Desejos periféricos: Sensibilidade queer e cosmopolitismo modernista em Mário de Sá-Carneiro

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Uma versão revista, em inglês, deste capítulo será publicada em: Beleza, Fernando e Simon Park. Mário de Sá-Carneiro: Modernity, Identity, Aesthetics. Oxford: Peter Lang (under contract).

Desejos periféricos: Sensibilidade queer e cosmopolitismo modernista em Mário de SáCarneiro.

Fernando Beleza Universidade de Massachusetts Dartmouth

Afinal estou em crer que em plena altura, pelo menos quanto a sentimento artístico, há em Portugal só nós dois. —Fernando Pessoa, numa carta de Maio de 1913 a Mário de Sá-Carneiro. —O que quer Orpheu? —Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço. A nossa época é aquela em que todos os países, mais realmente do que nunca, e pela primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a Ásia, a America, a África e a Oceania são a Europa, e existem todos na Europa. Basta qualquer cais europeu—mesmo aquele cais de Âlcantara—para ter ali toda a terra em comprimido. E se chamo a isto europeu, e não americano, por exemplo, é que é a Europa, e não a América, a fons et origo deste tipo civilizacional, a religião civilizacional que dá o tipo e a direção a todo o mundo. —Fernando Pessoa. Entre a multidão cosmopolita, criava-me alguém sem pátria, sem amarras, sem raízes em todo o mundo. —Ah! que venturoso eu fora se não tivesse nascido em parte nenhuma e entretanto existisse. —Mário de Sá-Carneiro, A confissão de Lúcio.

Se houve uma amizade que contribuiu para definir o modernismo português foi a de Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Desde bastante cedo na década de 10 do século XX, ambos mantiveram uma relação de amizade e um diálogo artístico notável. Esta amizade bem como a sua dimensão artística são bastante claras na correspondência trocada entre ambos, quer durante as longas temporadas que Sá-Carneiro passou no

 

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estrangeiro, principalmente em Paris, quer mesmo durante as suas estadias em Lisboa, em que ambos cooperaram na preparação de publicações, individuais e colectivas, e na sua tentativa conjunta de agitar as ideias na cidade de Lisboa. Foi exactamente desta relação de amizade que, em larga medida, emergiu a revista Orpheu, que, por sua vez, contribuiu decisivamente para a introdução pública do modernismo em Portugal. Embora esta relação pessoal e artística não seja uma novidade para quase ninguém, a amizade de Sá-Carneiro e de Pessoa—e a forma como ambos dialogaram nas suas obras e na preparação de projectos—está ainda muito por analisar criticamente, tanto em relação aos anos de convivência de ambos como à presença destes na memória e obra de Pessoa depois da morte extemporânea de Sá-Carneiro em Abril de 1916. Enquanto o capítulo de Mariana Gray de Castro, neste volume, aborda a permanência de SáCarneiro na obra de Pessoa principalmente depois da morte daquele, este capítulo pretende começar por situar esta amizade no centro do modernismo português e das suas políticas culturais. Em particular, as próximas páginas têm como objectivo apontar para um conjunto de aspectos definidores da obra de Sá-Carneiro que têm antecedentes importantes nestes anos de vivência artística e amizade dos dois modernistas portugueses e naquela que foi a sua tentativa conjunta de constituir uma produção artística cosmopolita—ou melhor, uma “arte cosmopolita no tempo e no espaço,” nas palavras de Pessoa—a partir da periferia da Europa, no início do século XX, materializada não só mas também na publicação dos dois únicos números da revista (cosmopolita) Orpheu, em Março e Junho de 1915.1 Como se torna evidente na correspondência de Sá-Carneiro com Pessoa, bem como em diversos textos de crítica cultural e literária deste último, o estabelecimento de uma arte cosmopolita foi um projecto largamente partilhado e discutido por ambos e, também, um elemento central na génese da criação da revista Orpheu—pensada,

 

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publicada e comentada criticamente pelos dois autores. Embora a crítica tenha estado desde cedo consciente da identificação da geração do Orpheu com um determinado cosmopolitismo, esta dimensão tem, porém, recebido pouca atenção por parte dos leitores posteriores. José Régio, um poeta do chamado segundo modernismo e um dos primeiros críticos influente do modernismo português, no seu livro Pequena história da moderna poesia portuguesa, publicado em 1941, descreveu já o grupo modernista— cujo mestre, segundo ele, é Sá-Carneiro—como revelando uma tendência cosmopolita, que se opunha à tendência nacionalista de outros contemporâneos como Teixeira de Pascoaes—no entanto, tira poucas conclusões deste antagonismo.2 De facto, a defesa, por parte de Pessoa, do Orpheu como uma revista de arte cosmopolita surge, em alguns momentos, elaborada explicitamente em relação ao saudosismo de Pascoaes, que se apresentava como uma corrente de cariz nacionalista, ligada a uma revista editada na cidade do Porto (Águia).3 A tradição extremamente influente (na academia contemporânea) de pensar o cosmopolitismo no sentido iniciado por Kant tem valorizado uma determinada dimensão ética do conceito, ligada, fundamentalmente, à preocupação pelo Outro (Nussbaum) e a um conjunto de obrigações em relação àqueles que estão para além do nosso espaço (nacional) mais próximo (Appiah).4 Apesar de no contexto das obras de Sá-Carneiro e Pessoa, o ideário cosmopolita possuir também uma dimensão ética e política mais alargada, desde logo, pela forma como se relaciona com o nacionalismo de autores contemporâneos como Pascoaes, o que permite pensá-lo nesta tradição, o foco deste capítulo, preocupado em trazer para o centro da discussão este aspecto central (em geral esquecido) do modernismo português, será necessariamente mais circunscrito. Mais concretamente, a leitura que proponho aqui recairá na forma como o conceito se liga, no contexto particular da obra e vida de SáCarneiro, a investimentos libidinosos, a questões de identidade individual, política

 

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sexual e a práticas artística, situáveis num espaço e num tempo concretos em que culturas e tradições artísticas circulam e coexistem num mundo que, tal como aquele descrito na epígrafe deste capítulo, lentamente se globalizava. Pode dizer-se que este capítulo, enquanto reavaliação da imbricação entre cosmopolitismo, política sexual e modernismo em Sá-Carneiro, tem um duplo objectivo. Por um lado, pretendo definir a intersecção entre cosmopolitismo, investimentos libidinosos, política sexual e identidade em Sá-Carneiro no contexto do que irei denominar como a sensibilidade queer do cosmopolitismo modernista de SáCarneiro, um aspecto que, como argumentarei, é decisivo nos campos estético e identitário da sua obra. Por outro lado, proponho situar este cosmopolitismo modernista no contexto alargado dos modernismos português e (de forma alargada) europeu, bem como no plano da relação de amizade e de elaboração de projectos artísticos partilhados com Pessoa na primeira metade da década de 1910. Ao contrário de uma tendência crítica relativamente estabelecida que tem mantido ambas as obras num plano de afastamento crítico significativo, este capítulo começará por aproximar brevemente o projecto do Orpheu—tal como ele foi concebido por ambos na sua dimensão cosmopolita—da constituição da estética de Sá-Carneiro, para por fim mostrar como este, de facto, refez de forma original esse mesmo projecto conjunto, principalmente no poema “Manucure,” publicado no segundo número da revista (1915).

