crítica de F.S. Schmitt, reprod. em L'Oeuvre d'Anselme de Cantorbéry 1, Paris, Cerf, 1986, p. 228).

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Leonel RIBEIRO DOS SANTOS, Pedro ALVES e Adelino CARDOSO (Coords.), Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL, 1998, pp.81-96. respectivos de argumento ontológico denuncia que este esconde grande complexidade debaixo da simplicidade aparente que o grau de evidência e de independência obtido pode sugerir, uma vez que este grau significa o apuramento ou o momento culminante de um processo de elaboração, mediado, inclusivamente, pela construção de argumentos de outro género. Essa condição de um complexo processo de elaboração não ressalta, porém, com a concepção corrente, padronizada e banalizada, de argumento ontológico, que circula nos meios escolares. Tornou-se, com efeito, habitual tomar por argumento ontológico a inferência directa ou imediata da existência de Deus a partir do próprio conceito de perfeição divina. Esta formulação abreviada e simplificada é aquilo que entendemos por "argumento normalizado" ou "versão normalizada" do argumento ontológico, visto que ela se converteu em padrão comum deste género de argumento. O argumento normalizado é a versão que tem servido de objecto a grande parte das refutações e objecções ao argumento ontológico. Lugares comuns da crítica têm sido os seguintes: por um lado, o conceito de Deus e da sua perfeição é uma construção do sujeito cognoscente; por outro lado, o juízo de existência é um juízo de realidade, que não pode ser formado legitimamente apenas com base na definição de um objecto conceptualmente construído pelo sujeito. Os argumentos cartesiano e anselmiano têm sido frequentemente reduzidos à versão normalizada do argumento ontológico e sujeitos aos lugares comuns da crítica. Propomo-nos, então, revisitar, neste estudo, os argumentos de Descartes e de Anselmo a fim de verificarmos que não são redutíveis ao argumento normalizado. Teremos em consideração os tópicos recorrentes na análise dos argumentos ontológicos, como a concepção de Deus, a noção de existência e, também, os princípios decisivos do argumento. Ao mesmo tempo que nos é dado verificar a inadequação do argumento normalizado aos argumentos cartesiano e anselmiano, descobrem-se diferenças significativas entre estes dois últimos. Com efeito, os argumentos de Descartes e de Santo Anselmo parecem provir de áreas distintas da filosofia, o que permite afirmar também certa irredutibilidade entre ambos. Podemos assim realçar a originalidade do argumento cartesiano e ilustrar a inconfundibilidade do argumento anselmiano com versões posteriores na tradição do argumento ontológico. Nesse caso, porém, pode-se questionar se persiste alguma razão determinante para designarmos de "ontológicos" os dois argumentos em confronto. Se a diferença entre os dois for tal que ambos não possam ser ditos "ontológicos" senão equivocamente, tornar-se-á, então, muito difícil interpretar a unidade e assentir na existência de uma tradição do argumento ontológico, cuja pluralidade interna insistimos em opor como um valor à unicidade da versão normalizada. Pode obviar a essa dificuldade o procedimento habitual de tomar o argumento anselmiano à luz da filosofia do argumento cartesiano e este, por sua vez, à luz da filosofia crítica de Kant a respeito de toda a prova ontológica. E, com efeito, corrente supor que o argumento anselmiano é uma inferência da existência de Deus a partir da ideia, na mente, de um ente sumamente perfeito e submetê-lo depois à crítica kantiana de toda a prova a priori da existência de Deus. Não é, todavia, essa a nossa opção. Propomo-nos sim retomar o argumen2

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1. A concepção de Deus Em conformidade com o plano há pouco anunciado, considere-se, antes de mais, a concepção de Deus que preside à formulação do argumento de Descartes, segundo o texto da "Quinta Meditação de Filosofia Primeira": a ideia de Deus como ente sumamente perfeito4. Acerca desta ideia, podemos questionar a origem, a necessidade e o conteúdo: donde a ideia de um ente sumamente perfeito? É necessário pensar num ente sumamente perfeito? O que é que constitui um ente sumamente perfeito? Não obstante ser frequente atribuir a Descartes o mérito ou o demérito de ter fundado a filosofia do sujeito, nem todas as ideias têm, segundo ele, origem no sujeito pensante. Tal é o caso, em especial, da ideia de Deus. Na verdade, Descartes classifica de "inata" esta ideia5. Como interpretar tal classificação? Não tem ela que significar ser impossível ao sujeito formar a ideia de um ente sumamente perfeito, mas, antes, não ser esta ideia uma construção arbitrária do sujeito. Aqui reside, a nosso ver, um dos pontos determinantes da irredutibilidade do argumento cartesiano à versão normalizada do argumento ontológico, enquanto esta parte de um conceito abstracto e vago de perfeição. Como é possível, no entanto, perceber que não é arbitrária a ideia de um ente sumamente perfeito? Por analogia com a ideia não arbitrária de triângulo: esta não é um conceito discutível e inexacto, mas urna evidência irrecusável à luz de propriedades essenciais demonstráveis6. É, aliás, por analogia com a demonstração de propriedades essenciais do triângulo que Descartes descreve o seu argumento 4

