Desenho Inconsciente e Computação Gráfica como Linguagens de Projeto

May 26, 2017 | Autor: Ed Sarro | Categoria: Computer Graphics, Creativity, Drawing, Unconscious Processes, PROJECT
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DESENHO INCONSCIENTE E COMPUTAÇÃO GRÁFICA COMO LINGUAGENS DE PROJETO.

Ed Marcos Sarro1

Resumo: O texto que ora se apresenta trata de uma análise do processo de percepção e abstração da forma a partir de registros gráficos espontâneos e aleatórios, ou a partir de intervenções gráficas não intencionais cujo subproduto pode ser percebido como desenho por um observador sensibilizado. O texto descreverá experimentos efetuados pelo autor visando ilustrar suas reflexões e que envolveram a abstração e a sistematização de elementos visuais esteticamente válidos e significantes, a partir de garatujas, rabiscos, rascunhos e outros grafismos não intencionais sensibilizadores do olhar, mediadas por tecnologias digitais de representação. Ao final espera-se ter esboçado um caminho para a exploração do potencial criativo do inconsciente, no que tange a expressão gráfica, bem como sugerido uma alternativa de linguagem de projeto para estudantes de design e arquitetura que têm dificuldade com o desenho manual. O referencial teórico se baseia na psicologia da forma (Gestalt), nas teorias da percepção e nos textos acadêmicos sobre o desenho. Palavras-chave: desenho, design, inconsciente, artes, projeto.

Abstract: The text here presented is an analysis of the process of perception and abstraction of shape from spontaneous and random graphic records, or from unintended graphic interventions whose by-product can be perceived as drawing by a sensitized observer. The text describes experiments performed by the author in order to illustrate his reflections which involved abstraction and systematization of aesthetically valid and significant visual elements, from scribbles, doodles, sketches and other unintended artwork eye-sensitizers, mediated by digital representation technologies. At the end, we hope to have outlined a path for exploiting the creative potential of the unconscious, when it comes to graphic expression, and suggested an alternative design language for design and architecture students who have difficulty with free hand sketching. The theoretical framework is based on the psychology of the form (Gestalt), on theories of perception and on academic texts about drawing. Keywords: drawing, design, unconscious, arts, project.

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Professor de Desenho e Expressão/Representação Gráfica nos cursos de Design e Engenharia da Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, [email protected] e [email protected].

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Introdução No texto que ora se apresenta, nosso interesse reside no ato expressivo não figurativo enquanto gestual bruto e descompromissado (não necessariamente amorfo) e nas possibilidades criativas do gesto expressivo acidental, via exploração de material autográfico in natura por meio de técnicas digitais de representação. Nosso foco é o bidimensional, mais do que o tridimensional, por ser a linguagem na qual nós próprios nos sentimos mais competentes, no caso o desenho. E é exatamente o desenho que nos tem permitido algumas experimentações nesse âmbito. Dado o fato que nossa vivência profissional e acadêmica envolvem a prática e o ensino do desenho para fins de expressão e representação dentro das artes aplicadas, há tempos temos refletido sobre um processo criativo que envolva a coleta de registros gráficos aleatórios (feitos ou percebidos por um observador sensibilizado) que possam ser transformados em soluções gráficas de arte e design, com valor agregado, via meio digital. Também nos tem preocupado a realidade dos nossos cursos de design e arquitetura que recebem alunos cada vez menos aptos ao desenho a mão livre, mas que têm potencial para aprender a projetar. Em absoluto estamos aqui defendendo o não ensino do desenho em nossos cursos, mesmo porque isso deporia contra a nossa própria classe profissional, além de ser o desenho uma competência elementar. Entretanto, nossa experiência docente com as gerações mais jovens, que nasceram no ambiente digital, mas que têm baixa competência no desenho, nos leva a crer que o inconsciente e o computador podem ser aliados nesse processo formativo. Ademais, o computador deixou de ser apenas mais uma ferramenta para o trabalho criativo: Atualmente, os computadores, muitas vezes ridicularizados como nada além de uma ferramenta inteligente – em especial no contexto de arte e design – têm propiciado o surgimento de ideias realistas a artistas e designers e também de novos caminhos para concretizálas. É um tipo de mudança na forma de pintar bem diferente daquela que ocorreu anos 1870 (BANKS: CAPLIN, 2002, p.7).

