Diálogo conceitual em torno do Estado plurinacional: entre o multiculturalismo e a teoria pós-colonial

July 22, 2017 | Autor: Letícia Dyniewicz | Categoria: Multiculturalism, Post-Colonialism, New Constitutionalism, Latin American Constitutionalism
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O Estado plurinacional e o diálogo conceitual José Ribas Vieira1 Letícia Garcia Ribeiro Dyniewicz2 Resumo Este artigo examina uma possísvel ruptura do estado constitucional plurinacional em relação ao paradigma constitucional liberal, bem como se a compreensão de multiculturalismo de Will Kymlicka e Charles Taylor eliminariam o conflito inerradicável da política e, portanto, não conseguiriam compreender a situação do pós-colonialismo. Desse modo, o estudo se subdivide em três partes. Na primeira, far-se-á um resgate da teoria da dependência, da década de 60, para compreender o pós colonialismo como uma posição epistemológica que repensa as formas políticas e, principalmente, a formação dos estados a partir do Sul. Em seguida, serão realizadas algumas considerações sobre a novas geometrias institucionais que tentam se adequar ao modelo do estado plurinacional. Por fim, a discussão se dirige no sentido de tentar compreender se algumas perspectivas multiculturais podem estar de acordo com pós-colonialismo. Palavras chaves: estado plurinacional; multiculturalismo; pós-colonialismo; novas geometrias institucionais 1. INTRODUÇÃO Nas últimas três décadas (1980-2010), as transformações inseridas nos textos das Constituições da América Latina, quanto ao tratamento das relações entre os povos indígenas e o Estado nacional, foram tão impactantes, como é o caso das experiências boliviana e equatoriana, que, muitos são os autores, que acreditam em uma autêntica ruptura com o paradigma de Estado Constitucional forjado durante a modernidade. Sendo assim, um dos temas mais candentes do Novo Constitucionalismo Latino-Americano é a questão da luta pelos direitos dos povos indígenas em uma perspectiva descolonizadora. Essa deve ser compreendida como reconhecimento da isonomia entre a cultura ocidental hegemônica e a cultura dos povos ameríndios, com a consequente inserção na Constituição de elementos inerentes à cosmovisão indígena. Raquel Z. Yrigoyen Fajardo3 pontua as etapas pelas quais atravessaram as diversas 1

Constituições

latino-americanas

rumo

à

concretização

deste

projeto

Doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor associado Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); professor adjunto da Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva/Ibmec. 2 Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

descolonizador. A autora concebe os horizontes constitucionais em três, a saber, o liberal monista do século XIX, o social integracionista do século XX e o pluralista, em desenvolvimento desde a década de 1980 até os dias atuais. O horizonte do constitucionalismo pluralista, por sua vez, no que diz respeito à cidadania, teria como ponto de partida a Constituição canadense (1982) e se desdobraria, segundo o entendimento da mesma autora, em três ciclos progressivos, quais sejam, o multicultural (1982-1988), o pluricultural (1989-2005) e o plurinacional (2006-2009). Yrigoyen Fajardo ressalta que essas etapas foram vivenciadas em um constitucionalismo sob a marca do pluralismo. Nesse sentido, teriam sido superados os momentos constitucionais de natureza liberal do século XIX e o sentido integracionista social do século passado. As constituições liberais resultaram do reconhecimento de uma cidadania formal. Exemplo disso é a submissão e a perspectiva exploratórias das sociedades indígenas. Quanto às de sentido social, como a Constituição mexicana de 1917, possuíam objetivos assimilacionistas e de favorecer a criação de um mercado econômico em relação aos segmentos indígenas. Nesse contexto, tais constituições não rompiam, na verdade, com o caráter de estado-nação nem com o perfil de monismo jurídico de suas estruturas político-institucionais. A interpretação pluralista, segundo a mencionada estudiosa, considera “Os contextos complexos onde se gestam as reformas impõe suas tensões e suas contradições (aparentes ou reais) aos textos constitucionais”4 de modo a salvar a sua estreiteza normativa. Reconhece-se, portanto, como instigante e, principalmente, esclarecedora a contribuição de Yrigoyen Fajardo a respeito do constitucionalismo latinoamericano. No entanto, a análise em curso não enquadrará, como a autora faz no que tange ao horizonte pluralista para as constituições desse matiz normativo, como resultantes de procedimentos cíclicos progressivos. A postura a ser assumida nessa reflexão aproxima-se mais de um tratamento de processo histórico. Compreende-se que o ciclo encobre, naturalmente, uma agudeza a respeito das contradições sociais. Isto é, a visualização cíclica não abriria margem para destacar o aspecto conflitivo inerente ao denominado constitucionalismo pluralista. A visão contida na categoria “ciclo” não possibilitaria dimensionar a grandeza do momento histórico presente no titulado constitucionalismo plurinacional. 3

FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. El horizonte Del constitucionalismo pluralista: Del multiculturalismo a La descolonización. In: El derecho em América Latina: Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. GARAVITO, César Rodríguez (coord.). México: Siglo Veintiuno Editores S.A. p. 139. 4 FAJARDO. p. 141.

Concorda-se com Yrigoyen Fajardo que a plurinacionalidade, no contexto do pluralismo, reverbera um projeto descolonizador. No entanto, há de ser acrescentado toda a radicalidade política-institucional que estaria no entorno da plurinacionalidade. Com esse propósito, há o compromisso, nesse estudo, de destacar o grau de relevância e alcance

