Desenhar a 4D: O problema do Tempo e do Espaço no Desenho

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Desenhar a 4D: O Problema do Tempo e do Espaço no Desenho

Raquel Pelayo

Pelayo, Raquel. "Desenhar a 4D: O problema do tempo e do espaço no desenho". In Psiax Estudos e Reflexões sobre Desenho e Imagem, nº4 - Junho 2005, Universidade do Minho e Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, pp.15-18.

"Interessa-me saber se o trabalho de concretizar materialmente as imagens adquire características diversas, contraditórias, opostas ou complementares e se isso nos pode ajudar no seu estudo, na sua criação, produção e ensino." Joaquim Vieira1 Quando observamos desenhos ou outras imagens gráficas temos consciência de que estamos perante um estímulo óptico a duas dimensões: a altura e a largura. Efectivamente, ninguém confunde uma imagem com a realidade física que se nos apresenta a três dimensões: a existência da profundidade é que nos permite percorrer o espaço e até hoje ninguém chocou com uma imagem. No entanto é demasiado simplista pensar que existem realidades 2D (duas dimensões) e realidades 3D (três dimensões) e isto porque sem a quarta dimensão - o tempo não haveria nem observação do desenho nem deslocação no espaço. A etiqueta ou a distinção dual 2D e 3D funciona numa alienação do factor tempo e embora corresponda a uma necessária descomplexificação dos fenómenos para facilidade de manuseio não deixa de corresponder também a uma grosseira redução desses fenómenos à sua dimensão espacial quando se trata de refletir sobre desenho. Tal como ninguém confunde a realidade com a imagem gráfica também é verdade que a sugestão da profundidade das imagens sempre seduziu o homem, o que se confirma no extenso legado pictórico da humanidade. Esta produção imagética continua, hoje, com a novidade das cada vez mais fascinantes e verosímeis imagens da computação gráfica. No que diz respeito ao desenho consideramos que muito do seu fascínio advém do elevado grau de economia com que é possível sugerir a terceira dimensão. Não é novidade nenhuma para o desenhador experiente a aferição de que basta inadvertidamente carregar um pouco mais numa linha para que esta logo passe a sugerir uma concavidade indesejável na imagem ou que, pelo contrário traga ao desenho um outro valor expressivo involuntário mas que pode fazer toda a diferença na qualidade final do desenho. Enquanto na pintura se mobiliza um grande número de recursos para produzir o efeito da profundidade, no mais económico dos desenhos um passo em falso da parte do desenhador e eis que surge no suporte a configuração indesejada de um volume, ou uma ambiguidade visual. O desenho parece assim construir-se neste espaço paradoxal entre a instável representação de algo do mundo real (funcionando a 3D) e a auto-representação (funcionando a 2D). Neste contexto não constitui surpresa o facto de grande parte dos estímulos visuais

