\"Diga meu nome\": Breaking Bad e o testemunho pré-ontológico da autenticidade existencial

August 20, 2017 | Autor: Fabio François | Categoria: Martin Heidegger, Hermenéutica, Breaking Bad
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“Diga meu nome”: Breaking Bad e o testemunho pré-ontológico da autenticidade existencial Fábio François M. da Fonseca (doutorando PPGLM – UFRJ) [email protected] Na analítica existencial conduzida por Heidegger em Ser e Tempo, a autenticidade existencial é tanto um parâmetro de irredutível singularidade reivindicada por quem empreende o questionamento quanto o parâmetro de verdade a partir do qual este questionamento pode ser encaminhado. O tema desta analítica, o ser-aí, é o ente que nós mesmos somos. O intento de Heidegger é contornar a gramática da sentença predicativa e manter em suspenso a hipótese de que o ser-aí não seja um sujeito de atributos mas um ente ontologicamente irredutível a este tipo de abordagem. Ele é apreendido na modalidade da possibilidade concreta colocada pela própria questão existencial. O sentido de ser do “Eu sou” seria primordialmente hermenêutico e articulado no próprio questionamento em curso, este ente que tem o próprio ser como questão. Este modo de ser estaria implícito como a cada vez empenhado em possibilidades distribuídas como relevantes em alguma medida na situação hermenêutica, que é a situação de proferimento explicitada enquanto tal, e segundo uma estrutura comportamental chamada Descerramento, e que é articulada em disposição afetiva, compreender e fala. De início e na maior parte das vezes, esta estrutura se configura em Decadência, a saber, uma modalização mediana e impessoal no proveito do compartilhamento das coisas, e suas articulações então se especificam em falatório, curiosidade, e ambiguidade.

Seguindo esta

tendência, o ser-aí se desvia do questionamento por suas possibilidades mais próprias e de modo geral por sua singularidade existencial, adotando as possibilidades niveladas que a impessoalidade sugere.

Levada a extremo a Decadência degenera em saturação semântica, conformismo e

indolência. Pressionado pela angústia, ser-aí pode retomar o questionamento por possibilidades mais próprias modulando o descerramento em Decisividade, que que então se articula em poder-ser para a morte, ser-devedor e silenciosidade.

Reivindicando uma singularidade contínua, a

decisividade integraliza as estruturas do Descerramento e mostra que estas, na verdade, seguem a estrutura da Temporalidade, que se articula em Porvir, Ter-sido e Presentificação. A abordagem transcendental proposta por Heidegger para a Temporalidade pode ser substituída por uma solução mais econômica e imediata, a gramática narrativa segundo a qual alguém conta uma história que lhe diz respeito, recolhendo elementos de um acervo prévio a fim de compor um sentido em que possibilidades em aberto possam ser apreciadas não por sua efetividade real mas por sua significância a luz da narrativa, em contraste com a gramática proposicional do enunciado predicativo que diz o que é o caso. Aqui Ricouer contribui sugerindo que a composição

narrativa se perfaz em três níveis, o implícito da ação cotidiana, o expresso de proferimento da narrativa, e outro final de reelaboração da ação em novas possibilidades inspiradas pela narrativa. Já Hannah Arendt entreviu que na ação política os homens se entendem protagonistas de uma narrativa de que não são autores, o que discursivamente poderia ser assinalado em nosso problema com o uso de pronomes pessoais. Perfazendo-se na sua própria pronúncia, a narrativa existencial da Decisividade presentifica o mesmo ente subsistente da Decadência, mas agora restituído em sua plenitude de significação e sentido para quem questiona. Há uma tentativa por parte de Heidegger e Gadamer em entender o empreendimento hermenêutico que viabiliza a expressão da autenticidade existencial como modelado no que Aristóteles chama de Phronesis ou sabedoria prática. Nesta abordagem recusa-se traduzir a noção pelo que nossos jogos de linguagem contemporâneos entendem ser “prudência”, e se reivindica um eminente saber hermenêutico. De qualquer sorte isto parece incoerente, uma vez que o que Aristóteles tem em mente ainda é uma competência para instanciar a proposição moral no caso concreto, o que em alguma medida parece sempre presumir a ação normalizadora da impessoalidade que disponibiliza tais princípios gerais. É especialmente sintomático que Gadamer precisa proscrever dogmaticamente do seu suposto saber hermenêutico o deinós, a competência simétrica à phronesis mas desprovida do fim ético, o que em se considerando a gramática narrativa da temporalidade mencionada acima, e também a neutralidade moral da decisividade alegada por Heidegger, não é imediatamente claro. Breaking Bad servirá aqui de testemunho pré-ontológico de uma configuração de autenticidade existencial que não só transcende a correção moral como a desafia frontalmente. A importância deste tipo de testemunho é trazer à situação hermenêutica uma composição discursiva a partir da qual possibilidades existenciais possam reivindicar-se aos interlocutores sem contar com qualquer alegada efetividade ou realidade, restando então fundamentos estritamente existenciais, quer dizer, significativos a partir da própria narrativa uma vez pronunciada. A bivalência existencial entre Decadência e Decisividade é delimitada ao longo da série na alternância entre duas atitudes por parte do protagonista, uma alternância que se encaminha a uma interpretação mais incisiva e franca ao fim da narrativa. Diagnosticado com câncer e certo da morte iminente, o bom cidadão, marido e pai de família se vê subitamente suprimido do horizonte de familiaridade que sustentava a vida mediana que ele, até então, suportava.

