Direito como Reconhecimento em Hegel

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO CURSO DE DIREITO

ÍTALO DA SILVA ALVES

DIREITO COMO RECONHECIMENTO EM HEGEL

Porto Alegre 2015

Foto de capa: Alexander Calder, Sem título (1937).

Ítalo da Silva Alves

DIREITO COMO RECONHECIMENTO EM HEGEL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito pelo Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.

Orientador: Prof. Dr. Fabio Caprio Leite de Castro

Porto Alegre 2015

AGRADECIMENTOS Uma monografia é a culminação, na palavra de um indivíduo singular, de um empreendimento essencialmente coletivo. Sem uma série de pessoas e eventos na minha vida, este trabalho não teria sido possível. A todas essas pessoas sou grato. Em específico, agradeço: Ao Prof. Dr. Fabio Caprio Leite de Castro, pela atenciosa orientação e condução no desenvolvimento deste trabalho. Ao Prof. Dr. Thadeu Weber, meu orientador de Iniciação Científica desde 2013, através de quem primeiro tive contato com a filosofia de Hegel, sendo o responsável por demonstrar que, realmente, “a pedra lançada pela mão está em poder do diabo”—o estudo da filosofia hegeliana é um caminho sem volta. À Alice Faé e ao Daniel Barreto, pelo apoio fraterno durante o período de redação deste trabalho e por terem sido os primeiros a lerem-no, resistindo bravamente aos braços de Morfeu. Ao Émerson Pirola, pelas sempre frutíferas elucubrações metafísicas dialógicas, e pela leitura e crítica de versões anteriores deste trabalho. À Gabriela Verri e ao Airton Gregório por partilharem da melhor forma do interesse por entender o eu e o outro. Aos membros dos grupos de pesquisa “Filosofia Sistemática: dialética e filosofia do direito” e “Lógicas de Transformação: críticas da democracia”, do CNPq, por proverem um espaço importante de troca e reflexão crítica. Ao Ministério da Educação do Brasil, ao Departamento de Assuntos Estrangeiros, Comércio e Desenvolvimento do Canadá e à Pró-Reitoria de Pesquisa, Inovação e Desenvolvimento da PUCRS, pelas bolsas de pesquisa e estudo. Às professoras e aos professores que fizeram parte, de uma forma ou de outra, da minha formação. À minha mãe, Claudete Schäfer da Silva, e ao meu pai, João Carlos Alves, por muito além do óbvio.

The road to interiority passes through the other. (WILLIAMS, 1997, p. 49)

RESUMO Qual é a origem conceitual do direito? Como ele se fundamenta e é garantido? O presente trabalho pretende responder essas questões a partir da teoria hegeliana do reconhecimento, buscando demonstrar que o reconhecimento recíproco é o elemento fundador do conceito de direito. Primeiramente, na forma de reconhecimento intersubjetivo, e, posteriormente, através da consubstanciação dos reconhecimentos intersubjetivos nas instituições sociais: a família, a sociedade civil e o Estado. No primeiro capítulo, busca-se expor as fontes conceituais do tema do reconhecimento recíproco na obra de Hegel, utilizando-se como bases a dialética do senhor e do escravo, constante na Fenomenologia do Espírito, e o desenvolvimento da liberdade no Espírito Objetivo, a Filosofia do Direito. No segundo capítulo, são apresentadas questões relevantes e problemas prementes para uma fundamentação intersubjetiva do direito. No terceiro capítulo, argumenta-se que o reconhecimento recíproco dá origem a um conceito de justiça, que, ao ser incorporado por um terceiro, torna-se um fenômeno jurídico, conceituando-se um direito como um título de

reconhecimento.

Esse

fenômeno,

originalmente

intersubjetivo,

torna-se

progressivamente objetivo, ou substancial, através da mediação exercida pelas instituições da eticidade. Tais direitos, que pertencem a um Estado particular, se submeterão, por fim, ao juízo do “tribunal da história”, por quem serão julgados e atingirão sua determinação máxima.

Palavras-chave: Hegel; direito; reconhecimento; eticidade; história.

ABSTRACT What is the origin of right? How is it founded and guaranteed? In this work, I intend to provide an answer to these questions from the standpoint of Hegel’s theory of recognition, attempting to demonstrate that reciprocal recognition is the founding element of the concept of right. Firstly, as inter-subjective right and, later, as objectification of intersubjective recognitions in the institutions of ethical life: family, civil society and state. In the first chapter, I expose the conceptual sources of the subject of reciprocal recognition in Hegel, taking as bases the dialectics of master and slave of the Phenomenology of Spirit and the development of freedom in the Objective Spirit, the Philosophy of Right. In the second chapter, I discuss important questions and pressing issues for an inter-subjective theory of right. In the third chapter, I argue that reciprocal recognition gives rise to a concept of justice, which becomes a juridical phenomenon when appropriated by a third party, constituting the concept of a right as a title of recognition. This phenomenon, intersubjective at its origin, progressively becomes objective, or substantial, through the mediating activity of the institutions of ethical life. Such rights, which belong to a particular state, will finally undergo the “court of judgement” of world history, by which they will be assessed and will reach their full determination.

Keywords: Hegel; right; recognition; ethical life; history.

LISTA DE SIGLAS

PhR.

HEGEL, G. W. F. Hegel’s Philosophy of Right. Tradução T. M. Knox. London: Oxford University Press, 1967.

Enc.

HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. São Paulo: Loyola, 1995.

FdE.

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 8

1 HEGEL E O SISTEMA HEGELIANO............................................................................................. 11 1.1 A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO ...................................................................................... 12 1.2 A FILOSOFIA DO DIREITO ......................................................................................................... 18 1.2.1 Direito Abstrato ............................................................................................................................ 21 1.2.2 Moralidade...................................................................................................................................... 28 1.2.3 Eticidade .......................................................................................................................................... 31 1.2.3.1 Família ........................................................................................................................................... 33 1.2.3.2 Sociedade Civil ............................................................................................................................ 35 1.2.3.3 Estado ............................................................................................................................................ 39

2 CONTEXTOS E PRODUTOS DO RECONHECIMENTO...................................................... 45 2.1 CONSCIÊNCIA, ESPÍRITO E VONTADE ............................................................................... 46 2.2 O MESMO E O OUTRO ................................................................................................................ 50 2.3 À GUISA DE UMA CLASSIFICAÇÃO ....................................................................................... 53 2.4 HEGEL, JUSNATURALISMO E JUSPOSITIVISMO ............................................................. 57 2.5 JUSTIÇA: RECONHECIMENTO COMO CATEGORIA POLÍTICA ............................... 59 2.5.1 Charles Taylor ............................................................................................................................... 60 2.5.2 Nancy Fraser .................................................................................................................................. 62

3 DIREITO: RECONHECIMENTO COMO CATEGORIA JURÍDICA .................................. 65 3.1 RECONHECIMENTO COMO FONTE DO DIREITO ........................................................ 67 3.2 A OBJETIVAÇÃO DO RECONHECIMENTO NA ETICIDADE ....................................... 69 3.3 RECONHECIMENTO COMO GARANTIA DO DIREITO NA HISTÓRIA .................. 74

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................................. 80 REFERÊNCIAS........................................................................................................................................ 82

8 INTRODUÇÃO Um problema central de qualquer saber que se pretenda científico é a caracterização de seu objeto. Do estudo da ciência jurídica surge a questão primeira: o que é o direito? Sobre esse problema se debruçam os defensores de cada um dos polos da clássica discussão entre jusnaturalistas e juspositivistas. Os primeiros sustentando um direito de caráter universalista e anterior ao homem; os segundos argumentando que o locus próprio do direito é aquele da lei positiva de um Estado. A essa discussão o presente trabalho pretende fazer um aporte a partir da teoria hegeliana do reconhecimento, apresentando o conceito de reconhecimento e propondo sua utilização como elemento fundante e justificador do direito. O conceito de reconhecimento, em Hegel, tem origem na dialética do senhor e do escravo, momento da Fenomenologia do Espírito em que é narrada a experiência de uma consciência no caminho de seu conhecimento das coisas e de si mesma. A estrutura proposta nessa parábola servirá para sustentar todo o desenvolvimento de um momento posterior de determinação do Espírito: a Filosofia do Direito. Apesar de seu papel não estar explícito e da palavra “reconhecimento” aparecer poucas vezes na obra, as dinâmicas de reconhecimento intersubjetivo são o que fundamentam e garantem a existência do direito em seus vários níveis de determinação—começando no direito abstrato, passando pela moralidade, e chegando à eticidade, onde culmina no Estado. O conceito de reconhecimento tem sido amplamente estudado desde Hegel, e se vê como objeto de debate em autores contemporâneos, sobretudo representantes da Teoria Crítica, como Axel Honneth e Nancy Fraser, e filósofos comunitaristas, notadamente Charles Taylor. A discussão, porém, costuma se limitar às áreas da filosofia moral e política, quando tratado o tema da justiça. O objetivo deste trabalho será de “transpor” essa discussão para o tema da justificação do direito e testar sua viabilidade como alternativa à concepção jusnaturalista de direitos humanos, como a prioris advindos da razão, da natureza, ou de entidades metafísicas. Buscarei propor, a partir de Hegel, uma concepção de direito que considere em seu conceito o desenvolvimento próprio de um povo em um determinado momento histórico representado por um Estado, bem como a garantia do direito dos Estados históricos na história universal. Parte-se desse estudo etiológico do jurídico para a proposta de compreensão de direitos como títulos de reconhecimento, adquiridos—ou perdidos—historicamente. Tendo em mente os três momentos de desenvolvimento da Filosofia do Direito de Hegel,

