Diagnóstico de tempo e transformação da crítica: Habermas e a origem da reconstrução

May 27, 2017 | Autor: Luiz Philipe de Caux | Categoria: Critical Theory, Jurgen Habermas
Share Embed


Descrição do Produto

DIAGNÓSTICO DE TEMPO E TRANSFORMAÇÃO DA CRÍTICA: HABERMAS E A ORIGEM DA RECONSTRUÇÃO ____________________________________ Luiz Philipe de Caux1 RESUMO Os objetivos do artigo são explicitar a concepção original do modelo crítico reconstrutivo, por parte de Jürgen Habermas, como um esforço consequente de saída de um dilema enfrentado pelo autor a partir da imposição de um diagnóstico de tempo e demonstrar a condicionalidade deste novo modelo à correção deste diagnóstico. Em face do estágio do assim chamado capitalismo tardio, Habermas constata a impossibilidade histórica de persistir no modelo da crítica da ideologia, pois o conflito social no interior do qual tal forma de crítica poderia atuar se encontraria desativado ou imobilizado em razão da forma crescentemente tecnicizada aquirida pelas relações de interação. Diante dessa aporia, Habermas desenvolve o procedimento reconstrutivo como reflexão de segunda ordem, num passo para fora das relações sociais concretas e em direção a suas condições transcendentais de possibilidade, a fim de garantir ao menos o recurso às regras contrafáticas com base nas quais a crítica restaria, num segundo momento, assegurada. Palavras-chave: Teoria Crítica da Sociedade; Crítica da ideologia; Reconstrução; Capitalismo tardio; Habermas ABSTRACT The objectives of the article are to explicitate the original conception of the reconstructive critical model by Jürgen Habermas as a consistent attempt of leaving a dilemma faced by the author with the imposition of a time diagnosis and to evidence the conditionality of this new model to the rightness of that diagnosis. In view of the stage of the so called late capitalism, Habermas verified the historical impossibility of persisting in the model of critique of ideology, because the social conflict within which such kind of criticism could operate was supposed to be deactivated or imobilized due to the increasingly technicized form assumed by the relations of interaction. In response to that aporia, Habermas develops the reconstructive method as a second-order reflection, in a step out of the concrete social relations and in the direction of its transcendental conditions of possibility, in order to guarantee at least the access to the counterfactual rules with which criticism would remain guaranteed in a second moment. Keywords: Critical Theory of Society; Ideology Critique; Reconstruction; Late Capitalism; Habermas

1

Mestre e doutorando em Filosofia pela UFMG. E-mail: [email protected].

56

I. Como notam alguns de seus comentadores (NOBRE, 1998, p. 32; REPA, 2008a, pp. 45-46), o problema que se põe a Habermas e que o leva à necessidade da formulação de um novo modelo crítico advém de uma variante (MARRAMAO, 1982, p. 243) do diagnóstico de tempo que dera ensejo às formulações dos membros do círculo interno do Instituto de Pesquisa Social, Horkheimer, Adorno e Marcuse, na forma que estas assumiram desde o início dos anos 1940. Todos eles entenderam suas elaborações teóricas como tentativas de preservar os objetivos da crítica marxiana e de, ao mesmo tempo, dar conta de “um contexto histórico de ordem superior – uma transformação epocal do capitalismo na primeira parte do século vinte” (POSTONE, 2004, p. 165) que teria retirado da crítica da economia política senão sua validade, ao menos sua força e atualidade. O primeiro diagnóstico dessa transformação e a extração de suas consequências foram oferecidos por Friedrich Pollock, economista pertencente ao Instituto. Suas conclusões, obtidas, por certo, com ajuda do instrumental analítico da crítica da economia política, mas de caráter pouco ortodoxo para o marxismo em geral, marcaram todo o desenvolvimento da escola crítica frankfurtiana. Em seu artigo State Capitalism, publicado no volume de 1941, o último do periódico oficial do Instituto, encontra-se uma consolidação dos resultados da investigação executada desde o início dos anos 1930. Ali, Pollock assume que o capitalismo de livre mercado e livre iniciativa, ao se tornar um instrumento inadequado para utilização dos recursos disponíveis, dá lugar irrevogavelmente a uma nova configuração do sistema econômico, que, todavia, não se torna socialista. Ao modelo teórico ou tipo ideal apto a apreender essa nova realidade, Pollock chama de “capitalismo de Estado”, que se distingue da configuração precedente pela avocação pelo Estado da função do mercado de coordenar a produção e distribuir bens por intermédio de suas leis econômicas. O Estado passa a controlar direta e conscientemente todo o processo econômico, com o objetivo de dar pleno emprego a todos os recursos. Para tanto, busca determinar ativamente as necessidades da sociedade, alocar eficientemente os recursos disponíveis, coordenar e controlar os processos produtivos visando à melhor performance e distribuir adequadamente o produto social, de modo que nada de essencial fique relegado ao funcionamento das leis do mercado. Com essa reconfiguração da relação entre Estado e mercado, os problemas econômicos, ou ainda, aqueles que caracterizam a dinâmica macroeconômica, tornam-se 57