político

dos

fundamentos

do

pós-colonialismo

para

compreender

o

constitucionalismo latino-americano e o papel de sua estrutura estatal no atual quadro histórico-social. No entanto, demonstrar-se-á, como Kymlicka e Taylor, autores da tradição liberal canadense, que se dedicaram ao tema do multiculturalismo, tem um posicionamento que respeita o pós-colonialismo e não conflita com este. Retomando e sintetizando, este artigo propõe-se a refletir sobre duas perguntas, quais sejam; o estado-plurinacional, aos moldes bolivianos e equatorianos, rompem com o estado constitucional liberal? Kymlicka e Taylor eliminariam o conflito inerradicável da política e, portanto, não conseguiriam compreender a situação do pós-colonialismo? Assim sendo, este artigo subdivide-se em três partes. Na primeira, far-se-á uma recuperação dos modelos teóricos usados para pensar a América Latina. Retoma-se, brevemente, a teoria da dependência, desenvolvida no fim dos anos 60, para então se demonstrar como as teorias pós-colonias tentam superar este marco, pensando a partir do Sul, tal como propõe Boaventura de Sousa Santos. Traz-se aqui a colaboração de Etienne Balibar para demonstrar como o processo de formação das nações se deu de forma opressora em todo o mundo, eliminando a pluralidade. Em um segundo momento, serão desenvolvidas considerações sobre as novas geometrias institucionais que tentam se adequar ao modelo do estado plurinacional. Por fim, a discussão se dirige no sentido de tentar compreender se algumas perspectivas multiculturais podem estar de acordo com o pós-colonialismo e se, de fato, estas superam o modelo liberal. 2. A teoria da dependência e o pós-colonialismo A teoria da dependência forjada no final dos anos 60 do século passado representou um reconhecido avanço teórico-analítico para depreender em toda a sua magnitude social e econômica o processo histórico das sociedades periféricas, como as da América Latina, em relação ao centro capitalista hegemônico. A relação centroperiferia avulta-se nesse esforço explicativo ao dar um novo dimensionamento a leitura da

obra de Lênin5. Nesta obra, apresenta-se em todo o seu espectro a teoria do imperialismo. A denominada teoria da dependência procederá uma leitura do imperialismo a partir de uma ótica das sociedades periféricas. Nesse ponto, atesta-se uma coincidência com a perspectiva reflexiva do pós-colonialismo. Assim, com um aprofundamento do comprometimento político, o modelo do projeto descolonizador está alicerçado num universo epistemológico de uma apreensão da realidade social a partir do “sul”6, o qual pode ser entendido, tal como afirma Boaventura de Sousa Santos como o reconhecimento de que há uma dívida histórica e que não basta pensar no futuro para resolver as questões7. A partir disso, faz-se presente a necessidade de pensar em políticas que permitam um encontro com o passado. Não é suficiente o mero reconhecimento das desigualdades. Como exemplo, o autor cita o Brasil, que até poucos anos não se reconhecia como uma sociedade racista, afirmava que que a marginalização dos negros decorria de um fato de luta de classes, não de um contexto histórico8. Sendo que apenas este ano (2012) o Supremo Tribuna Federal brasileiro reconheceu como constitucional os programas de ações afirmativas para ingresso de estudantes negros nas universidades públicas brasileiras9. O autor canadense, Will Kymlicka, também utiliza o exemplo do Brasil para afirmar que a história do “Novo Mundo” ignorou por mais de século sua constituição por minorias nacionais. Especialmente, no caso brasiliero, o preconceito em relação à populção indígena, quase tornou uma suposta homogeneidade verdadeira 10, já que a maoiria foi eliminada. Esse fato demonstra como a formação dos estados não periféricos relacionase diretamente com a história colonial. Os países centrais sempre inferiram uma cidadania universal, na qual indígenas, que ocupavam a terra antes da chegada dos europeu, eram vistos como inferiores. O tratamento político desprendido a eles era sempre de ordem paternalista e assimilacionista, ou seja, além de os considerarem incapazes de auto-determinação, também acreditavam que quando estes aceitassem a 5

LÊNIN. O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Brasília: Nova Palavra, 2007 SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010. 7 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pensal el Estado y la sociedad: desafíos actuales. Buenos Aires: Waldhuter Editores, 2009. p. 28. 8 Ibidem, p. 30. 9 Kymlicka ao analisar a sociedade norte-americana aponta para um fator importante no que diz respeito às populações negras. Isso porque além dessa população ter migrado para o “Novo Mundo” sob o signo da coação, tiveram seus lações comunitários, muitas vezes cortados. Assim, a população dominante, além de acabar com a noção de comunidade destes povos, proibindo seus ritos culturais, também não queria que estes fossem assimilados e integrados pela cultura dominante. Ver mais em: KYMLICKA, Will. Multiculturalism citizenship: a liberal theory of minority rights. UK: Oxford Press, 1995. 10 KYMLICKA, Will. Multiculturalism Citizenship: a liberal theory of minority rights. p. 21 6

cultura ocidental democrática liberal, e portanto, o progresso, poderiam integrar o “mainstrem” da sociedade11. Comparativamente, contudo, merece atenção o fato de que a arquitetura teórica delineada por estudiosos como o citado Boaventura de Sousa Santos, além de Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Gayatri Charvortz Spivak e Partha Chaterjee explicita todo um sentido de ruptura e de emancipação contido na moldura do pós-colonialismo. Nesse diapasão, deve-se contextualizar todas as conseqüências político-institucionais a serem depreendias dos “ciclos” do pluralismo constitucional notadamente da plurinacionalidade antevista por Yrigoyen Fajardo. Pois, ao contrário, mesmo reconhecendo que sua análise atesta a presença do projeto descolonizador na plurinacionalidade, torna-se imperioso aprofundar o sentido emancipatória a ela inerente. Essa matriz libertária avulta-se na proporção que acentua na concepção da categoria nação toda sua dimensão histórico-social. Nessa direção, está a contribuição conjunta de Immanuel Wallerstein e Etienne Balibar. Este traz a lição de emoldurar o processo construtivo histórico da identidade da nação francesa, a qual teria sido construída por um processo de construção de uma etnia pela homogeneização linguística. Balibar, em seu texto La forma nación, historia e ideologia12, afirma que a organização do Direito Internacional universalizou e tornou obrigatória a forma Estado. A consequência é o encobrimento dos conflitos dentro do que se convenciona chamar por Estado-nação. O autor considera que o Estado permitiu unir as pessoas em torno do ideal do capitalismo, pois ao dar cidadania formal a todos, suprimiu, por exemplo, a ideia de luta de classes. Dessa forma, o Estado consegue intervém na reprodução da economia, na formação dos indivíduos, das famílias, interferindo diretamente na vida privada. Ao se perguntar sobre os fatores que permitiram a nacionalização das sociedades, demonstra a submissão de todos a uma lei comum precedida por um processo de formação, de unificação das comunidades13 daquele determinado espaço geográfico. O processo de unificação pode se dar, por exemplo, por guerra, pela constituição de um inimigo externo ou massificação do povo em torno de um valor comum. Isso é necessário para que se relativize as diferença entre os indivíduos dentro do próprio Estado, de modo