9 argumenta-se que o direito só se concretiza totalmente no terceiro momento, o da eticidade, pois é nessa esfera, através de sua determinação nas instituições sociais, que atingirá sua determinação mais completa. Será proposta uma forma de compreensão do direito na forma de uma reivindicação legítima—porque reconhecida—a alguma coisa. A posse de algo, por exemplo, apenas se transforma em propriedade quando reconhecida como legítima; a justificação, dessa forma, é a posteriori, e de nenhuma forma anterior ou superior ao próprio ser humano descolado de seu contexto. Os direitos humanos, nessa linha,

se

fundamentam

como

conquistas

históricas:

reivindicações

de

amplo

reconhecimento que tomam a forma de títulos oponíveis erga omnes. No primeiro capítulo, serão expostos e explicados os momentos da obra hegeliana que servirão de fundamento para o trabalho. Notadamente, a Fenomenologia do Espírito e a Filosofia do Direito. É feita uma opção metodológica pela compreensão da luta pelo reconhecimento como subjacente a todos os processos e dinâmicas que se dão na Filosofia do Direito. No segundo capítulo, será feita uma abordagem “analítica” de momentos e características específicos que servirão para apurar o entendimento do que é e de como se dá o reconhecimento. Serão expostas classificações do conceito, discutidas categorias essenciais em sua compreensão e proposta uma forma de compatibilização da individualidade com a pertença social, do eu com o outro. Ainda no mesmo capítulo, buscarse-á expor a possibilidade ou impossibilidade de caracterizar a concepção hegeliana de direito como jusnaturalista ou juspositivista e, por fim, serão expostas discussões que se travam contemporaneamente a respeito do reconhecimento como categoria política, nas discussões sobre justiça. Por fim, no terceiro capítulo, o objetivo será de trazer a discussão do nível político para o nível especificamente jurídico, procurando testar a viabilidade do reconhecimento como elemento fundador e garantidor do direito. Primeiro, buscando demonstrar como o reconhecimento é o que dá origem à ideia de justiça e como uma relação de justiça se transforma numa relação de direito; depois, propondo uma maneira de compreender o direito como título de reconhecimento que, nas instituições da eticidade, passa a ser reconhecido não mais, ou apenas, intersubjetivamente, mas também objetivamente, pela substancialidade ética; na última parte, buscar-se-á demonstrar como o direito, que atinge sua completude num Estado particular, se submeterá, num nível superior, à sua última instância de julgamento, a história universal.

10 O objetivo do trabalho será atingido se for possível demonstrar a possibilidade de alternativa à concepção liberal de direito através do conceito de reconhecimento, concebendo-se a pessoa do direito não como originária e bastante em si mesma, mas como constituída essencialmente de maneira intersubjetiva. A explicitação de como se concebe a pessoa do direito é um tema essencial para qualquer corrente da filosofia do direito. Se uma doutrina jurídica não propõe uma concepção de pessoa, acaba por pressupô-la. E essa pressuposição costuma ser alguma forma do sujeito solipsista cartesiano, que deve sua existência ao seu próprio pensamento. Apontar esse problema é uma necessidade sempre premente para a pesquisa jurídica. Diferentemente de algumas abordagens tradicionais de Hegel no que toca ao conceito de direito, que entendem o direito abstrato como suficiente para a determinação do conceito, entendo que, a partir do modelo proposto por Hegel, qualquer visão do direito que não considere todos os momentos de desenvolvimento do Espírito Objetivo (além do direito abstrato, também a moralidade e a eticidade) será uma visão parcial e potencialmente incorreta. A verdade, diria Hegel, está no todo. Por esse motivo, inclusive, opto por, ao expor a estrutura da Filosofia do Direito, preservar sua ordem de desenvolvimento. Além dessa primeira exposição mais sistemática, no primeiro capítulo, e análise detalhada de conceitos específicos no segundo, me valho, no terceiro capítulo, do que foi exposto para pensar um problema sempre atual: a origem, fundamentação e legitimidade do direito. O maior desapego, que se notará no terceiro capítulo, às estruturas explicitadas anteriormente, se dá por entender que um demasiado rigor exegético talvez não pudesse dar conta do que se pretende desenvolver de forma inicial nesta monografia. Assumo o risco e as consequências, portanto, de estudar o que Paulo Arantes chamou, se reportando ao seminário de Alexandre Kojève, de um Hegel “errado, mas vivo”.

11 1

HEGEL E O SISTEMA HEGELIANO

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, filósofo prussiano nascido em 1770, tornou-se conhecido como grande sistemático a obter sucesso na empreitada de construir um modelo de racionalidade que desse conta da realidade a partir de sua incorporação num sistema dialético ideal. Criticando e avançando o sistema kantiano, Hegel busca superar o formalismo moral ao considerar a eticidade como um dos momentos da ideia do direito. Hegel via como sua tarefa a superação de oposições criadas no decorrer da história da filosofia e exacerbadas com o Aufklärung, ou Iluminismo Alemão, como, por exemplo, entre a razão e a sensibilidade, a liberdade individual e a vida comunitária, a autoconsciência e a comunhão com a natureza e, além disso, “a separação do sujeito finito da vida infinita que fluía através da natureza, a barreira entre o sujeito kantiano e a substância spinoziana” (TAYLOR, 1999, p. 8).1 As concepções ético-teóricas até Hegel se dividiam, em linhas gerais, entre aquelas que propunham a comunidade como objeto da ética, como na Antiguidade, com a ideia da pólis como centro da convivência humana, e aquelas centradas na figura do homem, independente e individualizado. As teorias antigas, por um lado, com a chegada da modernidade, não davam conta da “virada copernicana” da filosofia, que punha o homem no centro do universo. A teoria ética kantiana, por outro lado, apresentava a liberdade e o respeito à pessoa como fins universais, porém abstraía das condições sócio-históricas envolvendo a formação da comunidade (cf. WILLIAMS, 1997, p. 34). Kant, em sua Crítica da Razão Pura, propunha uma compreensão do papel da filosofia como reduzido à delimitação das condições de conhecimento. Entendendo a divisão entre fenômeno e coisa em si (nounemo), todo conhecimento se dá a partir de um Sujeito que observa um Fenômeno, sendo a coisa em si “essencialmente” incognoscível. Essa visão, para Hegel, era característica do mundo moderno, de cisão entre o absoluto, incognoscível, e o sujeito, a qual se relegava um conhecimento meramente tópico, dos fenômenos. Hegel, então, em seu sistema “científico” da filosofia, se propunha a explicitar a verdade inerente aos objetos através dos próprios objetos. Para que isso fosse possível, seria necessária a compreensão desses objetos também como objetos que pensam sua própria realidade (ou

1

Todas as traduções de citações de obras estrangeiras, exceto quando expressamente mencionado em contrário, são de minha responsabilidade.

12 pensamentos inerentes aos objetos), em outras palavras, sujeitos. Daí a compreensão, em todo o sistema hegeliano, da unicidade, ou reconciliação, entre sujeito e objeto. (cf. FdE, §18). Dentro do movimento que foi o Idealismo Alemão, um dos que primeiro buscaram uma alternativa ao formalismo da razão kantiana foi Fichte, que procurava “desvelar o sujeito

autônomo kantiano

através

do

questionamento

de

sua

origem

e

seu

desenvolvimento” (WILLIAMS, 1997, p. 35). Hegel se serve do conceito de reconhecimento desenvolvido por Fichte para explicar e explicitar o sujeito kantiano em seu posterior desenvolvimento da ideia de Espírito, sobretudo o Espírito Objetivo, cuja teorização é corporificada na Filosofia do Direito, obra de Hegel publicada em 1820. Para os fins deste trabalho, de explicitação do conceito de reconhecimento através do desenvolvimento do Espírito e, a partir dele, posterior tentativa de extração de uma fundamentação do direito, merecem destaque duas obras do autor. Primeiro, a Fenomenologia do Espírito, onde é apresentada a ideia de dialética e são discutidos os temas do conhecimento e do reconhecimento, este através da célebre dialética do senhor e do escravo. Segundo, a Filosofia do Direito, obra posterior, onde é trabalhado o desenvolvimento da ideia da liberdade num sistema pós-metafísico que pode ser lido como uma teoria da justiça e do direito. Neste capítulo, buscarei expor sucintamente o desenvolvimento da ideia de reconhecimento que se dá na seção sobre a consciência-de-si na Fenomenologia do Espírito, a dialética do Senhor e do Escravo, e em seguida o desenvolvimento da ideia de direito através das etapas da Filosofia do Direito, chamando a atenção para o elemento de reconhecimento intersubjetivo em cada uma delas. 1.1

A FENOMENOLOGIA DO ESPÍRITO

A Fenomenologia serve como introdução ao sistema filosófico hegeliano. Apresenta a ideia de dialética e tem como problemas centrais a questão do conhecimento objetivo (das coisas) e subjetivo (de si). É o momento onde será explicitada a noção de consciência-de-si em Hegel e onde tem origem a noção de reconhecimento. A Fenomenologia é apresentada como um manifestar-se da consciência para si mesma, estando nós, os leitores, como espectadores de uma história sobre a consciência contada por ela mesma na medida em que vai se desenvolvendo (cf. REDDING, 1996). A origem do tema do reconhecimento está no trecho da Fenomenologia do Espírito onde Hegel tratará especificamente da consciência. No capítulo IV dessa obra se encontra