Vd. n.2. Traduzimos être souverainement parfait por "ente sumamente perfeito", em consonância com o texto latino da M5: "Certe ejus ideam, nempe entis summe perfecti, non minus apud me invenio, quàm ideam cujusvis figurae aut numeri" Meditatio quinta, 65, p. 216 (texto da ed. de F. Alquié, in Descartes. Oeuvres philosophiques 1I (1638-1642), Paris, Gamier, 1996). 5 " Mais quand j'examine queues figures sont capables d'être inscrites dans le cercle, it n'est en aucune façon nécessaire que je pense que toutes les figures de quatre côtés sont de ce nombre; au contraire, je ne puis pas même feindre que cela soit, tant que je ne voudrai rien recevoir en ma pensée, que ce que je pourrai concevoir clairement et distinctement. Et par consequent it y a une grande difference entre les fausses suppositions, comme est celle-ci, et les véritables idées qui sont nées avec moi, dont la première et principale est celle de Dieu." M5, 54, pp. 475-476. 6 "Et ce que je trouve ici de plus considerable, est que je trouve en moi une infinité d'idées de certaines choses, qui ne peuvent pas être estimées un pur néant, quoique peut-être elles n'aient aucune existence hors de ma pensée, et qui ne sont pas feintes par moi, bien qu'il soit en ma liberté de les penser ou ne les penser pas; mais enes ont leurs natures vraies et immuables. Comme, par exemple, lorsque j'imagine un triangle, encore qu'il n'y ait peut-être en aucun lieu du monde hors de ma pensée une tecle figure, et qu'il n'y en ait jamais eu, it ne laisse pas néanmoins d'y avoir une certaine nature, ou forme, ou essence determinée de cette figure, laquelle est immuable et éternelle, que je n'ai point inventée, et qui ne depend en aucune façon de mon esprit; comme it parait de ce que Ion peut démontrer diverses propriétés de ce triangle, à savoir, que ses trois angles sont égaux à deux droits, que le plus grand angle est soutenu par le plus grand côté, et autres semblables, lesquelles maintenant, soit que je veuille ou non, je reconnais très clairement et très évidemment être en lui, encore que je n'y aie pensé auparavant en aucune façon, lorsque je me suis imaginé la première fois un triangle; et partant on ne peut pas dire que je les aie feintes et inventées." M5, 51, pp. 470-471.

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Cf. M5, 52, p. 473. Vd. n.10. Vd. n.6.

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"Et on ne doit pas dire ici qu'il est à la vérité nécessaire que j'avoue que Dieu existe, après que j'ai suppose qu'il possède toutes sortes de perfections, puisque ]'existence en est une, mais qu'en effet ma première supposition n'était pas nécessaire; de même qu'il n'est point nécessaire de penser que toutes les figures de quatre côtés se peuvent inscrire dans le cercle, mais que, supposant que j'aie cette pensée, je suis contraint d'avouer que le rhombe se peut inscrire dans le cercle, puisque c'est une figure de quatre côtés; et ainsi je serai contraint d'avouer une chose fausse. On ne doit point, dis-je alléguer cela: car encore qu'il ne soit pas nécessaire que je tombe jamais dans aucune pensée de Dieu, néanmoins, toutes les fois qu'il m'arrive de penser à un être premier et souverain, et de tirer, pour ainsi dire, son idée du trésor de mon esprit, it est nécessaire que je lui attribue toutes sortes de perfections, quoique je ne vienne pas à les nombrer toutes, et à appliquer mon attention sur chacune d'elles en particulier. Et cette nécessité est suffisante pour me faire conclure (après que j'ai reconnu que ]'existence est une perfection), que cet être premier et souverain existe véritablement: de même qu'il n'est pas nécessaire que j'imagine jamais aucun triangle; mais toutes les fois que je veux considérer une figure rectiligne composée seulement de trois angles, il est absolument nécessaire que je lui attribue toutes les choses qui servent à conclure que ses trois angles ne sont pas plus grands que deux droits, encore que peut-être je ne considère pas alors cela en particulier." M5, 53-54, pp. 474-475.

