Desdramatizando a crise da crítica

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O GLOBO



PROSA & VERSO



Sábado, 11 de fevereiro de 2012

PÁGINA 3 - Edição: 11/02/2012 - Impresso: 10/02/2012 — 00: 02 h

AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

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Desdramatizando a crise da crítica

Do livro impresso à internet, o meio literário sempre precisou se reinventar diante de transformações tecnológicas Cavalcante

João Cezar de Castro Rocha

E

duardo Marciano, protagonista de “Encontro marcado”, incapaz de começar o livro para o qual se preparou desde a infância, escreveu inúmeros artigos para um suplemento literário sobre “a arte do romance”. Contudo, uma circunstância nova se impôs: “Já não publicava mais nada — o jornal cortara seus artigos semanais por falta de espaço”. Lançada em 1956, a obra-prima de Fernando Sabino antecipa boa parte dos diagnósticos atuais sobre a crítica literária: o espaço reduzido seria uma metonímia da pouca importância da própria atividade. Porém, já em 1956, a observação de Eduardo Marciano não era exatamente original. Por exemplo, em livro hoje totalmente esquecido, mas que realiza um exame precoce e mordaz da Semana de 1922, um grupo de amigos decide fundar uma revista. Nas palavras do poeta Vitoriano Ruas, um dos personagens de “O clube dos grafômanos” (1927), livro de estreia de Eduardo Frieiro: “Estou farto de escrever em jornais, disse ele. Publicam-se os versos e os artigos em mau lugar e com tremendos erros de revisão”. Opinião similar foi repetida por Afrânio Coutinho. Em artigo escrito em 1943, ele atacou a crítica exercida no jornal: “É a própria instituição do rodapé que é condenável por todos os aspectos como um dos responsáveis pelo atraso, ou, por que não dizer, pela inexistência da crítica literária entre nós”. Uma lista de lamentos semelhantes poderia prosseguir nas ruas do sono — e, como no poema de Drummond, seria uma luta vã, pois não se trata de multiplicar referências, porém de redimensionar a propalada crise da crítica literária e da literatura contemporânea. O simples reconhecimento de que um “estado de crise” como o atual foi identificado diversas vezes no passado deveria favorecer uma reflexão mais cuidadosa, isto é, menos apocalíptica. Tudo se passa como se tivéssemos esquecido a advertência de Tirésias ao enraivecido Creonte (cito a tradução de Lawrence Flores Pereira de “Antígona”, de Sófocles): “(...) É um feito, então, matar um morto?” A proliferação recente de obituários, tanto da crítica quanto da literatura contemporânea, transforma-se assim num involuntário epitáfio. Críticos e teóricos convertidos em apressados coveiros, nem sempre de bom humor, revelam que seus critérios encontram-se ultrapassados. A reinvenção da crítica exige uma nova perspectiva, capaz de descobrir a potência da circunstância que nos cabe transformar, em lugar de insistir numa melancolia feita sob medida para o papel anacrônico do intelectual palmatória do mundo. É hora de abandonar essa máscara. Perda de centralidade da literatura pode ser positiva Principiemos pela “desdramatização” da crise. De um lado, recorde-se o estudo de Reinhart Koselleck: “Crítica e crise”. Como se sabe, a etimologia das duas vozes é aparentada, assim como a da palavra análise. Crítica, crise e análise são palavras da mesma família. Vale dizer, toda análise que não produza crise não é suficientemente crítica. Derivo dessa constatação a primeira hipótese: o estado natural da crítica é o estado crítico. O traço positivo dessa condição reside na necessidade de reavaliar continuamente os próprios pressupostos, o que obriga o crítico a renovar seu repertório de leitura. Trata-se de ler, com olhos livres, sobretudo a literatura de hoje.

Entenda-se a sentença. A De outro lado, os repetidos diagnósticos sobre a crise da edição definitiva do romance é crítica e as transformações da li- de 1832. A ação narrativa, poteratura têm um ponto em co- rém, tem lugar em 1482, ou semum. Considera-se que a intro- ja, poucas décadas após a indução de uma nova tecnologia venção da tecnologia dos tide informação, que alterou radi- pos móveis. O narrador, aliás, esclarece a calmente a paisagem da produção e da circulação do conheci- razão da desconfiança do armento, desempenha um papel quidiácono: “Era a cátedra e o determinante na perda da cen- manuscrito, a palavra falada e tralidade da literatura no mun- a palavra escrita que se alarmavam com a do atual. Em palavra imconsequência, pressa”. Ena literatura e a Entendido como tendido como crítica literária enfrentam um poderosa tecnologia uma poderosa tecnologia de desafio de proporções até de informação, o livro informação, o então desco- impresso produziu um livro impresso produziu um nhecidas. A observa- impacto maior do que impacto ainda maior do que ção é correta, o do universo digital o do universo mas o diagdigital hoje nóstico é preem dia! cipitado. O livro, porém, era muito caro Venho, pois, à segunda hipótese: o livro provocou uma e, assim, seu alcance permaneceu limitado. Foi somente a parcrise similar. Um personagem de “Notre- tir do século XVIII que se tornou Dame de Paris”, de Victor Hugo, um objeto cotidiano. No discurso inaugural da resumiu numa frase célebre a revolução provocada pela Galáxia Universidade de Nápoles, prode Gutenberg. Dom Claude, o ar- ferido em 1708, o filósofo italiaquidiácono, comparou o livro no Giambattista Vico hesitava impresso com a Catedral, con- entre os benefícios e os possícluindo com pessimismo: “— In- veis riscos trazidos pela nova felizmente! — disse —, isto ma- tecnologia: “Sem dúvida, a intará aquilo”. Ou seja, o livro des- venção dos tipos impressos retruirá o edifício; a imprensa su- presentou uma valiosa ajuda para nossos estudos. Hoje (...) perará a arquitetura.