13 uma das passagens mais relevantes sobre o assunto, a discussão do reconhecimento por excelência: a dialética do senhor e do escravo. Hegel procura demonstrar que a constituição do eu, ou do que chama de vontade livre, não se dá de maneira individual ou solipsista, mas somente através da figura do outro, com sua presença e reconhecimento. A independência de uma vontade só é atingida a partir de uma relação com outro sujeito. A subjetividade é, necessariamente, intersubjetividade. Esse processo da consciência-de-si, contudo, acontece ao mesmo tempo a despeito do outro, que, a partir de quando uma consciência-de-si se declara um “eu”, é negado, superado e conservado (aufgehoben).2 A ideia central é a de que a autonomia, ou liberdade, é constituída não de maneira puramente abstrata, mas somente quando uma vontade se determina. E para que isso aconteça, entra em jogo o outro, ao mesmo tempo distinto e mutuamente dependente do eu. Hegel, aqui, pretende mostrar que o que chama de Espírito (Geist) tem sua origem no reconhecimento recíproco (WILLIAMS, 1997, p. 27). A abordagem do tema do reconhecimento, de fato, perpassa toda a filosofia do autor e é abordada desde seus primeiros escritos em Frankfurt, compreendendo o período de 1797 a 1800, até a Filosofia do Direito, publicada em Berlim na segunda década do século XIX. Nos Fragmentos sobre Religião e Amor, por exemplo, já se pode perceber um esboço, guardadas as devidas proporções, do que seria futuramente desenvolvido em seu sistema. Hegel disserta sobre a relação de amor entre duas pessoas: União verdadeira, ou amor propriamente dito, existe somente entre seres vivos que são iguais em poder, sendo assim iguais um para o outro; de nenhuma forma mortos um para o outro. O amor genuíno exclui toda oposição. [...] Amor nem restringe nem é restringido. Não é finito de maneira alguma (HEGEL, 1988, p. 304).

Hegel identifica de maneira germinal, na relação de amor, caracteres que serão centrais na relação de reconhecimento, notadamente a necessidade de entrega de cada um dos sujeitos à experiência e o consequente impedimento de qualquer pura objetivação das partes uma pela outra (cf. FLICKINGER, 2008). Entretanto, ainda não se trata o amor de uma relação puramente racional e consciente, de reconhecimento pleno. Pelo contrário, o

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Aufgehoben é o particípio do verbo alemão aufheben, traduzido como “suprassumir”, que, no idioma alemão, possui três sentidos: i. levantar; ii. suspender; e iii. conservar. O conceito de aufheben envolve todos os três. Trata-se uma negação que não aniquila, mas conserva, nega enquanto guarda em uma posição superior (cf. INWOOD, 1997, p. 302-304).

14 amor “vem ao nosso encontro somente em momentos imprevistos e sem base numa decisão consciente e, menos ainda, livre” (FLICKINGER, 2008).3 Devemos ter em mente, ao lermos esse trecho da obra hegeliana, que um de seus objetivos é superar a aporia apresentada por Kant, em sua Crítica da Razão Pura, da distinção entre fenômeno—aquilo que é objeto do conhecimento, ciência—e noumeno (ou coisa-em-si) —o que é incapaz de ser conhecido. A proposta de Hegel é reconciliar sujeito e objeto (cf. WEBER, 2009, passim). Tal proposta não pode ser pensada senão dentro do método dialético hegeliano, caracterizado por sua sintaxe própria. Hegel não parte de nenhum pressuposto determinado e, ao fazê-lo, pressupõe de maneira indeterminada todas as coisas. Esse Tudo será o sujeito para seus predicados, como na ideia do Devir: a tese é Tudo, o Absoluto é Ser; na antítese, o Absoluto é Nada; na síntese, o Absoluto é Devir, vira-ser, tornar-se.4 A negação do outro é uma determinação do eu. Mas não uma determinação simples e tautológica na forma “eu = eu”, porém uma determinação mediada. Aqui entra em jogo a noção, emprestada de Spinoza, de que “toda determinação é negação”. Ao negar o outro, determino a mim mesmo. Paul Redding (1996), a esse respeito, dá o exemplo da lei da gravidade, cuja prova, i.e., determinação, só é possível através de uma força contrária. Posso provar a lei da gravidade, por exemplo, segurando um objeto na minha mão, impedindo que a força gravitacional o atraia na direção do núcleo da Terra. Ao negar a gravidade, com a minha ação, provo-a, ou determino-a. A dinâmica narrada toma como ponto de partida a consciência-de-si, consciente e certa de si unicamente pela igualdade consigo mesma e exclusão de todo o outro. O Ser aqui é puro desejo. O outro, também consciência de si, está para ele marcado negativamente. Cada um, sem ter se apresentado ao outro, está certo de—e somente de—si mesmo (FdE, §186). Para autodeterminar-se e demonstrar sua desvinculação de qualquer determinação dada, o desejo da consciência-de-si deve ter como objeto algo não natural, e

3

4

Impossível aqui não lembrar da letra de “Love in Itself”, da banda inglesa Depeche Mode, inadvertidamente hegeliana nesse sentido: “There was a time when all on my mind was love/ Now I find that most of the time/ Love's not enough in itself” – “Havia um tempo em que tudo na minha mente era amor/ Agora eu percebo que na maior parte do tempo/ O amor não é suficiente em si mesmo”. Isto é, a relação de amor é uma relação de reconhecimento recíproco, mas, por ser baseada numa contingência da natureza (“momentos imprevistos”), não é suficiente em-si, e exige construção e mediação, que se dará, como posteriormente veremos no Espírito Objetivo, através da instituição da família. Ver CIRNE LIMA, 1997.

15 destrui-lo. Ora, a única coisa que ultrapassa o natural é o próprio desejo (KOJÈVE, 1997, p. 12). A origem da consciência está no desejo. Para que o homem seja verdadeiramente humano, para que se diferencie essencialmente e realmente do animal, é preciso que, nele, o desejo humano supere de fato o desejo animal. Todos os desejos do animal são, em última analise, uma função do desejo que ele tem de conservar a vida. O desejo humano deve superar esse desejo de conservação. Ou seja, o homem só se confirma como humano se arriscar a vida (animal) em função de seu desejo humano (KOJÈVE, 1997, p. 13-14).

É necessário deixar claro que o que se entende por “desejo” aqui, que Kojève chama de “desejo antropogênico”, não se confunde com o mero desejo animal, uma relação de um sujeito com o objeto de mera negação, mas deve ser entendido como desejo de reconhecimento, de “auto-coincidência mediada”, em que a mediação tem a ver com “deixar o outro livre” [letting the other go free] (WILLIAMS, 1997, p. 57) e não meramente consumi-lo. As consciências-de-si devem, então, se apresentar uma à outra, mostrando que não estão presas “a nenhum ser-aí determinado, nem à singularidade universal do ser-aí em geral, nem à vida” (FdE §187). Mas como saber se detrás do outro existe uma consciênciade-si, um aspecto humano? Como distingui-lo de um animal? Kojève responde, se reportando ao texto hegeliano, que ambas as consciências precisam apresentar-se uma a outra. Entretanto, essa apresentação não será amorosa ou pacífica. Uma deve ver na outra o mesmo desejo que encontra em si de ser reconhecida e a mesma disposição de arriscar a vida para que isso aconteça. Para terem a si mesmas reconhecidas e elevarem suas certezas a verdade, as consciências devem travar entre si uma luta de vida ou morte. Ao arriscar a vida, a consciência prova que é não mais um mero ser-em-si, mas um puro ser-para-si. O reconhecimento de um indivíduo como pessoa não será verdadeiro se não tiver sua vida posta em risco. A necessária violência do primeiro encontro entre as duas consciências, argumenta Williams (1997, p. 107), é a violência do choque do universal com o particular. Esse encontro é essencialmente negativo, no sentido de que uma consciência, enquanto autoidentidade pura, sem ainda ter se apresentado ao outro, é abstratamente universal. Na certeza imediata de sua universalidade, o que atravessa seu caminho como particular é negado. Daí a luta. Se uma das consciências-de-si aniquilar a outra através da luta, não há reconhecimento, pois não há quem reconheça. É necessário, portanto, que ambos os

16 lutadores permaneçam vivos; que um não destrua a vida do outro, mas somente sua autonomia (KOJÈVE, 1997, p. 19). A luta, em vez de causar a morte de uma das partes, coloca as consciências em extremos opostos, as constitui como desiguais a partir de então. Essa cisão deixa de um lado uma consciência mediada, que arriscou a vida, e de outro uma consciência imediata, que sentiu medo, foi subjugada. “Uma é o senhor, outra é o escravo” (FdE, §189). Williams explica de maneira clara: Uma das partes da luta começa a perceber que a vida, que até então ela estava disposta a arriscar em troca de reconhecimento, é tão ‘essencial’ e importante a ela quanto o reconhecimento. Morrer significaria o fim absoluto de todas as possibilidades [de reconhecimento]. Essa parte sente o medo da morte e, temendo-a, prefere sobreviver, mesmo que isso signifique a renúncia de sua reivindicação por reconhecimento. Ela renuncia a sua reivindicação e sua demanda por reconhecimento; é preferível suportar essa negação determinada (parcial) de reconhecimento do que enfrentar a morte, o senhor absoluto. Entretanto, para sobreviver, ela deve abdicar de sua reivindicação de reconhecimento e se tornar um objeto para o senhor; isto é, se tornar um escravo. O outro, que ‘venceu’ a luta, se torna um senhor. O senhor não teme a morte e não se submete a uma negação determinada. Sua vitória é ser reconhecido como mestre pelo escravo (WILLIAMS, 1997, p. 61).