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"Car, ayant accoutumé dans toutes les autres choses de faire distinction entre l'existence et l'essence, je me persuade aisément que l'existence peut être séparée de ('essence de Dieu, et qu'ainsi on peut concevoir Dieu comme n'étant pas actuellement. Mais néanmoins, lorsque j'y pense avec plus d'attention, je trouve manifestement que l'existence ne peut non plus être séparée de l'essence de Dieu, que de l'essence d'un triangle rectiligne la grandeur de ses trois angles égaux à deux droits, ou bien de 1'idée dune montagne l'idée d'une vallée; en sorte qu'il n'y a pas moins de répugnance de concevoir un Dieu (c'est à dire un être souverainement parfait) auquel manque l'existence (c'est à dire auquel manque quelque perfection), que de concevoir une montagne qui n'ait point de vallée." M5, 52, p. 473. 11 "Mais encore qu'en effet je ne puisse pas concevoir un Dieu sans existence, non plus qu'une montagne sans vallée, toutefois, comme de cela seul que je conçois une montagne avec une vallée, il ne s'ensuit pas qu'il y ait aucune montagne dans le monde, de même aussi, quoique je conçoive Dieu avec l'existence, il semble qu'il ne s'ensuit pas pour cela qu'il y en ait aucun qui existe: car ma pensée n'impose aucune nécessité aux choses; et comme il ne tient qu'à moi d'imaginer un cheval ailé, encore qu'il n'y en ait aucun qui ait des ailes, ainsi je pourrais peut-être attribuer l'existence à Dieu, encore qu'il n'y eût aucun Dieu qui existât." M5, 52-53, p. 473. 12 "

Tant s'en faut, c'est ici qu'il y a un sophisme caché sous I'apparence de cette objection: car de ce que je ne puis concevoir une montagne sans vallée, it ne s'ensuit pas qu'il y ait au monde aucune montagne, ni aucune vallée, mais seulement que la montagne et la vallée, soit qu'il y en ait, soit qu'il n'y en ait point, ne se peuvent en aucune façon séparer Pune d'avec 1'autre; au lieu que, de cela seul que je ne puis concevoir Dieu sans existence, it s'ensuit que l'existence est inséparable de lui, et partant qu'il existe véritablement: non pas que ma pensée puisse faire que cela soit de la sorte, et qu'elle impose aux choses aucune nécessité; mais, au contraire, parce que la nécessité de la chose même, à savoir de ('existence de Dieu, détermine ma pensée à le concevoir de cette façon. Car it nest pas en ma liberté de concevoir un Dieu sans existence (c'est à dire un être souverainement parfait sans une souveraine perfection), comme it m'est libre d'imaginer un cheval sans ailes ou avec des wiles." M5, 53, p. 474. Em contrapartida, o exemplo do triângulo, pela sua conformidade, é reiterado na resposta à outra objecção por nós acima considerada: vd. n.9.

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Leonel RIBEIRO DOS SANTOS, Pedro ALVES e Adelino CARDOSO (Coords.), Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL, 1998, pp.81-96. análoga à concepção de uma ilha tão cumulada de perfeições da sua espécie que se torna difícil senão impossível encontrá-la e, por isso, se chama "perdida"; a inferência da existência de Deus é, por sua vez, comparada à obtenção da existência dessa ilha perdida mediante a consideração da sua perfeição. Trata-se evidentemente de uma analogia caricatural para todo o argumento que infere a existência com base na perfeição da essência e que convém, a nosso ver, com mais propriedade ao teor explícito do argumento cartesiano do que ao argumento anselmiano: tal como a inseparabilidade da montanha e do vale não garante a existência de alguma montanha, assim também a perfeição da illa perdida não assegura a sua própria existência, nem, analogamente, a perfeição de Deus é razão suficiente da sua existência)13. Curioso é notar que Anselmo dá uma resposta de tipo cartesiano antes de Descartes à objecção da ilha perdida. Embora conceda a existência da ilha perdida na condição de não ser pensável algo melhor do que ela, Anselmo não deixa de advertir de que é sempre pensável como não existente aquilo que tem princípio e fim, como é naturalmente o caso de qualquer ilha, por definição, limitada de todos os lados 14. Deste modo, Anselmo indica que Deus tem que ser infinito para ser aquilo maior do que o qual nada se pode pensar, embora o infinito seja maior do que tudo aquilo que se possa pensar. Assim se deixa associar a ideia de infinito com a concepção de Deus no Proslogion de Santo Anselmo. Ora, Descartes é um dos filósofos que mais expressamente defende 13