utilizados pelos investigadores no campo da psicologia da visão consistirem precisamente em desenhos. Muitos destes desenhos fenoménicos formam no seu conjunto uma grande colecção de situações de ambiguidade visual que só através do desenho é possível produzir e catalogar. As complexas relações entre as duas dimensões básicas do desenho, a altura e a largura, configuram infindáveis associações que tendem a ser lidas como informação visual tridimensional. Ou seja, como representações que se referem ao espaço tridimensional. Neste contexto o desenho não é nunca bidimensional: é o apenas ao nível físico e não o é, de forma alguma, ao nível da informação visual que o desenho conforma. Ao nível informacional o desenho tende fortemente a funcionar a 3D. Sobre a dimensão temporal do desenho poderíamos, à partida mas não sem leviandade, afirmar que esta não existe no desenho, uma vez que se trata de imagens fixas que, como vimos, funcionam no contexto de uma espacialidade euclidiana. Será que o tempo só está implicado no desenho se considerarmos o movimento? O próprio fenómeno da espacialidade é completamente alheio ao fenómeno tempo? Segundo a nossa concepção da natureza do desenho o tempo é um elemento chave na distinção dos territórios do desenho e da pintura2. Tem-se frequentemente refletido sobre o tempo no desenho no âmbito dos seus recursos na sugestão do movimento ou no âmbito do tratamento alegórico do tema tempo. Mas não é dentro destas perspectivas que nos interessa aqui pensar o tempo no desenho. Interessa sim inquirir se esta dimensão é ou não intrínseca ao desenho como já vimos ser a espacial. Ao contrário do espaço que funciona a três dimensões e nos permite ir de cima para baixo e de qualquer lado para outro, o tempo flui uniformemente e numa só direcção que é condição humana seguir. Efectivamente, não podemos voltar atrás no tempo a não ser em pensamento. A unidirecionalidade do fluxo temporal não deixa, no entanto, de ser constituída por dois momentos distintos: o passado e o futuro, funcionando o presente como um dinâmico ponto de passagem de um para o outro que se caracteriza pela sua continuidade e estabilidade. Tal como considerar o desenho um fenómeno 2D corresponde a reduzi-lo à sua dimensão física, também considerá-lo um fenómeno 3D corresponde a reduzi-lo a um documento de informação visual. Na realidade, o desenho é um fenómeno a quatro dimensões porque é um processo, e como tal decorre não só no espaço como no tempo. Assim, qualquer desenho é documento do seu tempo, distinguindo nós dois tempos no desenho: o tempo histórico e o tempo processual. O tempo histórico é o primeiro que nos ocorre. Um desenho ocidental do século catorze encerra em si o período em que foi produzido. É perspectivando o desenho desta forma que ele é tomado pelo historiador como documento visual da sua época, levando em consideração nele aquilo que é exclusivo de um determinado período de tempo no contexto temporal mais alargado que é o passado. Trata-se, portanto, de considerar no desenho, e de entre as suas características físicas, aquelas que permitem uma localização no fluxo temporal passado de que há memória. O tempo processual corresponde, grosso modo, ao tempo que o desenhador despendeu na sua execução. Trata-se daquilo que no desenho é resultado do ritmo de execução ou seja dos efeitos do ritmo de execução do desenho no desenho. Se a quantidade de vestígios do tempo

histórico num desenho pode variar muito - há desenhos que, no limite, consideramos até intemporais - o mesmo não sucede com o tempo processual que parece estar imbuído no desenho e ressalta a cada traço, linha ou mancha. Como exemplo consideremos a extensão de uma linha e a sua relação com a duração do gesto que a produz. Se mantivermos uma determinada velocidade de execução, o tempo que se despende a fazer três centímetros de linha é cerca de metade do que se despende a produzir seis centímetros. O aumento da velocidade de execução para o dobro é que pode fazer com que a linha de seis centímetros seja feita no mesmo tempo da de três. No entanto, neste caso o aumento de velocidade vai produzir efeitos colaterais que mudam completamente o carácter da linha que resulta formalmente diferente da que demorou mais tempo a riscar. Como se observa na figura 1 a linha em alta velocidade ganha em espontaneidade e perde em tensão, enquanto a linha morosa perde em espontaneidade e ganha em tensão.

Figura 1 - Efeitos da velocidade num segmento de reta. A - muito lento, B - lento, C - rápido.

A relação do desenho e do tempo é tão intrínseca como a relação do desenho com o espaço. Na verdade num desenho tudo parece resultar de uma sucessão linear de momentos de diversos tempos. Por oposição ao desenho, a fotografia capta instantaneamente um momento e nela o tempo de produção é reduzido ao instante, uma vez que a imagem surge toda ao mesmo tempo na película. No desenho isso nunca acontece porque ele tem sempre de ser construído e isso implica um tempo de execução, por mais rápido que seja. A imagem nunca se faz toda ao mesmo tempo. É impossível riscar a superfície toda ao mesmo tempo: é necessário começar num ponto e percorrer outros. Seja a linha ou a mancha, o desenho é sempre uma constelação de momentos que podemos desmontar. A desmontagem temporal de um desenho pode ser feita até certo ponto, dependendo do maior ou menor índice de vestígios dos gestos efectuados pelo desenhador exibido pelo desenho. Se considerarmos unidades temporais mínimas de diferentes durações para cada traço, linha ou mancha e unidades temporais médias para conjuntos similares de traços linhas

