DESCONFORMIDADES URBANAS NO CONTEXTO DO DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA: OLHARES, PARÂMETROS E DESAFIOS.

June 16, 2017 | Autor: Shirley Müller | Categoria: Right to the city, SUSTENTABILIDADE URBANA, Urban disagreement
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DESCONFORMIDADES URBANAS NO CONTEXTO DO DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA: OLHARES, PARÂMETROS E DESAFIOS. Myrian Cardoso1 Shirley Müller2 André Montenegro3 José Júlio Lima4

RESUMO O Brasil é um país continental e urbano, pois mais de 80% da sua população mora em cidades. Nestas cidades, ditas “urbanas”, grande parcela dos habitantes vive em condições de extrema pobreza, em áreas rotuladas de irregulares, ilegais, clandestinas e insustentáveis, muito embora tenham se consolidado, no tempo e espaço, sob a tolerância do Estado brasileiro. Neste contexto, o Estatuto da Cidade torna-se um instrumento inovador, ao estabelecer como fundamental o direito à cidade sustentável, o qual reconhece o direito a terra, moradia, bens e serviços urbanos, assim como acesso a cidadania. Para atender este direito, as particularidades regionais precisam ser observadas, e no caso da Amazônia isso significa incluir os aspectos específicos do morar em pequenas e médias cidades ribeirinhas. O desrespeito ao direito à cidade sustentável, em suas quatro vertentes, configura-se em desconformidades urbanas. Reflete-se sobre a abrangência da expressão desconformidades urbanas, buscando classificar as diferentes naturezas e dimensões envolvidas nesta temática, identificando variáveis que evidenciem esta condição, como subsídio a elaboração e divulgação de estudos multidisciplinares sobre a realidade urbana atual de forma ampla e estratificada, contemplando as especificidades regionais. PALAVRAS CHAVE: direito à cidade – sustentabilidade – desconformidades urbanas INTRODUÇÃO Na tentativa de se implantar um modelo de cidade sustentável, avalia-se a cidade real, desigual e contraditória, a partir de parâmetros historicamente excludentes e elitistas, contrários às diretrizes de regularização e urbanização de assentamentos precários, as quais prevêem a flexibilização do regime jurídico urbanístico, reconhecendo os padrões de ocupação consolidados.

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Arquiteta e Urbanista, Professora da Faculdade de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal do Pará (FAESA-UFPA) 2 Arquiteta e Urbanista, Mestranda em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFPA) 3 Engenheiro Civil, Professor da Faculdade de Engenharia Civil (FEC-UFPA) e do Programa de Pós Graduação em Engenharia Civil (PPGEC-UFPA) 4 Arquiteto e Urbanista, Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (FAU-UFPA), coordenador do Laboratório Cidades na Amazônia (LABCAM) e do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFPA)

Apesar do reconhecimento do direito à moradia em assentamentos precários, a realidade urbana ainda tem sido estudada a partir de indicadores baseados nestes referenciais jurídicos e urbanísticos, que ignoram este direito. Estes parâmetros, além de excluírem e ignorarem a pobreza urbana acabam por reforçar a idéia de que a cidade sustentável é uma meta inalcançável, principalmente na Amazônia, sempre às voltas com conflitos urbanos ambientais e fundiários. Os estudos revelam altos percentuais de ilegalidade, subnormalidade, informalidade e clandestinidade, a exemplo dos dados do último Censo do IBGE, divulgados na mídia (Jornal Diário do Pará, 22/12/2011), informando que existem 6.329 favelas no Brasil, onde vivem 12 milhões de pessoas. No Pará a condição de precariedade habitacional chega a 80%, com o município de Marituba liderando o ranking brasileiro com 78% de moradias inadequadas. Acerca desse quadro, Fernandes (2008, p. 130) afirma que no Brasil a ilegalidade deixou de ser exceção para tornar-se regra, sendo “à maneira por excelência de organização da sociedade brasileira hoje”, e sendo assim, “não se pode mais discutir legalidade sem se discutir ilegalidade”. Considerando que a exceção virou a regra, estes parâmetros precisam se adequar, incorporando novos referenciais – eis o desafio. Para Fernandes a dimensão jurídica do processo de urbanização ainda é pouco estudada e não há uma compreensão mais ampla sobre o papel exercido pelo Direito nessas novas práticas sociais, que mesmo contrárias à ordem jurídica, constituem as várias formas de “justiça informal” (grifo do autor) existentes nas áreas urbanas. Referindo-se a pouca compreensão dos juristas a respeito do processo de urbanização diz que, passadas seis décadas de crescimento urbano intensivo, estes se negam a compreender que: “a ordem jurídica existente não mais expressa a ordem urbano social real, enquanto a ordem jurídico-institucional prevalente não reflete a ordem urbano espacial existente.” (FERNANDES, 1998, p. 5)