Além disso, ao investigarmos o papel do inconsciente no processo de projeto, por meio desse tipo de desenho espontâneo, aliado à computação gráfica, estaremos de fato buscando uma fonte ainda pouco explorada de poder criativo, como afirma Ostrower, analisando o acaso na obra de arte:

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Meras coincidências? Incidentes fortuitos? Mas é assim que surgem os acasos significativos e de modo tão puramente circunstancial incendeiam nossa imaginação? Talvez. E talvez seja mais do que apenas isto. Pensando bem, até parecem uma espécie de catalizadores potencializando a criatividade, questionando o sentido de nosso fazer e imediatamente redimensionando-o. Talvez contenham mensagens, propostas nossas endereçadas a nós mesmos. Não captaríamos, nesses estranhos acasos, ecos do nosso próprio ser sensível? (OSTROWER, 1990, p.1)

Diante dessas premissas, queremos apresentar algumas experiências feitas por nós durante nosso Mestrado em Design e Arquitetura e depois em ambiente de sala de aula, com a participação de alunos, que podem ajudar a ilustrar nosso ponto de vista. Apenas fazemos a ressalva de que como não somos especialistas em Psicologia da Forma e da Arte, nossas considerações são feitas a partir de um ponto de vista empírico, com algum suporte teórico que uma pesquisa bibliográfica posterior, mais profunda, poderá completar de modo mais adequado.

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Tudo é desenho? Nossas indagações no tocante ao anteriormente exposto começaram a tomar forma ainda no Mestrado, quando cursávamos a disciplina “Sistemáticas de Pesquisa na Linguagem do Desenho”, da saudosa Profª Drª Elide Monzeglio, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Em meados dos anos 2000, numa de suas aulas, a professora Élide afirmou que tudo pode ser percebido como desenho. Em suas próprias palavras: “tudo é desenho”.

De fato, como observa Munari (2001, p.65 a 68) mesmo formas

aleatórias, surgidas sem intenção nem ação humanas podem adquirir alguma configuração reconhecível e mesmo inteligível por parte de quem as observa, como na brincadeira de identificar figuras nas nuvens ou como no desenho feito nas dunas de areia pelo vento2. Há vários signos gráficos que são entendidos como desenho por um observador, mesmo sem uma intenção por parte daquele ou daquilo que os produziu. Entretanto, Dworecki escreve: Se à expressão aderem o percebido, a consciência de percebê-lo, as intenções e as técnicas, está-se diante da representação. É como impregnar o traço de pessoalidade, tornando-o desenho. A expressão torna-se representação num ato de redução (DWORECKI,1999, p.114). A aerodinâmica do bólido dos automóveis (que implica no “coeficiente X”) é desenhada de tal forma que facilite a passagem das correntes de ar causadas pela velocidade. De certa maneira, o vento “desenha” o perfil de nossos carros. 2

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O autor aqui parece afirmar que desenho é todo traço obtido por um gestual intencional. Assim, diante dessas duas possibilidades de entender o produto do ato de desenhar – percebido como tal, mesmo quando espontâneo e inconsciente ou como resultado de um gesto intencional – buscamos verificar essas afirmações via experiências práticas.

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Do desenho inconsciente à forma percebida. A título de ilustração, tomamos a liberdade de descrever a experiência que fizemos neste sentido: atamos um pincel com tinta a um pequeno boneco de corda (Fig.1) que foi solto sobre uma folha de papel.

Figura 1 - Boneco de corda com pincel molhado atado.

Houve a necessidade de orientá-lo e ampará-lo para que não caísse da mesa, mas nunca direcionando o traçado. Deixamos que o brinquedo fosse imprimindo manchas de tinta no papel (Fig. 2) conforme ia se movimentando pelo efeito da corda e dos mecanismos externos3. O resultado lembrou um pouco a action painting (ou Gestualismo) de Pollock pela sua aparência caótica e por sua abrangência espacial. O pintor norte-americano Jackson Pollock (1912-1956) 3

A princípio ficamos sem saber se assinaríamos como autor a pintura ou não (por ter sido uma “obra” do boneco) mas nossa orientadora de Mestrado à época, Profª Drª Clice de Toledo Sanjar Mazzilli, nos disse que apesar de ter sido “feito” pelo boneco, o trabalho de fato era nosso. 4

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baseou sua arte da exploração da pintura espontânea, feita de borrões e linhas emaranhadas, inspirada no Tachisme francês (tache=mancha) que por sua vez se pautou na mesma lógica da caligrafia oriental, cuja preocupação não está na estética do caractere em si, mas na “sensação de perícia e inspiração que se deve fazer sentir em cada pincelada” (GOMBRICH, 2013, p.469). A arte de Pollock viria a atender [...] a duas vertentes opostas da arte do século XX: de um lado, a aspiração à simplicidade e espontaneidade infantis que remetem aos rabiscos daquele momento da vida anterior à formação de imagens; e, de outro, o sofisticado interesse nos problemas de “pintura pura” (GOMBRICH,2013, p.470).