"Exempli gratia: Aiunt quidam alicubi oceani esse insulam, quam ex difficultate vel potius impossibilitate inveniendi quod non est, cognominant aliqui 'perditam', quamque fabulantur multo amplius quam de fortunatis insulis fertur, divitiarum deliciarumque omnium inaestimabili ubertate pollere, nulloque possessore aut habitatore universis aliis quas incolunt homines terris possidendorum redundantia usquequaque praestare. Hoc ita esse dicat mihi quispiam, et ego facile dictum in quo nihil est difficultatis intelligam. At si tune velut consequenter adiungat ac dicat: non potes ultra dubitare insulam illam terris omnibus praestantiorem vere esse alicubi in re, quam et in intellectu tuo non ambigis esse; et quia praestantius est, non in intellectu solo sed etiam esse in re; ideo sic eam necesse est esse, quia nisi fuerit, quaecumque alia in re est terra, praestantior illa erit, ac sic ipsa iam a te praestantior intellecta praestantior non erit; – si inquam per haec ille mihi velit astruere de insula illa quod vere sit ambigendum ultra non esse: aut iocari ilium credam, aut nescio quem stultiorem debeam reputare, utrum me si ei concedam, an ilium si se putet aliqua certitudine insulae illius essentiam astruxisse, nisi prius ipsam praestantiam eius solummodo sicut rem vere atque indubie existentem nee ullatenus sicut falsum aut incertum aliquid in intellectu meo esse docuerit." GAUNILO, Quid ad haec respondent quidam pro insipiente, [6.]; I, p. 128, 11.14-32 (texto da ed. crítica de F.S. Schmitt, reprod. em L'Oeuvre d'Anselme de Cantorbéry 1, Paris, Cerf, 1986, p. 294). 14 "Sed tale est, inquis, ac si aliquis insulam oceani omnes terras sua fertilitate vincentem, quae difficultate immo impossibilitate inveniendi quod non est, 'perdita' nominatur, dicat idcirco non posse dubitari vere esse in re, quia verbis descriptam facile quis intelligit. Fidens loquor, quia si quis invenerit mihi aut re ipsa aut sola cogitatione existens praeter 'quo maius cogitari non possit', cui aptare valeat conexionem huius meae argumentationis: inveniam et dabo illi perditam insulam amplius non perdendam. Palam autem iam videtur 'quo non valet cogitari maius' non posse cogitari non esse, quod tam certa ratione veritatis existit. Aliter enim nullatenus existeret. Denique si quis dicit se cogitare illud non esse, dico quia cum hoc cogitat, aut cogitat aliquid quo maius cogitari non possit, aut non cogitat. Si non cogitat, non cogitat non esse quod non cogitat. Si vero cogitat, utique cogitat aliquid quod nec cogitari possit non esse. Si enim posset cogitari non esse, cogitari posset habere principium et finem. Sed hoc non potest. Qui ergo illud cogitat, aliquid cogitat quod nec cogitari non esse possit. Hoc vero qui cogitat, non cogitat idipsum non esse. Alioquin cogitat quod cogitari non potest. Non igitur potest cogitari non esse 'quo mains nequit cogitari'." Santo ANSELMO, Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli, [III.]; I, p. 133, 11.3-20 (texto da ed. crítica de F.S. Schmitt, reprod. em L'Oeuvre d'Ansebne de Cantorbéry 1, Paris, Cerf, 1986, p. 304).

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Leonel RIBEIRO DOS SANTOS, Pedro ALVES e Adelino CARDOSO (Coords.), Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL, 1998, pp.81-96. uma concepção de Deus como infinito e, no entanto, não usa a ideia de infinito no argumento da "Quinta Meditação". Porquê? Podemos admitir que a ideia de infinito é uma condição implícita da própria ideia de ente sumamente perfeito, tal como a mesma condiciona a noção daquilo maior do que o qual nada se pode pensar15 e a noção daquilo que é maior do que tudo o que se possa pensar 16. Todavia, estas duas noções de Deus não são permutáveis entre si na construção do argumento anselmiano. Das duas noções mencionadas, só primeira é adequada ao argumento. Porquê? Porque, de acordo com a segunda noção – algo maior do que tudo o que se possa pensar – Deus excede a própria ordem do pensável, pelo que nada a seu respeito pode ser demonstrado à luz de princípios da ordem do pensável. Em contrapartida, segundo a primeira noção – aquilo maior do que o qual nada se pode pensar – Deus é o limite superior da ordem do pensável, pelo que pertence ainda a esta ordem e se dispõe por isso a ser pensado, a sua existência inclusive, à luz dos princípios dessa ordem. Há, portanto, uma finitude de conveniência estratégica e provisória na concepção de Deus que preside ao argumento anselmiano e que pode estar também na base da omissão da ideia de infinito no argumento cartesiano. Não deixa, contudo, de ser enigmática a extensão do nome divino que entra na formulação do argumento anselmiano do Proslogion. Se esse nome significa que Deus é o termo supremo da ordem do pensável, por que não designálo simplesmente de "supremo pensável"? Porque a noção de supremo é relativa a uma ordem de maior e de menor, que não condiciona a própria essência de Deus. Posto que esta essência não depende de nenhuma outra, a relação de supremacia com outras naturezas não afecta a sua definição: para a essência ou natureza divina, não é melhor nem pior, mas indiferente ser o termo supremo de uma ordem de termos subordinados. Daí que o relativo supremo não aceda a integrar o número dos atributos da essência divina, segundo Santo Anselmo 17. À luz da crítica anselmiana do relativo supremo como atributo divino, relativos afins não são predicados essenciais de Deus. Ora, relativos afins são os de perfeito ou de sumamente perfeito. Na verdade, Anselmo não tematiza a ideia de perfeição, 15