ORPHEU COSMOPOLITA Foi no plano de um mundo (percebido como) crescentemente globalizado, como é descrito na segunda epígrafe deste capítulo, que Sá-Carneiro e Pessoa, no início do século XX, pretenderam integrar as suas obras, bem como a literatura portuguesa. No contexto da década de 1910, ao mesmo tempo que o afastamento de Portugal face aos

 

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centros da modernidade apontava para a sua situação problemática a vários níveis, a globalização e cosmopolitização da cultura modernas—claras na consciência de ambos—permitia uma circulação de ideias e práticas artísticas capazes, nas suas visões, de renovar a cultura portuguesa e a produção artística nacional.5 Enquanto projecto comum de Sá-Carneiro e Pessoa, há antecedentes (bem anteriores à publicação do Orpheu) da vontade de cosmopolitização do país pela sua localização no circuito internacional de trocas culturais, evidenciados em projectos estéticos, críticos, de tradução e editoriais de ambos. Num fragmento de Pessoa, ainda de 1911, lê-se: “O que é preciso ter é, além de cultura, uma noção do meio internacional, de não ter a alma (ainda que obscuramente) limitada pela nacionalidade. Cultura não basta. É preciso ter a alma na Europa. Escrever ao Sá-Carneiro expondo a nova orientação que é preciso tomar” (Sensacionismo 29). A importância desta passagem para o argumento aqui em questão é sublinhada pelo facto de Pessoa, ele próprio, ter levado bastante a sério estas palavras. Mesmo anteriormente, numa lista de 1909, Pessoa pensava já na edição de uma revista—que por esta altura se chamaria Lusitana—, acrescentando numa nota a necessidade de ter acesso a um número do Mercure de France para ver como é. Pouco tempo depois, com a mudança do título da revista para Europa, passa a fazer parte do plano editorial a publicação de uma biblioteca de traduções que tinham como duplo objectivo, segundo os planos de Pessoa, apresentar a literatura portuguesa no estrangeiro e “europeizar” Portugal. Será, aliás, neste tom de europeização de uma cultura tida como periférica nessa mesma Europa que, num texto de apresentação do terceiro número do Orpheu—que acabou por não ser publicado—, de Fevereiro 1915, Pessoa escreve: “Esta revista é, hoje, a unica ponte entre Portugal e a Europa, e, mesmo, a única razão de vulto que Portugal tem para existir como nação independente” (Sensacionismo 70). Tal como a passagem citada em epigrafe, esta citação é retirada de

 

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um dos muitos textos críticos escritos por Pessoa—alguns atribuídos a autores ficcionais e outros sem autoria assinalada—, para formar uma crítica heterogénea e mesmo cosmopolita—no sentido em que se multiplica em inglês e francês, tal como a obra de Pessoa—à volta da publicação do Orpheu, uma vez que, como ele reconhece recorrentemente, a crítica portuguesa, provinciana, não era capaz de o compreender.6 Enquanto o processo que levou à publicação da revista Orpheu se definia durante a primeira metade da década de 10, Sá-Carneiro tematizava já frequentemente na sua ficção a construção de identidades artísticas cosmopolitas, sobretudo no contexto parisiense, bem como a importância destas identidades para a produção estética das personagens/artistas das suas novelas curtas e contos. De certo modo, o processo de europeização da cultura e do que Pessoa frequentemente denominava como a “psique nacional,” estabelece-se na ficção de Sá-Carneiro, nestes anos, na subjectividade do artista-personagem de vários dos seus Künstlerroman. Estas personagens ficcionais, que tal como Sá-Carneiro se incluem no que Raymons Williams definiu como uma “generation of ‘provincial’ immigrants to the great capitals,” em que as “avant-garde formations” têm a sua “matrix,” procuram, muitas vezes, no ambiente cosmopolita da cidade de Paris, dos anos que antecederam a Primeira Grande Guerra, um espaço privilegiado para a produção artística e para a auto-construção da identidade, ligada, em grande medida, ao que podemos considerar, seguindo as palavras de Sá-Carneiro numa carta a Pessoa, uma ideia de ‘europeização’ da sua subjectividade. Nesta carta, de Julho de 1914, o próprio Sá-Carneiro coloca a possibilidade de construir a subjectividade artística num plano transnacional, europeu: “a única coisa que me poderia fazer sair de mim, como ver em alheamento de verdadeiro Artista é aquilo que englobadamente chamo Europa” (123). Esta europeização/cosmopolitização da subjectividade artística é o que acontece, por exemplo, com a “americana fulva,” de A confissão de Lúcio,

 

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abordada por Simon Park neste volume, que organiza na sua festa modernista um espaço de performance—reiterado por referências à teatralização da identidade, etc.—e de cosmopolitismo em que constitui a sua obra de arte;7 como é também o caso de Lúcio, que não apenas se envolve no ambiente artístico cosmopolita de Paris—em que as experiências das vanguardas são trazidas para a ficção—, como chega mesmo a desejar apagar a sua identidade numa imersão radical na multidão urbana e cosmopolita de Paris, no processo que finalmente torna a sua confissão na sua própria obra, localizada num espaço em frequente movimento entre Paris e Lisboa. Embora este projecto de cosmopolitização da produção artística, defendido por ambos desde o início da década, esteja, até certo ponto, de acordo em termos cronológicos com o ambiente cosmopolita do modernismo parisiense nos primeiros anos da década de 10; sem dúvida, Sá-Carneiro sentiu não só em Portugal mas também na sua experiência em Paris o antagonismo entre correntes nacionalistas e cosmopolitas no contexto modernista. Se, “[t]he tension between cosmopolitanism and a stubborn nationalism,” de acordo com Marjorie Perloff, se fazia sentir há já algum tempo, “giv[ing] the poetry and painting of the period [early 20th century] its particular poignancy” (xxxvii); por seu lado, como mostrou Kenneth E. Silver, em Esprit de Corps: The Art of Parisian Avant-Garde and the First World War, 1914-1925, a Grande Guerra marcou um surgimento de tensões nacionalistas mais fortes na cultura francesa, que gradualmente se revelaram hostis às vanguardas da primeira década, tidas como influência estrangeira e como uma ameaça cosmopolita ao espirito supostamente nacional de França. Sá-Carneiro, numa carta a Pessoa, pouco depois do seu regresso a Paris no verão de 1915, mostra aliás este processo de forma sugestiva quando diz: “Cubismo: julguei em verdade que tivesse desaparecido com a guerra: tanto mais que certos jornais diziam que os cubos do caldo (bouillon kub) e da pintura eram boches”

 

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(186). Esta consciência por parte de Sá-Carneiro não é de estranhar, tendo em conta que ele se moveu nos espaços mais cosmopolitas que caracterizaram a produção cultural em Paris nos anos que antecederam a Grande Guerra.8 A identificação da geração do Orpheu com um modelo de modernismo cosmopolita não significa que esta tensão não seja de certa forma vivida pelo próprio Pessoa, e na sua relação com Sá-Carneiro e o Orpheu. A importância, e a complexidade, que a noção de cosmopolitismo possui no seu papel para a definição da obra de Pessoa não será, por razões óbvias, abordada aqui. Contudo, como já se tornou óbvio, o que tenho vindo a definir como o cosmopolitismo de Sá-Carneiro deve ser pensado, argumento, quer em relação ao contexto do Orpheu em que ele, de facto, emergiu—e por isso se justifica esta introdução—quer em relação a Pessoa, que, em larga medida, contribuiu enquanto editor do amigo para a construção da figura autoral de Sá-Carneiro depois da morte deste. Neste contexto há um episódio da relação artística entre ambos que pretendo recordar aqui, pela forma como tematiza a posição de Sá-Carneiro enquanto um emigrante, das margens da Europa, em Paris, bem como a sua relação com Pessoa—o artista cosmopolita que não abandona essas mesmas margens. Num texto publicado, no Diário Ilustrado, mais de uma década depois da morte do amigo, Pessoa escreveu: “V. [Mário de Sá-Carneiro] é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se você tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si” (Textos de crítica e intervenção 159). Embora esta passagem, e a acusação de provincianismo em particular, pareçam à partida injusta, depois de considerado o impulso cosmopolita que definiu as obras de ambos no início da década de 10; por outro lado, não é de estranhar de todo. De facto, Sá-Carneiro parece mesmo