11

Ibidem. p. 22. BALIBAR, Etienne. Raza, Nación y Clase. Madrid: IEPALA. 13 Sobre a passagem da Gemeischaft para a Gesellschaft, ver mais em TÖNNIES, Ferdinand. Comunidad y sociedade. Buenos Aires: Losada, 1947. 12

que o conflito passe a ser externo, ou seja, na diferença entre nós e os estrangeiros 14 e a Constituição passe a representar o modelo do consenso entre os cidadãos nacionais. Nesse sentido, Balibar chamará tanto nacionalismo quanto patriotismo de religiões modernas, já que representariam uma ideologia para a qual se transferem sentimentos sagrados, como o amor, respeito, sacrifício e temor. A transferência se realiza na figura do Estado-nação pela construção de uma etnicidade fictícia, que pode ser feita, como já citado anteriormente no caso francês, pela homogeneização da língua ou pela ideia de uma comunidade racial15. No entanto, segundo o autor, nenhuma nação se constitui naturalmente com base étnica, o que ocorre é a construção cultural a partir de grandes narrativas que passam a dar um sentido comum para o passado e o futuro daquela comunidade, o que transcende a noção do indivíduo. Raúl Prada16, no mesmo sentido do argumento de Balibar, afirma que o Estadonação se confunde com o Estado moderno, o qual teria como objetivo uma conformação do estado territorial para possibilitar o capitalismo. Afirma que o princípio da liberdade permitiu que se constituísse um todo que se sobrepunha às partes, mas que, ao mesmo tempo, suspendia a política. Ou, seja ao primar pela liberdade individual, o estado-nação disfarça o conflito entre grupos com temporalidades e culturas diferentes, as diferenças econômicas17 culturas diferentes, camuflando o conflito. Macintyre, em Is Patriotism a Virtue?18, ao retratar a formação da nação também afirma que uma nação é construída pela ideia de uma história compartilhada, bem como ao apelo pelos mesmos cânones. Assim que cada uma das nações centrais, por exemplo, tem como marco uma grande obra literária, bem como na exaltação de seus heróis. Ergue-se um estado-nação a partir dessas narrativas de características particulares, de méritos e conquistas. As identidades coletivas são construídas pela história. O que não 14

Carl Schmitt, em seus livros O Conceito do Político e Teoria da Constituição de forma a construir uma democracia pautada no princípio hegemônico da Gemeischaft (comunidade) elabora de forma detalhada essa construção. Isso porque está preocupado em legitimar um Estado forte contrário ao modelo liberal. 15 A comunidade de raça se constituiria, segundo Balibar, quando as fronteiras de parentesco se diluem no nível da comunidade, de classe social, até que se desloque para a ideia de nacionalidade. Seria a identificação da comunidade nacional como um parentesco simbólico delimitado por normas. 16 PRADA, Raúl. Umbrales y horizontes de la descolonización. In:El Estado. Campo de lucha. CAMACHO, Oscar Vega, LINERA, Álvaro Garcia, PRADA, Raúl , TAPIA, Luis.La Paz: Clacso, 2010. 17 Raúl Prada afirma que em um mesmo Estado-nação, seja ele periférico ou não, é possível encontrar pessoas vivendo em situações que se aproximam tanto do primeiro quanto do terceiro mundo. No entanto, a ideia de uma nação homagênea, de que todos compartem uma história comum, ocultaria estas diferencas. PRADA, Raúl. Umbrales y horizontes de la descolonización. p.84. 18 MACINTYRE, Alasdair. Is patriotism a virtue? In: Debates in contemporary political philosophy: an anthoolgy. Organização: Dereke Matravers e Jon Pile. Nova York: Roultledge, 2003.

significa que realmente a história tenha ocorrido desta forma. No entanto, acredita no patriotismo como uma virtude para a realização do bem de uma determinada comunidade. Apesar do posicionamento a respeito da nação em Balibar, Prada e Macintyre divergirem quanto às consequências do que a constituição do estado-nação pode resultar. Ambos diagnosticam algo extremamente relevante para o estudo em questão: a nação não é algo natural, mas sim uma forma de comunidade construída por um processo de seleção de memória e esquecimento de um determinado povo que pretende encobrir as diferenças e, portanto, o conflito entre grupos dentro de um dado território. Diante dessa constatação, importa ressaltar que o debate aqui travado, do estado plurinacional, tenta desconstruir a ideia desse demos que coincide com a nação política, que coincide. Quer-se afirmar a nação como uma determinada comunidade política. Sendo que podem existir diversas nações dentro de um mesmo Estado. Aqui aparece a diferença entre nacionalismo e patriotismo, pois quando se confunde demos com nação política, ou nacionalismo com patriotismo, infere-se em um tipo de etnocentrismo que atribui valores universais ao que simplesmente são valores, saberes e práticas particulares de uma cultura dominante, que podem ser resultantes tanto da colonização, quanto da guerra19.