O descompasso entre a ordem jurídica elitista e as práticas sociais resulta na divisão do espaço urbano em duas partes: “a porção formal (rica e com infra-estrutura) e a ilegal (pobre e distante, caracterizada pela baixa oferta de serviços públicos e ausência de infra-estrutura).” (ROLNIK, 1999 apud GOMIDE, 2003 p.8). Embora estas afirmativas na ótica dos autores sejam corretas, não representa uma regra absoluta, existindo parcelas do território urbano formais, mas não ricas com infraestrutura, assim como ilegais ou clandestinas nas áreas centrais.

Alfonsin (2007) esclarece que esta repartição decorre do conflito entre o Código Civil de 1916, defensor absoluto do direito de propriedade, e a legislação urbanística, tendo como consequência a exclusão social e subcidadania, uma vez que tanto a terra, quanto ocupação promovida pelos moradores estão sempre em desconformidade com os preceitos urbanísticos. Preceitos que segundo Pinto (2000), deve regular a produção do ambiente construído, em prol do bem estar dos cidadãos. Deve ser deve ser compreendido como um conceito amplo de “urbanismo” (grifo do autor) enquanto ciência, e que tenha o território municipal globalmente entendido, extrapolando, os limites da cidade ou urbe, destaca Correia (1998). A concepção de direito à cidade implica também na redefinição do planejamento, deixando de ser uma atividade meramente regulatória estatal, para se tornar um processo político democrático fundamental, que resultará na construção de cidades sustentáveis e habitáveis.

O DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL O fenômeno da urbanização, desde os seus primeiros momentos, gerou reações contrárias, perceptíveis na literatura, como na obra de Thoreau, precursor do movimento ambientalista. As guerras, o avanço da industrialização e novas práticas agrícolas contribuíram para o surgimento desse movimento, que clamava pela necessidade de proteger o planeta das agressões causadas pelo homem, ameaçando sua própria sobrevivência, antes que fosse tarde. Em 1972 o Relatório Meadows publicado pelo Clube de Roma influiu nos debates promovidos pela ONU, no mesmo ano, na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano. A Declaração de Estocolmo estabelecia como meta a defesa e melhoria do meio ambiente, sem abdicar do desenvolvimento (ONU, 1972). Ainda em 1972 a Assembleia Geral da ONU criou o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), e em 1983 estabeleceu a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que em abril de 1987, divulgou o relatório “Nosso Futuro Comum”, o qual afirma que: “O desenvolvimento sustentável deve satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades, significa possibilitar que as pessoas, agora e no futuro,

atinjam um nível satisfatório de desenvolvimento social, econômico e de realização humana e cultural, fazendo, ao mesmo tempo, um uso razoável dos recursos da terra e preservando as espécies e os habitats naturais.” (RELATÓRIO BRUNDTLAND, 1987)

Do conceito extraído do Relatório Brundtland, depreende-se que a sustentabilidade está relacionada ao desenvolvimento econômico com uso racional dos recursos naturais, atendendo as necessidades dos seres humanos, sem comprometimento do futuro das próximas gerações. De modo geral, o termo sustentabilidade alude ao verbo sustentar, o que denota um processo, algo que se distende no tempo. O entendimento de desenvolvimento sustentável parte do ponto de vista das necessidades humanas, baseando-se nos direitos humanos, sociais, econômicos, culturais, bem como no direito coletivo ao meio ambiente. É um conceito que sugere interdisciplinaridade e tem sido desenvolvido, desdobrado em várias dimensões, a exemplo de Sachs (2002), que considera cinco dimensões de sustentabilidade: Social, Econômica, Ecológica ou Ambiental, Espacial e Cultural. Tal compreensão holística esteve presente em uma série de convenções, protocolos e tratados estabelecidos entre diversos países, seja de alcance regional ou internacional. A partir destas discussões a ONU realizou mais duas conferências sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992 e 2012, ambas no Brasil. Acerca desses acordos, Wolff diz que: “O desafio maior consiste na concretização dessas recomendações e regras procedentes das Conferências ocorridas no âmbito da Organização das Nações Unidas e suas instituições especializadas, incorporando-as não só às legislações nacionais sob a forma de princípios norteadores e normas jurídicas, mas sobretudo, aos hábitos e práticas sociais na forma de ações e decisões, de atitudes e comportamentos.” (WOLFF, 2003)