antes problemas políticos. Isso muda o caráter de todo o período histórico: “significa a transição de uma era predominantemente econômica para uma era essencialmente política” (POLLOCK, 1980, p. 207)2. Assim, o sentido da determinação da superestrutura jurídica e política pela base real da totalidade das relações de produção, como o exprimira Marx numa fórmula elementar (MARX, 1982, p. 25), é como que posto de ponta-cabeça3. Com o fim da autonomia do mercado, também as leis econômicas têm sua aplicação suspensa. A economia como ciência social perde, assim, seu objeto e seu lugar é ocupado por uma técnica da administração racionalizada do processo econômico. As contradições inerentes ao sistema econômico capitalista, incluindo a que se mostra na lei da queda tendencial da taxa de lucro, são neutralizadas pela direção burocrática do processo econômico. Nesse contexto, o prognóstico de Pollock é pessimista: “Até onde estamos advertidos, somos incapazes de descobrir quaisquer forças econômicas inerentes, ‘leis econômicas’ do antigo ou de um novo tipo, que pudessem impedir o funcionamento do capitalismo de Estado” (POLLOCK, 1980, p. 217). Como nota Postone, a possibilidade de que o capitalismo venha a dar lugar ao socialismo “não podia mais ser considerada imanente ao desdobramento de uma contradição intrínseca a uma economia que põe a si mesma em movimento” (POSTONE, 2004, p. 174). Os únicos limites que poderiam vir a se impor ao capitalismo de Estado seriam de natureza política: não seriam esperadas mais crises econômicas, mas apenas (se é que, de fato, se pudesse esperar por alguma) crises da ordem de legitimação. Outra consequência é que a crítica da economia política, “o modelo clássico de teoria crítica” (BOLTE, 1995, p. 31), perde seu âmbito de aplicação com o retraimento do sistema econômico da posição de primazia na determinação da totalidade social. Tornase preciso, para se manter fiel às pretensões teóricas e práticas de Marx, mesmo contra a letra de seu texto, complementá-lo e atualizá-lo em face das transformações que a última crise estrutural do capitalismo trouxera. Esse diagnóstico econômico atravessa, como pano de fundo, a obra de todos os autores do círculo interno do Instituto de Pesquisa Social4. Quando, na década de 1960, Habermas recusa gradualmente o quadro categorial de pressuposições de fundo assumidas por Adorno (HONNETH, 1982), tem, com isso, de enfrentar novamente a tarefa de elaborar uma teoria crítica da sociedade em um estágio do capitalismo que considera como Salvo indicação em contrário, todas as traduções são de responsabilidade do autor. Marramao nota, o que chama de "aporia frankfurtiana clássica", que mesmo tal inversão é determinada como consequência ou resposta dependente à crise do mercado, que segue assim contando, subterraneamente, com a precedência de determinação. Cf. Marramao, 1980, p. 245. 4 Embora nenhum deles assinta, de fato, com todos os pressupostos e consequências da análise de Pollock. Cf. Pedroso, 2009. Para o caso específico de Adorno, cf. Fleck, 2015, pp. 82-97. 2 3

58

ainda muito semelhante àquele diagnosticado por Pollock, mas consolidado e estabilizado em sua forma democrática5. O próprio Habermas registra as condições históricas que não poderiam ser negligenciadas pela crítica no início de seu texto Entre filosofia e ciência. No estágio de desenvolvimento do capitalismo organizado, como ali o chama, a separação entre Estado e sociedade como condição abstrata daquela determinação da política pela economia pressuposta no enquadramento legado por Marx e própria da fase liberal do capitalismo, é suspensa no entrecruzamento recíproco das duas instâncias. Como Pollock, também Habermas chega daí ao resultado de que a crítica da economia política, por si só, não é mais o meio adequado de crítica do capitalismo. Ademais, a elevação do padrão material de vida nos países de capitalismo avançado teria feito com que o interesse pela emancipação da sociedade não mais se articulasse de modo imediato por um vocabulário econômico. O abrandamento daquele aspecto primeiro e elementar da alienação, a alienação do trabalhador do produto de seu trabalho, que ora ali se expressara na miséria, faz agravar até o extremo os demais aspectos de alienação tratados pelo jovem Marx (2010, pp. 80-86), a alienação de si mesmo e de sua própria atividade, a alienação da espécie humana, a alienação dos outros homens; ou, como Habermas o põe: “o pauperismo do trabalho alienado encontra seu reflexo distante, em todo caso, num [pauperismo] do tempo livre alienado” (HABERMAS, 1971a, p. 228). Essa alienação, que ora se expressa no sofrimento e adoecimento psíquico e no vazio da satisfação fácil de necessidades que não são as próprias, tem por contraparte uma integração social robusta, operada não mediante a ordem direta, pessoal e mais ou menos transparente do contrato de trabalho, mas pela ordem indireta, anônima e opaca da legitimação política alcançada por tecnologias sociais. A dissolução do proletariado enquanto proletariado, além disso, é mais um fato que precisaria ser levado em conta na reconsideração do diagnóstico pollockiano. Habermas não questiona que a grande massa da população prosseguiu, objetivamente, sendo proletária, isto é, privada dos meios de produção e forçada a alienar sua força de trabalho. Contudo, aquilo com o que a teoria não poderia mais ter para si é que o proletariado se experimentasse como proletariado, algo que a teoria crítica anterior, a de Horkheimer e Adorno, aliás, já havia apontado em sua contraposição a Lukács. “Sob essas Não é o caso, neste artigo, de se avaliar a pertinência geral dos diagnósticos de tempo descritos, mas apenas de demonstrar, ao modo da história da filosofia, sua relevância para compreensão da introdução do modelo reconstrutivo habermasiano. Indiretamente, todavia, restaria demonstrada a condicionalidade da validade do modelo reconstrutivo habermasiano à correção do diagnóstico de tempo no qual ela se embasa. Caso tal diagnóstico se mostre incorreto, como os desenvolvimentos históricos posteriores parecem apontar, perde-se igualmente o sentido do giro reconstrutivo proposto por Habermas. Para uma crítica do diagnóstico do capitalismo de Estado, cf. Postone, 2014. 5