3. A plurinacionalidade e o seu aprisionamento institucional

Boaventura de Sousa Santos nota a necessidade da geometria de um estado plurinacional20 deve ser diferente da pensada pelo constitucionalismo liberal ou por um estado classicamente unificado. Isto porque apesar de as diversas nações conviverem em um único estado, isso não pode ser sinônimo de uniformidade no sistema jurídico. No liberalismo, prezava-se, como acima explicitado, por um Estado monocultural, no qual se forjava a homogeneidade popular representada na cidadania formal 21. No sul, no entanto, novas práticas, pautadas em lutas populares, são percebidas como emancipatórias. Estas práticas não coincidem, segundo o autor, com as teorias que estão sendo formuladas

19

LINERA, Alvaro. La potencia plebeya. Buenos Aires : CLACSO - Prometeo Libros, 2008. Cabe lembrar para o fato que Alvaro Linera aponta, qual seja, de que atualmente 90 dos Estados enfrentam questões de multiculturalidade. 21 Boaventura de Sousa Santos afirma sua tese com base no fato de que no momento de fundação das Nações Unidas, a maioria dos países latino-americanos declaravam não terem em seu território minorias étnicas. Sabe-se que essa ideia não corresponde a realidade, já que a maioria dos países latino-americanos, devido à colonização, são compostos por diversas etnias. 20

pelos países do norte22 e, portanto, a necessidade de uma nova territorialidade, que não a do modelo liberal, que privilegie a autonomia dos diferentes povos ou das diferentes nações que constituem um Estado. Raúl Prada apontará também para a necessidade de outras formas de instituições políticas, que permitam novas relações entre Estado e sociedade. Estas seriam pautadas nos pluralismos administrativo, de normas e de gestão para que haja a possibilidade de uma nova forma de vida sob o paradigma pós-colonial. Boaventura de Sousa Santos corrobora o argumento de Prada no sentido de que o estado deve ter instituições compartilhadas e instituições apropriadas à identidade cultural das plurinações sem que com isso se deixe de lado a unidade23. Apenas deste modo as diversas nações e povos tradicionais teriam a possibilidade de se emancipar24. Sendo assim, o novo constitucionalismo latino-americano não pode submeter a sociedade a um sistema jurídico unitário, por isso reconhece o pluralismo jurídico25. Linera também discute a necessidade dessa nova geometria em sociedades multiétnicas ou multinacionais, afirmando que nestes casos “a comunidade política só pode ser construída mediante mecanismos que, sem eliminar a particularidade cultural das pessoas, garanta a elas as mesmas oportunidades e direitos para constituir a institucionalidade política”26. Apesar disso, o autor afirma que essa discussão não é característica exclusiva dos países do sul, já que envolveria cerca de 90% dos estados contemporâneos. Kymlicka, em suas reflexões principalmente sobre o estado canadense, mas que não deixam de lado análises de países latino-americanos, também ressalta a importância de diferenciarmos o estado-nação dos estados plurinacionais, bem como a forma de organização desses estados27. Enquanto o primeiro é aquele em que a ideia de nação, ou seja, de uma comunidade histórica que ocupa dado território, coincide com a ordem política; o segundo se refere a países que contém mais de uma nação, ou seja, o estado multicultural é aquele em que “seus membros pertencem a nações diferentes (estado

22

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pensar el Estado y la sociedad: desafíos actuales. Buenos Aires: Waldhuter Editores, 2009..p. 146. 23 SANTOS, Boaventura de Sousa. p. 211. 24 Ibidem. p. 89. 25 Aprofundar-se na discussão do pluralismo jurídico é essencial para pensar os estados plurinacionais, no entanto, não é objeto desse estudo. Ver mais em WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa-Omega, 2001. 26 LINERA, Alvaro. La potencia plebeya. p. 294. 27 KYMLICKA, Will. Multiculturalism citizenship: a liberal theory of minority rights. UK: Oxford Press, 1995.

multinacional), ou se estes emigraram de diversas nações (estado políétinico), sempre e quando isso suponha um aspecto importante da identidade das pessoas e da vida política”28.Dentro desse segundo modelo, há a possibilidade de que culturas não dominantes se estabeleçam como minorias nacionais29. O autor também relembra o histórico de constituição desses estados, que pode ter sido realizado por conquistas, colonização ou imigração. Para o estudo em questão, interessa pensar Estados que sofreram processos de colonização ou conquista, principalmente no que se refere às populações originárias (as inúmeras nações indígenas na América Latina) e aos negros (fluxo de imigração não voluntária para trabalho escravo) que, no momento, procuram à auto-determinação como forma de resistir e afirmar-se perante a cultura dominante. Além disso, nestes casos, em especial, no momento de delimitação de fronteiras, os colonizadores trataram de inserir no desenho geográfico do país em questão, os territórios ocupados por estas povos tradicionais que já ocupavam a terra e, que muitas vezes, eram dotados de autodeterminação própria. Kymlicka sugere três tipos de políticas, medidas legais ou constitucionais, para superar tal paradigma dentro de estados plurinacionais, ou seja, para que as diversas nações e etnias possam conviver de forma estável e moralmente defensável 30 dentro do marco liberal. O autor defende a teoria liberal porque acredita que a comunidade não se opõe necessariamente ao indivíduo e valoriza profundamente a pluralidade. Afirma, neste sentido, que a própria pluralidade, garantida pelo que o autor chama de proteção externa do grupo31, permitirá ao indivíduo escolher sua concepção de bem autonomamente e mesmo alterá-la, o que não viola de forma alguma os direitos individuais 32. As medidas que sugere para isso são: auto-governo ou auto-determinação33; direitos poliétnicos34 e, por último, direitos de representação especial35. 28

KYMLICKA, Will. Multiculturalism citizenship: a liberal theory of minority rights. UK: Oxford Press, 1995.p. 48. 29 Cabe ressaltar que o autor não utiliza na sua definição de multiculturalismo tipos de estilo de vida grupal, movimentos sociais e as associações voluntárias. Portanto, está pensando em minorias étnicas ou grupos migratórios, não em movimentos feministas, movimentos de deficientes físicos, etc. No entanto, admite que essas lutas atravessam o multiculturalismo por ele proposto e, portanto, devem também ser levadas em consideção. 30 KYMLICKA, Will. Multiculturalism citizenship: a liberal theory of minority rights. UK: Oxford Press. p. 26. 31 Kymlicka opõe a protectão externa do grupo, que seria a guarida do governo a determinadas minorias, para que estas tenham a possiblidade de manter seus costumes, tradições e cultura, à restrição interna, na qual o grupo étnico ou nacional pode perseguir o uso do poder do estado para restringir a liberdade de seus membros em nome da solidariedade do grupo, o que pode violar direitos individuais. 32 Ibidem. p. 48. 33 Ibidem. p. 27.