os livros estão disponíveis em prensa, todas as universidades grande abundância e varieda- sofreram uma transformação. de. (...) Receio, contudo, que a Talvez as universidades tenham abundância e o baixo preço ter- mesmo sido superadas! (...) A minem por fazer com que fique- verdadeira Universidade de nossos dias é uma Biblioteca”. mos mais negligentes”. Foi necessário desenvolver Por quê? Em 1807, o filósofo alemão um modelo de universidade caJohann Gottlieb Fichte respon- paz de fazer frente à difusão do deu à pergunta, esclarecendo o livro. A solução foi encontrada vínculo entre difusão de textos em 1810 pelo filósofo alemão impressos e negligência do cor- Wilhelm von Humboldt. Ele criou a assopo discente. ciação indisSua resposta pensável endescreve boa É preciso promover tre ensino e parte dos estudantes atuais mudanças que tornem pesquisa que fundou a uni(apenas subsprodutivas [para o versidade motitua-se o livro derna. Ora, se pelo computameio literário] as além do ensidor): “(...) os alunos pregui- possibilidades criadas no também se fomenta a pesçosos prevalecerão, pois, pela tecnologia digital quisa, produzse conhecitanto tendem mento novo. a descuidar da aprendizagem oral, quanto da Ou seja, que ainda não se enformação letrada. De um lado, contra em livro algum! Venho, agora, à terceira hifaltam às aulas, já que o conteúdo das mesmas se encontra pótese: o projeto humboldtianos livros. De outro, negligen- no foi uma forma de adaptar o ciam a leitura porque podem sistema universitário à novidade representada pelo livro aprender de oitiva”. É preciso questionar a asso- impresso. Sem dúvida, o leitor comciação naturalizada entre biblioteca e universidade, entre tecno- preendeu a analogia: de igual logia dos tipos móveis e literatu- modo, é preciso promover mura. Em texto de 1840, o historia- danças que tornem produtivas dor escocês Thomas Carlyle as possibilidades criadas pela apresentou o corolário dessa si- tecnologia digital. Vale dizer, tuação: “Com a invenção da Im- desdramatizar a crise não sig-

nifica deixar de reconhecer seu caráter agônico, mas permite compreender sua dimensão real. O exercício comparativo que propus ajuda a reavaliar a perda de centralidade da literatura e da crítica literária na transmissão de valores. Tal perda “libertou” a literatura do pálido papel de arquivo da nação — empenho que dominou a disciplina História da Literatura. De igual modo, também a “libertou” da obrigação de observar o eterno retorno da literariedade — fantasma que assombra a disciplina Teoria da Literatura. Somente poderemos reinventar a crítica literária na era digital ao reconhecer que essas modalidades de crítica pertencem ao passado, respectivamente, aos séculos XIX e XX. Novo cenário exige diálogo com o grande público Venho à última hipótese: o caráter marginal da literatura assegura a criadores, críticos e teóricos uma liberdade inédita, cujo aproveitamento exige a recusa de posições nostálgicas ou ressentidas. Tal liberdade permite valorizar um público crescente e que comparece às inúmeras feiras literárias que ocorrem em todo o país. Trata-se de fenômeno inédito e devemos abandonar todo preconceito, levando a sério a necessidade de dialogar com esse público. Deixemos de lado elitismos que de tão previsíveis chegam a ser caricatos. Por isso, nenhuma afirmação, laudatória ou severa, sobre a poesia brasileira será levada a sério se o crítico não apresentar análises concretas de poemas. Consideração alguma acerca da prosa atual terá validade se o crítico não esclarecer seus critérios, oferecendo estudos de caso que apoiem sua interpretação. Dada a pluralidade da produção atual, é impossível decretar a morte da crítica ou o impasse definitivo da literatura, simplesmente porque há muito tempo não mais existe uma única forma de poesia, prosa ou crítica — aspecto que desautoriza juízos totalizadores. A tarefa atual da crítica é realizar uma arqueologia das formas do presente, a fim de descrever os movimentos novos esboçados na prosa, na poesia, no ensaio e na interlocução crescente com os meios audiovisuais e digitais. O único modo de fazê-lo é dedicarse à leitura atenta da produção contemporânea, em lugar de proferir sentenças magistrais, com base na hermenêutica mediúnica dos profissionais do obituário alheio. Trata-se de evitar a vocação fóssil do crítico que recorre ao truque fácil de confundir o agudo com o obscuro. Como vimos, Eduardo Marciano apenas tinha olhos para o espaço reduzido de que dispunha para seus artigos. Eis o risco que correm os que vivem entretidos com o próprio umbigo: em 1956, ano de publicação de “Encontro marcado”, Guimarães Rosa publicou “Grande sertão: Veredas” e “Corpo de baile”. Além disso, foram lançados dois suplementos literários fundamentais: o “Suplemento Dominical”, do “Jornal do Brasil”, e o “Suplemento Literário”, do “Estado de S. Paulo”. Porém, se os atuais profissionais do obituário alheio fossem contemporâneos de Eduardo Marciano, provavelmente veriam no ano de 1956 a prova irrefutável da decadência da literatura e da crítica literária. Pelo contrário, este artigo pretende manter nossos olhos bem abertos para as possibilidades da circunstância atual. ■ JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA é professor de literatura da Uerj e autor de “Crítica literária: Em busca do tempo perdido” e “Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo”, entre outros livros

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