59

circunstâncias”, isto é, na ausência de uma consciência de classe com a qual se possa contar, “toda teoria revolucionária carece de seus destinatários” (HABERMAS, 1971a, p. 229). Mesmo que se replique veladamente na divisão internacional do trabalho, no nível intranacional a luta de classes se encontraria desativada. Uma primeira solução para a persistência da crítica na difícil situação do capitalismo tardio é vislumbrada, assim, na operação da reflexão, cujo objeto são justamente as formas de conhecimento autonomizadas da práxis. À reflexão cabe a descoberta dos interesses não conscientes das distintas formas de conhecimento. Nesses interesses, num movimento reverso, a crítica poderia se apoiar para permanecer imanente ao objeto criticado. Como a teoria crítica do primeiro Horkheimer, também para Habermas a crítica deveria ser crítica da teoria tradicional. A aula inaugural de Habermas em Frankfurt em 1965 esboça em grandes linhas o modelo crítico que seria desenvolvido nos anos seguintes. A conferência, de título Conhecimento e Interesse, vem consolidar, ainda, uma resposta à chamada querela do positivismo nas ciências sociais, na qual Habermas tomara parte ao lado de Adorno nos anos anteriores. Ali Habermas distingue três categorias de processos investigativos correspondentes a três interesses condutores do conhecimento. As ciências analíticoempíricas se fundam sob “um interesse do conhecimento pela disposição técnica de processos objetivados” (HABERMAS, 1968a, p. 157); as ciências hermenêutico-históricas, num interesse prático do conhecimento por um “possível consenso da ação no quadro de uma autocompreensão transmitida” (HABERMAS, 1968a, p. 158); por fim, as ciências sociais críticas, na medida em que, por meio da autoreflexão, “se esforçam por pôr à prova os enunciados teóricos que capturam legalidades invariantes da ação social em geral e os que capturam relações de dependência ideologicamente solidificadas e em princípio modificáveis” (HABERMAS, 1968a, p. 159), revelam sua determinação por um interesse emancipatório do conhecimento. A tais ciências pertencem a crítica da ideologia, a psicanálise e a filosofia, esta última apenas na medida em que se volte tanto contra o objetivismo das ciências (como é o caso do positivismo) quanto à aparência de teoria pura (como o caso da solução husserliana) e conserve seu direito de existência enquanto crítica. Os interesses condutores do conhecimento se configuram, por sua vez, dentro de três meios de socialização: o trabalho, a linguagem e a ordem de dominação (ou interação, como preferirá Habermas mais tarde). Pelo meio do trabalho, onde se inserem as ciências analítico-empíricas, assegura-se o interesse do gênero humano pela sobrevivência na forma da adaptação às condições externas de vida. Pelo meio da linguagem, onde atuam as ciências hermenêutico-históricas, o gênero humano, orientado por um interesse prático, 60

garante sua integração por valores comuns transmitidos na comunicação cotidiana. Por fim, no interior das relações de dominação, nas quais as identidades individuais se estabilizam de forma tensa entre as pretensões pulsionais do indivíduo e a coação das normas sociais ou de grupos, é o interesse emancipatório da humanidade que orienta a autorreflexão crítica das ciências, que, nesse movimento, descobrem a si mesmas como cristalizações ideológicas legitimadoras das respectivas ordens de dominação. “O interesse emancipatório do conhecimento visa à realização da reflexão enquanto tal” (HABERMAS, 1968a, p. 164). Movendo-se conscientemente no interior de uma estrutura de dominação, a filosofia crítica tem de refletir sobre essas condições naquilo em que elas distam de uma situação de diálogo livre e sem coerção, situação que a compreensão positivista das ciências imagina erroneamente possuir sempre já. Ela leva adiante o processo de emancipação humana ao reconstituir o reprimido a partir de vestígios históricos da repressão do diálogo. Três anos depois da apresentação de seu programa de pesquisa, Habermas publica o livro Conhecimento e Interesse, onde a ligação da teoria do conhecimento a uma teoria da sociedade é aprofundada com base numa nova interpretação dos compromissos epistêmicos de Marx, mas desta vez sob a novidade das lentes da filosofia do espírito do jovem Hegel. Nas preleções e fragmentos que Hegel deixara em seu período de Jena anteriores à redação da Fenomenologia, Habermas reencontra aqueles três media de socialização e formação do indivíduo aos quais fizera corresponder os três interesses condutores do conhecimento. As categorias do trabalho e da interação ali encontradas devem servir para redescrever o diagnóstico do capitalismo tardio e da persistência da situação de dominação apesar do fim virtual da escassez de recursos, além de se prestarem para contestar a primazia da dimensão do trabalho que se encontraria em Marx. Se cada tipo de conhecimento é guiado por interesses inseridos numa dessas dimensões, cada um deles se moverá no interior de uma dialética própria: as ciências empírico-analíticas são agentes da dialética do trabalho; as hermenêutico-históricas, da dialética da linguagem; e as ciências sociais críticas, que operam como autorreflexão crítica das demais ciências, da dialética da eticidade. Entender as determinações e tarefas da teoria crítica, portanto, passa pela reconceituação do conflito social no interior do qual ela opera, entendendo a autonomia relativa da dialética da interação ética em relação às do trabalho e da linguagem. Nos Grundrisse de Marx, Habermas encontra uma outra concepção para o desenvolvimento das relações de produção distinta daquela que seria a “concepção oficial”, a de um automatismo da evolução social determinado pelo estado de desenvolvimento técnico. Nos manuscritos preparatórios para O Capital, Habermas acredita poder distinguir 61