A sujeição do escravo ao senhor ocorre pelo medo da morte. O escravo nega sua própria consciência e, ao fazê-lo, nega a si mesmo, servindo ao senhor em uma tentativa de se livrar desse medo. Ao negar a si mesmo, o escravo faz a si o que o senhor faz ao escravo. Nesse momento, ao temer a morte, a consciência escrava, nas palavras de Hegel, “se dissolveu interiormente; em si mesma tremeu em sua totalidade; e tudo que havia de fixo, nela vacilou” (FdE, §194). O senhor, por outro lado, é a consciência para-si. Porém, mediada consigo mesma através da consciência escrava, cuja natureza está vinculada a—e é dependente de—outro ser, uma coisa. O escravo vê na coisa uma extensão do senhor, que demonstrou seu domínio sobre ela através da luta. O escravo reconhece o senhor, enquanto este não reconhece o escravo. Entretanto, o senhor é reconhecido pelo que considera somente um meio entre ele e a coisa; eis o grande paradoxo, ser reconhecido por um “não-sujeito” (LIMA VAZ, 1981, p. 22; WILLIAMS, 1997, p. 63). Para ele, não há humanidade no escravo. “Assim, no final das contas, seu desejo busca uma coisa e não—como parecia no início—um desejo (humano). [...] Logo, se o homem só se satisfaz com o reconhecimento, o homem que se comporta como senhor nunca se satisfará” (KOJÈVE, 1997, p. 23). A consciência escrava “se apresenta como se fosse exterior; mas a dominação mostra que sua essência é inversa do que pretende ser” (MENESES, 1992, p. 62). Ora, o reconhecimento, se não for mútuo, não é

17 válido. Ser reconhecido por algo, não por alguém, é o mesmo que não ser reconhecido. Aqui ainda não há reconhecimento verdadeiro. O questionamento, porém, sobre se o senhor é verdadeiramente senhor, ou se o escravo é escravo de verdade, independentemente de como um vê o outro, não faz sentido. A compreensão da relação de senhorio e escravidão passa por entender que a maneira como cada um se relaciona com o outro é constitutiva de suas condições como partícipes da relação, ou daquela realidade (cf. REDDING, 1996, p. 123-124). Neste momento primevo da dialética do senhor e do escravo, portanto, a relação ainda não é recíproca, ou mútua. Somente o senhor é reconhecido, pois o escravo dele depende. O objeto da consciência do senhor e a relação mantida com a coisa, através do escravo, é o desejo de gozo. Esse desejo, para Hegel, reflete não só uma vontade tópica sobre um objeto, mas uma necessidade fundamental para a integridade. O desejo a que o filósofo se refere pode ser entendido, agora sim, em analogia ao “consumo” dos animais selvagens, que extraem o que necessitam para sua sobrevivência do mundo exterior, e o devoram, ou seja, o negam. Porém, essa não é uma negação simples, que aniquila, mas uma negação que conserva. A fera se alimenta da presa, a incorpora, não destrói sua matéria. A consciência do escravo, neste momento, já que o reconhecimento se deu unilateralmente, ainda não é livre. Falta ainda, para que o reconhecimento seja adequado, que o escravo faça para o senhor o mesmo que o senhor faça para o escravo—que ambos se reconheçam mutuamente. O desejo do senhor pela coisa causava uma satisfação instável, em estado de desaparecimento. Causava-lhe um mero prazer passageiro, jamais uma satisfação completa (KOJÈVE, 1997, p. 27). É pela mediação do trabalho, então, que a consciência-de-si vem a ser para-si no escravo. O trabalho é um desejo mediado, o trabalho cultiva, ou forma (no sentido de formação, Bildung). A formação que o trabalho faz é o ser-para-si da consciência, o caminho para a liberdade do escravo: Ao trabalhar, o escravo torna-se senhor da natureza. Ora, ele só se tornou escravo do senhor porque—à primeira vista—era escravo da natureza [...]. Quando, pelo trabalho, se torna senhor da natureza, o escravo liberta-se de sua própria natureza, [... do] que fazia dele o escravo do senhor (KOJÈVE, 1997, p. 26).

Ao mesmo tempo em que tem esse caráter positivo de formar, o trabalho tem o sentido negativo em relação ao medo. A consciência, ao negar o objeto em que trabalha, destrói a realidade que a tinha amedrontado. Esse movimento pode ser interpretado da

18 seguinte forma: o escravo, servo do senhor, acaba adquirindo maestria sobre a natureza. O senhor, dependente de seus desejos instintivos, permanece ligado ao “mundo da natureza”. O escravo, ao se tornar senhor dela, acaba, portanto, se tornando também senhor do seu mestre (REDDING, 1996, p. 126). A consciência do escravo pode ser dividida em três momentos: (i) no senhor, é uma consciência para um outro, não para si mesmo; (ii) no medo, surge na consciência escrava o ser-para-si, apesar de ainda não manifestado; (iii) na formação, o ser-para-si vem para fora, se manifesta. A consciência se torna consciência-de-si e para-si. (FdE, §196). Williams (1997, p. 49) descreve esses três momentos como “imediatidade, ou universalidade paroquial abstrata; oposição entre particulares; e universalidade concreta”. O senhor, então, é visto pelo escravo como o objeto de seu medo. Através dessa rebelião causada pelo escravo por meio do trabalho, ele passa a ver a si mesmo como essência independente, negando o objeto do seu medo, o senhor. Como consequência, o senhor se torna outro ao escravo, o que eleva o escravo à condição de sujeito. O escravo reconhece o senhor da mesma forma que o senhor reconhece o escravo. Hegel deixa claro que se o escravo tivesse sentido somente o medo da morte, teria vacilado temporariamente, mas não teria sido cultivado pelo trabalho na direção de uma consciência universal. O trabalho sem o medo da morte, por outro lado, teria-o feito produzir somente habilidades particulares, não sendo suficiente para a construção de uma consciência de si. O medo da morte e a disciplina do trabalho foram fundamentais para o escravo chegar à liberdade que “rompeu seus grilhões”. A Fenomenologia do Espírito, enquanto preocupada com a consciência, lida com o momento do Espírito Subjetivo, conforme esquema de divisão da obra hegeliana que veremos a seguir. A Filosofia do Direito, por outro lado, trata das determinações do Espírito de forma objetiva, da forma que se dá, conceitualmente, no mundo. 1.2

A FILOSOFIA DO DIREITO

O tema do reconhecimento, na interpretação de autores como Habermas e Honneth, é alegadamente um tópico de interesse apenas do jovem Hegel, do período de Jena, deixando de ser importante nos escritos posteriores, como a Fenomenologia e, principalmente, a Filosofia do Direito (cf. WILLIAMS, 1997, p. 15-16; RAUCH & SHERMAN, 1999, p. 220 ss.). Para Honneth, “Hegel não compreende o espaço de ação do Estado, conforme se poderia realmente ter esperado, como o lugar de uma realização das relações de reconhecimento

19 que conferem respeito ao indivíduo em sua unicidade biográfica” (HONNETH, 2003, p. 112). A concepção hegeliana de eticidade, segundo Honneth, teria se tornado “uma forma de Espírito monologicamente auto-desenvolvido, e não constitui[ria] mais uma forma [...] de intersubjetividade” (HONNETH, 2003, p. 112. Tradução modificada a partir da versão inglesa em HONNETH, 1995, p. 61) Meu objetivo neste item é questionar essa visão e apresentar uma proposta de leitura da Filosofia do Direito a partir das dinâmicas de reconhecimento recíproco que se dão no desenvolvimento do Espírito Objetivo em geral e na eticidade em particular. Em Elementos da Filosofia do Direito, obra de 1820, Hegel propõe a construção de uma “ciência filosófica do direito” (PhR, §1), explicitando os desdobramentos do que chama de “Espírito Objetivo”, orientado pela ideia da liberdade humana. Falar da Filosofia do Direito significa “explicitar as diferentes formas de concretização da ideia da liberdade” (WEBER, 2014). É estabelecido como princípio da Filosofia do Direito o “conceito do direito”, que se traduz como o princípio da liberdade, de forma que “o sistema do direito é o reino da liberdade efetivada” (PhR, §4). A Filosofia do Direito, explica Hegel, é uma seção da Filosofia em geral. Dessa forma, o princípio do direito aparece em seu desenvolvimento como um dado. Seu ponto de partida “está fora da ciência do direito” e deve ser tido como um pressuposto (PhR, §2). Hegel apresenta a razão em seu desdobrar-se objetivo na atividade prática. A atividade prática da razão é concebida como atividade da vontade, que caminha na direção de sua auto-realização. As etapas de desenvolvimento da vontade nada mais são do que a explicitação do que está implícito em princípio—a transformação da vontade-em-si em vontade-para-si. Todos os elementos da determinação objetiva do princípio do direito, a ideia de liberdade, estão contidos nesta como potência, e que serão postos como ato no decorrer de sua explicação.5 O sistema divide-se em três momentos, ou figuras de desenvolvimento do princípio ou conceito do direito—o direito abstrato, a moralidade e a eticidade—cada uma representando uma etapa de determinação da liberdade. Não se concebe, ao final do processo, uma liberdade natural, pré-social ou pré-Estatal, porém em “momentos da realização da vontade livre numa de suas determinações” (WEBER, 2014). A liberdade só 5

“Explicação” aqui tem o sentido mais puro, de ex-plicare, ou seja, dobrar-para-fora, desdobrar. Para usar uma analogia cosmológica, a Filosofia do Direito é como o modelo do big bang—toda a matéria do universo estava contida em um único ponto, uma singularidade, que se desdobra para dar vida à imensidão que é toda a matéria, antimatéria e tempo existentes. A Filosofia do Direito é o big bang do Espírito Objetivo—tudo que será exposto no decorrer dos níveis de seu desenvolvimento, de sua explicação, encontra-se em potência no seu princípio.

