Diálogos entre \"Origens do Totalitarismo\" e \"A Condição Humana\" de Hannah Arendt

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Universidade de Brasília Departamento de História Disciplina: Historiografia – 1/2016 Professor: Daniel Faria Aluno: Luiz Henrique Santos Brandão

Matrícula: 11/0016301

Em 1951 Hannah Arendt publica “Origens do Totalitarismo”, em que aborda o antissemitismo, o imperialismo e o totalitarismo como os componentes principais de um processo histórico que, segundo ela, levou “a estrutura essencial de toda a civilização” 1 a atingir um ponto de ruptura radical e inédito. Sete anos depois (1958), Hannah Arendt publica “A Condição Humana”, em que realiza uma investigação mais abrangente – desde os gregos até os anos em que escreveu – sobre a maneira pela qual a tradição política ocidental pôde, no século XX, produzir fenômenos que, para ela, escapam completamente à racionalidade humana, como foram as experiências totalitárias. Reconhecendo a afinidade temática e a finalidade destes que estão entre os principais trabalhos da pensadora, o propósito deste trabalho é explorar alguns dos pontos de convergência possíveis entre a análise histórica realizada por Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo e a depuração conceitual d’A Condição Humana, buscando identificar se e como as ideias que ela elabora no segundo já podem ser antevistas no primeiro livro. Força das massas Uma das principais características dos governos totalitários, no pensamento de Hannah Arendt, é a de que estes objetivam e conseguem organizar as massas – e não classes, como faziam os partidos de interesses dos Estados nacionais […] Todos os grupos políticos dependem da força numérica, mas não na escala dos movimentos totalitários, que dependem da força bruta, a tal ponto que os regimes totalitários parecem impossíveis em países e população relativamente pequena2. 1 2

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Companhia das Letras. São Paulo, 2009. p. 11 Idem. p. 358

Os movimentos totalitários dependem da força bruta mais do que qualquer outra forma de organização política e a origem dessa força estaria justamente em sua capacidade de organizar as massas não através da articulação de interesses e opiniões estritamente ideológicas ou políticas, mas, como sugere Félix Guatarri, por meio de uma espécie de micropolítica do desejo.3 A forma como os conceitos de “massa” e “força” aparecem em A Condição Humana podem fornecer um caminho interessante para iniciar a articulação que pretendo entre essas duas obras. Para Arendt, a única alternativa para o poder – entendido como a potencialidade da ação entre os homens – é a força, “que um homem sozinho pode exercer sobre seu semelhante, e da qual um ou poucos homens podem ter o monopólio ao se apoderarem dos meios de violência”4 e que pode se manifestar como experiência histórica concreta na forma da tirania. Uma outra tentativa, igualmente nunca bem-sucedida de substituição do poder, é pelo vigor – corpóreo, individual – que se manifesta sob forma de governo como oclocracia (governo da multidão). Tanto a tirania quanto a oclocracia, apesar de constituírem formas que poderiam ser consideradas como diametralmente opostas de governo, se caracterizam pela tentativa de substituir o poder pela violência, seja através da força, seja através do vigor. Se os movimentos totalitários se baseiam na força que extraem da multidão, convém inquirir sobre os motivos de este tipo de fenômeno ter tido lugar justamente no século XX. Dentro do pensamento de Hannah Arendt, talvez a resposta esteja no surgimento, no século XIX, daquilo que chamamos de “massas”. Em “Londres e Paris no século XIX”, Maria Stella Bresciani apresenta algumas das imagens identificadas por ela nas análises e produções literárias produzidas nas primeiras décadas da vertiginosa explosão demográfica desencadeada pelas revoluções industriais: Gestos automáticos e reações instintivas em obediência a um poder invisível modelam o fervilhante desfile de homens e mulheres e conferem à paisagem urbana uma imagem frequentemente associada às ideias de caos, de turbilhão, de ondas, metáforas inspiradas nas forças incontroláveis da natureza […] Permanecer incógnito, dissolvido no movimento ondulante desse viver coletivo; ter suspensa a identidade individual, substituída pela condição de habitante de um grande aglomerado urbano; ser parte de uma potência indiscernível e temida; perder, enfim, parcela dos atributos humanos e assemelhar-se a espectros.5 3 4 5

GUATARRI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Ed. Brasiliense. Brasília, 1985. p. 174 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2010. p. 252. BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. Ed. Brasiliense.