novamente a autonomia relativa das dimensões do trabalho e da interação. Habermas sustenta ali que, se, num nível categorial, Marx só conhece o trabalho como ação instrumental, em suas investigações materiais Marx conta com um conceito de práxis social que abarca trabalho e interação (HABERMAS, 1979, p. 71). Desvendar o status epistemológico distintivo da crítica, fazendo por Marx o trabalho que ele não teria feito, passa, então, por relê-lo a luz dessas categorias da qual ele mesmo teria lançado mão inadvertidamente. Se, da perspectiva exclusiva da dimensão do trabalho ou da evolução das forças produtivas, a espécie humana aparece como um todo unitário em face da natureza que é para ela objeto, a assimetria entre as medidas de repressão imposta aos diferentes grupos sociais que a compõem internamente, que Marx chamara de relações de produção, impõe à teoria a perspectiva da dimensão da interação. Se Marx não levara adiante as considerações dos Grundrisse sobre a relação de externalidade e interdependência entre as duas dimensões, Habermas invoca novamente aquele momento da história da teoria em que essa relação teria sido tematizada, a dialética da eticidade no jovem Hegel, para tirar daí conclusões quanto ao lugar da teoria e da crítica. A síntese pelo trabalho medeia o sujeito social com a natureza externa enquanto seu objeto. Mas esse processo de mediação se entrecruza com uma síntese pela luta, que, por sua vez, medeia dois sujeitos parciais da sociedade, isto é, classes sociais, que fazem um ao outro de objeto. Em ambos os processos de mediação, o conhecimento, a síntese de material da experiência e formas do espírito, é apenas um momento: naquele, a realidade é interpretada sob um ponto de vista técnico, neste, sob um ponto de vista prático. A síntese pelo trabalho produz uma relação técnico-teórica e a [síntese] pela luta uma relação práticoteórica entre sujeito e objeto. No primeiro caso, se forma um saber de produção, no segundo, um saber de reflexão. O único modelo que se oferece para uma tal síntese se encontra em Hegel. Trata-se da dialética da eticidade que Hegel desenvolveu nos escritos teológicos de juventude, nos escritos políticos da época de Frankfurt e na filosofia do espírito de Jena, mas que não acolheu no sistema (HABERMAS, 1979, p. 77). O próprio conhecimento aparece a cada vez como um momento da mediação entre sujeito e objeto, ora pelo medium do trabalho, ora da interação. Antes, Habermas já inserira a atividade crítica das ciências reflexionantes como uma das formas de atividade revolucionária das classes em luta (HABERMAS, 1979, p. 72). Seria preciso compreender primeiro a lógica interna da interação em sua relação com a do trabalho na dialética da eticidade, a fim de entender, por fim, as determinações da crítica. 62

Habermas pensa que Marx poderia ter se valido do modelo hegeliano da dialética da eticidade, desenvolvido nos escritos de juventude (HABERMAS, 1979, p. 78). A apropriação do excedente de produção que instaura o antagonismo de classe pode ser entendida como o “crime” que provoca a causalidade do destino, a luta que culmina com a violência revolucionária que vem a reconciliar as partes cindidas. No movimento da luta de classes, vinculam-se dialética da eticidade (desenvolvimento das relações de produção) e a dialética do trabalho (desenvolvimento das forças produtivas). A relação de dependência entre interação e trabalho se mostra no fato de que a eticidade é a cada vez expressão da coerção da natureza externa traduzida em repressão da natureza interna. Dito de outro modo: a coação das normas sociais sobre o indivíduo é condicionada pela repressão necessária que a carência material impõe num dado estágio de desenvolvimento das forças produtivas. Quanto mais as forças produtivas se desenvolvem, menor se torna a carência e menor a necessidade de repressão da natureza interna. A dialética do trabalho determina a perda da necessidade da repressão da natureza interna, mas seu fim é dependente antes do resultado da dialética da eticidade. O “crime” que dispara o curso dessa dialética, na forma de uma luta por reconhecimento, é a imposição de uma parte da sociedade à outra de uma dominação objetivamente supérflua, medida “pela diferença entre o grau de repressão institucional exigida de fato e o grau de repressão necessária em uma dada posição das forças produtivas” (HABERMAS, 1979, p. 80). A dialética da eticidade se encontra igualmente com a da linguagem, pois as representações simbólicas que dão significado ao mundo, tendo sido desfiguradas pela violência e subtraídas da comunicação pública sem coerção, exercem elas mesmas uma violência prática. Um exemplo disso, para Habermas, encontra-se na repressão simbólica e institucionalmente assegurada pela fetichização das relações sociais reais na forma mercadoria, como descrita no primeiro capítulo do Capital. A toda configuração de dominação correspondem representações que a legitimam, como a ideologia da equivalência das trocas que sustenta a dominação do contrato de trabalho. Que na luta de classes, entendida como relação entre dialética da eticidade e a dos outros dois padrões mediadores, “se formam as figuras da consciência de classe entendidas materialisticamente com fundamento nas objetivizações da apropriação da natureza externa”, isso demonstra, por fim, que se passa ali “um processo de reflexão em grande escala” (HABERMAS, 1979, p. 83). Disso, Habermas retira duas consequências para a compreensão epistêmica e metodológica da posição teórica crítica de Marx. Em primeiro lugar, que as ciências humanas (em oposição às ciências naturais) se estabelecem elas 63

mesmas como autorreflexão da consciência de classe fenomênica. Guiadas pela experiência da reflexão, elas reconstroem um caminho da consciência fenomênica aberto pelo desenvolvimento do sistema do trabalho social. “A ciência do homem amplia metodicamente o saber de reflexão que já é transmitido pré-cientificamente dentro do mesmo contexto objetivo de uma dialética da eticidade no qual ela também se encontra previamente” (HABERMAS, 1979, p. 84). Em segundo lugar, resulta que as ciências humanas se sabem inseridas no processo formativo que elas mesmas rememoram, e, em o sabendo, precisam voltar-se contra si mesmas (autorreflexão) como crítica da ideologia que elas mesmas haviam contribuído para cristalizar. Sem a autorreflexão, as ciências humanas agem inconscientemente guiadas pelo puro interesse prático na conservação da situação positiva de entendimento mútuo, ainda que possibilitado por uma distorção ou supressão do diálogo. Apenas refletindo sobre si mesmas, sob a condução de um interesse emancipatório, elas se tornam críticas. Entre filosofia e ciência, o papel que resta à teoria crítica é o de crítica da ideologia pela autorreflexão da ciência. Pela autorreflexão obstinada, ela toma consciência inclusive de sua posição e de seus limites, vindo a saber de sua localização prévia no interior do conflito social. De fato, como Honneth comentaria (1989, p. 265), a teoria dos interesses constitutivos do conhecimento remete, para além de si mesma, a uma concepção material de sociedade. O conflito é compreendido como uma dialética da eticidade, uma disputa em que as partes opõem uma à outras pretensões de validade normativas que aspiram a uma universalidade que a outra não poderia alcançar. Na expressão do próprio Hegel, como uma luta por reconhecimento. Desse modo, Habermas vê na compreensão do conflito como dialética da eticidade um pressuposto implícito, que Marx fora vacilante em admitir, para a viabilidade da crítica como autorreflexão6. Habermas vê a luta por reconhecimento, para antecipar uma expressão de Honneth, como a gramática própria do social, uma gramática prévia à constituição da teoria, na qual a teoria não apenas encontra fundamento, mas com a qual, ela chega mesmo a se confundir. No modelo de Conhecimento e Interesse, a teoria crítica é entendida como crítica da ideologia, inserida no e dependente do conflito social prévio estruturado na lógica da luta por reconhecimento. II. Uma tensão interna à obra de Habermas entre duas concepções prima facie incompatíveis de interação social ameaça despontar quando se comparam os termos da resposta à Assim, as interpretações de Marcos Nobre e Luiz Repa: "o modelo da auto-reflexão passa a se referir normativamente à dialética da eticidade em Hegel" (Repa, 2008a, p. 71); "a crítica ideológica se funda, nesse caso, na luta por reconhecimento e na dialética da eticidade do jovem Hegel" (Nobre e Repa, 2012, p. 24) 6