20 existe enquanto mediada pelas instituições sociais. O grande salto hegeliano é construir um conceito de liberdade que não fosse meramente subjetivo, mas que se manifestasse objetivamente nas instituições, nas comunidades, nos povos, no Estado e na história. A socialidade não é um empecilho para a manifestação da liberdade humana, mas sua condição. Ao mesmo tempo em que a comunidade é responsável por salvaguardar o desenvolvimento da liberdade objetiva, não o faz sem o reconhecimento da individualidade de cada um de seus membros (WILLIAMS, 1997, p. 121). É frequentemente objetado que Hegel, ao escrever a Filosofia do Direito, rompe com suas leituras do período de Jena até a Fenomenologia do Espírito, onde considerava o reconhecimento como categoria fundamental para seu sistema. Uma leitura atenta da obra, porém, passa por compreender que, por mais que a palavra reconhecimento não apareça literalmente em muitas ocasiões, o conceito subjaz todo o desenvolvimento do Espírito Objetivo, sendo o conceito de liberdade essencialmente interativo, ou intersubjetivo. Ao tratar da Filosofia do Direito, porém, pressupõe-se que as lutas iniciais por reconhecimento cuja explicitação teve lugar na Fenomenologia estejam terminadas, ou seja, que os indivíduos que farão parte de sua explicitação já tenham superado qualquer ideia de pertença a um estado de natureza e já exista algum grau de Anerkanntsein, ou “serreconhecido”. Está-se a falar, agora, de substituir relações de força e puro desejo por relações de liberdade racional (WILLIAMS, 1997, p. 100), que, não obstante, também passarão

pelo

processo

de

reconhecimento

intersubjetivo.

Sendo

a

liberdade,

intersubjetivamente mediada, o conteúdo a qual ao direito visa dar determinação, pode-se dizer que o reconhecimento recíproco é essencial para a fundamentação do direito. Enquanto Kant define o direito como “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um se pode harmonizar com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal da liberdade” (KANT, 2004, p. 36), a definição hegeliana é mais ampla: “O direito é a relação das pessoas em seu comportamento em relação a outras. O direito é o elemento universal de seu ser livre—a determinação e limitação de sua liberdade [até então] vazia” (HEGEL, 1987, p. 111 apud WILLIAMS, 1997 p. 100). Ao conceber o direito como qualquer determinação da liberdade, o momento do reconhecimento, como nota Williams (1999, p. 100), está pressuposto, pois este não se torna objetivo, ou determinado, até ser reconhecido. A ideia de reconhecimento pode ser concebida, em se tratando de Filosofia do Direito, como uma alternativa ao postulado hipotético do estado de natureza, caro às doutrinas contratualistas do direito. Estas se baseiam no indivíduo como sujeito isolado e

21 autossuficiente, enquanto a ideia de reconhecimento concebe o indivíduo somente em relação com o outro, numa relação que constitui os dois partícipes como indivíduos. O objetivo de Hegel é apresentar uma terceira via tanto a essa concepção individualista de indivíduo característica dos modernos quanto ao coletivismo da antiguidade grega. O caminho da alternativa ao individualismo abstrato e ao coletivismo abstrato é a noção de reconhecimento recíproco: O conceito de reconhecimento é crucial para o projeto hegeliano de mediação entre a liberdade moderna, subjetiva e individualista (Kant) e a substância ética clássica (Platão, Aristóteles). Hegel demonstra que o reconhecimento mútuo transforma a subjetividade em uma intersubjetividade compatível com a tese clássica de que o todo é maior e anterior às suas partes, e tem seu telos como um processo de reconhecimento recíproco que culmina em uma consciência universalsocial não paroquial (WILLIAMS, 1997, p. 114).

A problemática da Filosofia do Direito diz respeito à determinação do princípio da vontade livre através de diferentes momentos. O Espírito Objetivo, objeto da Filosofia do Direito, parte do momento mais abstrato e indeterminado, o direito abstrato, até o mais concreto e efetivo, a eticidade, que culmina no Estado. Em todos os momentos pelos quais passa o Espírito em sua concretização, subjaz o processo de reconhecimento; desde a fundamentação primeira da pessoa do direito, que existe como tal somente se, e na medida em que, é reconhecida por outra pessoa, até o Estado, como estrutura de concatenação do Eu com o Nós dos momentos prévios a ele. É a isso que diz respeito o “Objetivo” em Espírito Objetivo. Sem o momento do reconhecimento, constituinte e assegurador do direito, a liberdade que este visa assegurar e conquistar se tornaria uma mera certeza “subjetiva” (WILLIAMS, 1997, p. 111). 1.2.1 Direito Abstrato O Direito Abstrato é o primeiro momento do desenvolvimento do conceito. Tratará das primeiras formas, imediatas, da concretização do conceito do Direito—o princípio da liberdade—através dos direitos e liberdades individuais. Como primeiro momento do Espírito Objetivo, ainda não tem a mediação de nenhuma instituição social. Trata-se, portanto, da relação entre indivíduos enquanto tais e entre pessoas e a aquisição e troca de propriedade. É importante termos em mente que neste momento não há interferência de instituições como a sociedade civil ou o Estado, nem se falará em “justiça” nos termos que

22 serão posteriormente desenvolvidos na eticidade, mas somente em justiça como cumprimento dos contratos. É um direito puramente "formal", que abstrai do tecido ético no qual se sustenta. Daí o nome “direito abstrato”. Para explicar como Hegel entende que a concretização plena do Direito se dá através da mediação das instituições sociais e, ao mesmo tempo, começa sua exposição a partir da auto-reflexão individualista da vontade, é importante entendermos o que significa abstração aqui. Como explica Weber, o significado do predicado “abstrato” é dúplice: Ele indica um sentido de abstração delimitado pelas estruturas lógicas de argumentação, mas também um sentido de abstração trazido pela base material das relações sociais. O que Hegel expõe são as formas lógicas de determinação; ele mostra como o processo de concretização da vontade livre faz surgir um processo de abstração da base material (WEBER, 1993, p. 64).

Na mesma linha argumenta Ilting: Hegel faz uso do mesmo método de todos os seus antecessores desde Hobbes. Abstrai de todas as condições da vida social que são criadas pela atividade humana em si mesma. [...] Para que fique claro ao leitor que esta ficção metodológica subjaz toda a seção, Hegel dá o título “Direito Abstrato” à primeira parte da Filosofia do Direito (ILTING, 1971, p. 91).

O ponto de partida de Hegel é a noção de “pessoa do direito”, entendida como a relação consciente de um sujeito consigo mesmo. Trata-se de uma relação abstrata, pois é exclusivamente interna à pessoa, não atingindo nenhuma efetividade exterior ao próprio sujeito. Essa noção de pessoa é abstrata porque considera somente o que é igual em todas as pessoas, abstraindo de contingências como raça, cor, credo, nacionalidade etc. É a base, mesmo que abstrata, do direito abstrato.6 Por abstrair de qualquer determinação contingente, questiona Williams (1997, p. 136), não estaria Hegel excluindo a pessoa de qualquer relação intersubjetiva? Para afastar essa hipótese, Hegel introduzirá posteriormente o imperativo do direito (Rechtsgebot), na forma: “Sê pessoa e respeita os outros como pessoas” (PhR, §36). Minha subjetividade reconhecida demanda o reconhecimento e respeito da subjetividade dos outros. Pode-se

6

Williams (1997, p. 136) nota que “na interpretação romana, a personalidade é construída não em termos sociais, como tendo uma presença pública, mas simplesmente como interioridade abstrata. Essa interpretação leva ao privatismo, que concebe o direito não como público, mas meramente como privado. Direito privado significa que a pessoa conta somente na realidade que dá a si mesma, isto é, na propriedade”.

23 dizer, dessa forma, que o reconhecimento é o ato que faz surgir a pessoa de direito (cf. BOBBIO, 1991, p. 65). Contrariamente às alegações de que o imperativo do direito seria um mandamus solipsista, Williams reconhece que “há reconhecimento mútuo no direito abstrato, mas ele é formal, limitado e impessoal, e, como tal, ainda não é a intersubjetividade da moralidade, muito menos da eticidade” (WILLIAMS, 1997, p. 138). Tal posição é sustentada ao levarmos em conta o posterior desenvolvimento da ideia do contrato, pois este “pressupõe que as partes que nele entrem reconheçam uma a outra como pessoas e proprietários. É uma relação do Espírito Objetivo e, portanto, contém e pressupõe desde o começo o momento do reconhecimento” (PhR, §71). A determinação da vontade livre em suas formas mais imediatas (objeto do direito abstrato) se dá através de alguns momentos. O primeiro deles é a posse, momento pelo qual uma vontade é exteriorizada através de uma relação com uma coisa. A vontade não pode ser um fim em si mesmo, portanto deve direcionar-se a algo externo, tendo como fim a posse de uma coisa. Hegel dissertará, em seguida, sobre a propriedade como manifestação da vontade.7 O filósofo entende que a aquisição da propriedade se dá através de uma exteriorização pela pessoa de sua subjetividade, através de um ato de vontade. Esse ato de vontade é justamente a incorporação da vontade de uma pessoa, como ente subjetivo, em algo externo, um objeto, ou uma coisa. Hegel é enfático, sobretudo no parágrafo 45, sobre a propriedade ser um fim, ou seja, consequência da vontade, e não um meio para a satisfação, por exemplo, de necessidades. Diz Hegel que “a propriedade é a primeira incorporação da liberdade e, portanto, é em si mesma um fim substantivo” (PhR, §45). Essa incorporação não pode ser vista como uma migração metafísica da vontade do sujeito até a coisa, senão como da maneira típica como interpretamos ou encontramos a vontade de uma pessoa: em seu

7

Entendo que a melhor forma de ler a passagem sobre a propriedade é como uma tentativa de Hegel de prover uma explicação para a aquisição originária de bens, como faz Locke, por exemplo, sustentando a aquisição inicial a partir do direito natural à propriedade efetivado através do trabalho; Hegel, que não é um jusnaturalista, busca justificar a aquisição originária a partir da disposição aleatória (i.e. não livre) da natureza e, sobretudo, da necessidade subjetiva de exteriorização da vontade e seu posterior reconhecimento intersubjetivo. Avineri (1974, Chapter Five) nota que existe, sobretudo nos escritos do jovem Hegel, do período de Jena, um papel importante do trabalho no papel de união entre o subjetivo (pessoa) e objetivo (coisa) que constitui a propriedade. Obviamente não tenho espaço para isso aqui, mas seria interessante a análise das interseções entre Hegel e Locke no que concerne à teoria da apropriação original.