"Ergo, domine, qui das fidei intellectum, da mihi, ut quantum seis expedire intelligam, quia es sicut credimus, et hoc es quod credimus. Et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari possit." Pr, c.II; I, p. 101, 11.3-5. 16 "Ergo domine, non solum es quo maius cogitari nequit, sed es quiddam maius quam cogitari possit. Quoniam namque valet cogitari esse aliquid huiusmodi: si tu non es hoc ipsum, potest cogitari aliquid maius te; quod fieri nequit." Pr, c.XV; I, p. 112, 11.14-17. 17 "Itaque de relativis quidem nulli dubium, quia nullum eorum substantiale est illi de quo relative dicitur. Quare si quid de summa natura dicitur relative, non est eius significativum substantiae. Unde hoc ipsum quod summa omnium sive maior omnibus quae ab illa facta sunt, seu aliud aliquid similiter relative dici potest: manifestum est quoniam non eius naturalem designat essentiam. Si enim nulla earum rerum umquam esset, quarum relatione summa et maior dicitur, ipsa nec summa nec maior intelligeretur: nec tamen idcirco minus bona esset aut essentialis suae magnitudinis in aliquo detrimentum pateretur. Quod ex eo manifeste cognoscitur, quoniam ipsa quidquid boni vet magni est, non est per aliud quam per seipsam. Si igitur summa natura sic potest intelligi non summa, ut tamen nequaquam sit maior aut minor quam cum intelligitur summa omnium: manifestum est quia 'summum' non simpliciter significat illam essentiam quae omnimodo maior et melior est, quam quidquid non est quod ipsa. Quod autem ratio docet de 'summo', non dissimiliter invenitur in similiter relativis." Mon, c.XV; I, p. 28, 11.8-23 (Monologion, texto da ed. crítica de F.S. Schmitt, reprod. em L'Oeuvre d'Anselme de Cantorbéry 1, Paris, Cerf, 1986, p. 86).

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Leonel RIBEIRO DOS SANTOS, Pedro ALVES e Adelino CARDOSO (Coords.), Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL, 1998, pp.81-96. como faz para a relação de supremacia, o que nos faz supor que, se a ideia de perfeição tem algum cabimento na sua teologia, ela é redutível a uma relação de supremacia com graus subordinados de perfeição. Não é, pois, exacto admitir que o argumento anselmiano do Proslogion parte de uma noção absoluta de perfeição, mas de uma noção relativa de perfeição, redutível, em suma, a uma relação de supremacia. E, na verdade, relativa a noção daquilo maior do que o qual nada se pode pensar. Qual é, porém, a relação expressa nesta composição rebuscada do nome divino que figura no argumento de Santo Anselmo? Não é a relação com a ordem dos termos inferiores, mas a relação com uma ordem inexistente de termos superiores. Desse modo, o nome divino do argumento omite a relação com a ordem subordinada do pensável, e, nessa medida, é um nome negativo de supremo, de supremo pensável. Por ser um nome negativo de supremo, o mesmo não repugna à designação da própria essência divina. A profunda elaboração, não obstante a extensão resultante, do nome divino que integra o argumento anselmiano visa satisfazer estas duas exigências: ser um nome afirmativo da essência de Deus e ser um nome negativo de supremo. A primeira destas exigências é solicitada pelo propósito do argumento, que é demonstrar a existência, não de alguma relação acidental, mas da própria natureza de Deus. A segunda exigência é, por seu turno, determinada pela ordem a que pertencem os princípios da construção do argumento: a ordem do ser pensável. É, à luz de princípios da ordem do ser pensável, que a existência de Deus é demonstrada por Santo Anselmo. No âmbito do argumento anselmiano, a concepção de Deus é, pois, inevitavelmente relativa a uma ordem de graus subordinados, embora essa relatividade seja contornada pela composição de um nome negativo de supremo. Torna-se, deste modo, evidente que o argumento anselmiano está muito distante da versão normalizada de argumento ontológico, apensa a um conceito abstracto de perfeição como premissa auto-suficiente para concluir a existência de Deus. Concomitantemente, verifica-se que não coincidem entre si os argumentos cartesiano e anselmiano quanto à concepção de Deus: Anselmo elabora uma noção negativa de supremo a fim de submeter a concepção de Deus a princípios da ordem do pensável; Descartes formula uma noção afirmativa de supremo para traduzir uma ideia pretensamente absoluta de perfeição, na concepção de um ente sumamente perfeito, e dela tirar por consequência a existência. Descartes ou não previu ou preferiu abstrair a ideia de perfeição suprema, da sua relatividade própria. Essa relatividade não deixa, porém, de condicionar incontornavelmente a concepção de Deus no argumento cartesiano da "Quinta Meditação". 2. A noção de existência Para além da concepção de Deus, outro tópico recorrente na análise do argumento ontológico é a noção de existência. Esta noção regista tal evolução na história da filosofia ocidental que a aplicação de conceitos de existência, hoje habituais ou elaborados, à tradição do argumento ontológico corre seriamente o risco de ser equívoca e basta só por si para fazer da própria noção de existência 8