64

pergunta que servira de ponto de partida à formulação do modelo de Conhecimento e Interesse: como é possível a crítica na situação de bloqueio à emancipação social configurada no capitalismo tardio? A resposta, dada pelo modelo da crítica da ideologia7, cujas condições de possibilidade são dadas, afinal, pelo compromisso com uma ontologia social na qual a socialização e individualização estabilizadora de identidades provisórias acontecem pelo conflito em torno de concepções normativas de grupos parciais da sociedade, isto é, pela chamada dialética da eticidade, contradiz os próprios termos do problema do qual buscava dar conta: o da viabilidade da crítica na situação de um conflito social “desativado”. Essa resposta ganha novas determinações quando Habermas, poucos meses depois da publicação de Conhecimento e Interesse, publica o ensaio Técnica e ciência como ‘ideologia’8. A incoerência é admitida quando Habermas diagnostica que, sob as condições do capitalismo tardio, a crítica deve sim permanecer operando pela reflexão, mas que a própria reflexão precisaria recuar para aquém do nível da crítica da ideologia, tornada impossível. O diagnóstico de cunho pollockiano que abre Entre filosofia e ciência no começo dos anos 60 é conservado em 68, mas a seu quadro se acrescenta uma característica decisiva: o assentimento à tese de Marcuse de que, na chamada sociedade industrial, técnica e ciência se transformam em ideologia. Como consequência, a estrutura da ideologia é transformada: quando seu conteúdo deixa de ser um conteúdo prático sobre os fins de uma vida boa, mas se reduz ao conteúdo técnico da eficiência na escolha de fins não tematizados, ela se subtrai à reflexão e fecha as portas a uma crítica imanente. São duas as tendências evolutivas do capitalismo desde o final do século XIX que Habermas vê como decisivas nessa transformação: o aumento da intervenção estatal para garantir a estabilidade sistêmica e o crescimento da interdependência entre pesquisa científica e técnica, que se tornam assim a primeira força produtiva. Uma consequência imediata dessa segunda tendência é a obsolescência da teoria do valor-trabalho, na qual se fundara a crítica de Marx da ideologia da equivalência das trocas. O progresso técnicocientífico teria se tornado uma fonte independente de mais-valor (HABERMAS, 1968b, p. 80) e o modo de produção capitalista deixado de necessitar da legitimação ideológica das trocas justas para se sustentar. Essa ideologia desmorona também a partir da intervenção do Estado no processo econômico, que “contraria abertamente a ideia de uma sociedade

7Assim,

diz Habermas num texto em vista dos 30 anos de Conhecimento e Interesse: "(...) naquela época, a crítica da ideologia me parecia o novo modelo para a teoria social crítica" (Habermas, 2000, p. 14). 8 O prefácio de Conhecimento e Interesse é assinado e datado de abril de 1968 e o artigo "Técnica e ciência como 'ideologia'", incluído no livro de mesmo nome, tem sua primeira versão publicada nos volumes de julho e agosto do mesmo ano do periódico Merkur.

65

civil que se emancipou da dominação e neutralizou o poder” (HABERMAS, 1968b, p. 75) ao se fundar apenas na liberdade dos contratos. Como em Pollock, a intervenção estatal, para Habermas, suspende a aplicação das leis econômicas e altera a relação entre sistema econômico e sistema político, com o segundo deixando de ser superestrutura do primeiro. Pollock já havia previsto que, com a repolitização do quadro institucional da sociedade, se a estabilidade do sistema não é mais ameaçada pelo desenvolvimento das contradições econômicas, ela passa a encontrar sua única ameaça potencial na mobilização política direta que pode emergir numa crise de legitimidade. Todavia, também esse perigo desvanece quando técnica e ciência, além de se converterem em força produtiva, se tornam elas mesmas substitutas da ideologia que se apagara, pois, com isso, o quadro institucional pode se manter politizado e ao mesmo tempo estável com a despolitização da massa da população. Os conteúdos práticos são subtraídos à comunicação e decisão públicas e como que eliminados do mundo da vida. As interpretações da vida boa, advindas de e direcionadas a contextos de interação, cedem a função de legitimação a uma programática substitutiva relacionada apenas ao funcionamento orientado do sistema, ou seja, à sua reprodução enquanto tal (HABERMAS, 1968b, p. 75). Com isso, aquele dualismo entre as categorias do trabalho e da interação, há pouco descoberto por Habermas, acaba, na prática, por retroceder na consciência dos homens. Apesar disso, segue sendo fundamental para a teoria, pois apenas com sua ajuda se torna possível dar precisão ao diagnóstico de sua supressão prática. Habermas passa, então, a definir aquelas duas categorias com referência à teoria da ação e da racionalização de Weber, no que pode ser visto como um primeiro esboço das categorias centrais da Teoria da ação comunicativa. “Por ‘trabalho’ ou ação racional orientada a fins, entendo”, diz Habermas, “ou a ação instrumental ou a escolha racional ou uma combinação de ambas”, ao passo que “por ação comunicativa entendo, por outro lado, uma interação mediada simbolicamente” que “se dirige a normas obrigatoriamente válidas que definem expectativas recíprocas de comportamento e precisam ser compreendidas e reconhecidas por ao menos dois sujeitos agentes” (HABERMAS, 1968b, p. 62). Essa redefinição permite reler a substituição dos conteúdos práticos por formas técnicas como uma usurpação de domínio: em termos sistêmicos, é a legalidade própria da ação racional orientada a fins que passa a aplicar-se cada vez mais a esferas de ação regidas até então e como que de direito por uma racionalidade comunicativa.