24 objeto—uma coisa ou um estado de coisas à qual é direcionada. Essa ligação entre a vontade e a coisa é selada pelo reconhecimento (REDDING, 1996, p. 171). O desenvolvimento da propriedade se dá em três momentos: a posse, o uso e a alienação. A posse é o momento mais imediato, e pode se dar tanto através do próprio apossamento físico da coisa, como da construção da coisa ou da marcação da coisa como minha. Consequência da posse é o direito de uso, que, para que culmine no direito de propriedade, requer mais um direito: o direito de troca. A propriedade é o direito de uso e troca da coisa apropriada. A posse direta da coisa constitui uma relação minha, ou da minha vontade livre, com a coisa. Quer dizer, a posse, por si só, não é cogente, no sentido de vincular a outras vontades. A posse é particular, ou seja, ainda não atingiu sua universalidade. Para que isso ocorra, é necessário que ela seja reconhecida pelos outros. Os outros devem ver na coisa uma extensão de mim mesmo: Uma pessoa põe sua vontade numa coisa—este é o conceito de propriedade; o próximo passo é a realização desse conceito. O ato interno de querer [the inner act of will] que consiste em dizer que algo é meu também deve se tornar reconhecido pelos outros. Se eu faço de alguma coisa minha, eu dou a ela o predicado ‘minha’, que deve aparecer nela de forma externa e não pode simplesmente se limitar à minha vontade interna (PhR, §51).

É nesse sentido que podemos dizer, como sugere Avineri, que a propriedade pertence à pessoa na medida em que é reconhecida pelos outros, ela nunca poderia ser uma qualidade intrínseca do indivíduo, anterior a seu reconhecimento pelos outros. Enquanto a posse está relacionada ao indivíduo, a propriedade se relaciona com a sociedade: já que a pose se torna propriedade através do reconhecimento dos outros como tal, a propriedade é um atributo social. [...] A propriedade é, então, para Hegel, um momento na luta do homem por reconhecimento. (AVINERI, 1974, p. 88-89).

A propriedade é necessária para a manifestação da vontade individual, argumenta Hegel. Por isso, é eminentemente privada. A ideia de propriedade comum, como entende Weber (1993, passim), de certa forma colocaria essa manifestação de vontade em risco e minaria o surgimento da personalidade. Hegel não entende o conceito de propriedade, como pode já ter ficado claro, como um conceito econômico, ou pelo menos puramente econômico, porém como conceito ético. Williams (1997, p. 143) chama a atenção para o fato de que a propriedade, mesmo tendo essa característica social, continua sendo “minha”, isto é, propriedade privada. Dessa

25 forma, podemos entender que mesmo a esfera “privada” tem sua constituição e origem no reconhecimento intersubjetivo. Bobbio argumenta, de certa forma, no mesmo sentido: O ato que transforma a posse em propriedade, isto é, o direito (nesse contexto, propriedade e direito são sinônimos, tanto é que o direito à propriedade é definido como ‘direito ao direito’), é o reconhecimento por parte dos outros: a propriedade é a posse reconhecida. Isso significa que, se o surgimento do direito (do direito privado—observe-se—somente do qual se fala) está ligado a um ato consciente como o reconhecimento, o direito é um posterius em relação ao movimento imediato não reflexivo que nasce da necessidade e de que se ocupa a economia (BOBBIO, 1991, p. 64-65).

Quanto à noção de que o direito é um momento posterior à economia, isso significa que neste momento, sendo a propriedade sinônimo de direito, este conceito (propriedade) não pertence à esfera econômica, que a precede e que Hegel entende como dada,8 mas sim à ordem “ética”. Não está ligado ao conceito de necessidade, de que se ocupa a economia, mas ao de liberdade, como manifestação de uma vontade livre. É por isso que não é necessário que a propriedade seja igual para todos, argumenta Hegel. É necessário que todos a tenham, para que possam ter sua liberdade concretizada neste nível, mas o quanto cada um tem depende da “diligência de cada um” (PhR, §49). Disso decorre também, Hegel dirá, que não existe distribuição injusta a priori dos bens, já que “a natureza não é livre e, portanto, não pode ser justa nem injusta” (PhR, §49. Aqui acompanho a tradução de WEBER, 1993).9 A propriedade só se torna legítima como tal a partir de quando é reconhecida. Tal reconhecimento, neste nível, se dá por meio do instituto do contrato, onde duas vontades 8

9

Nesse sentido, diz Bobbio (1991, p. 82), “a sociedade civil hegeliana não é tanto a descrição do sistema da economia burguesa e das relações de classe quanto a descrição do modo como, no Estado burguês, as relações econômicas são juridicamente reguladas”. Weber (1993, p. 69), na mesma linha: “Hegel não faz projeto normativo para o futuro. Ele aceita e justifica a estrutura da sociedade vigente. E a propriedade privada é a base do mundo em que ele vive. O dever-ser é o que de fato é”. Weber (1993) atenta para o que chama de ingenuidade que Hegel teria em relação ao papel da natureza na determinação/distribuição originária dos bens. Talvez fosse o caso, entretanto, de lembrarmos que as demais etapas do desenvolvimento do Conceito—a moralidade e a eticidade— exigirão outros “patamares” de justiça, mais “equânimes” em relação à pura determinação natural dos bens que se dá no direito abstrato—o próprio Hegel menciona: “que todos devam ter o suficiente para sua subsistência é um anseio moral e, portanto, mesmo que expresso de maneira vaga, é revestido de boa intenção [is well enough meant], mas como qualquer coisa que seja somente bem-intencionada, carece de objetividade. Ademais, subsistência não é o mesmo que posse, e pertence a outra esfera, qual seja, a Sociedade Civil” (PhR, §49), o que dá a entender que a não necessidade da igualdade na distribuição dos bens é, evidentemente, uma abstração que se reporta à aquisição originária de propriedade, onde a natureza teria, sim, um papel determinante. Não cabe uma leitura que entenda uma eventual defesa de um sistema distributivo que não avance além daqui, do direito abstrato, como intenta de certa forma, por exemplo, a teoria da aquisição originária de Nozick.

26 livres erigem-se ao nível universal. A propriedade trata da relação da pessoa com a propriedade; o contrato, de um proprietário com outro proprietário. Através do contrato as vontades se reconhecem como livres. O contrato é o meio através do qual a vontade de uma das partes sobre uma coisa cessa e, eo ipso, outra vontade passa a ser exercida sobre ela. A existência do contrato pressupõe que cada uma das partes reconheça a outra como legítima proprietária da coisa que está sendo objeto de acordo, portanto reconheça a vontade do outro como tal. Através do contrato as partes acordam, em termos gerais, sobre o uso ou a transferência da propriedade. O contrato, como coisa externa e superior a ambas as partes, concede a cada uma delas o direito de exigir da outra sua execução. A vontade de ambos os contratantes é posta na forma do contrato e, a partir de quando é posta, e em razão do reconhecimento de uma parte pela outra como pessoa, o contrato obriga. Daí podermos dizer que o contrato é um “título de reconhecimento”, ou seja, um instrumento de postulação de vontades onde as partes reconhecem uma à outra como pessoas, vontades livres, e se submetem às consequências que disso decorrem. “O contrato torna explícita a duplicação intersubjetiva implicitamente presente na propriedade” (WILLIAMS, 1997, p. 148). A liberdade das vontades que entram num contrato é pressuposta (cf. WEBER, 1993, p. 71) e o contrato é a explicitação do reconhecimento dessa liberdade. Celebrar um contrato, portanto, enseja o direito de exigir sua execução pelas partes. As vontades das partes, no contrato, são erigidas a uma vontade comum e universal; entretanto, apesar de comuns no contrato, mantém seu caráter particular, e não estão “além do nível da arbitrariedade”, ou seja, uma vontade particular ainda pode se manifestar de forma diversa ao pactuado no contrato, pois mantém seu livre-arbítrio: o pacto eventualmente pode ser quebrado, ou seja, fica “sujeito ao injusto” (PhR, §81, Addition).10 O injusto é a terceira figura do direito abstrato, é o desrespeito por uma vontade livre, particular, a um contrato, universal. O injusto é o tornar-se particular de um direito universal no contrato. O contrato cria lei entre as partes, ou seja, diz o que é o dever-ser, o que é o direito. O injusto é a manifestação de uma vontade que é particular como se universal fosse. É uma aparência de

10

Esse é um dos motivos pelos quais, segundo Hegel, o Estado não pode ser concebido como um contrato. Ao contrário do Estado, um contrato “envolve a convergência ou acordo mútuo de vontades—porém não no modo da unidade ou universalidade genuína, mas somente como interseção de vontades separadas”, portanto contingentes. (DALLMAYR, 1993, p. 110).