 

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dar razão a Pessoa, por exemplo, numa passagem de uma carta escrita de Paris, cuja importância é fundamental para compreender as diferenças entre ambos os ideários cosmopolitas, e principalmente a divergência que esta afirmação de Pessoa antecipa, no que diz respeito à confluência de cosmopolitismo e práticas estéticas no modernismo português. Numa carta de 1914, Sá-Carneiro comenta a capacidade de Pessoa escrever a obra cosmopolita de Campos, apesar de nunca ter deixado a cidade de Lisboa, depois do seu retorno definitivo da África do Sul em 1905: “Assim em você, meu amigo, é isto só: não sente já ânsia de conhecer cidades, Europa, progresso, porque tudo isso você viajou, hiperviajou, hiperconhece, hiperpossuiu ao escrever a sua admirável obra” (124). Sá-Carneiro escreve estas palavras no contexto de um comentário ao heterónimo de Pessoa: Álvaro de Campos, também ele um viajante que nasceu em Tavira, no Algarve, estudou na Escócia, viajou até à Índia e chegou a escrever desde o Canal do Suez o poema “Opiário” que publicou no Orpheu e dedicou a Sá-Carneiro. De facto, esta geografia cosmopolita da obra do engenheiro sensacionista é apenas uma das várias que constitui a comunidade heteronímica.9 Em contraste, porém, com esta geografia imaginária da comunidade de escritores ficcionais de Pessoa, Sá-Carneiro, ele próprio, parece depender da própria viagem física para estabelecer a sua identidade cosmopolita e para incluir/inscrever na sua obra o que podemos definir como uma geografia cosmopolita—acabando por incluir essa mesma geografia nas páginas do Orpheu, em que o lugar de escrita dos poemas—Lisboa, Paris, Barcelona—surge fixada no final de cada um. Mas mais importante ainda é a forma como Sá-Carneiro se coloca em relação à capacidade de Pessoa de estabelecer esta geografia cosmopolita sem sair de Lisboa: sinto que nunca poderia ter escrito a ode do Álvaro de Campos, porque em todo o caso não amo tudo que ele canta suficientemente para assim o fixar. . . “sinto” menos do que ele, “amo” menos do que ele, “estrebucho” menos do que ele as avenidas da ópera, os automóveis, os derbys, as cocotes, os

 

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grandes boulevards. . . . Oiça: Eu amo incomparavelmente mais Paris, eu vejo-o bem mais nitidamente e compreendo-o em bem maior lucidez longe dele, por Lisboa, do que aqui, nos seus boulevards onde até, confesso-lhe meu amigo, por vezes eu lhe sou infiel e, em vislumbre, me lembro até da desnecessidade para a minha alma, para a minha emoção. . . (123-4; itálico no original) O que eu pretendo sugerir aqui é que o cosmopolitismo que Sá-Carneiro elabora a partir da afirmação deste desejo por Paris, que claramente contrasta com o cosmopolitismo de Pessoa, em que todas as cidades confluem sem ele sequer o desejar, deve ser visto à luz do que podemos considerar como a subjectividade cosmopolita, comentada recentemente por Mariano Siskind, à propósito do contexto latino-americano, de forma pertinente para este capítulo, e, aliás, para o modernismo português, elaborado também ele a partir da periferia. Siskind sugere, em Cosmopolitan Desires, que a figura do intelectual cosmopolita marginal em termos geográficos e culturais, e o que ele designa como desejo do mundo que constitui as sua aspirações no campo da cultura e da produção artística, sejam lidos à luz da concepção de Jacques Lacan de desejo e de formação da subjectividade. Segundo Lacan, no seu segundo seminário, “desire is a relation of being to lack. The lack is the lack of being properly speaking” (Ego in Freud’s Theory 223). Seguindo de perto esta noção, Siskind propõe que a “figure of a cosmopolitan marginal intellectual [is] defined by both a constitutive lack, translated as a signifier of exclusion from the order of global modernity, and a longing for universal belonging and recognition that mediates his discursive practices and measures the libidinal investment that produces his imaginary cosmopolitan ‘body-ego’” (9). Por um lado, a afirmação de uma subjectividade cosmopolita por parte de Pessoa na passagem acima pode ser comparada ao que Siskind descreve como a constituição de uma identidade intelectual através de uma representação fantasmática, omnipotente, de pertença universal por parte do intelectual marginal: emergindo essa identidade no poeta português como uma

 

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fantasia de pertença cosmopolita em que “todas as cidades” confluem neste corpo-ego cosmopolita imaginário, a partir da sua educação britânica. Por seu lado, no caso de SáCarneiro, o que encontramos—quer na acusação de provincianismo de Pessoa, quer na sua afirmação—, é a constituição sugestiva do desejo cosmopolita como, ao mesmo tempo, uma forma de relação com o mundo, definida por esse mesmo desejo por Paris, e a afirmação da condição marginal da modernidade portuguesa, presente na frustração do sujeito dividido para quem o “impossible longing affirms [itself] as the limit of satisfaction” (Butler, Subjects 187)—exposta na sua auto-comparação com o desejo pleno de Campos. Por outras palavras, enquanto Pessoa afirma nesta sua comparação com o amigo Sá-Carneiro uma identidade cosmopolita a partir da projecção de um corpo-ego que se situa numa plenitude e se define por uma fantasia de omnipotência que lhe permite escrever a poesia de Campos sem sair de Lisboa; por seu lado, da obra de Sá-Carneiro emerge o carácter imaginário de toda a pertença cosmopolita—da de Pessoa também—de forma evidente. Isto não significa, porém, que o cosmopolitismo de Sá-Carneiro seja, por assim dizer, um cosmopolitismo falhado—e, por isso, provinciano, como Pessoa sugere. Mais ainda: como pretendo argumentar aqui, SáCarneiro não só tematiza recorrentemente a falha do sujeito cosmopolita, fazendo dela um modelo de relação do sujeito com a modernidade, mas também torna a incapacidade de satisfação de todo o desejo num aspecto de inovação modernista, como se verá. Partindo desta perspectiva, o que pretendo sugerir neste capítulo é, fundamentalmente, que esta construção do desejo do mundo, identificado com Paris, em Sá-Carneiro, bem como o estabelecimento do corpo-ego cosmopolita do artista/escritor que dele resulta, permitem a definição de aspectos distintivos do modernismo do autor. Isto é particularmente evidentes (como proponho) no poema “Manucure,” publicado no segundo número da revista Orpheu, em que de forma evidente, como mostrarei, emerge

 

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um corpo-ego cosmopolita capaz de “ver em alheamento de verdadeiro Artista”—o mesmo que é ensaiado na correspondência com Pessoa, na prosa e na vida. Mais concretamente, pretendo defender nas páginas seguintes que, neste poema(-manifesto poético), Sá-Carneiro afirma a possibilidade de construir uma identidade cosmopolita a partir de Portugal num contexto fantasmático, que coloca Paris como objecto de desejo e como campo identitário para a articulação de uma política cultural e sexual dissidentes: uma identidade dissidente, formulada através do que definirei como um cosmopolitismo caracterizado por uma sensibilidade queer, que desestabiliza hierarquias no campo alargado da cultura e da sexualidade, abrindo, concomitantemente, um espaço discursivo a partir das margens da Europa e do desejo. Pretendo, assim, propor que “Manucure,” no contexto do Orpheu, não apenas se estabelece como uma provocação (blague) aos discursos nacionalistas portugueses e europeus, e ao plano heteronormativo que em geral os definiu, como surge também como uma forma de imaginar uma identidade cosmopolita em que elementos das vanguardas são repensados, quer esteticamente quer politicamente, no contexto da Grande Guerra, representando, em conjunto com o Orpheu, aliás, um caso significativo de cosmopolitismo modernista num momento de particular ressurgimento de nacionalismos por todo o continente.10