No Brasil, a Constituição de 1988, em seus artigos 182 e 183, e o Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257/2001, incorporam estas diretrizes e estabelecem o direito à cidades sustentáveis para as presentes e futuras gerações, o qual deve ser entendido como: “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos ao trabalho e ao lazer, para as futuras e presentes gerações.” (BRASIL, 2001, artigo 2ª)

A garantia destes direitos pressupõe o cumprimento da função social da propriedade e da cidade, que possibilitam, paulatinamente, o alcance de níveis elevados de sustentabilidade urbana e cidadania, de forma plena, justa e eficaz. A efetivação da função social exige a construção de um novo modelo de desenvolvimento, capaz de reduzir desigualdades, além da democratização da gestão nas três esferas de governo, conforme destaca Grazia (2008). O novo modelo de desenvolvimento, diferente do difundido pelas organizações multilaterais que se pautam na competitividade, deve ser baseado na cooperação Estado e sociedade, pois visa à construção de cidades cívicas, com adequado sistema de transporte público, infraestrutura, educação, saúde, habitação, saneamento, segurança e emprego. (ASSIS, 2001) No entanto, na realidade brasileira, a insustentabilidade urbana expandese descontroladamente, concentrando riqueza e, contraditoriamente, bolsões de pobreza, caminhando em direção oposta às referidas diretrizes constantes dos referenciais políticos e jurídicos citados. Maricato assim descreve este cenário: “A segregação urbana ou ambiental é uma das faces mais importantes da desigualdade social e parte promotora da mesma. À dificuldade de acesso aos serviços e infra-estrutura urbanos (transporte precário, saneamento deficiente, drenagem inexistente, dificuldade de abastecimento, difícil acesso aos serviços de saúde, educação e creches, maior exposição à ocorrência de enchentes e desmoronamentos etc.) somam-se menos oportunidades de emprego (particularmente do emprego formal), menos oportunidades de profissionalização, maior exposição à violência (marginal ou policial), discriminação racial, discriminação contra mulheres e crianças, difícil acesso à justiça oficial, difícil acesso ao lazer. A lista é interminável.” (MARICATO 2003, p. 152)

Na presença desse processo de urbanização da pobreza, tendo em vista a garantia dada pelo Estatuto das Cidades, Para alcançar o desenvolvimento urbano sustentável pede uma ação multidisciplinar, a fim de dar conta da complexidade da questão. E a ordem jurídico-urbanística elitista contribui enormemente para intensificação deste quadro. Nas palavras de Dallari, este processo, por vezes, não incorpora o sentido da função social e ratifica que: “o urbanismo que ignora a pobreza é ignorado por ela. (...) O resultado é a anemia do direito urbanístico, enredado na contradição entre cidade legal e cidade ilegal.” (DALLARI, 2002, p. 60)

Perante este cenário, o que se percebe é o real desrespeito aos preceitos e direitos constitucionais aqui expostos, a consolidação do processo desordenado de

produção do espaço urbano, perpetuando o acentuado estágio de irregularidade ou ilegalidade no morar em cidades brasileiras. A análise feita neste artigo entende que o espaço é ao mesmo tempo instrumento para exercício de poder e cidadania. É causa e conseqüência das relações sociais de produção, consumo, troca e acumulação de capital, entre o poder público e sociedade, que agem conforme seus interesses e necessidades de pertencer e interagir, individual ou coletivamente, no tempo ou espaço. O direito à cidade, como direito fundamental, deve garantir a qualidade de vida urbana, pautado três princípios: ser economicamente viável, ambientalmente segura, socialmente justa para as presentes e futuras gerações, assegurando este direito sob quatro vertentes: o acesso à terra, à moradia, à bens e serviços urbanos e à cidadania. O desrespeito a este pressuposto, em uma ou mais destes princípios e vertentes, pode ser entendido como desconformidade urbana.