27 direito não adequada à essência (cf. PhR, §82, Addition), que pode se manifestar de três formas: a) Como injustiça de boa-fé, onde o direito é confundido com a vontade particular e, sem intenção lesiva, uma vontade livre reclama para si, por exemplo, a propriedade de um bem que não lhe pertence por direito. Tratase da forma menos danosa de injusto; b) Como fraude. Forma mais grave, onde o direito é apenas aparência para uma das partes no contrato, como no exemplo do vendedor que deliberadamente esconde ou mascara uma informação do contrato para realizar uma venda que de outra forma não seria feita; e, por último, c) Como crime, o injusto por excelência, onde uma das partes não respeita ‘nem o princípio do direito, nem como tal [lhe] aparece’ (PhR §90, Addition). Neste nível, diferentemente da fraude, a parte que comete o injusto nem faz questão de que a outra o veja como justo. O criminoso não reconhece o direito do outro, pois sua intenção é ferir a liberdade de alguém. (WEBER & ALVES, 2014).

É importante notar que como injusto se definem quaisquer ações contrárias ao contrato estabelecido, mesmo que decorrentes de necessidades especiais ou situações de emergência. Não se questiona a existência de quaisquer situações que hoje consideraríamos como excludentes de ilicitude, como o estado de emergência e a legítima defesa. Tais conceitos serão desenvolvidos apenas em momentos posteriores, na moralidade e na eticidade. No direito abstrato não há nenhuma instância mediadora superior ao contrato. Não se fazem juízos morais sobre as ações, apenas estritamente jurídicos, no sentido daquilo provido como dever-ser pelo contrato. A tentativa de uma justiça privada, ou seja, a aplicação de uma punição pelo descumprimento de um contrato por uma parte contra a outra, tomaria a forma de pura vingança, por não sofrer nenhum tipo de mediação superior. E vingança, diz Hegel, “por ser uma ação positiva de uma vontade particular, se torna uma nova transgressão; como se contraditória em caráter, cai em uma progressão infinita e descende de geração a geração ad infinitum” (PhR, §102). A justiça privada criaria uma situação caótica, onde a suposta pena confundir-se-ia com um novo crime. O direito abstrato, dessa forma, não basta para a aplicação da pena, que precisa ser quantificada e aplicada de acordo com o conceito do direito. Daí a insuficiência do direito abstrato. É necessário tematizar a “autoconsciência da vontade” (cf. WEBER, 1993, p. 75), o que o contrato não leva em consideração, por isso é deficiente. O direito abstrato, dessa forma, está como que superado e guardado, então, em um nível superior, de superação das contingências das vontades particulares. Este nível é a moralidade.

28 1.2.2 Moralidade “O ponto de vista da moralidade”, diz Hegel, “é o ponto de vista da vontade infinita não meramente em si, mas para si” (PhR, §105). Enquanto no direito abstrato falávamos da determinação da vontade livre nas coisas, na relação da pessoa com as coisas (i.e., propriedade) e na relação de proprietários entre si (i.e., contrato), na moralidade se falará da determinação da vontade livre em si mesma. Essa determinação da vontade livre em si mesma é a subjetividade. O direito abstrato demonstrava as formas de se alcançar o conceito de “pessoa do direito”, portanto de aquisição de personalidade jurídica. Na moralidade, por outro lado, se demonstrará as condições para se alcançar o status de “sujeito moral”, isto é, a subjetividade moral. “A liberdade jurídica”, dizem Werle e Melo, em relação ao direito abstrato, “conta apenas com um mínimo da personalidade de cada um. Por essa razão a ‘moralidade’ significará um passo adiante ao considerar a ação livre como resultado da autodeterminação individual” (WERLE & MELO, 2007, p. 41). Conforme reconhece o próprio autor, “o direito da liberdade subjetiva é o ponto focal e essencial na diferença entre a antiguidade e a idade moderna” (PhR, §124). O ponto de vista moral, como o nome sugere, é um ponto de vista sobre algo que está dado, e este algo é o direito abstrato. A moralidade não adiciona ao conceito do direito nenhum princípio novo, limita-se a explicitá-lo. As vontades, que no plano do direito abstrato eram imediatas, passam a ser reconhecidas universalmente na moralidade (cf. WEBER, 1993, p. 83). Isso significa que aquilo que era determinação de uma vontade imediata no direito abstrato se torna como que um padrão de ação ou um dever moral na moralidade. Enquanto o direito ordena através da coação, a moralidade ordena através do dever. Para Kant, aquilo que dá conteúdo à ação moral é o imperativo categórico, na forma de um mandamento racional: “age de acordo com uma máxima que possas querer que se torne uma lei universal” (KANT, 2004). Em Hegel, por outro lado, o conteúdo da ação moral já está dado pelo Rechtsgebot, ou Imperativo do Direito (“sê pessoa e respeita os outros como pessoas”). O que em Kant deriva de um exercício auto-reflexivo da razão, em Hegel se apresenta como decorrência do reconhecimento intersubjetivo.11 Em Kant, por ser um a 11

A diferença entre Kant e Hegel quanto ao provimento do conteúdo da ação moral é sutil. Angelica Nuzzo, por exemplo, entende que o Imperativo do Direito de Hegel seria a “tradução do Imperativo Categórico de Kant para a esfera do direito” (NUZZO, 2001, p. 117). Para Williams, a convergência entre os dois filósofos é aparentemente óbvia: “O supremo princípio auto-legislado [da vontade] é o Imperativo Categórico, que deve fornecer critérios para determinar quais fins, princípios e, portanto, ações, tem validade moral” (WILLIAMS, 1997, p. 187).

29 priori, o Imperativo Categórico nunca causará uma situação de contradição com seu próprio produto; em Hegel, entretanto, em razão de sua justificação para a moralidade, os dilemas morais estão justamente na contradição entre dois “bens”, ambos justificados, não entre um “bem” e um “mal”. É o caso do exemplo da tragédia de Antígona, comentada por Hegel, onde o conflito se dá entre poderes igualmente justificáveis: a família, de um lado, e o Estado, de outro. Como momento intermediário entre o direito abstrato e a eticidade, a moralidade é o nível da diferença, sobretudo entre o ser e o dever-ser, que se mostram ainda apartados e cuja reconciliação se dará apenas na eticidade. Enquanto desenvolvimento da ideia de direito, a moralidade é “mais um direito da desresponsabilização do que da responsabilização” (WEBER, 1993, p. 85), ou seja, se no direito abstrato fez-se direito entre as partes através do contrato, na moralidade serão explicitadas as razões pelas quais o descumprimento do contrato estará legitimado. Hegel apresenta três “aspectos” do direito da vontade moral: o propósito, a intenção e a ideia de bem. No direito abstrato, as razões subjetivas do cumprimento ou descumprimento de um acordo eram irrelevantes. O importante era que os contratos fossem cumpridos—pacta sunt servanda. Na moralidade, questiona-se pelos motivos internos ao agente (subjetivos) do agir. A minha vontade só pode ser responsabilizada quando se reconhece em sua exteriorização, ou seja, na ação. Só sou responsável “na medida em que o predicado ‘meu’ pertence ao estado de coisas alterado” (PhR, §115). Eis o propósito, que se refere à relação da vontade com a sua exteriorização: A vontade é confrontada com um estado de coisas em relação ao qual ela age. Mas para conhecer esse estado de coisas, preciso ter uma ideia dele, e a responsabilidade é verdadeiramente minha somente enquanto tenho conhecimento da situação que me confronta (PhR, §117, Addition).

Dessa ação posta no mundo, só posso ser responsabilizado por aquilo de que estava ciente. A intersubjetividade da moralidade está no fato de que, nessa ação, minha vontade individual deve “corresponder ao que requer a vontade universal racional” (WILLIAMS, 1997, p. 182). O meu agir tem aqui uma relação necessária com o agir dos outros. A condição de efetivação da liberdade não é mais a existência da propriedade, mas o próprio reconhecimento do e pelo outro. Williams diz que o indivíduo atomístico característico do direito abstrato está aqui aufgehoben (WILLIAMS, 1997, p. 184). É claro que ainda não estamos num nível como o da eticidade, onde o reconhecimento intersubjetivo atinge sua

30 totalidade de desenvolvimento. A moralidade continua sendo uma abstração e, por isso, mantém um caráter de certa forma individualista. Entretanto, uma ação, depois de praticada, se torna independente da esfera de vontade do agente e pode ter consequências não pensadas ou não desejadas. Como lembra Weber, a partir do dito popular: “a pedra lançada pela mão está em poder do diabo” (WEBER, 2010, p. 445). Imaginemos a situação hipotética em que quero matar uma pessoa e ponho veneno em sua comida; essa comida, porém, acaba sendo consumida não apenas pela pessoa, mas por toda sua família, o que ocasiona a morte de todos. Até onde, nesse caso, vai minha responsabilidade? Sou responsável pela morte da pessoa que inicialmente almejei ou pela morte de toda sua família? Para resolver essa situação, Hegel apresenta o conceito de intenção. Enquanto o propósito se limita às consequências imediatas da minha vontade, a intenção envolve todas as consequências que poderiam ser previstas pelo agente: Como o propósito se situa no plano da individualidade, Hegel, com a intenção, quer indicar a necessidade da universalização. Esta (intenção) é aquele (propósito) universalizado. [...] Uma ação singular passa a adquirir um conteúdo de proporções universais, mediante a intenção, que indica haver uma universalidade nas ações particulares (WEBER, 1993, p. 90).