Tendo em mente estas imagens identificadas por Bresciani nos discursos dos intelectuais do século XIX, observemos alguns trechos em que Arendt caracteriza as massas em Origens do Totalitarismo: As massas não se unem pela consciência de um interesse comum e falta-lhes aquela específica articulação de classes que se expressa em objetivos determinados, limitados atingíveis. O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se posem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto.6

Para ela, “os movimentos totalitários são possíveis onde quer que existam massas que, por um motivo ou outro, desenvolveram certo gosto pela organização política” já que “somente onde há grandes massas supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de despovoamento é que se torna viável o governo totalitário”.7 Em Arendt, a massa parece encarnar a combinação política recorrente descrita em A Condição Humana entre força e impotência. As massas seriam então um exemplo do que a autora descreve como sendo “uma legião de forças impotentes que se desgastam, muitas vezes de modo espetacular e veemente, mas em completa futilidade” 8 e é justamente a essa legião de forças difusas e impotentes que os movimentos totalitários teriam logrado imprimir um sentido. O uso da força e da violência como ferramentas de governo só podem existir, no entanto, numa tentativa nunca bem-sucedida de substituição do poder pela força, e essa substituição só é possível sob a condição do desaparecimento da atividade política, cuja condição é a pluralidade ausente na própria ideia de massa. Esse talvez seja o eixo principal das reflexões presentes em A Condição Humana: como se deu, na era moderna, o desaparecimento da política e quais as consequências desse desaparecimento. A conclusão mais imediata, e que certamente está presente nas partes finais do livro é a de que a consequência desse processo homogeneizante característico da sociedade de massas é justamente não apenas o surgimento do fenômeno totalitário, mas de uma espécie de espectro que ronda a política contemporânea como uma saída sempre disponível para

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São Paulo, 2013. p. 10-11 ARENDT. Origens do Totalitarismo. p. 361 Idem. ARENDT. Ibid. p. 252.

conflitos internos, mesmo depois da queda dos regimes totalitários. Sociedade e processo vital Uma das razões para o declínio da política descrito por Arendt é a ascensão do social e a consequente evanescência das fronteiras que separavam o público do privado, obscurecendo as diferenças entre liberdade e necessidade.9 Arendt entende “sociedade” como sendo a reprodução do modus operandi biológico, da espécie, mas no âmbito de uma coletividade política. Para ela o ponto de vista social é idêntico à interpretação que leva em conta apenas o processo vital do gênero humano; e, dentro de seu sistema de referência, todas as coisas tornam-se objetos de consumo. Em uma sociedade completamente “socializada”, cuja única finalidade fosse a sustentação do processo vital […] todas as coisas seriam concebidas não em função de sua qualidade objetiva, mundana, mas como resultados da força viva do trabalho e como funções de processo vital.10

Ainda em A Condição Humana, Arendt aponta para o surgimento do conceito de “processo” como um conceito chave criado pelas ciências históricas para entender a era moderna, surgido a partir da substituição da ideia de propriedade (estável) pela de riqueza (acumulável, crescente). Somente se a vida da sociedade como um todo, ao invés da vida limitada dos indivíduos, é considerada como o sujeito gigantesco do processo de acumulação, pode esse processo seguir totalmente livre e em plena velocidade, isento dos limites impostos pela duração da vida individual e pela propriedade possuída individualmente.11

Essa ideia de sociedade só seria exequível se o homem deixasse de “agir como um indivíduo interessado apenas por sua própria sobrevivência” 12, mas passasse a agir como um membro da espécie, ou seja, quando a reprodução da vida individual fosse absorvida pelo processo vital coletivo e respondesse somente as necessidades desta. Tal ideal socializante aparece no Origens do Totalitarismo quando Arendt nota que, mesmo quando os regimes totalitários passam a exterminar os próprios membros, estes não só continuam comprometidos com o movimento, como colaboram para a própria condenação e tramam a própria sentença contanto que o status de membro do partido seja preservado. Outra manifestação prática dessa ideia de sociedade caracterizada pela 9 10 11 12

ARENDT. A Condição Humana. p. 87 Idem. p. 109. Idem. p. 143 Idem.