VANGUARDAS, COSMOPOLITISMO E SENSIBILIDADE QUEER EM “MANUCURE” A colocação de “Manucure”, por parte de Pessoa e outros críticos subsequentes, na tradição do futurismo (mais concretamente como blague semi-futurista, uma tradição questionada Ricardo Vasconcelos neste volume) não pode deixar de ser sugestiva para o leitor familiarizado com a performance de hipermasculinidade da estética de

 

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Marinetti, entre outros. Embora este poema em particular continue de forma afirmativa a tendência futurista do poeta-performer, a performance de género no texto de SáCarneiro está bastante longe daquela do sujeito masculino da obra do italiano, cujo projecto artístico e cultural passava pela afirmação de uma masculinidade heroica, ligada, por sua vez, à modernidade tecnológica e à rejeição de valores considerados femininos, identificados com os decadentes e a tradição artística num campo mais alargado (Nicholls 88). Ao contrário do herói épico masculino do futurismo, o sujeito de “Manucure” está num café, na “sensação de estar polindo as [suas] unhas.” Esta afirmação de uma sensibilidade que podemos definir (por agora) como camp, pelo investimento no teatralização da identidade e no artifício, tem levado ao questionamento por parte dos críticos do lugar de Sá-Carneiro no contexto do modernismo, que a crítica em Portugal tem, em grande medida, lido como uma ruptura radical com as práticas do fim do século.11 Pretendo argumentar que, pelo contrário, a afirmação de uma sensibilidade camp neste poema—e não só, como já observou Eduardo Pitta—é, de facto, parte central do modernismo de Sá-Carneiro e da suas políticas sexual e cultural.12 Como mostro em seguida, apesar de ser só sensação, o acto de polir as unhas (cuja importância é sublinhada logo pelo título do poema) é um elemento primordial para a constituição de um corpo-ego (textual) cosmopolita em “Manucure,” que responde a modelos de masculinidade e hipermasculinidade dos textos futuristas e de outros discursos nacionalistas, trocando-os por uma identidade desestabilizadora das expectativas da performance de género do sujeito poético, com, por sua vez, fortes consequências estéticas e políticas, tanto no campo da cultura como da sexualidade. Enquanto o imaginário camp da teatralização da identidade neste poema serve logo à partida um questionamento de perspectivas essencialistas da identidade,

 

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próximo, de facto, da tradição decadente, a forma como ele permite no texto o estabelecimento de uma determinada subjectividade poética exige uma atenção crítica que ultrapassa a mera consideração de filiações estéticas. Afirma o sujeito poético na abertura do texto: “Na sensação de estar polindo as minhas unhas, / Súbita sensação inexplicável de ternura, / Todo me incluo em Mim—piedosamente.” O acto de polir as unhas emerge aqui como o que podemos definir como um acto performativo no sentido avançado por Judith Butler, em Gender Trouble, sendo não apenas uma pose dramática, mas estabelecendo ele próprio uma identidade e uma subjectividade não ancorada ontologicamente, mas construída por esse mesmo acto: “Todo me incluo em Mim,” afirma o sujeito poético, sublinhando o carácter performativo desse mesmo acto. Por outras palavras, a afirmação da teatralização da identidade enquanto momento de estabelecimento de uma subjectividade unitária impõe ao texto um questionamento das identidades que permite estabelecer uma ponte sugestiva entre o imaginário camp e uma noção de identidade enquanto construção performativa, que por sua vez, nas palavras de Butler, “ constitute the illusion of an abiding gendered self” (119). De facto, a subjectividade do sujeito poético de “Manucure,” tal como aquela descrita por Butler, emerge a partir do acto identitário que constitui a unidade fantasmática do corpo-ego desse mesmo sujeito. Será, por sua vez, este mesmo corpo-ego aquele que, argumento, se estabelecerá, ao longo do poema, como radicalmente cosmopolita. Deste modo, enquanto a performance de um acto de género dissonante provoca, por um lado, uma desestabilização de noções essencialistas de identidade—parodiando perspectivas essencialistas—, por outro lado, esta performance permite também o estabelecimento de uma identidade unitária—e por isso fantasmática—com um carácter afirmativamente político no contexto modernista e moderno nacional, como argumento em seguida.

 

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Para além da indicação final que aponta para a escrita do poema em Lisboa, as palavras do sujeito poético sugerem também essa mesma localização. É o que acontece, por exemplo, quando este descreve o espaço exterior ao café em que está como o de um dia “provinciano,” identificado com aqueles seus amigos que gostam de “sardinhas fritas” (41). Deste modo, é sugerida imediatamente a importância da performance identitária do sujeito também na sua relação periférica com o centro desejado, Paris. Este aspecto está, aliás, de acordo com as palavras de Sá-Carneiro na carta a Pessoa, segundo as quais é principalmente em Lisboa que ele mais claramente deseja Paris. Por outro lado, esta afirmação de uma subjectividade a partir da sensação de polir as unhas resulta no estabelecimento de um corpo-ego que conscientemente se opõe às subjectividades e identidades nacionalistas que o rodeiam, situáveis no ambiente político e literário de Portugal durante os anos da Grande Guerra. Em contraste com a sua identidade “citadina,” polida como as suas unhas e afirmativamente teatralizada, encontra-se o exterior: um “dia de Maio em luz / E sol—dia brutal, provinciano e democrático.” Este dia brilhante de luz causa náuseas à sensibilidade do poeta, mas, como ele reconhece, tem os seus “cantores”: os amigos com quem anda às vezes, “Trigueiros, naturais, de bigodes fartos— / Que escrevem, mas têm partido político / E assistem a congressos republicanos, Vão às mulheres, gostam de vinho tinto, / De pêros ou de sardinhas fritas. . .” O contraste não podia, portanto, ser maior entre os outros e o poeta. Enquanto aqueles estão ligado não só a elementos da tradição portuguesa como também ao próprio discurso nacionalista que dominava o movimento republicano— com fortes ligações ao saudosismo de Teixeira de Pascoaes. Do outro lado, dentro do café, está o sujeito poético que afirma a sua total diferença face a eles pela afirmação de uma identidade que não apenas se estabelece pela estilização camp de gestos—pelo acto de polir as unhas—, mas que, a partir dessa mesma identidade estilizada, se afirma

 

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como claramente para lá das fronteiras da nação e do nacionalismo. Como o sujeito poético afirma logo de seguida: o verniz com que o sujeito poético pinta as suas unhas é parisiense: “E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas / E de as pintar com um verniz parisiense.” Mais ainda, este espaço interior do sujeito poético é também um espaço que se opõe ao nacionalismo republicano é a heterossexualidade compulsória que emerge da suposta perspectiva ontológica da identidade que é atribuída a estes “naturais,” que “vão às mulheres.” Por outras palavras, o imaginário camp da performance identitária do sujeito poético estabelece-se como antagónico às identidades republicana e nacionalista, defensora simultaneamente dos valores tradicionais (do vinho tinto e sardinhas) e parte do que podemos definir como a heterossexualidade compulsória, associada a essa mesma tradição e a uma visão da identidade autêntica, ancorada ontologicamente. Também de acordo com as palavras do poeta na carta a Pessoa está a constituição em “Manucure” de uma “visão de verdadeiro Artista,” no contexto europeu: é durante o acto de pintar as suas unhas com “verniz parisiense” que a visão do sujeito poético se transforma no que podemos definir como uma visão plástica, estabelecendo-se assim uma relação entre a estilização da identidade, a constituição deste corpo-ego no contexto cosmopolita de Paris e a subjectividade artística do sujeito que emerge: “Vou-me mais e mais enternecendo / Até chorar por Mim. / Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes /Brumosos planos desviados / Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis, / Chegam tenuamente a perfilar-me. / . . . E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço / Por inúmeras intersecções de planos / Multiplos, livres, resvalantes.” A utilização por parte de Sá-Carneiro de uma visualidade dominada pelas experiências plásticas do modernismo do início do século foi já comentada por vários críticos—incluindo Fernando Cabral Martins neste volume. De uma forma geral, os