Para o caso dos estados plurinacionais, interessa a análise do auto-governo ou auto-determinação, tal como adotado na Bolívia e no Equador por suas recentes constituições. O direito à autodeterminação dos povos é reconhecido pela Carta das Nações Unidas, no entanto, aplica-se mais ao caso de ex-colônias do que a minorias étnicas. Mesmo assim, o autor reconhece que a maioria dos países multiculturais enfrentam essa vontade oriunda de algumas de suas nações. Essa vontade de autonomia foi constitucionalizado, por exemplo, na primeira parte do artigo da Constituição boliviana, o qual afirma, que: A Bolívia se constitui em um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias.

Ainda segundo Kymlicka, as demandas por auto-governo geralmente são feitas em nome de uma devolução de poder a quem originalmente o possuía. Não deve corresponder a uma medida temporária, nem apenas a um remédio para eliminar opressão. Por isso, geralmente, são constitucionalizadas, tornando-se permanentes. Nesse caso, a grande comunidade política, ou seja, o país em questão tem sua condição de existência condicionada, ou seja, seu poder é derivado da aprovação das diversas nações, já que estas transferem parte de seu poder de auto-governo para a grande comunidade com a condição de que outros poderes permaneçam sob seu controle. Sendo assim, a autoridade do governo central limita-se pelos poderes que cada nação o transferiu. Isso dá o direito de que os grupos nacionais retomem esse poder que cederam, caso se sintam ameaçados pela grande comunidade36. Percebe-se, desse modo, a necessidade de se pensar novas formas de geometria para acomodar tais diferenças que permitam a não dissolução do estado. No entanto, um dos riscos de não aprofundar de forma acentuada o processo descolonizador, presente no pluralismo constitucional destacando a plurinacionalidade, é o de reduzir a discussão à uma perspectiva meramente institucional. Assim, as análises estariam mais voltadas para contemplar o debate a respeito do federalismo. A titulo exemplificativo, Enric Fossas e Ferran Riquejo organizaram uma obra com contribuições de autores para refletirem sobre os modelos possíveis de assimetria federativa decorrente do estado plurinacional. No

34 35 36

Ibidem. p. 30. Ibidem. p. 31. Ibidem. p. 192.

entanto, não estão diretamente conectados com a questão de fundo, qual seja a emancipação de culturas até pouco subjugadas37.

4. O balizamento do multiculturalismo

Raúl Prada e Boaventura de Sousa Santos rejeitam o multiculturalismo como substrato para pensar a plurinacionalidade, já que esse se enquadra dentro da tradição liberal. Afirma Raúl Prada que o pluralismo autonômico consiste em uma forma inteiramente nova de modelo territorial, já que este concebe em igualdade de condições, distintas formas de autonomia. Sendo elas: autonomia departamental, autonomia regional e autonomia indígena. Essa última considerada a mais importante pelas características pois se trata do lugar, do espaço, do cenário, onde se plasma realmente o Estado plurinacional”38. Sendo assim, ambos os autores contrapõe-se ao multiculturalismo liberal porque esse não abandona o papel central do indivíduo na organização política, o que impossibilitaria pensar o pós-colonialismo. Já que esse indivíduo liberal racional teria características universais e, apesar de cada um ter concepções de bem diferentes, poderiam todos se harmonizar dentro de uma perspectiva monocultural. Para Prada, esse tipo de teoria ou mesmo de prática política apenas reconheceria à população certos direitos culturais sem reconhecer a condição de subordinação que viveram até então as diversas nações39. Contrariamente, Will Kymlincka desenha para o contexto do multiculturalismo toda uma articulação liberal. Presente está, desse modo, em suas elaborações teóricas, valores universais como igualdade e liberdade para fundamentar a sua percepção identitária. Defende, nessa direção, uma cidadania diferenciada. Não se afasta de uma defesa arraigada da democracia liberal e de seus direitos individuais. A multicultura dá margem a duas formas de ordem política: a multinacional integrada por nações diferentes; e as poliétnicas compostas de emigrados de diversas nações. Como já citado anteriormente, para o autor o problema não se coloca na supremacia do indivíduo ou da comunidade, ou mesmo na consagração de direitos comunitários . Sua questão refere-se

37 FOSSAS, Enric. REQUEJO, Ferran. Asimetría federal y Estado plurinacional. El debate sobre la acomodación de la diversidad em Canadá, Bélgica y España. Madrid: Editorial Trotta, 1990. 38 PRADA, Raul. p. 94. 39 PRADA, Raúl. Umbrales y horizontes de la descolonización. p. 84.

à justiça entre os diferentes grupos que podem requerer direitos diferentes40 uns dos outros. Difere da corrente majoritária ou clássica do liberalismo na medida em que não pensa um status de cidadania comum para que se desenvolva a identidade cívica compartilhada, a qual daria sentido e unidade a um determinado país. Kymlicka crê que nenhuma nação moderna consegue conviver sem a ideia de cidadania diferenciada, caso essa signifique “a adoção de especificidades para grupos poliétnicos, representação política ou direito de auto-determinação”41. Além disso, o autor afirma que muitos daqueles que se posicionam de forma contrária à institucionalização do mulitculturalismo defendem formas de política racistas ou xenófobas. Relembra

que

a

cidadania

formal

conquistada

pelo

liberalismo

adveio

principalmente dos movimentos das classes operárias. O modelo forjado por Marshall 42, por exemplo, preocupava-se com a exclusão cultural da classe trabalhadora que se originava de seu padrão sócio-econômico. Daí que a forma mais efetiva de promover a cidadania e a inclusão seria por um estado de bem estar social, que fornecesse bens materiais mínimos. Para ele, isso criaria um senso de pertencimento à comunidade baseada no sentimento de lealdade a uma nação que trataria todos de forma igual. No entanto, afirma Kymlicka, nem todos os grupos podem ser integrados da mesma forma que a classe trabalhadora. No caso que se trata nesse artigo, qual seja a realidade latinoamericana, os grupos foram excluídos não só por sua condição econômica, mas também devido a sua identidade sócio-cultural43. Sendo assim, é preciso pensar outras formas de cidadania, não apenas pautada na distribuição de recursos. O teórico canadense nota ainda, que, o final do século passado foi marcado pelo neoliberalismo. Para América Latina, lembra Kymlincka, a política neoliberal fortaleceu a noção de mercado como força regulatória. Observa o autor da obra Cidadania Multinacional que esse arraigamento ao mercado, em casos como o da Bolívia, fez surgir o que ele qualifica como de “radicalismo” por parte das sociedades indígenas. A Constituição da Bolívia (2009), em especial, e a do Equador (2008), inserem-se em um novo mapa institucional e em plena crise do capitalismo, no qual a condição plurinacional adquiriria outra conotação.