desimportância do indivíduo em prol da continuidade coletiva e manutenção do processo vital é a descartabilidade dos líderes dos governos totalitários. Para Arendt, “nada caracteriza melhor os movimentos totalitários em geral do que a surpreendente facilidade com que são substituídos os seus líderes”,13 demostrando que mesmo a figura do soberano estaria inserida na lógica orgânica que orienta a ideia de sociedade. Nesse sentido, a afirmação de Giorgio Agamben de que “o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea”14 pode dialogar, em certa medida, com o diagnóstico feito n’A Condição Humana de que a era moderna é a era do animal laborans, a época de uma sociedade de trabalhadores. Agamben mostra que o próprio fundamento da figura jurídica do estado de exceção encontra-se na ideia de estado de necessidade, expressa no proverbio latino necessitas legem nom habet, ou ainda em sua variante francesa necessité fait loi. Se formos considerar a descrição feita por Arendt da atividade do trabalho, veremos que este está sempre ligado a funções corporais, de produção e consumo para a manutenção da vida biológica, ou seja da necessidade, enquanto que a ação – característica da política – é marcada pela ausência de qualquer finalidade externa a si mesma. Assim, se é possível pensar a sociedade criada na era moderna pelo declínio da política e da esfera pública como um grande organismo cujo funcionamento obedece à lógica do processo vital, biológico (relacionado a atividade do trabalho), pode-se pensar também que o tipo de Estado que melhor se adequa a suas características fundamentais é o estado de necessidade. O que Hobsbawm chama de “forças da democracia” 15 quando descreve a crescente participação do “homem comum” nos assuntos do Estado entre 1848 e 1875 é para Arendt, ao que parece, o exato oposto. A relação entre declínio da atividade política e estado de necessidade/emergência pode ser identificada na passagem em que Arendt lembra que “o status social era decisivo para que um indivíduo participasse da política e, exceto em casos de emergência, quando se esperava que ele agisse apenas como nacional, independentemente de classe ou partido, ele [o homem comum] nunca se defrontava diretamente com as coisas públicas”.16 A introdução da ideia de sociedade, em que todos 13 14 15 16

ARENDT. Origens do Totalitarismo. p. 355 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Boitempo. São Paulo, 2004. p. 13 HOBSBAWM, Eric. The Age of Capital. Vintage Books. New York, 1996. p. 98 ARENDT. Idem. p. 364.

fazem parte de um todo, como partes de uma engrenagem, abolindo a ideia de distinção, nivelou a todos não como cidadãos, mas como apenas nacionais. Substituiu a pluralidade da política pela multiplicidade das massas. Atomização e desamparo Para Arendt a característica homogeneizante do fenômeno da massificação social produziu uma consciência geral de desimportância de dispensabilidade individual 17. No entanto, ela nota que “a atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos de massa”18. Esse quadro de isolamento do indivíduo faz repercutir a ideia de declínio do político e desaparecimento da esfera pública, entendida como um espaço que existe entre os homens que os conecta e separa simultaneamente. O desaparecimento desse espaço-entre encerra o homem em si mesmo, impossibilitando-o para a ação política e produzindo o que Arendt chama de desamparo19. Se quisermos prosseguir na comparação entre a análise feita por Arendt e aquela feita por Agamben, podemos pensar na dimensão exclusivamente corpórea da atividade do trabalho, característica do animal laborans, e que o alija da esfera pública, prendendo-o à privatividade do seu próprio corpo como correspondente àquilo que Agamben aponta como a “vida nua”20, ou seja, a simples vida natural, excluída dos negócios humanos. A aproximação fica mais evidente quando Arendt, refletindo sobre a importância da desigualdade enquanto distinção individual, afirma que “a efetiva experiência dessa uniformidade, a experiência da vida e da morte, ocorre não apenas no isolamento, mas no completo desamparo, no qual não é possível qualquer comunicação genuína e muito menos associação e comunidade”.21 Como já foi abordado nos dois últimos tópicos, essa indistinção a qual está sujeito o indivíduo na sociedade de massas constitui um ponto chave, porque a condição para a ação é a pluralidade, e a pluralidade é constituída por duas partes codependentes: a igualdade e a distinção. O único fator de diferenciação para o animal laborans é a alteridade, ou seja: a diferença comum a toda existência material, inclusive inorgânica, que se manifesta através 17 18 19 20

ARENDT. Ibid. p. 365 Idem. p. 366 ARENDT. A Condição Humana. p. 93. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Editora UFMG. Belo Horizonte, 2014. p. 10 21 ARENDT. Idem. p. 268.

da multiplicidade de constituições específicas de seus corpos físicos. A distinção é uma característica individual que se forja a partir da inserção no mundo humano e revela a si própria através do discurso e da ação, ou seja, na política. Dizer que resta ao indivíduo apenas a multiplicidade e a alteridade, em oposição a pluralidade e a distinção, é o mesmo que dizer que só resta a ele, como aos animais, o seu corpo e o processo vital que o sustenta e no qual está imerso.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Boitempo. São Paulo, 2004. _________. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Editora UFMG. Belo Horizonte, 2014. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Companhia das Letras. São Paulo, 2009. _________. A Condição Humana. Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2010. BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. Ed. Brasiliense. São Paulo, 2013. GUATARRI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. Ed. Brasiliense. Brasília, 1985. HOBSBAWM, Eric. The Age of Capital. Vintage Books. New York, 1996.

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