 

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comentários concordam em afirmar a importância da modernidade parisiense para a estética de Sá-Carneiro, que teria contribuído, por sua vez, para trazer para Portugal, a partir da sua obra e da sua relação com Pessoa, muito do que estava a acontecer nos centros do modernismo europeu. Estas leituras, pela ênfase na ideia de que Sá-Carneiro se teria limitado a incorporar tendências da arte moderna, têm porém falhado em reconhecer dois aspectos fundamentais e interligados. Em primeiro lugar, a utilização do imaginário plástico por parte de Sá-Carneiro não se limita a aspectos formais mas está ligado a um questionamento da própria subjectividade masculina (também no campo da sexualidade) do sujeito poético. Em segundo lugar, ao incorporar o imaginário plástico na visualidade do artista, tornando-o parte da subjectividade artística do corpo-ego poético, Sá-Carneiro está também a procurar estabelecer uma identidade e uma poética cosmopolitas, que devem ser compreendidas não apenas como parte do que já defini como a ambivalência cosmopolitismo/nacionalismo do modernismo do início do século, mas também como uma contribuição própria de SáCarneiro, quer para o modernismo português, quer para o Orpheu e para o seu lugar no contexto dos modernismos que antecederam o início da Grande Guerra e a viragem nacionalista que se verificou então. A ideia de que as sensações modernas e a proliferação de estímulos, em particular nos espaços urbanos, representavam uma ameaça ao sujeito, à sua identidade, integridade psíquica e subjectividade, eram comuns nos círculos intelectuais e clínicos nas primeiras décadas do século XX. Freud, o sociólogo alemão Georg Simmel e Walter Benjamin foram alguns dos que escreveram e teorizaram sobre o assunto. Na perspectiva de Freud, por exemplo, a proliferação de estímulos e choques que o espaço urbano impõem ao córtex humano coloca a psique individual numa posição defensiva. Estes choques, por seu lado, resultam em traumas e neurose, quando as estratégias

 

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defensivas falham. Tanto Freud, em particular em Beyond the Pleasure Principle, como Simmel, em “The Metropolis and Mental Life,” teorizaram sobre estas possíveis estratégias defensivas da psique em relação a esses estímulos e aos seus resultados. Benjamin, pelo contrário, respondeu, em “On Some Motifs in Baudelaire,” a Freud e à sua teoria dos choques atribuindo um carácter positivo a esses mesmos estímulos e fazendo depender deles a poética da modernidade de Baudelaire e do seu flanêur urbano. Enquanto a ideia freudiana da necessidade de defesa do sujeito em relação aos estímulos da modernidade surge, de facto, em alguma literatura modernista, como Franz Kafka e Samuel Beckett (Armstrong), a sua emergência em Sá-Carneiro, tal como pretendo argumentar em seguida, aponta, pelo contrário, para a sua valorização, num sentido que acaba por aproximá-lo de Benjamin. Mais concretamente, de forma paradigmática em “Manucure,” a poética de Sá-Carneiro depende de uma rejeição de construções psíquicas defensivas do sujeito/artista moderno face a esses estímulos, o que, por sua vez, se estabelece como crucial para a formação do artista/poeta cosmopolita. Por outras palavras, a formação do sujeito poético cosmopolita, como proponho em seguida, passa, neste poema, exactamente pelo desfazer da subjectividade masculina normativa do corpo-ego do sujeito poético, que a quebra dessas defesas permite—um desfazer que se liga à política sexual do texto e permite tornar este poema num espaço de reinvenção da subjectividade moderna masculina num plano não heteronormativo (de sensibilidade queer) e de afirmação de uma identidade poética cosmopolita a partir da periferia da Europa. O que podemos considerar como a desestabilização da visão do sujeito masculino em “Manucure,” a partir da sua transformação plástica, surge ligada de forma clara ao espaço moderno, cosmopolita e artístico de Paris, em particular aos estímulos sensoriais que o caracteriza. Depois da explosão plástica que dominou o

 

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poema a partir do momento inicial, em que o sujeito está a polir as suas unhas, este, algumas estrofes depois, depõe as suas “limas, / As [suas] tesouras, os [seus] godets de verniz, / Os polidores da [sua] sensação.” A mesma transformação do ambiente do café num ambiente plástico na visualidade do sujeito poético, porém, continua: “E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!” É partindo da problematização do olhar pela multiplicação plástica das perspectivas—“Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes, / Que vértices brutais a divergir, a ranger, / Se facas de apache se entrecruzam / Altas madrugadas frias. . .”—que se afirma, então, a capacidade de “cantar” a beleza moderna de Paris, imaginada a partir de Lisboa, enquanto ideal do sujeito poético: “Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta, / Varar a sua Beleza— sem suporte, enfim!— / Cantar o que ele [o Ar] revolve, e amolda, impregna, / Alastra e expande em vibrações:” Por outras palavras, é pela incorporação visual das experiências plásticas do modernismo, possibilitada pela sua própria performance camp inicial, que emerge no sujeito poético o que Sá-Carneiro descreveu a Pessoa como a “visão de verdadeiro Artista,” marcada, nestes versos, por uma receptividade radical do sujeito aos vários estímulos sensoriais da modernidade urbana e estética. O estabelecimento desta visão a partir da própria periferia torna-se possível pela projecção do desejo do sujeito pela modernidade estética de Paris, fazendo da utilização por parte de Sá-Carneiro de elementos plásticos um mecanismo de afirmação de uma identidade artística cosmopolita a partir da periferia da Europa—o que, aliás, não é de admirar, tendo em conta a identificação das vanguardas tanto em França como em Portugal com um determinado cosmopolitismo. Mais ainda, nesta constituição de uma subjectividade artística, os objectos de desejo do sujeito poético estendem-se ao que podemos considerar como a cultura popular parisiense. É o que acontece numa destas evocações: a de uma “dançarina russa, / Meia nua, [que] agita as mãos pintadas da Salomé / Num

 

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grande palco a Ouro!”13 Esta referência à dançarina russa, que, aliás, inclui em si uma forte dimensão camp que a liga ao próprio sujeito poético pela referência à performance (“palco”) e às unhas pintadas, implica uma colocação do desejo cosmopolita do sujeito não apenas no plano estético do modernismo plástico mas no da modernidade parisiense enquanto modelo alargado de modernidade cosmopolita—a modernidade que ele deseja e que enquanto objecto de desejo lhe permite estabelecer um corpo-ego cosmopolita, radicalmente receptivo aos estímulos da modernidade, a partir da periferia da Europa. Esta identidade cosmopolita que emerge da identificação da visualidade do sujeito poético com as perspectivas plásticas que tenho vindo a descrever é complementada (ou interseccionada, para usar o termo de Sá-Carneiro) com a afirmação de uma subjectividade em constante processo de deslocação, que, enquanto tal, mimetiza a modernidade capitalista de mercadorias e pessoas em trânsito, no início do século: E pelas estações e cais de embarque, Os grandes caixotes acumulados, As malas, os fardos—pêle-mêle. . . Tudo inserto em Ar, Afeiçoado por ele, separado por ele Em múltiplos interstícios Por onde eu sinto a minh’Alma a divagar!. . . —Ó beleza futurista das mercadorias! Tal como a beleza das formas plásticas, a deslocação de mercadorias emerge aqui como parte dessa modernidade “insert[a] em Ar” que o sujeito poético pretende fixar em literatura. Para além disto, as inscrições nessas mesmas mercadorias em circulação pelo mundo tornam-se elementos estéticos na visão plástica do sujeito, fazendo emergir uma total identificação do plano estético e capitalista: —Sarapilheira dos fardos, Como eu quisera togar-me de Ti!