66

Nesse quadro, Habermas associa o diagnóstico da “desativação” da luta de classes à gramática da dialética da eticidade hegeliana. A luta de classes desativada é também a “dialética da eticidade imobilizada”, pois “a totalidade ética de um contexto vital que se despedaça pelo fato de um sujeito não satisfazer as carências do outro não é mais um modelo adequado para a relação de classe mediatizada no capitalismo” (HABERMAS, 1968b, p. 88). A luta de classes, entendida por Habermas como uma luta por reconhecimento em torno de normas sociais de ação e que tem lugar, portanto, através da ação comunicativa, deixa de existir enquanto tal ou se torna apenas latente quando a própria possibilidade de articular comunicativamente pretensões de validade normativas é obstruída. “Na consciência tecnocrática, não se reflete a disjunção de um contexto ético, mas a repressão da eticidade como categoria para as relações vitais em geral” (HABERMAS, 1968b, p. 90). Ocorre que, como Habermas havia concluído, tanto a ideologia quanto a sua reflexão crítica se encerram e encontram suas condições na lógica interativa da dialética da eticidade. Mas “a causalidade dos símbolos cindidos e dos motivos inconscientes que produz tanto a falsa consciência como a força da reflexão à qual se deve a crítica da ideologia não está mais do mesmo modo na base da consciência tecnocrática” (HABERMAS, 1968b, p. 88). Só então Habermas se dá conta de todas as consequências e do verdadeiro desafio à uma teoria crítica da sociedade imposto pelo bloqueio tecnocrático: a reflexão crítica precisaria deixar de ser imanente a seu objeto (STAHL, 2013, pp. 124-125) e retroceder “para aquém de um interesse de classe determinado historicamente”, a fim de alcançar e liberar o próprio interesse emancipatório da espécie (HABERMAS, 1968b, p. 91). Mas se reflexão e crítica da ideologia haviam sido equacionadas em Conhecimento e Interesse, não fica nada claro como isso pode se dar nesse novo contexto. É em resposta à dificuldade com a qual se depara nesse momento que Habermas se volta ao desenvolvimento de uma teoria crítica reconstrutiva. Em 1971, em “A pretensão de universalidade da hermenêutica”, Habermas introduz uma distinção que dará a direção de seu novo modelo crítico. Ali, a autorreflexão é distinguida da reconstrução (Nachkonstruktion)9. Habermas se vale da distinção de Saussure entre langue como sistema abstrato de regras e parole como a sua dimensão pragmática e concreta para designar respectivamente os domínios objetuais da linguística e da hermenêutica. A autorreflexão, que esclarece as experiências que ocorrem a um sujeito falante no uso de suas competências comunicativas, é o modo de proceder da Tudo leva a crer que nos primeiros anos da década de 1970 Habermas se vale intercambiavelmente dos termos Nachkonstruktion e Rekonstruktion, ambos traduzíveis em português por "reconstrução", embora com uma diferença sutil de significado, para designar o mesmo procedimento teórico. 9

67

hermenêutica, que, todavia, não é capaz por si só de explicar as competências mesmas. Isso só é possível pela reconstrução racional do sistema de regras linguísticas, que torna explícitas as regras que o falante segue sempre já implicitamente (HABERMAS, 1971d, p. 126). No mesmo ano, na introdução à nova edição de Teoria e Práxis, Habermas volta a tratar dessa distinção, acrescentando que “na tradição filosófica, essas duas formas legítimas de autoconhecimento permaneceram a maior parte das vezes inseparadas sob o título de reflexão” (HABERMAS, 1971e, p. 29). Ali, Habermas concede às reconstruções uma relação indireta com o interesse emancipatório do conhecimento, na medida em que serve como passo intermediário da autorreflexão (HABERMAS, 1971, p. 31). É no posfácio de 1973 que escreve a Conhecimento e Interesse que Habermas reconhece a relevância dessa distinção para sua própria concepção crítica. O autor alega ter ele próprio cometido o erro, no livro de 68, de confundir no mesmo conceito, o de reflexão, as duas atividades distintas. A mim se tornou claro apenas posteriormente que o uso tradicional e que remonta ao idealismo alemão da expressão “reflexão” cobre a ambos (e os mescla): de um lado, a reflexão sobre as condições de possibilidade das competências em geral do sujeito do conhecimento, da fala e da ação, e, de outro lado, a reflexão sobre as limitações produzidas inconscientemente às quais um determinado sujeito (ou um determinado grupo de sujeitos, ou um determinado sujeito genérico) submete a si mesmo em seu processo de formação (HABERMAS, 1979, p. 411). O último sentido de reflexão, chama-o Habermas de autocrítica, e o primeiro, de reconstrução. Fincando posição, a partir de então, no procedimento reconstrutivo, Habermas o distingue da crítica em três pontos. Enquanto a crítica se orienta por objetos da experiência cuja pseudo-objetividade precisa ainda ser descoberta, a reconstrução se volta a objetos que são de antemão conscientes como produção de um sujeito (frases, ações, performances cognitivas etc.). A crítica, além disso, se refere a algo particular, a saber, ao processo de formação de uma identidade de eu ou de grupo, ao passo que a reconstrução abrange sistemas anônimos de regras que podem ser seguidas por quaisquer sujeitos com as competências correspondentes. Por fim, a crítica desvela uma falsa consciência, processo que implica em consequências práticas para o sujeito, à medida que a reconstrução se limita a explicitar um saber intuitivo sem que isso possua consequências práticas para o sujeito. A reconstrução gozaria ainda de precedência lógica e metodológica sobre a crítica, pois antes de julgar um construto concreto como falso, é preciso reconstruir os critérios segundo os quais ele pode ser validamente avaliado. 68