Leonel RIBEIRO DOS SANTOS, Pedro ALVES e Adelino CARDOSO (Coords.), Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL, 1998, pp.81-96. o elemento porventura mais problemático desse género de argumento. A acepção, senão clara, pelo menos distinta de existência, que usamos actualmente, é uma especialização derivada da noção clássica de ser. Esta, com efeito, deixou dividir-se em duas acepções principais e divergentes: a essência ou a acepção de um ser permanente e inseparável das coisas; a existência ou a acepção de um ser contingente e separável das coisas. Às próprias coisas, que possuem a composição de essência e de existência, coube a condição comum de entes. Resultante de um longo e progressivo processo de análise da noção clássica de ser é, pois, esta constelação escolástica de essência, existência e ente. A dualidade da essência e da existência acentuou-se a tal ponto que a unidade entre ambas ficou reservada ao caso excepcional de Deus: só em Deus, há identidade entre essência e existência, segundo São Tomás de Aquino 18; só em Deus, a existência é inseparável da essência, segundo Descartes. Toda a filosofia que guarda uma relação estreita entre essência e existência para o caso excepcional de Deus é campo favorável à construção de argumentos ontológicos. É sabido que Tomás de Aquino rejeita a possibilidade de argumentos deste género, não por razões ontológicas mas da ordem do conhecimento: uma vez que não se pode conhecer a essência divina por si mesma, mas somente por analogia, não se pode inferir directamente a existência a partir da essência 19. Pelo contrário, Descartes não encontra obstáculos, na sua teoria do conhecimento, em especial, sobre a origem das ideias claras e distintas, à admissão de um argumento ontológico. Determinantemente desfavorável a este género de argumento é, porém, a total dissociação entre essência e existência, e até entre ser e existência, de modo que o ser passou de noção comum da diferença entre essência e existência a termo equívoco, quando empregue nestas duas acepções. Desaparece assim a ontologia e a oportunidade que ela dá à construção de argumentos ontológicos. Tal é o que acontece na filosofia de Kant, que confina o ser e a essência à ordem conceptual do sujeito transcendental e circunscreve o conhecimento da existência ao domínio da experiência fenoménica. Essência e existência tornamse incomensuráveis através de uma noção equívoca de ser. Donde a crítica da predicabilidade da existência como um atributo da essência: a existência não é um predicado como os demais que definem o conceito de uma essência, mas é uma condição de outro género que não acrescenta perfeição alguma à essência 20. Donde a possibilidade de dizer, por exemplo, que uma árvore real não é mais do que uma árvore pensada. Esta possibilidade seria não só um erro à luz da filosofia de Aristóteles 21, mas uma irracionalidade ou insipiência não menor do

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Cf. por ex. Summa Theologiae, I, q.3, a.4. Dico ergo quod haec propositio, Deus est, quantum in se est, per se nota est: quia praedicatum est idem cum subiecto: Deus enim est suum esse, ut infra patebit. Sed quia nos non scimus de Deo quid est, non est nobis per se nota: sed indiget demonstrari per ea quae sunt magis nota quoad nos, et minus nota quoad naturam, scilicet per effectus." Summa Theologiae, 1, q.2, a.1. 19 "

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Cf. KrV B 626-629.

21

Uma vez que uma árvore real e uma árvore pensada são coisas homónimas, i.e., não pertencem ao mesmo género e não têm, pôr isso, a mesma definição: vd. ex. de um homem real e de um homem pintado, Categorias 1 a 1-5.

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Uma vez que ser na realidade e ser no pensamento não são duas acepções irredutíveis de uma noção equívoca de ser, mas sim duas possibilidades integrantes da ordem do ser pensável. 23

Vd. n.9. Quemadmodum enim sese habent ad invicem lux et lucere et lucens, sic sunt ad se invicem essentia et esse et ens, hoc est existens sive subsistens. Ergo summa essentia et summe esse et summe ens, id est summe existens sive summe subsistens, non dissimiliter sibi convenient, quam lux et lucere et lucens." Mon, c.VI; I, p. 20,11.15-19. 24 "

