Descartes, Nancy, Ricoeur e O Lado Selvagem de Sean Penn

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Trabalho para o Seminário
ALTERIDADES
Mestrado Ciências da Comunicação - Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias
Docente: Professor Doutora Maria Lucília Marcos
Discente: Paulo Figueiredo

Descartes, Nancy, Ricoeur e O Lado Selvagem de Sean Penn

A frase "based on a true story" é uma das mais usadas no cinema e cujo significado pode ser comparado à noção de fábula que Jean Luc Nancy aborda no seu texto Ego Sum (1979). Recuperando-o, Nancy discute a noção de fácula no âmbito do Discurso do Método de René Descartes, em que este descreve o seu método como sendo uma fábula. Para Descartes a fábula é uma invenção de mundo, criada a partir de uma verdade ou de uma experiência que temos a certeza de ter vivido. Legitimamos essa verdade ou essa experiência através da fábula que a completa. A estrutura e a funcionalidade do pensamento são governadas pelas leis da fábula, que é a moralidade da alma. A invenção de mundo que transmite uma moral.
Também um filme "baseado numa história verídica" é criado a partir de uma verdade ou uma experiência e é legitimada por toda a fábula que a desenvolve. Por exemplo, A Lista de Schindler de Steven Spielberg (1993) é baseado num personagem real e em eventos que figuram em livros de História da Segunda Guerra Mundial, contudo, o realizador legitima essa mesma história recorrendo a fábulas que complementam os pontos de verdade e referência, os "in between».
Assim como no Discurso do Método, um filme "baseado numa história verídica" tem como objectivo a transmissão de uma moral ou, como nos refere Nancy, uma instrução autobiográfica através de uma fábula que transmite uma moral que se legitima pelo facto de ser uma verdade, ou melhor, por ser uma experiência de facto vivida por ele mesmo (Descartes). Documentários como Touching the Void (Kevin MacDonald, 2003) ou Grizzly Man (Werner Herzog, 2005) são exemplos ideais neste sentido. Falam de personagens reais e de um desenlace conhecido e descrevem para o espectador o que poderá ter acontecido, para que se chegasse a determinado fim. Este trajecto, legitimado pela fábula que liga as experiências de facto vividos pelo personagem, tem como propósito final transmitir uma moral, assim como Descartes pretende demonstrar de que forma tentou alcançar a verdade. É porém um caminho que coube apenas ao personagem real. Baseado na sua história e utilizando o "fabular", projecta-se o seu método à posteriori. O seu e não do espectador. Tal como diz Nancy, o caminho que foi escolhido torna-se o seu método e não dos outros. O método é uma instrução que rejeita autoridade e relata uma experiência pessoal como um pathos, não impõe uma verdade, relata apenas uma experiência e um modus operandi, que segundo Descartes, será só dele. O leitor/espectador terá de encontrar o seu.
Em O Lado Selvagem (Sean Penn, 2007), conta-se a história de uma jovem chamado Chris McCandless (Emile Hirsch) que após de graduar na Universidade de Emory (EUA), resolve doar todas as suas poupanças para caridade, queima todos os seus documentos e vai de boleia até ao Alaska onde pretende viver do que a Natureza lhe oferece. O filme é baseado numa história verídica e o final não é todo feliz.
Como se disse, Chris livra-se de todos os seus pertences e dirige-se para um local inóspito onde pretende viver por ele mesmo, recorrendo apenas a tecnologia primitiva e a conhecimentos que entretanto foi adquirindo em livros e na durante a viagem para o Alaska com outros personagens (ex. que plantas são comestíveis, como caçar animais). O seu pathos, a sua procura de verdade, revela-se trágica e o seu método cartesiano uma moral ou lição para quem a vê. O filma, mais uma vez, "baseado em factor verídicos" tem de recorrer à fábula para transmitir essa mesma moral, uma vez que é impossível saber com exactidão que experiências terá enfrentado o eremita real. O filme transporta várias ideias difíceis de a ajuizar. Uma é de que a Natureza está para além da domesticação e da vontade do Homem. Uma segunda é de que o Homem contemporâneo se transformou num refém do comodismo das suas invenções tecnológicas e perdeu de vista grande parte da sua condição ser biológico. Heidegger teria certamente algo a dizer sobre isto, já que para o filósofo alemão, a captura da Natureza por intermédio da tecnologia criaria a ilusão de domesticação da natureza (dasein) enquanto mergulharia o humano numa segunda natureza que colocaria a biologia como um mito de uma civilização totalmente tecnológica. Deixemos isto para outra altura.
É como assumida "franqueza" (Nancy) que Descartes elabora e relata a verdade do seu método. Baseando-se precisamente numa história verídica, experienciada por ele próprio, tornando-se assim um doxa. Cada método é um método (ou será), e não pode ser reproduzido ou imitado, será a vida vivida por cada um. A busca da verdade e a aventura dessa busca. No filme trata-se da procura do "eu", da afirmação de que "eu penso, eu consigo", transparecendo a passagem do Ergo Sum para Ego Sum, tal como Nancy explica em Ego Sum, dizendo que o problema de Descartes é uma questão de vocalidade, ou seja, a partir do momento em que ele abre a boca para dizer "eu". Este é um sujeito ensimesmado, cujo caminho para verdade é individual e apenas partilhável na medida da inclusão da fábula. Só é partilhável na medida da sua ficcionalidade.
Em todo o caso, a vida é uma fábula, desde que exista um ponto de verdade, um núcleo que não pode ser "fabulado" e do onde se parte para a fábula. Para Nancy, esse núcleo é o pensamento (cogito), sendo que a sua alma é a fábula. O pensamento é o ponto de verdade que nos permite fabular. A tábua de salto para a constituição da fábula. Tal como nos filmes baseados em histórias verídicas, o cogito é um personagem real no passado e/ou no presente, é também um ponto de partida que nos vai permitir escrever uma fábula em seu redor. Elaborando um método que nos levará a uma determinada moral, ao mesmo tempo que se desvanece a verdade no meio da fabulação. Segundo Nancy, é esta consciência de ser/estar a fabular que permite atingir um estado de iluminação, completa o ponto de verdade e ilumina o ser. Assim, o fingimento faz do fingidor um Deus e a franqueza autobiográfica legitima essa mesmo fingimento. Contudo, não será a própria constituição de pensamento do "eu", quando concebo a minha existência, uma fábula? Isto é, para conceber a minha existência eu concedo uma fábula de mim mesmo. Nesse caso, seríamos todos deuses de um mundo fingido, pessoal e único? A partir de que momento podemos de facto dizer que algo é "baseado numa história verídica" se a concepção do próprio interveniente fabulado é em si algo fingido? Como compreender os pontos que nos ligam como civilização se a procura da verdade parte do "eu"? Como compreender que outrora em cidades afastadas por mares e desertos do mundo podíamos encontrar características similares, se os sujeitos não tinham qualquer contacto entre si? Como equilibrar estes dois sujeitos, um soberano cuja experiência se torna método e outro que se ficciona e assim se relaciona como o mundo?
Na sua obra Si-mesmo com um outro, Paul Ricoeur fala destes dois sujeitos, um com um S maiúsculo, outro com s minúsculo, o método versus o perspectivismo. Na primeira categoria, o autor coloca o sujeito Cartesiano, universal e não individual que parte de uma dúvida, autor, criador, autónomo, exaltado e hiperbolizado. Excede as dúvidas e pode contar as suas fábulas. Para este sujeito dizer o mundo é dizer-se a si próprio e por isso é totalizante. Exacerba o lugar do sujeito e a sua soberaniedade. É, em suma, um sujeito sem outro, iluminado e metódico.
Na segunda categoria, Ricoeur coloca o sujeito Nietzschiano que se situa na idade hermenêutica da razão. Se o Cartesiano parte da dúvida, o Nietzschiano "duvida mais do que Descartes", pondo-se a si próprio em causa. Este é um sujeito múltiplo e não universal, que se embrenha na ficção ou interpretação/apropriação simplificada do mundo, e perde a noção de si. Analisando o sujeito Cartesiano do ponto de vista de Nietzsche, Ricoeur conclui que se coloca sempre um sujeito através do predicado isso demonstra a necessidade/vontade de apropriação/poder do mundo que é subjectivo. Este é por isso um sujeito não soberano, mas subordinado à linguagem.
Ricoeur vai encontrar uma terceira via do sujeito, que não passe por um cogito ou por um anti-cogito. Propõe uma hermenêutica de si como uma outra via ao sujeito Cartesiano e Nietzschiano. Para tal convoca três intenções:
Substitui o eu (do eu penso logo existo) pelo si. O je pressupõe um sujeito Cartesiano certo e imediato que pela simples enunciação garantia-se gramaticalmente. O si pressupõe mediação da reflexão em vez do imediatismo do eu. O sujeito é mediado por uma reflexão sobre si próprio.
Nessa reflexão surgem o idem (o si-mesmo que é o idêntico, que nos identifica mesmo com o passar do tempo) e o ipse (o que muda com o passar do tempo). Ambas processam-se ao nível da linguagem e prefiguram uma identidade narrativa.
Deste modo Ricoeur diz que só temos acesso a experiências reflexivamente. Fazemos uma síntese do ipse e do idem. O autor apelida essa síntese de alteridade que atravessa a subjectividade.