DESCONFORMIDADES URBANAS: NOVO CONTEXTO, NOVOS OLHARES, NOVOS REFERENCIAIS O termo desconformidade refere-se aquilo que é contrário, disforme, oposto, ou seja, o que não está de acordo com determinado padrão, regra ou norma – é utilizado, geralmente em urbanismo, para designar o que não esta em conformidade ou concordância com as leis urbanísticas. Silva (2010) considera que o assentamento pode ser considerado conforme quando atende as restrições referentes ao dimensionamento, recuos, ocupações, aproveitamentos e gabaritos estabelecidos para o lote.

O autor exemplifica que as

desconformidades podem ser verificadas quando uma edificação contraria as restrições urbanísticas de parcelamento, uso e ocupação ao se implantar num dado espaço, caracterizando com isto uma irregularidade. Mas, se esta mesma construção não estiver licenciada reputa-se como clandestina ou se foi efetuada com base em licença ilegal, tornase uma edificação ilegal. Na visão puramente edilícia de desconformidade, observam-se três condições distintas: a irregularidade, a ilegalidade e a clandestinidade, que segundo Rolnik & Saule Jr (2002), representam mais de metade de nossas cidades e, contrariam de

alguma maneira os padrões legais de urbanização, onde ocupações estão sempre desconformes com os preceitos urbanísticos brasileiros. Cardin (2010) explica que a irregularidade não se confunde com a ilegalidade. As irregularidades são sanáveis administrativamente, quando não acarretem lesão ao patrimônio público, nem prejuízos a terceiros, desde que estes estejam de boa-fé. A ilegalidade, por outro lado, é a transgressão da lei ou norma, podendo ser conduzida a uma improbidade, caso haja lesão ao patrimônio público e locupletamento da autoridade competente. E a clandestinidade é a burla ao procedimento administrativos decorrente do poder de polícia. Entende-se assim que, toda ilegalidade ou clandestinidade pode constituir-se em uma irregularidade, mas, nem toda irregularidade ou clandestinidade é uma ilegalidade, sendo, portanto, sanáveis administrativamente, tanto pelo direito privado, quanto público. Porém, com base em Silva (2003), ressalta-se que não se deve confundir legalidade com legitimidade, visto que a primeira refere-se ao exercício da lei e a segunda a qualidade do poder, conforme esclarece Bobbio: “Na linguagem política, entende-se por legalidade um atributo e um requisito do poder, daí dizer que um poder legal ou age legalmente ou tem o timbre da legalidade quando exercido no âmbito ou de conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos aceitas. Embora nem sempre se faça distinção, no uso comum e muitas vezes até no uso técnico, entre legalidade e legitimidade, costuma-se falar em legalidade quando se trata do exercício do poder e em legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: o poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente; o poder legal é um poder que esta sendo exercido de conformidade com as leis. O contrário de um poder legítimo é um poder de fato; o contrário de um poder legal é um poder arbitrário”. (BOBBIO, 2007, p. 674)

Silva (2003) destaca a importância desta distinção, pois daí pode-se fortalecer a ideia de que a lei jamais deve ser contestada, não obstante sua injustiça, inconstitucionalidade e antijuricidade possíveis, uma vez que, pode-se discutir a legalidade da própria lei. Segundo o autor, não se pode reduzir a legitimidade à legalidade, esta é pressuposto daquela, logo quando houver dúvidas quanto à legitimidade da própria lei, esta deve afastar-se. A legitimidade pressupõe consenso social e ético para sociedade, somente nestes termos, a lei poderá ser considerada legítima. A partir destes autores entende-se que a lei, elaborada pelos homens, deve existir para preservar o consenso social, e não para destruí-los, nem o homem, nem o consenso. O novo contexto urbano exige que as desconformidades urbanísticas sejam analisadas para além das questões puramente ligadas ao uso e ocupação do solo. É

necessário considerar outros aspectos da moradia, perpassando pelos preceitos de dignidade humana, referenciados pelo texto constitucional e do direito à cidade sustentável. Isto implica entender a moradia não como abrigo em si, mas com todos os elementos que lhe atribuem qualidade e interação com seu entorno, como acesso a urbanização, infraestrutura, saneamento, serviços e, acima de tudo cidadania. A