 

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—Madeira dos caixotes, Como eu ansiara cravar os dentes em Ti! E os pregos, as cordas, os aros. . . — Mas, acima de tudo, como bailam faiscantes A meus olhos audazes de beleza, As inscrições de todos esses fardos— Negras, vermelhas, azuis ou verdes— Gritos de Actual e Comércio & Indústria Em trânsito cosmopolita: Neste ponto é relevante notar que o termo cosmopolitismo possuía uma conotação negativa em certos campos políticos durante o século XIX, sendo frequentemente usado para definir aspectos das elites económicas do capitalismo oitocentista. No Manifesto of the Communist Party, de Karl Marx e Friedrich Engels, por exemplo, a palavra é usada para descrever o carácter internacional da economia de mercado, naquele momento, em constante expansão de bens e consumidores. Este sentido é, aliás, aquele que ecoa no uso do termo cosmopolita nestes versos citados de “Manucure,” em que surge ligado às mercadorias em circulação: “Em trânsito cosmopolita.” É, aliás, também sugestiva neste âmbito a colocação da modernidade por parte do sujeito poético como “Insert[a] em ar,” lembrando as próprias palavras de Marx e Engels, segundo as quais, na incerteza e agitação que caracteriza a sociedade burguesa, “[a]ll that is solid melts into air” (Communist 12).14 Sá-Carneiro torna isso ainda mais claro visualmente, quando escreve:

Fig. 1. “Manucure,” Orpheu II 101. Posicionando-se, desta maneira, de forma contrária à crítica marxista da modernidade burguesa—e de uma certa tendência Romântica de separação da produção cultural e do mercado—, o sujeito não só afirma a sua identificação com esta mesma modernidade capitalista, como a transforma num objecto de desejo, valorizando os estímulos

 

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sensoriais que a caracterizam: tanto como motivos estéticos como enquanto modelo de organização dos prazeres num plano descentrado e não heteronormativo, como mostro detalhadamente em seguida. O trabalho de Leo Bersani em The Freudian Body e depois em Homos é, neste contexto de indissociação entre os estímulos modernos e o desejo no poema de SáCarneiro, extremamente relevante. Seguindo, de alguma forma, a corrente iniciada por Benjamin, centrado no prazer que o sujeito (masculino) encontra no quebrar das fronteiras e das suas defesas psíquicas, Bersani elabora um conjunto de leituras de Freud, influenciada pelo materialismo de Foucault na sua History of Sexuality, capaz de trazer uma luz bastante relevante à posição do sujeito de “Manucure”— fundamentalmente, à problematização da visão e da subjectividade normativa masculina que emerge na constituição deste artista/poeta cosmopolita. Nos seus estudos, Bersani debruça-se, largamente, em Three Essays on the Theory of Sexuality, de Freud, em particular na sua definição da sexualidade infantil como perversa polimorfa. De acordo com os Three Essays de Freud, no estado inicial (infantil, portanto) do desenvolvimento teleológico da sexualidade “the quality of erotogenicity [resides in] all parts of the body and [in] all the internal organs” (184). Neste perspectiva freudiana, o desenvolvimento edipiano da sexualidade leva a uma genitalização do prazer—à sua territorialização. Segundo Bersani, este trabalho de Freud, apesar da sua formulação teleológica da sexualidade adulta, que estabelece um processo de desenvolvimento normativo desta em direcção à fixação da identidade de género e do desejo, foi o primeiro que levantou (mesmo que contra si próprio) a hipótese de dissolver a sexualidade no que em termos foucaultianos podemos definir como uma reorganização dos prazeres, não teleológica nem centrada. Mais exactamente, Bersani observa essa hipótese na formulação freudiana do perverso

 

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polimorfo; segundo ele, “The passages in Freud’s work that lead to his conclusion that ‘the quality of erotogenicity’ should be ascribed ‘to all parts of the body and to all the internal organs’ could be taken as a gloss of Foucault’s description of S/M practitioners as ‘inventing new possibilities of pleasure with strange parts of their body,’ and, more generally, of the call for a different economy of pleasures” (Homos 98). Mais ainda, segundo Bersani, nestes ensaios de Freud, “what [he] appears to be moving toward as a definition of the sexual [is] an aptitude for the defeat of power by pleasure, the human subject’s potential for a jouissance in which the subject is momentarily undone” (Homos 100). Para Bersani, jouissance (para não confundir com a utilização do termo por Lacan) refere-se, como o autor explica, to an “erotogenicity” that, in the Three Essays, Freud ascribes not only to the body’s entire surface and all the internal organs, but also to any activities and mental states or affective processes (he mentions intellectual strain, wrestling, railway travel) that produce a certain degree of intensity in the organism and in so doing momentarily disturb psychic organization. Following Jean Laplanche, who speaks of the sexual as an effect of ébranlement, I call jouissance “self-shattering” in that it disrupts the ego’s coherence and dissolves its boundaries. (Homos 100) Na perspectiva de Bersani, o desejo masculino receptivo tem origem no prazer/jouissance estabelecido por esse quebrar de fronteiras e defesas, e no dissolver (shattering) do sujeito que dele resulta, que tem a sua origem no “thrill of being invaded by a world we have not yet learned to master” (Homos 100). O que pretendo argumentar nesta parte final do capítulo é que o desfazer de uma subjectividade masculina normativa—baseada, numa perspectiva psicanalítica tradicional, na delimitação clara das fronteiras corporais e num modelo de visão dominador (“visual mastery”)—é, em “Manucure,” não só parte da afirmação de uma identidade artística cosmopolita, pela incorporação de modelos estéticos modernos na visão do artista, mas também permite o estabelecimento de uma jouissance (no sentido de Bersani)

 

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modernista, a partir dessa dissolução, que sugere a indissociação entre cosmopolitismo e o que podemos definir como uma sensibilidade queer. Na tradição da psicanálise freudiana ortodoxa, as perturbações da visão surgem, no contexto da teleologia edipiana, ligadas ao medo masculino da castração. É isso que Freud sugere na sua leitura de Der Sandmann, de E. T. A. Hoffmann, em “The Uncanny.” Enquanto Freud coloca os distúrbios da visão no contexto familiar, Andreas Huyssen sugeriu mais recentemente—a partir de uma leitura da visão modernista em Hoffmann e noutra literatura de Viena—que o espaço moderno foi também crucial para a desestabilização moderna da visão, intimamente, por sua vez, ligada à perda de identidade. A obra de Sá-Carneiro parece também dar razão a Huyssen. É afirmativamente no contexto urbano moderno—e não como mero sintoma com origens infantis—que o sujeito poético de “Manucure” estabelece o que podemos definir como uma visualidade outra, “[d]esconjuntada, emersa, variável sempre / E livre—em mutações contínuas, / Em insondáveis divergências. . .” (45). Esta visualidade, ligada no poema aos estímulos modernos—aos “olhos ungidos de Novo” (45)—, projectados no café lisboeta pelo sujeito poético, levam, por seu lado, ao que podemos definir como um desfazer da coerência e das fronteiras do seu ego. É isto que acontece quando, no processo de criação de uma visão de “verdadeiro Artista,” o sujeito poético vê-se radicalmente imbuído pelos estímulos criados pelo seu próprio desejo cosmopolita no café lisboeta: Divergem hélices lantejoulares. . . Abrem-se cristas, fendem-se gumes. . . Pequenos timbres d’ouro se enclavinham. . . Alçam-se espiras, travam-se cruzetas. . . Quebram-se estrelas, soçobram plumas. . . Dorido, para roubar meus olhos à riqueza, Fincadamente os cerro. . . Embalde! Não há defesa: Zurzem planos a meus ouvidos, em catadupas, Durante a escuridão—