Esta "hermenêutica do si encontra-se em igual distância da apologia do Cogito e da sua destituição" (Ricoeur 1990:15), e aufere um novo estatuto ao sujeito, o da capacidade de fazer escolhas, não um sujeito ensimesmado mas virado para os outros e para as instituições. O sujeito constitui-se assim em três dimensões: no mesmo, na identidade e ipseidade e no outro que não é exterior, mas parte estruturante. O outro como é resultante da mediação torna-se parte de si-mesmo. O outro institui-se como eu próprio.
Na perspectiva de Ricoeur, olhar para O Lado Selvagem far-se-ia em três dimensões interligadas entre si. Primeiro, na reflexão mediada pelo confronto entre a experiência de Chris e a minha, ou seja, o reconhecimento da experiência de outro para a constituição da minha, o que destitui o eu soberano em favorecimento de uma identidade plural. Em segundo, resultado dessa reflexão emerge uma identidade narrativa constituída pelo eu anterior (que continuo a reconhecer) e pelo novo eu, que surge da relação com a experiência com Chris. Uma identidade permeada pela mutação e temporalidade. Em terceiro e último lugar, o resultado é uma nova alteridade que não resultado do "ego sum" mas de uma reflexividade em que o outro tem lugar na transformação e constituição de uma nova identidade. Um novo sujeito, não vocacionado para o "eu" nem para a sua ficcionalidade/fabulação, mas para um ponto intermédio que não destituindo totalmente o sujeito, também não o coloca como produto de ficção. Confere-lhe uma alteridade que se realiza nos outros.

Obras consultadas
DESCARTES, René, Discurso do Método, Lisboa, Guimarães Editores, 1997, 3ª edição
MARCOS, Maria Lucília, Reconhecimento, do Desejo ao Direito, Lisboa, Colibri, 2008
NANCY, Jean Luc, Ego Sum. Paris, Flammarion, 1979
RICOEUR, Paul, Soi-même comme un autre, Seuil, Paris, 1990



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