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Leonel RIBEIRO DOS SANTOS, Pedro ALVES e Adelino CARDOSO (Coords.), Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL, 1998, pp.81-96. No entanto, o valor da existência varia, não em função da relação com a essência, mas em conformidade com posições e disposições próprias. Com efeito, Anselmo distingue, no argumento do Proslogion, duas posições e duas disposições próprias do ser ou da existência: a posição no intelecto (in intellectu) e a posição na realidade (in re); a disposição relativamente necessária (quod non esse cogitari potest) e a disposição absoluta ou omnimodamente necessária (quod non possit cogitari non esse). A posição da existência no intelecto afecta tudo aquilo que é pensável, mas pode não existir na realidade 25. A posição da existência na realidade é aquela que podemos identificar com a nossa noção habitual de existência. Todavia, a conclusão do argumento anselmiano não é simplesmente um juízo de realidade sobre Deus. Porquê? Porque a disposição não só relativa como absolutamente necessária da existência, não só no intelecto como na realidade, é melhor do que qualquer das posições e disposições subordinadas da existência, isoladamente. Deus é único caso pensável, capaz de acumular todas as posições e disposições discriminadas da existência, no que reside o seu carácter excepcional. A conclusão do argumento anselmiano é, de facto, um juízo de existência omnimodamente necessária acerca de Deus. Admitindo que a conclusão do argumento cartesiano não difere da do argumento anselmiano quanto à afirmação de uma existência maximamente necessária, resta saber se, para além do conteúdo da conclusão, os dois argumentos incluem alguma razão estruturante e decisiva para serem designados de "ontológicos". 3. Os princípios do argumento A análise do argumento ontológico centra-se habitualmente ou na noção de Deus ou na noção de existência, fazendo de ambas as noções, as peças decisivas na construção do argumento. Não fugimos à regra, revisitando esses tópicos. No entanto, julgamos que há uma peça, senão mais fundamental, pelo menos igualmente determinante na construção do argumento ontológico: os princípios que medeiam entre a concepção de Deus e a predicação de existência. Em virtude desses princípios, o argumento ontológico não se reduz a uma inferência imediata da existência a partir de um conceito. A versão cartesiana pode até sugerir que o argumento ontológico seja uma inferência directa da existência a partir da ideia de Deus, mas nem por isso Descartes deixa de invocar, pelo menos, um princípio de evidência comum à construção de toda e qualquer prova: o princípio da clareza e distinção 26. Segundo este princípio, não se deve conceder nada que não possa ser pensado com a força persuasiva da clareza e da distinção. Com base nesse princípio, tanto se deve conceder propriedades demonstráveis do triângulo como a existência também demonstrável de Deus. Só que Descartes não especifica, em 25 "

Aliud enim est rem esse intellectu, aliud intelligere rem esse. Nam cum pictor praecogitat quae facturus est, habet quidem in intellectu, sed nondum intelligit esse quod nondum fecit. Cum vero iam pinxit, et habet in intellectu et intelligit esse quod iam fecit." Pr, c.11; I, p. 101,11.9-13. 26 "

Au reste, de quelque preuve et argument que je me serve, it Taut toujours revenir là, qu'il n'y a que les choses que je conçois clairement et distinctement, qui aient la force de me persuader entièrement." M5, 54, p. 476.

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Leonel RIBEIRO DOS SANTOS, Pedro ALVES e Adelino CARDOSO (Coords.), Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL, 1998, pp.81-96. qualquer dos casos análogos entre si, os passos da demonstração, embora reconheça que a clareza e distinção quer das propriedades do triângulo quer da existência de Deus possa não ser imediata, mas adquirida e esforçada27. Descartes empenha-se mais em teorizar a origem e a índole das ideias que toma por irrecusáveis, pelo princípio da clareza e distinção, do que em dilucidar os passos que medeiam entre essas ideias e as consequências que delas assume, como acontece, em especial, no argumento da "Quinta Meditação"28. Assim não acontece, porém, no argumento do Proslogion, no qual são explícitas as razões que medeiam o processo de obtenção das conclusões. No mais célebre opúsculo de Santo Anselmo, as razões que medeiam a construção do argumento são dois princípios determinando os valores relativos das posições e disposições, acima discriminadas, do ser ou da existência: o primeiro princípio estabelece que é melhor ser ou existir em ambas as posições relativas ao intelecto, nele e fora dele, do que ser ou existir apenas no intelecto29; o segundo estipula que é melhor ser ou existir de modo absolutamente necessário do que ser ou existir de modo só relativamente necessário, porque contingente sob algum aspecto 30. Como estas razões não são questionadas nem derivadas de outras, dizemos que são princípios. Como estes princípios são as razões pelas quais o supremo pensável só pode, congruentemente, ser ou existir, não apenas no intelecto mas também na realidade e de forma omnimodamente necessária, dizemos que são os princípios do argumento anselmiano do Proslogion. Como, ademais, os dois princípios ordenam, segundo valores relativos, diversas 27