ou manchas poderemos, com base no conhecimento dos procedimentos técnicos e experiencia pessoal de desenho, reconstituir a ordem temporal de execução de um desenho3. Entende-se aqui que uma unidade temporal corresponde a um fragmento de desenho onde se verifica uma continuidade temporal. O início e fim dessa continuidade correspondem a descontinuidades da acção. Trata-se de uma espécie de encadeado de momentos que foram presente, se definirmos como momento presente um fragmento de duração muito variável directamente associado à duração de uma acção no que diz respeito ao seu início e seu término. A dimensão temporal do desenho encontra-se, assim, em estreita relação com o espaço bidimensional que lhe dá existência física. O elo de ligação entre tempo e espaço reside precisamente na acção que se desenvolve simultaneamente num tempo e num espaço. Este encadeado temporal do desenho é suspenso a determinada altura, em que nada mais se acrescenta, no entanto, acabar um desenho é quase insustentável porque há um estado de devir que é próprio do desenho e que resulta do facto de ele poder sempre ser continuado enquanto houver tempo e espaço físico no suporte. A suspensão do desenho resulta então da vontade do desenhador que o faz de forma deliberada pelas mais diversas razões. Muitas vezes o desenho possuí um carácter de acabamento que frequentemente o desenhador procura e que resulta de uma relação muito articulada entre as suas partes e que lhe confere o carácter de uma totalidade. A enfatização do devir do desenho em imagens cuja totalidade se insinua para logo o seu processo ser suspenso resulta no desenho que se diz inacabado. O desenho inacabado é aquele que tendo se processado na busca de uma coesão que o levasse a formar uma totalidade, não chega a atingi-la e fica em aberto por suspensão do seu processo antes de atingir essa totalidade. O resultado é que o cérebro do observador do desenho reage através da expectativa gerada pelo desenho e tende a acabá-lo com base nos elementos que lá estão, dentro de um número limitado de hipóteses, o que contraria a unicidade do desenho acabado depois de atingida uma totalidade. O desenho assim suspenso enfatiza a relação intrínseca do tempo e do espaço no processo de execução do desenho e ganha a capacidade de se projetar no tempo futuro do observador, constituindo-se este fenómeno como claro indício de que o tempo de execução do desenho é algo imediatamente apreensível ao observador como o são as suas dimensões espaciais. O desenho é sempre maior do que o que lá está fisicamente; tanto no que diz respeito à profundidade como no que se refere ao tempo. Ele não é um fenómeno 2D mas sim 4D (quatro dimensões). Razão pela qual no entendimento do fenómeno do desenho a exclusão das terceira e quarta dimensões é assaz empobrecedora porque o desenho é uma práxis e como tal configura-se na trilogia composta pelo tempo, pelo espaço e pelo sujeito. 1

Vieira, Joaquim, A necessidade de representação. Representação, Abstracção, Apresentação. In Psiax - Estudos e Reflexões sobre Desenho e Imagem, nº2 - Maio 2003, Universidade do Minho e Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, pp.15-27. 22

Pelayo, Raquel, Campo de Acção e Imediaticidade do Desenho. In Psiax - Estudos e Reflexões sobre Desenho e Imagem, nº1 - Março 2002, Universidade do Minho e Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, pp.35-38.

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Trabalho este que venho explorando no âmbito dos exercícios da segunda fase programática "Os desenhos do Desenho" da unidade curricular Desenho 2, do Curso de licenciatura em Arquitectura da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Este exercício foi instituído em 1999/2000 a partir das propostas apresentadas ao regente pelos assistentes Raquel Pelayo, Lino Fernandes e Armando Ferraz.

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