40 41 42 43

Ibidem, p. 182. Ibidem. p. 184. MARSHALL, T.H. Cidadania, classe social e “status”. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. Ibidem. p. 190.

Observando mais atentamente, tal como faz Alvaro Linera, em seu texto A Potência Plebeia, mais especificamente, no capítulo destinado às “Autonomias Indígenas e Estados Multiculturais”, ao se referir a Charles Taylor44, o qual, segundo Linera, consideraria que “o reconhecimento de direitos à comunidades culturais diferenciadas permitiria a satisfação de uma necessidade de visibilidade social, que longe de opor-se às liberdades individuais reconhecidas a todos, cria uma base sólida e equitativa de exercício dessas liberdades”45. Neste sentido, as constituições latino-americanas não se afastam tanto do que se pensa a partir do multiculturalismo. A partir da obra de Taylor e de Kymlicka, quer-se, neste momento, demonstrar como o multiculturalismo, representado por estes dois autores se aproxima muito do posicionamento pós-colonial apontado pelos autores que pensam a partir do Sul. Isso porque se o modelo constitucional plurinacional, de um lado, salvaguarda certos grupos étnicos, reconhecidos como nações46, certas garantias que não se conformam ao modelo liberal e individualista de Estado, tal como o conhecemos classicamente, como por exemplo, a garantia de uma jurisdição indígena e o reconhecimento do princípio sumak kawsay, na Bolívia; de outro, a opção por um Estado plurinacional pode também ser enquadrada como uma escolha formal de garantias de liberdades para indivíduos ou grupos de indivíduos com concepções de bem que nada se assemelham, sem que o Estado precise necessariamente se vincular a uma finalidade única. No entanto, tal como já é pacífico, na teoria política, a marca da neutralidade não faz parte da definição estatal ou política. A própria definição de uma língua comum ou de várias línguas já implica em um posicionamento político, que nada se aproxima da pretensa neutralidade do estado. Quanto mais se aprofunda a análise de qualquer Constituição mais se percebe as escolhas e decisões tomadas, mesmo naquelas consideradas mais liberais ou formais. Sendo assim, o traço substantivo finalístico que se percebe da análise da Constituição Boliviana de 2009 está inscrito logo no seu primeiro artigo, o qual afirma, que o Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário da Bolívia se funda “na pluralidade e no pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e

44

Nesse ponto, em especial, nos referimos a obra “El Multiculturalismo y la politica del reconocimiento”. TAYLOR, Charles. USA: Fondo de Cultura Economica, 2009. 45 LINERA, Alvaro. La Potencia Plebeya. p. 311. 46 Linera afirma que a diferença entre etnia e nação está em que a última se identifica com um determinado território. Além disso, uma determinada comunidade formada por indivíduos com um mesmo ou semelhante conjunto de valores tradição, língua, institucionaliza-se através de um regime de soberania estatal.

linguístico”. Ora, se o valor principal do Estado é a pluralidade, há de se afirmar que esse valor se inscreve dentro de uma perspectiva política liberal. Faz sentido, portanto, recuperarmos aqui os autores acima apontados, os quais podem ser úteis para pensar como uma escolha ontológica, de antropologia humana, seja individual ou coletiva, não necessariamente nos conduzirá a perspectivas morais ou políticas da mesma natureza.47 O que se deseja afirmar concretamente é que, apesar de o Estado boliviano afirmar na sua Constituição uma concepção ontológica coletivista, justamente a partir do princípio sumak kawsay – o qual expressa um desejo por melhores condições de vida ao lado dos demais e em plena harmonia com a natureza, vista não como uma fonte a ser explorada e sim como a origem da vida e de sua exuberância, implicando na busca de um bem-estar generalizado, inclusive espiritual e emocional, e a plena harmonia com a Pachamama e com o cosmos –, bem como de uma economia coletiva, que tem como objetivo submeter as forças econômicas a serviço do bem-estar coletivo48, não necessariamente recai em um Estado coletivista ou pautado em uma concepção perfeccionista de bem. Ao contrário busca-se, a partir do reconhecimento das enormes diferenças entre concepções de bem individuais ou coletivas dentro do Estado boliviano – as quais Linera refere-se como “coexistência sobreposta de vários modos de produção, de vários tempos históricos e sistemas políticos”49 – a promoção da pluralidade, característica essencial da tradição liberal. Tal Estado valoriza uma concepção antropológica coletivista de ser humano, ou melhor, que parte dessa premissa para desenvolver sua normatividade máxima na busca de um ideal, que moralmente ou politicamente falando, centra-se na lógica liberal, ainda que não a do liberalismo clássico, tal como ponderam Kymlicka e Taylor50. O que se percebe é uma grande diferença de tons dentro das mesmas cores e, por isso, parece aqui relevante resgatar esse debate. 47

TAYLOR, Charles. Argumentos Filosóficos. Tradução Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Edições Loyola,2000. 48 ROMEO, Francisco Palacios. . Constitucionalización de un sistema integral de derechos sociales. De la Daseinsvorsorge al Sumak Kawsay. in: Desafíos constitucionales: la Constitución ecuatoriana del 2008 en perspectiva. SANTAMARÍA, Ramiro Ávila; JIMÉNEZ, Agustín Grijalva, DALMAU, Rubén Martínez (org). Quito: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, 2008. 49 LINERA, Alvaro. La potencia plebeya. p. 310. 50 Isso porque, quando consideramos o debate entre comunitaristas e liberais, faz-se necessária a ressalva de que ambos fazem parte da mesma tradição. Tal qual afirma Berten, os membros de cada um desses times tem um ar familiar. Se de um lado os liberais sentem-se herdeiros de Locke, Kant e Stuart Mill, que valorizam a liberdade de consciência, o respeito aos direitos individuais; os comunitários, alguns deles com origens aristotélicas ou mesmo pautados na tradição republicana, desconfiam de uma moral universal abstrata. Mais que isso, mesmo dentro destes “times” existem divergências, que se olhadas de forma apurada, são bastante grandes, e, por isso, a impossibilidade de afirmar uma resposta liberal ou

Ainda neste sentido, Linera afirma, ao propor, ainda em 2004, um novo desenho estatal para a Bolívia, que esse não se centrasse no modelo antigo, o qual se caracterizava

pela

eliminação

das

nações

indígenas.