No caso da pintura feita pelo boneco de corda, é possível perceber também certo ritmo na sucessão de pinceladas obviamente definido pelo funcionamento do motorzinho a corda.

Figura 2 - manchas no papel produzidas a pincel pelo boneco de corda.

Para verificar o tipo de percepção a pintura poderia causar, digitalizamos a imagem e a publicamos em um blog, posteriormente pedindo a amigos e colegas que acessassem a página na internet e respondessem às seguintes perguntas: 5

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1- O que você pensa que seja isso? 2- Quem você imagina que tenha feito? 3- O que significa para você?

Algumas respostas: 1 - Uma pintura em guache, em cartolina... 2 - Uma criança, do pré-primário, aprendendo a mexer com tintas. 3- Para mim não significa nada, apenas me faz lembrar meus tempos de prézinho... (Viviane)

1- Um tecido em que foram limpando os dedos enquanto mexiam com tinta. 2- Alguém que pintava um quadro. 3- Para mim não significa nada. (Daniele)

1- Uma imagem abstrata, sem definição de uma forma conhecida pelo homem. 2- Imagino que tenha sido feito por algum pintor. 3- Para mim, significa [sic] grafismos que formam um design indefinido, apenas um projeto gráfico sem definição de uma imagem ou resultado concreto. (Tadeu)

1- Isto não passa de um papel onde um pintor limpou os pinceis enquanto desenhava um quadro. 2- Um pintor. 3- Significa que deve existir um quadro com as mesmas cores figuradas aí. (Anderson)

1- Arte abstrata 2- Crianças, mas pode ser algum artista abstrato americano, sei lá. 3- Eu infelizmente não manjo de arte abstrata, e me sentiria incapaz de discorrer sobre o tema. Em termos de o que significa pra [sic] mim... Realmente é difícil. Não consigo sentir muita coisa sobre esse tipo de trabalho. Ou quase nada. (Ruy)

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1- De alguma forma, essa imagem me transmite uma sensação alegre. Traduz um estado festivo, talvez. 2-Alguém que queria de alguma forma agradar e chocar ao mesmo tempo. Que ficasse registrado esse sentimento que confunde a vontade de viver uma alegria sem a coragem para tal. 3- Uma alegria tentando ganhar seu espaço, ainda que ao fundo predomine uma sombra escura. Sei lá, foi o que eu senti. Espero ter contribuído. De toda forma, alguma coisa nesta pintura, de um modo geral, me transmite uma coisa boa. (Rosângela)

1. A imagem de uma rodovia com cidades ao redor. 2. Um satélite identificando áreas com cores de acordo com a quantidade de vida existente. 3. Significa o mundo em que vivemos. Observar a vida através de um novo ângulo e novas cores. (Raquel)

1) Pessoas de todas tribos. 2) Alguém muito famoso que desconheço. 3) Pessoas na multidão que perdem sua identidade e a reconquista quando estão isoladas. (Jairo)

1-Parece uma obra de arte ou "arte" de criança. 2-Um artista ou uma criança. 3-Uma ilusão, uma brincadeira... (José) Apesar de feita com um número muito pequeno de respondentes4, a pesquisa apontou semelhanças de percepções em alguns casos, mas também maneiras muito distintas de ver e interpretar um registro visual. Isso nos levou a resgatar outra ideia de Munari (2001, p.10) que afirma que cada um vê o que conhece.