A crítica, que antes era para Habermas a única forma que a filosofia teria o direito de assumir (HABERMAS, 1979, p. 87), perde seu lugar para a reconstrução. Ou antes: a reconstrução torna-se, para Habermas, o único modo de preservar a possibilidade da crítica, num segundo momento, como reconstrução aplicada reflexivamente (HABERMAS, 1976b, p. 250). Mas exatamente por isso, os dois momentos se separam. Como comenta Voirol, os sistemas de regras que constituem o objeto da reconstrução, em razão de seu caráter implícito e pré-reflexivo, correspondem a uma forma “pura” do conhecimento que permanece afastada dos três interesses do conhecimento e rompe as relações entre razão e emancipação, entre teoria e prática (VOIROL, 2012, p. 92; MCCARTHY, 1978, p. 101). A introdução do modelo reconstrutivo é justificada, portanto, por uma necessidade histórica dada, a de uma impossibilidade da crítica da ideologia determinada pela evolução social capitalista. Sob tais condições, a atividade de autorreflexão, por capaz que seja de um reposicionar o sujeito e elevá-lo a uma consciência de si verdadeira, o traz com isso apenas à verdade impotente de uma vida ela mesma falsa. A estratégica teórica de Habermas consistirá, de ora em diante, num recuo da teoria em relação ao contexto, em direção a estruturas que o transcendem e preservam sua validade apesar de toda particularidade histórica, mas cuja tomada de consciência não implica diretamente em qualquer consequência emancipatória. Nos próximos anos, portanto, Habermas viria a formular e reformular seu modelo reconstrutivo. Nobre e Repa ressaltam que apesar do fato de que “a posição que a categoria [reconstrução] ocupa na armação conceitual mais geral do pensamento de Habermas se altera conforme os elementos teóricos fundamentais são arranjados e rearranjados de diferentes maneiras ao longo das décadas a partir de 1970”, há, todavia, um mesmo projeto teórico reconstrutivo que perpassa os diferentes diagnósticos de tempo e reflete sobre seu próprio desenvolvimento (NOBRE; REPA, 2012a, pp. 7-8). Na década de 1970, Habermas deposita a confiança de seu projeto no que chama de ciências reconstrutivas, em particular a pragmática universal (ou formal, como a chamará mais tarde), a teoria da ação e as teorias da evolução social e moral. Na virada para a década de 1980, a Teoria da ação comunicativa assume uma nova forma de exposição (HABERMAS, 1995, v. I, pp. 7-8), que combina os resultados das ciências reconstrutivas com uma “reconstrução da história da teoria”10. Nessa nova modulação, a reconstrução recua de uma posição mais ativa e protagonista na Na definição de Habermas: “Reconstrução significa, em nosso contexto, que se desmonta uma teoria e se a recompõe em nova forma, para melhor alcançar o objetivo que ela pôs para si mesma: esta é a lide normal (digo, normal também para marxistas) com uma teoria que carece de revisão em alguns aspectos, mas cujo potencial propositivo ainda não se esgotou” (HABERMAS, 1976a, p.9.) Uma visão ampla sobre o sentido da reconstrução da história da teoria é fornecida por REPA, 2012. 10

69

produção do conhecimento, com as ciências reconstrutivas produzidas elas próprias como distintas das teorias tradicionais, para uma posição parasitária de crítica das teorias tradicionais já produzidas, posição novamente próxima à da formulação original da teoria crítica frankfurtiana em Horkheimer (NOBRE; REPA, 2012b, p. 32). Em todo caso, mesmo a reconstrução da história da teoria obedece indiretamente à intenção geral de tornar explícitos os sistemas abstratos de regras que contam como condição de possibilidade para todo tipo de construto simbólico, inclusive aqueles que contrariem sua lógica, a fim de, na expressão lapidar de sua obra tardia, encontrar “partículas e fragmentos já encarnados de uma ‘razão existente’“ mesmo nas práticas mais deformadas (HABERMAS, 1998, p. 349). O projeto reconstrutivo habermasiano se divide, então, em dois níveis que se complementam, um horizontal e um vertical. No primeiro nível, investigam-se “sistemas de regras antropologicamente fundamentais” que oferecem condições para objetos da experiência possível; tal investigação serve de trabalho prévio às de segundo nível, que “possuem a tarefa ulterior de tornar transparente a lógica interna de evolução”, por exemplo, da aquisição da linguagem, da consciência moral etc. (HABERMAS, 1971c, pp. 174-175). Assim, é preciso “dar conta do saber pré-teórico e do domínio intuitivo dos sistemas de regras que estão na base da produção e avaliação de expressões e performances simbólicas” (HABERMAS, 1992, p. 40) (reconstrução horizontal) a fim de adquirir os critérios de racionalidade dos construtos simbólicos. Tais critérios universais e independentes do contexto servem para a conceituação e avaliação do desenvolvimento racional tanto das sucessivas formações histórico-sociais (filogênese) quanto da identidade individual (ontogênese) em seus aspectos cognitivos e morais (reconstrução vertical), inclusive para diagnosticar nesses percursos de desenvolvimento seus desvios e perturbações. O momento da crítica resta garantido de forma indireta, a única possível, para Habermas. As reconstruções horizontais dão acesso a normas contrafáticas, válidas de modo independente do assentimento dos agentes, com as quais as expressões simbólicas por elas possibilitadas podem ser confrontadas. As regras descobertas pela pragmática formal contribuem também para a caracterização de patologias da comunicação na forma de sua distorção sistemática pela invasão de uma lógica alheia em seu domínio (HABERMAS, 1995, v. I, p. 445). Combinados com os das reconstruções verticais, que possibilitam a graduação de estágios estruturados do desenvolvimento das lógicas próprias 70

de cada domínio, os resultados dessa reconstrução devem permitir ainda explicar e compreender a gênese de patologias sociais, traçar um prognóstico de sua evolução e desvelar a possibilidade e a viabilidade de sua reversão.