partir

do

Estatuto

da

Cidade,

reflete-se

sobre

o

termo

desconformidade, como a inobservância às quatro vertentes do direito à cidade, seja por irregularidade, ilegalidade ou clandestinidade no processo de produção do espaço urbano. Sejam desconformidades produzidas não só pela sociedade, mas principalmente pela ação ou inação do aparelho estatal. O conceito de desconformidade urbana constitui-se da visão global e multifacetada, que envolve distintas naturezas relacionadas com a negação do: a) Direito à terra urbana – desconformidade de natureza fundiária relacionada com insegurança jurídico da posse, pela ausência regularidade dominial, administrativa e cartorária; b) Direito à moradia digna – desconformidade de natureza habitacional pela incompatibilidade entre os parâmetros formais e os padrões urbanísticos, construtivos e ambientais consolidados; c) Direito à bens e serviços satisfatórios – desconformidades de natureza infraestrutural visto a inadequação/improvisação na estrutura viária, instalações domiciliares e oferta de serviços públicos; d) Direito ao trabalho e renda adequada – desconformidade na natureza cidadania pela ausência de registro civil, nível econômico e vulnerabilidade social que dificultam o acesso ao mercado formal de atividades econômicas.

Os diferentes tipos de desconformidades podem ser observados nos elementos morfológicos que compõem a paisagem urbana contemporânea: o assentamento, o lote, a construção, o morador, a comunidade e a própria legislação.

A literatura específica, pós Estatuto da Cidade, é unânime em afirmar a importância do caráter multi, pluri e, por vezes, interdisciplinar que a questão alberga. Staurenghi afirma que: “corrigir a irregularidade fundiária exige a correção, não só de aspectos dominiais, relativos ao título de domínio, mas a todos aqueles que qualificam a propriedade, especialmente os sociais, urbanísticos e ambientais.” (STAURENGHI, 2003, p. 6)

Tal entendimento é ratificado por Saule Júnior (2004) ao destacar que esta interface deve ser tratada, como tema indissociável à problemática moradia, enquanto direito social, o que segundo Frota (s/d) envolve dimensões como falta de infraestrutura urbana, dificuldade no acesso a serviços, má qualidade ambiental dos assentamentos, desconformidade urbanística das edificações dentre outras condições que requer, segundo Dias (2005), uma visão holística da função social da cidade e da propriedade, enquanto direito humano e, portanto, fundamental. “Direitos humanos, imersos nas esferas dos direitos civis, políticos, econômicos, culturais, sociais se relacionam e interagem, permitindo o entendimento de que sua indivisibilidade é o reflexo da necessidade de consecução total e gradativa de todos os direitos humanos, em que uns e outros se cumprem, fortalecem e reforçam a proteção dos direitos humanos. Faz-se necessária uma perspectiva global, uma visão integral, para análise e entendimento dos direitos humanos. Quando dispostos em textos constitucionais, recebem os direitos humanos denominação de “direitos fundamentais”, conjunto de valores expressos em normas que atribuem diferentes posições jurídicas ao cidadão frente ao Estado, e que necessitam de gradual e paulatina implementação”. (DIAS, 2005, p. 23 e 24)

Diante do processo de urbanização da pobreza, tendo em vista a garantia dada pelo Estatuto das Cidades, o alcance do desenvolvimento urbano sustentável pede uma análise multidisciplinar das distintas nuances das desconformidades urbanas, a fim de dar conta desta complexidade. Nesse sentido, Fernandes (2006) reconhece que ciências como sociologia, antropologia, geografia, arquitetura, urbanismo, história e economia urbana, também, têm muito a contribuir na interpretação e entendimento do processo de produção da ilegalidade. A reversão do quadro atual de desconformidades urbanas exige, então, a compreensão ampla e precisa dos diversos fatores que provocam esta condição. Neste sentido, Fernandes (2008) afirma que o caminho para transformação da realidade urbana atual, por excelência ilegal, exige estratégias jurídico-políticas inovadoras que conciliem, tanto o reconhecimento do direito de moradia, quanto à permanência da comunidade nas