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No geral eram pessoas que não se conheciam e de origens e de atuações profissionais diferentes (designers, contadores, advogados, administradores, auditores etc.). A maioria sem ligação com o desenho. 7

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Desse modo, essa experiência nos levou a pensar que desenho pode ser de fato o registro de um gesto com intenção, mas também a leitura que alguém venha a fazer sobre uma intervenção gráfica. Essa última ideia levou-nos então a pensar na possibilidade de elaborarmos um processo de abstração da forma a partir de grafismos sem significado objetivo inicial, de modo a extrair valor estético deles, a princípio inconsciente e livre dos crivos do desenho intencional ou das influências da linguagem e do estilo individual, e também de desautomatizar o gesto e o traço. Esse episódio sugeriu-nos a possibilidade de elaborarmos uma metodologia que permitisse a pesquisa criativa a partir de elementos plásticos acidentais, de modo a liberar a relação mão-olho das tendências e limitações pessoais, com a ajuda de meios digitais.

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Da forma percebida ao desenho intencional. Outra experiência que pedimos licença para relatar à guisa de ilustração foi a de fotografar com a câmera digital de um palm top uma superfície de tampo de mesa cuja pintura estava craquelada. O programa gráfico que acompanhava a câmera do palm permitia riscar e escrever ou digitar textos sobre a foto (Fig. 3 e 4).

Figura 3 - Foto de pintura craquelada de tampo de mesa de madeira feita com palm top.

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Figura 4 - Foto trabalhada com programa gráfico do palm top.

Essa possibilidade nos deu uma ideia que acabou se juntando a outra: captar rabiscos, manchas, marcas e outros sinais gráficos que ficavam no mata-borrão da nossa mesa de trabalho e no bloco de notas do telefone, como restos ou subprodutos de nosso trabalho e lide diária e transformá-los em elementos gráficos dotados de alguma estética.

Isso, de certa forma, nos ajudaria a experimentar com o

descondicionamento do traço e permitir a exploração de elementos gráficos espontâneos e não artificialmente gerados. Assim, imaginamos fotografar com a câmera do palm esses vestígios, desenhar sobre eles no próprio palm e depois abrir esses registros em um programa gráfico de manipulação de imagens mais potente (do tipo Photoshop) num computador pessoal convencional, experimentando novas configurações e possibilidades gráficas. Alguns critérios pensados para organizar essa experimentação poderiam ser os sistemas cromáticos (combinação de cores complementares, por exemplo) ou as leis da Gestalt. Imaginamos também buscar algum princípio matemático inconsciente e espontâneo que acabasse direcionando a produção dos elementos gráficos originais. O fato de a fotografia ser um pouco granulada, por conta da baixa resolução, poderia produzir um resultado gráfico interessante. Fotografamos com o palm manchas de nossa mesa de trabalho (e também um sulco curvo que havia na fórmica

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da mesa na sala dos professores da universidade onde lecionávamos) e desenhamos sobre essas fotos com o palito do próprio palm e depois tratamos as imagens no Photoshop, no computador desktop. Sobrepusemos camadas com níveis diferentes de opacidade de três fotos tiradas com o palm, invertidas ou rebatidas. O resultado foi interessante, apesar de incipiente (Fig. 5):

Figura 5. Foto de tampo de mesa de fórmica com sulcos feita com o palm top e trabalhada no Photoshop.

Fizemos ainda outra experiência a partir com traços surgidos de forma espontânea em um bloco de recados do escritório e sobre um papel cartão que ficava sobre a escrivaninha, e que servia de apoio para desenharmos e onde também rabiscávamos eventualmente durante conversas ao telefone. Tiramos fotos e também digitalizamos esse material no computador (Fig.6 e 7). Nossa primeira experiência foi tentar extrair as linhas mais expressivas diretamente da imagem digitalizada e compôlas no Photoshop.

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Figura 6: papel com rabiscos aleatórios.

Figura 7: seleção de grafismos feita no computador.

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Depois disso, vetorizamos esse desenho no programa CorelTrace de modo a poder trabalhar mais livremente com as formas no CorelDraw, buscando um efeito que lembrasse a serigrafia, inclusive com a inclusão de planos e cores. Após desmontar, girar, rebater, alargar e diminuir os vetores - inclusive trabalhando com as relações entre cores complementares - formas e posicionamentos na composição5; obtivemos de um todo harmônico e agradável aos olhos (Fig. 8).

Figura 8: composição abstrata a partir da vetorização de rabiscos.

O elemento em preto, maior, ganhou certa organicidade, lembrando algo quase humano.