REFERÊNCIAS BOLTE, Gerhard. Von Marx bis Horkheimer: Aspekte kritischer Theorie im 19. und 20. Jahrhundert. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1995. FLECK, Amaro. Theodor W. Adorno: Um crítico na era dourada do capitalismo. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Florianópolis, 2015. HABERMAS, Jürgen. Erkenntnis und Interesse. In: HABERMAS, Jürgen. Technik und Wissenschaft als »Ideologie«. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1968a, pp. 146-168. HABERMAS, Jürgen. Technik und Wissenschaft als »Ideologie«. In: HABERMAS, Jürgen. Technik und Wissenschaft als »Ideologie«. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1968b, pp. 48103. HABERMAS, Jürgen. Zwischen Philosophie und Wissenschaft: Marxismus als Kritik. In: HABERMAS, Jürgen. Theorie und Praxis: Sozialphilosophische Studien. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1971a, pp. 228-289. HABERMAS, Jürgen. Literaturbericht zur philosophischen Diskussion um Marx und den Marxismus. In: HABERMAS, Jürgen. Theorie und Praxis: Sozialphilosophische Studien. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1971b, pp. 387-463. HABERMAS, Jürgen. Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie? Auseinandersetzung mit Nikolas Luhmann. In: HABERMAS, Jürgen; LUHMANN,

Eine

Nikolas. Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie: Was leistet die Systemforschung? Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1971c, pp. 142-290. HABERMAS, Jürgen. Der Universalitätsanspruch der Hermeneutik. In: HABERMAS, Jürgen et al. Hermeneutik und Ideologiekritik. Frankfurt a.M: Suhrkamp, 1971d, pp. 120-159. HABERMAS, Jürgen. Einleitung zur Neuausgabe: Einige Schwierigkeiten beim Versuch, Theorie und Praxis zu vermitteln. In: HABERMAS, Jürgen. Theorie und Praxis: Sozialphilosophische Studien. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1971e, pp. 9-47. HABERMAS, Jürgen. Einleitung: Historischer Materialismus und die Entwicklung normativer Strukturen. In: HABERMAS, Jürgen. Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1976a, pp. 9-48.

71

HABERMAS, Jürgen. Geschichte und Evolution. In: HABERMAS, Jürgen. Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1976b, pp. 200-259. HABERMAS, Jürgen. Erkenntnis und Interesse: Mit einem neuen Nachwort. 5. Aufl. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1979. HABERMAS, Jürgen. Rekonstruktive vs. verstehende Sozialwissenschaften. In: HABERMAS, Jürgen. Moralbewußtsein und kommunikatives Handeln. 5. Aufl. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1992. pp. 29-52. HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1995. 2 vol. HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1998. HABERMAS, Jürgen. Nach dreißig Jahren: Bemerkungen zu Erkenntnis und Interesse. In: MÜLLER-DOOHM, Stefan (org.). Das Interesse der Vernunft: Rückblicke auf das Werk von Jürgen Habermas seit “Erkenntnis und Interesse”. Frankfurt: Suhrkamp, 2000, pp. 12-20. HONNETH, Axel. Von Adorno zu Habermas: Zum Gestaltwandel kritischer Gesellschaftstheorie. In: BONSS, Wolfgang; HONNETH, Axel (Orgs.). Sozialforschung als Kritik: zum sozialwissenschaftliche Potential der Kritischen Theorie. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1982, pp. 87-126. MARRAMAO, Giacomo. Die Formveränderung des politischen Konflikts im Spätkapitalismus: Zur Kritik des politiktheoretischen Paradigmas der Frankfurter Schule. In: BONSS, Wolfgang; HONNETH, Axel (Orgs.). Sozialforschung als Kritik: zum sozialwissenschaftliche Potential der Kritischen Theorie. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1982, pp. 240-274. MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Trad. Edgard Malagodi. Colab. José Arthur Giannotti. In: MARX, Karl. Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes. São Paulo: Abril Cultural, 1982, pp. 1-132. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. 4ª reimpr. São Paulo: Boitempo, 2010. MARX, Karl. O capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. MCCARTHY, Thomas. The critical theory of Jürgen Habermas. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1978. NOBRE, Marcos. A dialética negativa de Theodor W. Adorno: A ontologia do estado falso. São Paulo: Iluminuras, 1998. NOBRE, Marcos; REPA, Luiz. Breve apresentação. In: NOBRE, Marcos; REPA, Luiz (orgs.). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Campinas: Papirus, 2012a, pp. 7-11. 72

NOBRE, Marcos; REPA, Luiz. Introdução: Reconstruindo Habermas: Etapas e sentido de um percurso. In: NOBRE, Marcos; REPA, Luiz (orgs.). Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Campinas: Papirus, 2012b, pp. 1342. PEDROSO, Gustavo. Entre o capitalismo de Estado e o Behemoth: o Instituto de Pesquisa Social e o fenômeno do fascismo. Cadernos de Ética e Filosofia Política, 15, 2/2009, pp. 151-179. POLLOCK, Friedrich. State Capitalism: Its Possibilities and Limitations. Zeitschrift für Sozialforschung / Studies in Philosophy and Social Science, Jahrgang 9 (1941). Reprodução fotomecânica. München: Deutsche Taschenbuch Verlag, 1980, pp. 200-225 POSTONE, Moishe. Critique, state, and economy. In: In: RUSH, Fred (ed.). The Cambridge Companion to Critical Theory. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2004, pp. 165-193. POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: Uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014. REPA, Luiz. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: Os papéis da reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Singular, Esfera Pública, 2008a. REPA, Luiz. A reconstrução da história da teoria: observações sobre um procedimento da Teoria da Ação Comunicativa. In: NOBRE, Marcos; REPA, Luiz (orgs.) Habermas e a reconstrução: Sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Campinas: Papirus, 2012, pp. 43-64. STAHL, Titus. Immanente Kritik: Elemente einer Theorie sozialer Praktiken. Frankurt a.M./ New York: Campus, 2013. VOIROL, Olivier. Teoria crítica e pesquisa social: da dialética à reconstrução. Novos Estudos CEBRAP, 93, 2012, pp. 81-99.

73

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.