áreas onde tem vivido. Segundo este autor, esta mudança requerer a identificação e a compreensão dos fatores que tem provocado a condição de ilegalidade O desafio que se impõe é análise global e abrangente sobre as desconformidades urbanas, na perspectiva de que o direito à cidade cumpre-se quando atendidas as exigências fundamentais de qualidade de vida e moradia digna, nos termos do Estatuto da Cidade, que estabelece a função social da cidade e da propriedade, enquanto “propriedade função”, como lócus de moradia e acesso a bens e serviços, infraestrutura e, acima de tudo exercício de cidadania. O reconhecimento deste direito, passa pela releitura da realidade urbana atual e compreensão do processo de produção do espaço, considerando as especificidades locais e regionais nos distintos territórios sociais, culturais, econômicos, étnicos etc, desta imensa “pátria amada Brasil”. O olhar multidisciplinar e integrado sob as cidades brasileiras poderá servir como subsídio a redefinição dos parâmetros de mensuração e reflexão das condições de vida nas cidades.

ENTRAVES À GARANTIA DO DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL NA AMAZÔNIA Nas cidades amazônicas, a realidade é imensamente distinta do restante do país, seja nas condições de uso e ocupação do solo, padrão habitacional, condições socioeconômicas e culturais, biodiversidade, clima, solo etc, representando um grande desafio à implementação dos novos instrumentos e referenciais jurídicos e urbanísticos no contexto do direito à cidade. Na porção urbana dos municípios amazônicos, os efeitos nocivos da urbanização da pobreza tornam-se mais evidentes quando consideradas as extensas áreas territoriais entrecortadas por rios e igarapés.

Ambientes ricos e complexos em

biodiversidade, grande incidência de unidades de conservação, reservas indígenas ou aglomerações humanas, com soluções habitacionais precárias e carentes de tecnologias alternativas ao meio ambiente em que se encontram, em geral, frágil e protegido por legislação ambiental. As imagens demonstradas nas figuras 1, 2, 3 e 4 retratam as

condições de moradias em distintos territórios da região Amazônica, onde se observa a presença marcante da relação moradia e recursos hídricos.

Fig. 1: Laranjal do Jari – Amapá. Fonte: www.educamap.com.br

Fig. 3: Bairro da Terra Firme – Belém/Pará. Fonte: Acervo UFPA, 2011

Fig. 2: B. São Raimundo – Manaus/Amazonas. Fonte: Clóvis Miranda/ acritica.uol.com.br

Fig. 4: Favela Fé em Deus – São Luís /Maranhão. Fonte: Jorge Araújo/Folhapress

Diante do cenário habitacional apresentado é possível observar que, além dos recorrentes problemas ligados às naturezas fundiária, habitacional e infraestrutural, há que se considerar as demais debilidades ambiental e social existentes, tanto no ambiente natural e construído, quanto nas condições de vida e subcidadania, especificidades que não são levadas em conta nos indicadores que subsidiam a leitura da realidade urbana a nível nacional e regional, como no caso dos estudos sobre subnormalidade e inadequação de moradia. As consequências disto são os elevados índices que apontam a incidência de favelas e assentamentos precários na Região Amazônica, e que têm sido largamente

utilizados pela ciência e amplamente divulgados e pela mídia. Estes indicadores são restritos a aspectos físicos e jurídicos que, em geral, ignoram aspectos sociais, culturais e territoriais consolidados no tempo e espaço da Região Amazônica. A exemplo desta constatação o quadro 2 estratifica e compara o componente utilizados nos indicadores de subnormalidade e inadequação de moradia. Quadro 2 – Comparação entre indicadores IBGE/ Fundação João Pinheiro ASSENTAMENTOS SUBNORMAIS Posse ilegal (obtenção do título de propriedade do terreno há 10 anos ou menos) Precariedade de serviços públicos essenciais.

INADEQUAÇÃO DE MORADIA Posse ilegal (obtenção do título de propriedade do terreno há 10 anos ou menos) Carência de serviço de infraestrutura (energia elétrica, abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo)

Urbanização fora dos padrões vigentes (vias de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos)

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Inexistência de unidade sanitária domiciliar exclusiva Densidade excessiva de morador por domicílios (adequado: 3 pessoas por dormitório). Fonte: Elaborado com base em informações do IBGE (2002) e Fundação João Pinheiro (AZEVEDO, ARAÚJO, 2008) -