Tampouco

desejava

a

autonomização de nações indígenas, ou seja a secessão51. A configuração do estado, nas palavras do autor, privilegiaria “a diversidade étnico cultural e a pluralidade civilizatória dos regimes simbólicos e processuais técnicos da organização do mundo coletivo” 52. Dentro desse panorama a pergunta que Kymlicka se coloca é extremamente relevante: quais laços unem essas diversas nações dentro de um mesmo país? Que valores permitem que uma minoria étnica não deseje a secessão do estado a qual pertence? O autor sugere algumas soluções. A primeira delas seria a dependência de valores políticos compartilhados, como a liberdade e a igualdade por exemplo 53. No entanto, essa adesão seria débil, já que são inúmeros os países que compartilham estes valores, mas não vivem dentro de uma mesma unidade política. Sugere então que esta se dê a partir de uma identidade compartilhada, ou seja, a partir, da história comum desses povos que pertencem a mesma nação. O que ocorre é que, como no caso boliviano e equatoriano, em países plurinacionais, a história é um tipo de ressentimento, de divisão entre grupos nacionais. Não há um orgulho compartilhado, existe uma espécie de sentimento de traição de um grupo em relação ao outro, portanto, não há possibilidade de um laço que advenha daí54. Finalmente sugere que não há uma resposta comum, generalizada para a pergunta a qual se propõe. Apenas lembra a necessidade de solidariedade e propósitos comuns no sentido de acomodar e não subordinar as identidades nacionais, mesmo que por vezes conflitantes. Interessante notar que Raúl Prada, ao realizar sua crítica ao multiculturalismo, reconhece a existência de países plurinacionais na Europa. Centra-se, no entanto, na Suíça para apontar que lá não há conflito entre as diferentes nações e nunca uma delas foi dominada por outra. Esse sera um dos motivos pelo qual o multiculturalismo não seria adequado para pesar o pós-colonialismo55, já que aqui se tenta buscar a emancipação de

uma resposta comunitária. Ver mais em: BERTEN, André; SILVEIRA, Pablo e POURTIS, Hervé. Libéraux et communautariens. Paris Presses Universitaires de France, 1997 51 Linera aponta para o fato de que os Aimaras teriam condições de existência política autonônoma. 52 Linera. p. 311. 53 Kymlicka. p. 197. 54 Ressalta-se a relevância extrema dessa afirmação de Kymlicka, para que se possa recuperar tais autores dentro de uma perspectiva pós colonial, sem que ignoremos por completo as diversas nuances liberais. 55 ALVAREZA, p. 85.

grupos até então dominados. No mesmo sentido, quando Kymlicka discute a questão do limite tênue entre a unidade e a secessão neste mesmo país, aponta-o como o único no qual “há um senso de patriotismo tão forte, que a Suiça é, em certa medida, um povo único, ao mesmo tempo que é uma federação de povos”56. Ou seja, Raúl Prada se apóia no exemplo de um país em que praticamente não existe conflitos entre nações para deslegitimar o multicutluralismo. Sabe-se, apesar disso, que inúmeros outros países plurinacionais vivem em conflito, como é o caso da Espanha, da Irlanda e da Bélgica. Afirma-se neste estudo a centralidade de não dispensar uma teoria se ela é capaz de propor questões pertinentes e que ajudam na reflexão de um determinado problema. Recuperando Taylor, nota-se o fato de que o único valor compartilhado em países plurinacionais seria, portanto, a diversidade profunda. Assim, a única realidade existente, tal como afirrma Sanin, recuperando Nancy e Ranciére, é o estar em coum 57. Isto é, a sociedade necessariamente está em conjunto na construção da diversidade, a qual exige sacrifícios, por vezes, para que a comunidade política maior se mantenha unida. Não necesariamente precisamos da união. Já que o conflito pode, por vezes, resultar na secessão de uma determinada nação. No entatno, a maneira pela qual tal acomodação ocorreria é contingente, e, portanto, o autor irá apelar a phronêsis aristotélica. Uma noção de prudência, que estimularia a participação pública, fortalecendo as diversas concepções comunitárias, reconhecendo a pluralidade de valores. Permite que os diversos grupos, no caso aqui tratado, étnicos, reclamem politicamente seus direitos sem que por isso tenham um valor a priori estabelecido, o que poderia originar um totalitarismo comunitário. A ideia de phronêsis é melhor desenvolvida por outros autores como Enrico Berti e Pierre Aubenque. Por isso, aproveitando o que Taylor sugere, propõe-se um entendimento dessa noção de prudência aristotélica como um modo de solução do caso extremo do conflito, ou como afirma Berti, “De todos os conflitos inevitáveis trágicos da vida ética”58. Acredita-se que este conceito é essencial para pensarmos os estados plurinacionais, porque há momentos em que a cultura de uma nação pode se chocar de forma vital com a de outra, ou seja, a cultura de um grupo nacional pode desaparecer 56

KYMLICKA, p. 187. 57 SANIN, Ricardo. Por qué no Habermas: del engaño liberal a la democracia radical. In: Crítica Emancipación. Revista latinoamerica de ciencia sociales. Año IV. n. 8. Segundo Semestre, 2012. 58 BERTI, Enrico. Saggezza o filosofia pratica? Etica & Politica, 2005, 2. Disponível em: Visualizado em 22 de outubro de 2012. p. 2.