 

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Planos, intervalos, quebras, saltos, declives. . . —Ó mágica teatral da atmosfera, —Ó mágica contemporânea—pois só nós, Os de Hoje, te dobrámos e fremimos! (47) Esta impossibilidade de defesa não é, porém, um elemento negativo, de um sujeito que pretende recuperar o seu domínio em relação ao meio moderno, urbano, cultural e estético. Pelo contrário, é pela constituição de uma organização perversa polimorfa, em que as sensações percorrem, descentradas, todo o corpo do sujeito poético—“Eia! Eia! Singra o tropel das vibrações / Como nunca a esgotar-se em ritmos irados” (47)—e pela valorização do desfazer da coerência do ego masculino, pela sua invasão por estímulos, que surge o que o poema define como a

Fig. 2. “Manucure,” Orpheu II 101. Por outras palavras, é pela constituição de um modelo de jouissance estabelecido pelo quebrar das fronteiras do sujeito que emerge ainda de forma mais clara uma identidade cosmopolita, sem um centro de ancoragem, capaz de uma identificação radical com a modernidade e ao mesmo tempo legitimadora de uma organização dos prazeres fora do contexto da heteronormatividade: mais concretamente, no campo do que tenho vindo a denominar como uma sensibilidade queer, que, embora não se ligue explicitamente a nenhuma identidade sexual concreta, se afirma dissidente em relação às normas de género e sexualidade.

O MODERNISMO PORTUGUÊS E OS FINS DA FANTASIA A constituição de uma organização descentrada dos prazeres e o desfazer das fronteiras do corpo-ego do sujeito de “Manucure” mimetiza, por sua vez, o processo de crescente

 

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mobilidade geográfica moderna de pessoas, bens e informação, tornando possível a identificação do sujeito com uma modernidade europeia em processo de globalização também a este nível. Isto é sublinhado também de forma sugestiva para o argumento em questão quando, pouco depois de alguma acalmia da visão plástica, chega um “estrangeiro” ao café e se senta à sua frente. Este acontecimento leva a uma nova onda de euforia dos sentidos: Em minha face assenta-se um estrangeiro Que desdobra o “Matin.” Meus olhos, já tranquilos de espaço, Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres, Começam a vibrar Toda a nova sensibilidade tipográfica. A partir deste momento o sujeito poético continuará a seguir a leitura do “estrangeiro,” celebrando as maravilhas da imprensa, quer no campo da tipografia—que emerge no próprio poema—, quer pela sua capacidade de disseminação internacional da informação e concomitante construção de uma identidade transnacional a partir de qualquer espaço—centro ou periferia. Segundo Benedict Anderson, em Imagined Communities. Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, a emergência da ideia de nacionalidade nos séculos XVIII e XIX na Europa, enquanto artefacto cultural, esteve profundamente ligada ao desenvolvimento dos jornais e da novela, o que terá marcado uma mudança no modo de “apprehending the world, which, more than anything else, made it possible to think the nation” (22). Neste perspectiva, a imprensa escrita, pela simultaneidade na comunicação que pressupõe, ofereceu uma ideia de coincidência entre escrita e leitura dentro da comunidade linguística da nação que contribuiu para cimentar os laços nacionais de forma crucial, moldando estes laços de forma a tornar os europeus em membros de comunidades linguísticas delimitadas, “the kind of imagined community that is the nation” (25). Sugestivamente, Sá-Carneiro, neste poema, usa esta mesma simultaneidade para estabelecer não uma comunidade

 

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nacional, mas uma identidade cosmopolita tornada possível no café lisboeta; ou, por outras palavras, uma pertença a uma comunidade imaginária cosmopolita. Mais concretamente, a celebração da modernidade europeia, tal como ela emerge pela própria sobreposição de jornais e de marcas tipográficas,

Fig. 3. “Manucure,” Orpheu II 104. estabelece uma confluência globalizada de todos estes espaços e tempos na temporalidade e espacialidade cosmopolitas do café, e, concomitantemente, do poema escrito a partir de Lisboa. Neste sentido, enquanto o corpo-ego cosmopolita do sujeito poético de “Manucure” se constitui pela afirmação de uma subjectividade artística moldada pelas experiências plásticas e por uma sensibilidade queer ligada à receptividade aos estímulos da modernidade; por outro lado, o próprio desejo cosmopolita do sujeito projecta na modernidade (tida como) problemática de Lisboa um espaço cosmopolita, a partir do qual é possível constituir um modelo de modernismo também ele cosmopolita. Por outras palavras, o desejo cosmopolita do sujeito poético e a modernidade burguesa, com as suas formas de mobilidade radical, permitem não só imaginar uma identidade artística no campo da fantasia, mas também o estabelecimento de uma produção modernista cosmopolita a partir de Lisboa, em que confluem correntes estéticas, pessoas em trânsito, mercadorias e informação. Para que tal seja viável a partir da periferia, esta identidade, como expõe o poema ao constituir a

 

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identidade de forma performativa nas primeiras linhas, tem que ser construída no campo da fantasia, no campo de um corpo-ego fantasmático. Da mesma forma, podemos acrescentar, o cosmopolitismo modernista português, do Orpheu em particular, imaginado a partir da periferia do continente em “Manucure,” se estabelece assumidamente no campo da fantasia. O carácter fantasmático desta identidade cosmopolita—quer do sujeito quer do próprio modernismo nacional—torna-se ainda mais claro com a afirmação da falha do desejo nos últimos versos de “Manucure.” Estes são, em larga medida, uma declaração da impossibilidade por parte do sujeito poético de cantar esta mesma modernidade cosmopolita que tem estado a celebrar: Levanto-me. . . —Derrota! Ao fundo, em maior excesso, há espelhos que reflectem Tudo quanto oscila pelo Ar: Mais belo através deles, A mais subtil destaque. . . —Ó sonho desprendido, ó luar errado, Nunca em meus versos poderei cantar, Como ansiara, até ao espasmo e ao Oiro, Toda essa Beleza inatingível, Essa Beleza pura! Como qualquer desejo, o desejo cosmopolita do sujeito poético nunca é satisfeito na totalidade, afirmando-se, assim, a frustração do sujeito dividido para quem, nas palavras de Butler, o “impossible longing affirms [itself] as the limit of satisfaction.” Isto não significa, porém, que esta forma de modernismo cosmopolita, centrada na afirmação do desejo como necessário para a sua constituição, seja menos viável do que qualquer outra. Menos viável do que, por exemplo, aquela de Pessoa que, como observei, constitui, na passagem aqui referida, a sua identidade cosmopolita através de uma fantasia de omnipotência, possibilitada pela sua educação britânica. De facto, o investimento libidinoso do sujeito de “Manucure” permite mesmo uma radical

 

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afirmação não só do valor da sua própria produção literária, mas da de vários elementos da geração do Orpheu, quando declara:

Fig. 4. “Manucure,” Orpheu II 106. A superioridade do modernismo português, que se torna evidente, nesta passagem, pelos sinais matemáticos e pelo crescendo das letras, significa não apenas uma provocação (blague) aos centros, mas também o que podemos definir como a abertura de um espaço discursivo para o modernismo português no contexto internacional. Neste sentido, a fantasia cosmopolita e de sensibilidade queer que Sá-Carneiro estabelece em “Manucure,” mais do que uma afirmação da sua educação provinciana que resultaria na rejeição do seu contexto lisboeta pelo desejo de modernidade (como, provavelmente diria Pessoa), é, proponho, uma afirmação de um modelo de produção literária que não se pretende (ingenuamente) colocar no centro—numa fantasia de omnipotência—, mas, de forma particularmente sugestiva, imagina uma resposta a partir da periferia que desestabiliza de forma radical noções de identidade—expondo o seu carácter fantasmático—, e se estabelece, ao mesmo tempo, como um locus de afirmação de uma sensibilidade dissidente no campo da sexualidade, em processo de constante construção, performance.