Ao observar o quadro acima, nota-se certo distanciamento do contexto urbano brasileiro, principalmente, da Amazônia, quanto ao que deve ser considerado normal ou adequado. A partir do Estatuto da Cidade, entende-se que o direito à cidade requer a garantia do direito a terra que, não necessariamente passa pela existência ou não de título de propriedade. Do mesmo modo não se pode considerar relevante somente a falta de infraestrutura, sem observar se as soluções adotadas, em virtude desta ausência degradam ou não o solo ou se a densidade excessiva na habitação é decorrente de tradições e costumes familiares e não de problema econômico, ou ainda, se a existência de banheiro externo não é cultural? Neste caso, a reflexão caminha no sentido de que o problema não é a localização em si, mas a solução sanitária adotada. Para Ferreira (2008), as informações relativas a setores subnormais são usualmente as mais utilizadas e efetivamente as mais adequadas, embora reconheça que existem uma série de limitações neste indicador, como por exemplo, a ausência de dados relacionados ao padrão de ocupação do território. Em geral são delimitados previamente

às pesquisas, sendo parte de um trabalho de campo com o objetivo de delimitar áreas de coleta mais difícil permitindo a remuneração mais alta de recenseadores. Ao buscar o ideal de cidade sustentável deve-se levar em conta que no Brasil contemporâneo o padrão é a posse, a carência de serviços e de infraestrutura, a urbanização marcada pelo traçado orgânico e estreitamento de vias, dentre outras condições que se tornaram a regra nas cidades. Na Amazônia existem inúmeros assentamentos urbanos ás margens de rodovias, várzeas, rios, cursos d’água intermitentes, territórios sujeitos a efeitos geológicos das cheias sobre terras baixas. Esse ambiente representa mais do que um local de moradia. Para muitos representa o meio de sobrevivência, pois é dos recursos naturais que tiram seu sustento e os rios servem de suporte ao deslocamento. Pensar a cidade ideal, na busca pela sustentabilidade, desprezando as práticas sociais e culturais estabelecidas, é economicamente inviável, socialmente injusto e ecologicamente desnecessário. Urge que se leve em conta outros marcos legais, para além dos Códigos de Obras, Edificações e Posturas, da Lei de Parcelamento e Legislação Ambiental.

Na maioria dos municípios estes instrumentos quando existem são

desatualizados e inadequados à realidade. A mudança deste paradigma começa inegavelmente pela definição de novos parâmetros para análise, que possam auxiliar estudos e pesquisas que respondam os seguintes questionamentos:



Como promover a regularização fundiária e urbanização de áreas ambientalmente frágeis, ocupadas por população de baixa renda?



Como criar um modelo urbanístico includente, capaz de incorporar as condições da vida real que contrariam os padrões formais, característicos de um país efetivamente urbanizado, as voltas com problemas ligados ao déficit ou adensamento habitacional?



Como reconhecer os padrões de ocupação dos assentamentos precários, em especial na Amazônia, se as condições de vida nestas áreas são pouco conhecidas e não mensuradas de forma estratificada?

CONCLUSÃO Apesar do reconhecimento do direito à moradia em assentamentos precários, a realidade urbana ainda tem sido estudada a partir de indicadores baseados em referenciais jurídicos e urbanísticos anteriores ao Estatuto da Cidade. Estes parâmetros, além de excluírem e ignorarem a pobreza urbana acabam por reforçar a idéia de que a cidade sustentável é uma meta inatingível. O desafio para o alcance do direito a cidade sustentável passa pela desconstrução dos parâmetros tradicionais de leitura da realidade urbana brasileira de forma a permitir a construção de novos referenciais sob um olhar multidisciplinar, incorporando as diferentes nuances das desconformidades urbanas, considerando os distintos recortes regionais. Busca-se a validação de um sistema de dados que sejam ao mesmo tempo confiáveis, padronizados e viáveis financeira e operacionalmente, que retratem fidedignamente a cidade real, para subsidiar as ações, programas, projetos e mesmo aos ajustes necessários na legislação específica para a construção da cidade sustentável. As desconformidades urbanas apresentam-se como um ferramental que pode e deve ser estudado de forma sistêmica ou holística, para que suas distintas dimensões sejam compreendidas e trabalhadas na tentativa de minimizá-las. Sem perder de vista que, a lei elaborada pelos homens deve existir para preservar o consenso social e não para destruílos, nem o homem, nem o consenso.

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