Os demais traços às vezes assumiram a semelhança com

ideogramas orientais e eventualmente secções da composição poderiam se tornar grafismos, padronagens de tecido, tapetes, ladrilhos ou elementos de uma marca. Poderia eventualmente sair daqui a estrutura formal (registrada através do traço puro, espontâneo) para o desenho de algum objeto ou produto de desenho industrial. De fato, uma porção de grafismos isolados dos demais e tratada no computador nos levou a ter a percepção de um perfil de cadeira (Fig. 10). Entendemos ser importante fazer

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Outra experiência foi virar o trabalho na vertical, o que deu mais movimento e mais dinamismo à composição. 12

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essas análises porque esses exercícios parecem permitir a extração de um tipo de grafismo pessoal que não passa pelo icônico, uma vez que é gerado de forma espontânea e inconsciente. Pelos meios digitais foi possível desenvolver uma proposta de experimentação com grafismos surgidos a partir do gestual espontâneo e inconsciente, desautomatizando o traço e permitindo a extração da forma e a obtenção de valor estético.

Figura 10: perfil e perspectiva de cadeira obtidos a partir de manipulação da forma no computador.

De fato, o grande desafio é desenvolver a capacidade de observar as formas aleatórias e abstrair delas sentido ou valor estético e isso requer treinamento do olhar. Na verdade, é uma coisa em partes instintiva e universal, em partes que requer investimento na ampliação do repertório visual pessoal: Ver significa captar algumas características proeminentes dos objetos[...]. Umas simples linhas e pontos são de imediato reconhecidas como “um rosto”, não apenas pelos civilizados ocidentais, que podem ser suspeitos por estarem de acordo com o propósito dessa “linguagem de signos”, mas também por bebês, selvagens e animais (ARNHEIM, 1989, p.36).

Isso parte da premissa que nós construímos nossa percepção a partir da introjeção de estruturas gerais que funcionam como uma gramática visual com a qual lemos (e antes disso, escrevemos) o mundo: [...] estrutura é uma simplificação que nasce de um ponto de vista [...]. Uma estrutura é um modelo construído segundo certas operações simplificadoras que me permitem uniformar fenômenos diferentes com base num único ponto de vista (ECO, 2005, p.36).

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A sensibilização do olhar e o desenvolvimento da capacidade de compor estruturas a partir da seleção de elementos visuais disponíveis é uma competência que pode ser desenvolvida, dependente ou não da aptidão do indivíduo para o desenho: O processo de composição é o passo mais crucial na solução dos problemas visuais. O resultado das decisões compositivas determinam o objetivo e o significado da manifestação visual e têm fortes implicações com relação ao que é recebido pelo expectador. (DONDIS, 1997, p.29).

Talvez

mais

importante

do

que

aprender

a

expressar-se

intencionalmente por meio dos recursos de representação gráfica, a formação do futuro artista, designer ou arquiteto deveria privilegiar a capacidade de abstrair sentido estético e harmonia de elementos visuais aparentemente caóticos ao primeiro olhar: Toda experiência visual é inserida num contexto de espaço e tempo. Da mesma maneira que a aparência dos objetos sofre influência dos objetos vizinhos, assim também recebe influência do que viu antes [...]. O que uma pessoa vê agora, segundo nos disseram, é somente o resultado do que viu no passado (ARNHEIM, 1989, p.41).

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O desenho abstraído enquanto linguagem de projeto.

Experiência semelhante (desta vez com uma proposta objetiva) foi conduzida em ambiente de ensino, com os alunos do curso de pós-graduação6 em Design Gráfico do Centro Universitário Senac, em Campinas, nas turmas de 2009 e 2010. Utilizando softwares de tratamento de imagens e programa gráfico vetorial (PhotoShop e CorelDraw), os alunos foram orientados a repetir os mesmos procedimentos realizados por nós a partir de seus próprios rabiscos, garatujas ou de fragmentos de forma retirados de histórias em quadrinhos7, de modo a produzir composições abstratas e elementos visuais que poderiam gerar logos, marcas, padrões gráficos etc. Os resultados obtidos foram bastante interessantes, apesar do caráter essencialmente didático do exercício (Fig. 11 a 14).

A disciplina chamava-se “Design Experimental 2”. Experiência semelhante com a plástica da forma de histórias em quadrinhos foi feita por alguns artistas na exposição Comics Abstraction acontecida no MoMa de Nova York em 2002, a qual nos inspirou a incluir também essa possibilidade no exercício. 6 7

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Figura 11: Textura produzida pela ex-aluna Ana a partir de fragmento de HQ.