caso outro grupo se sobreponha. E, como afirma, Pierre Aubenque, a phrônesis, traduzida aqui como prudência, é justamente o modo de pensar a contingência 59, que é onde reside aquilo que é inerradicável da política, o conflito Em outras palavras, quando Taylor propõe a phronêsis como uma forma de se pensar a solução de conflitos multiculturais e recuperando aquilo que restou da Ética a Nicômaco, pode-se pensar, tal qual faz Aubenque, que este conceito é de grande valia para se refletir sobre o hiato entre universal e particular, que é o que está em jogo no caso das constituições plurinacionais da América Latina. Alguns autores contemporâneos, inclusive, preferem traduzir phronêsis como sabedoria, ou seja, um tipo de conhecimento que tem por objeto o contingente, o acaso, já que “ela é sabedoria do homem e para o homem”60. O autor também relembra que as tragédias gregas que questionavam sempre sobre o que fazer num mundo dominado pelo acaso, no qual o futuro é desconhecido, e então a resposta dos coros era sempre a prudência, a phronêsis, a sabedoria. Nesse caso, soluções universais, pautadas em princípios, como liberdade e igualdade, típicas do liberalismo clássico, não dariam conta de resolver o litígio. A prudência não nega nem liberalismo, nem culturalismo, pois consiste em uma intuição sobre o particular pautada na experiência, no mundo sensível, capaz de se adaptar a todas as situações sem perder de vista o fim bom. Sendo assim Berti afirma: Enquanto conhecimento do particular, a prudência pressupõe uma certa experiência, não no senso do empirismo inglês (sensação, percepção, ideia), mas no sentido aristotéilico de ser especialista, de ter vivido muitas experiências, de conhecer casos de vida; porque é mais fácil encontrar nas pessoas idosas, ou de outra forma maduras, que nos jovens (os quais, às vezes, brilham na matemática, onde, aparentemente, depois dos trinta anos não conseguem produzir mais nada 61 de novo).

Parece aqui que, de alguma forma, o multiculturalismo aproxima-se bastante do que se chama de pós-colonialismo, principalmente, do que Boaventura de Sousa Santos chama de ecologia dos saberes62. No seu livro Gramática do Tempo, o autor reiteradamente afirma a necessidade de uma nova epistemologia que valorize o conhecimento tradicional, as experiências, o diálogo entre culturas diferentes. Assim, apesar de a maioria dos autores que se dedicam ao estudo do pós-colonialismo criticarem e abandonarem o multiculturalismo, este estudo pretendeu demonstrar que estes dois 59

AUBENQUE, Pierre. A Prudência em Aristótes. São Paulo: Discurso Editorial,2003. AUBENQUE, Pierre. A Prudência em Aristóteles. p. 54. 61 BERTI, Enrico. p. 3. 62 SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: por uma nova cultura política. São Paulo: Cortêz, 2006. 60

discursos não se excluem. Mais que isso, ambos estão preocupados em pensar os estados plurinacionais e formas de emancipar o sujeito.

5. Considerações Finais

Cabe nesse momento retomar duas das perguntas que perpassaram o texto, A primeira delas que se refere a possível ruptura que estado plurinacional representaria em relação ao paradigma do estado constitucional liberal. Enquanto a segunda, reflete-se na última discussão, qual seja, a possibilidade de o discurso pós-colonial e multicultural, propostos por Taylor e Kymlicka, não estarem em contradição. Em relação à primeira pergunta, procurou-se demonstrar no texto de que forma o Estado-nação, ou o Estado constitucional liberal, procurou durante séculos sufocar os conflitos inerentes à política, à convivência de grupos humanos com culturas, costumes e temporalidades diferentes. Percebeu-se, portanto, que, principalmente no caso dos países latino-americanos, que sofreram colonização europeia, tal construção se deu de forma arbitrária e não pela vontade de seus cidadãos. Isso resultou na submissão de diversas culturas existentes antes da “conquista da América” a uma cultura ocidental dominante. As constituições da Bolívia e do Equador ao proporem a plurinacionalidade, de fato, rompem com esse modelo de Estado que buscou homogeneizar, assimilar a cultura indígena, bem como a cultura dos imigrantes negros, que vieram escravizados para as Américas. Nesse contexto, parece que essas novas Constituições, justamente, por terem como origem um processo de lutas populares, podem emancipar, bem como libertar politicamente as culturas minoritárias até então reprimidas. A dúvida que resta é se tal modelo, apesar de emancipador, rompe, de fato, com o modelo do Estado constitucional liberal. Nesse ponto, como já afirmado no texto, relevamse dois aspectos. O primeiro deles é o fato de que se mantém uma estrutura, até certa medida, formal de constituição, bem como pluralista. Não há como negar que o pluralismo seja o valor mais forte a ser protegido pela tradição política liberal. Apesar disso, elenca algumas formas alternativas ao liberalismo, como a economia comunitária, e o princípio do sumak kawsai. Mesmo assim, de uma análise comparativa com outros países multiculturais, denota-se, que por exemplo, o Canadá ao dar autonomia ao Quebec faz algumas escolhas de bem a priori, referentes à obrigatoriedade da língua francesa na educação. Nesse ponto, não se permite dizer que há de fato um rompimento absoluto com o estado liberal.

Já no que diz respeito à segunda pergunta, pode-se perceber que tanto multiculturalismo quanto pós-colonialismo, de certa forma, estão em sintonia, por não proporem um modelo universal, racional de indivíduo. Não parece que o pós-colonialismo paute-se na sobreposição da comunidade perante o indivíduo, o que poderia de fato negar o multiculturalismo. Ambos estão preocupados com a manutenção de culturas divergentes, muitas vezes, uma dominante da outra dentro de um território único. Sendo assim, se em nosso planeta existem mais nações que países, ambos estão pensando novas formas de organização política, de instituições e até mesmo de vida, na qual uma cultura não destrua, nem assimile a outra. Por isso, justamente, pelo caráter contingente das situações que cada uma dessas constituições que abarcam diversas nações enfrentam e enfrentarão e pela inerradicabilidade do conflito que se propõe pensar a partir da phronêsis aristotélica. Isso porque essa forma de conhecimento não transcendentaliza, não busca em princípios gerais soluções para casos específicos. Ao contrário, busca na experiência humana, possíveis formas de resolver aquilo que o futuro e os conflitos tem de novo.

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