"Et quoiqu'entre les choses que je conçois de cette sorte [clairement et distinctement], il y en ait à la vérité quelques-unes manifestement connues d'un chacun, et qu'il y en ait d'autres aussi qui ne se découvrent qu'à ceux qui les considèrent de plus près et qui les examinent plus exactement; toutefois, après qu'elles sont une fois découvertes, elles ne sont pas estimées moins certaines les unes que les autres. Comme par exemple, en tout triangle rectangle, encore qu'il ne paraisse pas d'abord si facilement que le carré de la base est égal aux carrés des deux autres côtés, comme il est évident que cette base est opposée au plus grand angle, néanmoins, depuis que cela a été une fois reconnu, on est autant persuadé de la vérité de Fun que de l'autre. Et pour ce qui est de Dieu, certes, si mon esprit n'était prévenu d'aucun préjugé, et que ma pensée ne se trouvât point divertie par la présence continuelle des images des choses sensibles, it n'y aurait aucune chose que je connusse plutôt ni plus facilement que lui." M5, 54-55, pp. 476-477. 28 " Car en effet je reconnais en plusieurs façons que cette idée [celle de Dieu] n'est point quelque chose de feint ou d'inventé, dépendant seulement de ma pensée, mais que c'est l'image dune vraie et immuable nature. Premièrement, à cause que je ne saurais concevoir autre chose que Dieu seul, à 1'essence de laquelle l'existence appartienne avec nécessité. Puis aussi, parce qu'il ne m'est pas possible de concevoir deux ou plusieurs Dieux de même façon. Et, posé qu'il y en ait un maintenant qui existe, je vois clairement qu'il est nécessaire qu'il ait été auparavant de toute éternité, et qu'il soit éternellement à 1'avenir. Et enfin, parce que je connais une infinité d’autres choses en Dieu, desquelles je ne puis rien diminuer ni changer." M5, 54, p. 476. Note-se que estas diversas teses sobre Deus, aqui sustentadas pelo princípio da clareza e da distinção, requerem a mediação de outros princípios e até de outras demonstrações na teologia anselmiana: para além do argumento a favor da existência absolutamente necessária de Deus, em Pr, cc.Il-III, vd. os argumentos a favor da unicidade de Deus, no Mon, cc.I-IV, assim como a afirmação da eternidade de Deus com base na demonstração da intemporalidade da verdade, no Mon, cc.XVIII-XXIV e em De veritate, c.l, XIII (texto da ed. crítica de F.S. Schmitt, reprod. em L'Oeuvre d'Anselme de Cantorbéry 2, Paris, Cerf, 1986, pp. 176, 197-199). 29 " Si enim vel in solo intellectu est [id quo maius cogitari nequit], potest cogitari esse et in re, quod maius est." Pr, c.II; I, p. 101, 11.16-17. 30 " Nam potest cogitari esse aliquid, quod non possit cogitari non esse; quod maius est quam quod non esse cogitari potest." Pr, c.III; I, 102, 11.6-8.

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Leonel RIBEIRO DOS SANTOS, Pedro ALVES e Adelino CARDOSO (Coords.), Descartes, Leibniz e a Modernidade. Actas do Colóquio, Lisboa, Edições Colibri/ Centro e Departamento de Filosofia da FLUL, 1998, pp.81-96. posições e disposições do ser ou da existência pensável, dizemos que são princípios de ordem do ser ou da existência pensável. Finalmente, como tais posições e disposições são comensuráveis na base de uma noção comum não equívoca de ser ou de existir, dizemos que os princípios, que as ordenam, pertencem a uma teoria geral do ser e da existência. Nesta medida, os princípios do argumento anselmiano do Proslogion são princípios ontológicos. Devido à índole dos princípios que o determinam, tem toda a pertinência designar de "ontológico" tal argumento e reconhecer em Santo Anselmo o fundador de facto e de direito da tradição do argumento ontológico. Menos plausível é, a nosso ver, quer a definição kantiana de prova ontológica quer a aplicação dessa definição ao argumento cartesiano: por um lado, a prova ontológica distingue-se, segundo Kant, não por ser parte integrante de uma teoria geral do ser e da existência, mas pelo apriorismo dos seus conceitos 31, no que não parece haver razão suficiente para a classificação de "ontológica"; por outro lado, podemos aplicar a definição kantiana de prova ontológica ao argumento cartesiano, aproximando o apriorismo daquela do inatismo da ideia de Deus segundo Descartes, o que não constitui senão uma razão exterior e imprópria para a classificação de "ontológico". Razões internas e próprias, Descartes não as dá expressamente, mas nada nos impede de supô-las, interpretando o argumento cartesiano à luz do argumento anselmiano. Desse modo, podemos inserir criticamente e com toda a propriedade o argumento cartesiano na tradição do argumento ontológico.

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Cf. KrV B 618, 619.

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