NOTAS                                                                                                                 1

Os dois números do Orpheu, projectado como trimestral, foram publicados em Março e Junho de 1915. O terceiro número foi cancelado devido, aparentemente, à falta de apoio financeiro por parte do pai de Sá-Carneiro, que tinha financiado os dois números anteriores—deste terceiro número ficaram as provas tipográficas.

 

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Esta leitura do espírito cosmopolita da obra de Sá-Carneiro surge, aliás, logo numa apreciação crítica, anónima, de A confissão de Lúcio, publicada a 13 de Fevereiro de 1914 n’O Primeiro de Janeiro: “É nessa literatura cosmopolita, extravagante e absurda, que se lança o talento viril do senhor Mário de Sá-Carneiro, que nos dá na Confissão de Lúcio páginas duma psicologia de tal maneira inadmissível que, na verdade, pode aceitar-se por singularidade literária, ou meramente a título de notação médica, como casos aberrativo ou degenerativo ou degenerescência de tipos” (1). 3 É o caso, por exemplo, de um texto crítico escrito por Pessoa sobre o Orpheu: Mas a leitura de “Orpheu” trouxe-nos uma impressão muito mais complexa e muito mais interessante. Não se trata de saudosismo, ou de lusitanismo. Trata-se de qualquer cousa que, logo á primeira vista, não se sabe porquê, tem dois aspectos—o da originalidade e o do cosmopolitismo. Ao contrario do saudosismo, que está fechado dentro de um conceito artistico, que nos seus creadores é com certeza elevado, mas que é estreito como pensamento humano e sobretudo como pensamento moderno, porque é pensamento que não pretende ser senão portuguez, a escola do “Orpheu” (não sabemos se ela tem um nome) é internacionalista por excelência . . . . (Sensacionismo 49) Esta passagem sugere, aliás, a importância do binómio nacionalismo/cosmopolitismo para compreender as razões que levaram Pessoa, ainda antes da publicação do Orpheu, a deixar de colaborar com a revista Águia, onde chegou a publicar textos de crítica importantes como “A nova poesia portuguesa no seu aspecto psychologico,” no final de 1912. 4 Ver, por exemplo, For Love of Country? e “Patriotism and Cosmopolitanism,” de Martha Nussbaum, e Cosmopolitanism. Ethics in a World of Strangers, de Kwame Appiah. 5 A ideia que não existia literatura capaz de ser valorizada em Portugal até à chegada do Orpheu é relativamente recorrente em alguns textos críticos mais provocatórios de Pessoa, a grande maioria não publicados. É o que acontece, por exemplo, num fragmento curto: “Comprar o Orpheu é, emfim, ajudar a salvar Portugal da vergonha de não ter tido senão a litteratura portuguesa” (Sensasionismo 70). 6 Estes textos foram compilados por Jerónimo Pizarro em Sensacionismo e outros ismos. 7 Como descreve Lúcio: “A sala enchera-se duma multidão bigarrada e esquisita. . . . Havia russos hirsutos e fulvos, escandinavos suavemente louros, meridionais densos, crespos—e um chinês, um índio. Enfim, condensava-se ali bem o Paris cosmopolita—rastaquouère e genial” (310). 8 A vivência de Sá-Carneiro em bairros ligados ao modernismo cosmopolita como Montmartre é largamente exposta na sua correspondência com Pessoa. 9 A cartografia imaginária da heteronímia pessoana leva-nos ainda à Escócia, onde estudou Campos, ao Brasil, onde viveu Ricardo reis, bem como à Índia, por onde passou também o engenheiro sensacionista. Por outro lado, o próprio nascimento de Campos no Algarve está ligado a esta mesma cartografia cosmopolita, uma vez que, como escreve Pessoa em vários fragmentos, o Algarve é um espaço culturalmente cosmopolita por excelência, devido à coexistência de influências cristãs, judaicas e árabes. 10 Para uma crítica relativamente diferente, que sugere a continuação de formas de resistência estética face aos discursos nacionalistas franceses, iniciados com a Grande Guerra, ver: Foreign Modernism. Cosmopolitanism, Identity, and Style in Paris, de Ihor Junyk.10 Segundo Junyk, vários autores continuaram a moldar as suas obras de forma a desafiar a emergência destes discursos nacionalistas, investindo em noções cosmopolitas de produção cultural e de identidade. Embora este não seja o lugar para comentar a forma como Sá-Carneiro se inclui neste contexto alargado de modernistas que desafiaram a hegemonia nacionalista da segunda metade da década de 10, não pode deixar de ser aqui sugerida a relevância do escritor português neste conjunto estudado por Junyk. 11 Refiro-me a uma sensibilidade camp no sentido amplo definido por Susan Sontag, em “Notes on Camp,” segundo a qual “the essense of camp is its love of the unnatural: of artifice and exaggeration” (53). Embora a teorização de Sontag, no seu ensaio de 1964, tenho sido largamente influenciada pela arte finissecular, que criticamente pode ser incluída nas categorias

 

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                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    de decadentismo e esteticismo, o termo camp como ferramenta de leitura deste poema em particuar, como se verá, permite um alargamento até aos campos das políticas sexuais e de identidade, fundamentais para o argumento e capazes de ultrapassar os velhos problemas. 12 Eduardo Pitta fala de uma tensão camp em Sá-Carneiro a propósito da novela A confissão de Lúcio, a partir da qual, argumenta, surgem “os bordos da representação homossexual” com uma “meridiana [sic] clareza” (12). 13 Esta inclusão de elementos da cultura popular está ainda ao serviço da subversão camp de hierarquias, neste caso de hierarquias de valorização estética. 14 Embora esta questão esteja fora do âmbito deste capítulo, é, sem dúvida, sugestiva a forma como a concepção de modernidade de Sá-Carneiro, em “Manucure” e não só, parece aproximar-se do que Marshall Berman denominou como a “‘melting’ vision of modern life” de Marx (90). Toda a passagem de Marx e Engels é, de facto, pertinente para observar a proximidade entre a modernidade de Sá-Carneiro e aquela descrita por Marx no Manifesto of the Communist Party: “The bourgeoisie cannot exist without constantly revolutionising the instruments of production, and thereby the relations of production, and with them the whole relations of society. . . . Constant revolutionising of productyion, uninterrupted disturbances of all social conditions, everlasting uncertainty and agitation distinguish the bourgeois epoch from all earlier ones. All fixed, fast frozen relations, with their train of ancient and venerable prejudices and opinions, are swept away, all new-formed ones become antiquated before theu can ossify. All that is solid melts into air, all that is holy is profaned, and man is at last compelled to face with sober senses his real conditions of life, and his relations with his kind” (12).

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