A transição à

Decisividade, no entanto, será gradual e penosa. A resposta imediata ainda é um lance finalístico, uma tentativa de configuração de sentido nos mesmos padrões funcionais da vida cotidiana que se lhe desmorona, levantar uma fortuna que, provendo sua família na posteridade, o livraria de toda a incerteza, uma tentativa de se contornar o ser-para-a-morte. Reativo e ansioso, Walter White se lança de modo atabalhoado ao empreendimento de produzir a metafentamina, o que o vincula a um

submundo de crime, violência e assassinato para o qual, acreditava, nunca ter estado pronto. De tempos em tempos o personagem se questiona sobre o rumo dos seus atos e seu refrão é sempre a reivindicação de um homem sensato dadas as condições que teve para obter os melhores resultados possíveis para todos os envolvidos. A decadência se perfaz formalmente: as justificativas e a vida dupla configuram o falatório, o câncer, embotando a abstração do ser-para-a-morte, enrijece a projeção de possibilidades na obsessão por aurir mais dinheiro, e o sentimento familiar, a todo tempo reivindicado como motivação para sua iniciativa criminosa, recai em ambiguidade quando esta própria atividade e seu custo moral e de perigo começam a destroçar sua vida familiar. Um diferencial desta série foi apontado em como situações limites davam ensejo para soluções inusitadas e impressionantes, que por seu lado implicavam em novos problemas que futuramente se aprofundariam em novas situações limites. Esta montanha russa, na verdade, tem algo da dinâmica da Decisividade, que é precária e diz respeito mais a eventos do que a estados ou atributos do ser-aí. Nestes momentos, Walter White interrompe seu falatório e precisa pensar e agir de modo consequente, revelando cada vez menos episodicamente um inesperado gênio do crime adormecido na sua vida de professor de química. Cada evento deste, no entanto, aprofunda o vínculo do personagem com a vida criminosa, aumentando seus riscos e tornando cada vez mais difícil a manutenção da aparência da vida ordinária prévia. Para o protagonista, em especial, seu empenho é cada vez menos precário e cada vez mais espontâneo, quanto mais ele compreende que este empenho representa um diferencial significativo neste mundo brutal que agora lhe parece o ar que respira. Walter aprende a amar a lenda que Heisenberg e sua metanfetamina se tornaram entre os criminosos. Assim se configura então a decisividade: ser-para-a-morte se articula em aberto e a cada vez orienta os recursos disponíveis segundo a premência incondicional do ímpeto de sobreviver, ser-devedor a cada vez vincula sem atenuantes e irreversivelmente às consequências de escolhas passadas, e a silenciosidade se consolida na escuta do reconhecimento inequívoco por parte da comunidade criminosa: “Say my name.” A presentificação se especifica na própria metanfetamina de cor azul, que se torna lendária entre os produtores, consumidores e policiais, e cuja produção, desde o início da série é encarada como um fazer artístico. Não se sabe qual o segredo na sua produção, mas ela é descrita como pura num nível que beira o fantástico. Jesse Pinkman sustenta de modo precário um correlato deste fazer artístico, a caixa de marcenaria que produziu no colégio, e cuja significância ele só vai conseguir apreender e se assegurar no fim da série. Este isomorfismo sugere uma estrutura transcendente. A este artifício de enredo que consiste num objeto cuja importância na narrativa não é determinada em termos reais mas a partir do próprio empenho que os personagens lhe dirigem, Alfred Hitchcock chamou de MacGuffin. Aqui proponho que toda narrativa tem seu MacGuffin, sua intencionalidade, a partir do qual ela reorienta os parâmetros de sentido ordinários das formas de

vida que ela inspira. Se Heidegger estiver certo ao acreditar que a analítica existencial é uma ontologia fundamental, que condiciona inclusive a ontologia real das coisas, este é o radical icônico do objeto transcendental cuja estrutura categorial dá as condições de possibilidade dos objetos ordinários em constatações cotidianas. A tradição alquímica conhece esta ideia sob o nome de Pedra Filosofal, ou Grande Obra, e que obviamente inspira em grande medida a série. Este elemento lendário atenderia duas funções fantásticas: transmutações de elementos e elixir da longa vida. É inevitável resgatar estas ideias como recursos poéticos da linguagem. No primeiro caso, a fonte primordial da significância a partir da qual qualquer coisa pode ser compreendida como o que é, no segundo, a plenitude de sentido que coisas e signos adquiremno contexto da narrativa sustentada por quem compreende. Esta então seria a verdade a que Walter White chegaria ao fim da série, e que refutaria de modo peremptório todo o falatório da suposta prudência que sacudia de modo pouco convincente alegações de meios e fins, e de boas intenções: “I did it for me. I liked it. I was good at it. And, I was really... I was alive.” Intencionalidade e transitividade numa só plenitude de sentido, e a despeito da abjeção moral. A narrativa existencial aqui toma um contorno inevitavelmente trágico, e não mapeável pela abordagem Aristotélica, Walter não é mais um homem bom, é só um homem que precisa termina a sua história. É esta história que admiramos, e não o protagonista, que sabemos também que não tem mais direito de se esquivar de tudo o que fez. As normalizações morais não estão acessíveis ao âmbito de questionamento e a possibilidade mais própria é um empenho subjetivo, em conflito terminal com a comunidade cujo resultado autodestrutivo é necessário. Numa narrativa política, um contexto não disponível aos personagens de Breaking Bad, o poder-ser mais próprio da comunidade também é questionado e então se expressa de modo mais próximo e distendido como o Comum, o objeto transcendental da comunidade, o MacGuffin originário, viabilizando um encaminhamento difuso da temporalidade, quer dizer, mais aberto e horizontal, menos normalizado, por um lado, e menos voluntarista por outro. Sugestão de exemplo: Orgulho e Preconceito e Ladrões de Bicicleta. Texto apresentado no Simpósio Internacional de Filosofia Pop UNIRIO 9 de Maio de 2014

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