Figura 12: Textura produzida pela ex-aluna Julia Mayumi a partir de fragmento de desenho manual.

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Figura 13: Composição produzida pelo ex-aluno Jaime a partir de fragmento de história em quadrinhos.

Figura 14: Trabalho de ex-aluno Jeancarlo

6 Conclusão Assim, sem pretensões de esgotar o assunto em algumas poucas páginas (talvez esse tema mereça uma pesquisa mais extensa e profunda, quem sabe em nível de pós16

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doutorado) entendemos que o valor deste texto está em propor a construção de uma metodologia de projeto que alargue as possibilidades plásticas do desenho inconsciente no processo criativo. Além da maior compreensão de aspectos inconscientes e espontâneos do traço, o trabalho propõe que se invista também em maneiras de exercitar o olhar e de aumentar a sensibilidade para a observação de diferentes tipos de registro gestual não intencional. Entendemos que, evitando o crivo da censura e as limitações de estilo e de competência pessoal para o desenho8, é possível exercitar o olhar de modo a enxergar soluções formais esteticamente válidas, (mesmo a partir de registros gráficos com aparente menor valor) e aplica-las como linguagem de projeto com o auxílio de ferramentas digitais De fato, o exercício de sensibilizar superfícies por meio da coleta e posterior seleção de grafismos não é algo novo: o exercício de frotage proposto por Munari (2001, p.13-15) nos anos 1960 é, há tempos, uma prática comum nas primeiras séries de vários cursos de design. Talvez o elemento novo no texto que ora se apresenta seja o resgate do papel criativo do inconsciente associado ao uso da computação gráfica. Por fim, uma pesquisa posterior poderá ajudar a estruturar um conjunto de procedimentos que vise a organizar o processamento desse material, apoiado nas metodologias de projeto consagradas pelo uso e fundadas na literatura.

Referências ARNHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989. ASUNCIÓN, Josep: GUASCH, Gemma. Traço: pintura criativa. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. BANKS, Adam: CAPLIN, Steve. O essencial da ilustração. São Paulo: Editora Senac, 2012. BESTAGNINO, Enrica. Disegno-Design: rappresentazione. Milão: FrancoAngeli, 2010.

introduzione

alla

cultura

dela

CHING, Francis D.K.: JUROSZEK, Steven P. Representação gráfica para desenho e projeto. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 2001.

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JULIÁN e ALBARRACÍN (2005, p.63) afirmam que às vezes um projeto não precisa começar pelo desenho bidimensional, mas que eventualmente um designer pode se sentir melhor trabalhando a partir de um modelo tridimensional simples (mock-up) de material menos nobre e moldável, a título de estudo preliminar de volumetria (como as maquetes de papel de Paulo Mendes da Rocha). 17

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DONDIS, Donis A., Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005. DWORECKI, Silvio. Em busca do traço perdido. São Paulo: Scipione Cultural, 1999. ECO, Umberto. A Estrutura Ausente - Introdução à Pesquisa Semiológica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. EDWARDS, Betty. Desenhando com o lado direito do cérebro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1984. FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado – Por uma Filosofia do Design e da Comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007. FONTOURA, Ivens. De-composição da Forma: manipulação da forma como instrumento para a criação. Curitiba: Editora Insight, 2015. FRUTIGER, Adrian. Sinais e Símbolos – Desenho, Projeto e Significado. São Paulo: Martins Fontes Editora,1999. GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2013. ______________ Arte e Ilusão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2007. GOMES FILHO, João, Gestalt do Objeto – Sistema de Leitura Visual da Forma. São Paulo: Editora Escrituras,2004. JULIÁN PÉREZ, Fernando: ALBARRACÍN, Jesús. Desenho para designers industriais, Lisboa: Estampa, 2005. KANDINSKY, Wassily. Punto, Linea, Superficie. Milão: Adelphi Edizioni, 2010. LEBORG, Christian. Gramática Visual. São Paulo: Editora G. Gilli, 2015. MUNARI Bruno, Das Coisas Nascem Coisas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001. ____________, Arte come mestiere. Roma: Editori Laterza, 2007. ____________, Artista e Designer. Roma: Editori Laterza, 2007. ____________, Design e Comunicação Visual, São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001. OSTROWER, Fayga. Acasos e Criação Artística, Campinas: Editora Campus, 1990. STINY, George. Shape: talking about seeing and doing. Cambridge: The MIT Press, 2006.

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