Um avanço de Hegel em relação a Kant está em considerar o Direito de Emergência (Notrecht) na discussão da moralidade de um ato. Para Kant, a validade da lei moral está justamente em sua validade universal a priori. Hegel, por outro lado, considera que as circunstâncias podem exculpar o agente em situações de “extremo perigo e de conflito com a propriedade de outra pessoa” (PhR, §127). Nessas situações pode ser invocado o direito de emergência,12 que consiste em uma espécie de inexigibilidade do dever em razão da defesa da própria vida e liberdade. A vontade, a partir de quando manifestada através da ação, se torna vontade mediada, universalizada. O fim universal dessa vontade é o que Hegel chama de bem. “O bem é a Ideia como unidade do conceito da vontade com a vontade particular. Nessa unidade, direito abstrato, bem-estar, a subjetividade do saber e a contingência do fato externo têm todos sua autossubsistência independente superada, embora ao mesmo tempo estejam ainda contidos e mantidos na sua própria essência” (PhR, §129). A ideia de bem está ligada à noção de dever, característico da moralidade e definível, conforme o parágrafo 134, como “fazer o direito” e “buscar o bem-estar, próprio e dos 12

Hegel deixa claro que este se trata de um direito propriamente dito, não de um ato de misericórdia (cf. PhR, §127, Addition).

31 outros”. Este dever, entretanto, se motivado apenas por si mesmo, cairia no mesmo formalismo que Hegel critica na moral kantiana. À ideia de bem deve ser trazido um conteúdo concreto, que será dado na próxima etapa de desenvolvimento, a eticidade (cf. WEBER, 1993, p. 93). 1.2.3 Eticidade A concretização da liberdade, objetivo último do direito, nos níveis anteriores, padecia de um “sofrimento de indeterminação”, pois não contava com uma esfera completa de interação intersubjetiva mediada pelas instituições sociais. A libertação desse sofrimento só acontecerá na eticidade, onde existem condições concretas e iguais para a realização da liberdade (cf. WERLE & MELO, 2007, p. 41), que só se determina quando decide objetivamente. Aqui há um avanço em relação aos teóricos jusnaturalistas, até Kant, que admitiam somente as esferas do direito e da moralidade. Estas, porém, eram esferas abstratas, no sentido de que abstraíam das instituições e do tecido social onde se encontravam. O grande desafio, então, é demonstrar como aqueles momentos se relacionam com o momento da eticidade, ou seja, das condições concretas de realização do princípio do direito e de seu desenvolvimento anterior. Nesse sentido, Ilting apresenta uma proposta plausível: A resposta está no fato de que as teorias jurídica e moral devem ser entendidas como ficções metodológicas; o homem, concebido abstratamente como pessoa autônoma e sujeito moral, vive na realidade em uma situação de múltiplas inter-relações sociais. Enquanto [...] o direito racional individualista e [...] a moralidade individual pressupõem que essas inter-relações não sejam criadas pela decisão livre dos indivíduos, Hegel argumenta que as teorias jurídica e ética atingem seu verdadeiro significado e validade somente no contexto de uma teoria das instituições e comunidades (INTING, 1971, p. 99).

A realização do conceito no mundo concreto, em Hegel, pode ser entendida, numa espécie de atualização lexical, como o que chamamos contemporaneamente de política. A eticidade trata da manifestação do Espírito nas instituições; o princípio do direito, aqui, terá uma manifestação concreta, não mais puramente abstrata, como nos teóricos tradicionais do direito e da moral. A eticidade é o ponto de inovação de Hegel, sendo talvez uma de suas maiores contribuições para o pensamento político contemporâneo. Em seu sistema, é reconhecido que o direito e a moralidade têm seu lugar como etapas necessárias para a concretização da liberdade, o princípio do Estado moderno. São necessárias, mas

32 não suficientes. A modernidade trouxe a demanda pela concretização do pensamento político, e Hegel, como “tradutor” de seu tempo em conceitos, percebeu essa necessidade de um terceiro momento de desenvolvimento da ideia da liberdade—nas instituições, a eticidade. O ser humano não nasce num estado de natureza, mas num Estado, numa sociedade civil e numa família. Considerar esses momentos no desenvolvimento de um projeto político é essencial. Hegel tem uma concepção inter-relacional de liberdade, quer dizer, “um povo não é uma soma de indivíduos, mas uma totalidade orgânica caracterizada por um modo particular de viver e de pensar, por um sistema determinado de regras de conduta. O povo é uma totalidade ética” (BOBBIO, 71). Dessa forma, não faz sentido falar em liberdade natural anterior à mediação social. A pessoa só é livre à medida que pertence ao tecido social e tem sua vontade individual mediada pelas instituições da eticidade. É na eticidade, através de suas três instituições—a família, a sociedade civil e o Estado—que a vontade individual será mediada, conflitada com as demais vontades e se tornará universal no Estado, de forma intersubjetiva. Diz Hegel: “Subjetividade é a base onde o conceito da liberdade é concretizado [...]. No nível da moralidade, subjetividade é ainda distinta de liberdade, conceito da subjetividade; porém, no nível da eticidade, é a realização do conceito de forma adequada a si mesmo” (PhR, §152). A família, a sociedade civil e o Estado deixam de serem considerados meros dados da natureza e se tornam instâncias necessárias no movimento da concretização da liberdade. A legitimidade dessas instituições, portanto, como lembra Williams (1997, p. 200), depende do auto-reconhecimento dos indivíduos dentro delas, como partes de um todo. Primeiramente, na família, como membro, primeira transição da natureza em eticidade; depois, na sociedade civil, como proprietário; e, por fim, no nível mais alto, o Estado, como cidadão. É superada a distinção entre ser e dever-ser. Na eticidade, o dever e o direito tem uma correspondência mútua. “O racional é efetivo e o efetivo é racional”. Este é o nível da completa realização do reconhecimento mútuo. “O que é meu direito também é meu dever: o reconhecimento que recebo da comunidade como direito, devo à comunidade como dever” (WILLIAMS, 1997, p. 207).

33 1.2.3.1 Família A primeira instituição da eticidade é a família, a “substancialidade imediata do Espírito”, caracterizada como a união decorrente do amor. O amor, diz Hegel, é “o sentimento que o Espírito tem de sua própria unidade” (PhR, §158). A família é a primeira instituição social, dentro da qual o indivíduo é reconhecido como “membro”. Não se fala mais na “pessoa do direito” ou no “sujeito moral”, mas no “membro da família”, reconhecido como tal pela própria pequena comunidade ética da qual faz parte. O tornar-se membro da família é uma suprassunção do indivíduo isolado e autoreflexivo dos momentos racionalmente anteriores no desenvolvimento do Espírito Objetivo. O indivíduo fica superado e guardado num nível superior. Isso não significa, porém, uma negação aniquiladora da individualidade. A família comporta-se, sim, como uma só pessoa, mas isso externamente. Internamente, mantém um sistema de reconhecimento de cada membro como tal. A família também é composta de três momentos, ou fases: o casamento, a propriedade familiar, e a educação dos filhos e dissolução da família (cf. PhR, §160).13 O casamento, primeiro momento, é caracterizado como uma relação oriunda do consentimento livre de duas pessoas. Cada uma das vontades se vê como objeto da vontade do outro e reconhece-se no outro. O casamento, diz Hegel, é composto por duas partes; uma física, o interesse sexual natural, imediato, e uma espiritual, o amor autoconsciente (PhR, §161). É notável aqui o processo do que Hegel chama de formação, ou cultura (Bildung), que consiste no devir social, ou ético, de uma força ou comportamento que é natural ou imediato. O casamento, dessa forma, é o formato ético e cultural, no movimento de suprassunção da contingência na necessidade,14 que toma o instinto sexual natural e o desejo de reprodução. O casamento é um acordo de vontades, embora não se reduza a um contrato, que demanda uma cerimônia formal. Como primeira instituição ética, o casamento exige o aval de uma autoridade ética—tradicionalmente a igreja ou o Estado. A necessidade formal da 13

14

O discurso de Hegel sobre a família, dos parágrafos 158 a 181, não pode ser lido senão tendo em vista a limitação temporal da filosofia do autor. A forma de administração da família, por exemplo, como a necessidade de ser um homem o chefe, não é mais sustentável em uma sociedade disposta à igualdade entre os sexos. Diz Hegel, “A coruja de Minerva abre suas asas somente com o cair da noite” (PhR, Preface). A filosofia está sempre no final da história, olhando para trás e tentando transformar seu próprio tempo em conceitos. Ser hegeliano, especialmente aqui, exige compreender a limitação histórica da própria filosofia hegeliana. Ver WEBER, 1993, sobre o papel da necessidade e da contingência na Filosofia do Direito.

34 celebração cerimoniosa do casamento tem a ver com a necessidade de reconhecimento de uma família pelas demais instituições. O casamento “altera” o status das pessoas que o formam, criando uma “nova pessoa”. Para que essa nova pessoa seja aceita como tal, e não apenas como agrupamento de duas vontades, há a necessidade de promoção do reconhecimento dela como família, o que será feito por uma autoridade competente. 15 A segunda fase é o capital familiar. Da mesma forma que a pessoa exterioriza sua vontade através da propriedade, a família, como instituição análoga à pessoa, na eticidade, manifesta sua liberdade através da propriedade familiar. Com a devida escusa pela tautologia didática, pode-se dizer que a propriedade familiar é da família, no sentido de que não pertence a algum indivíduo isoladamente nem é a soma das propriedades individuais. A propriedade é da instituição, não dos indivíduos (cf. PhR, §171). Retornará aos indivíduos somente quando da dissolução da família, através, por exemplo, da herança (PhR, §178). O último momento da família é sua dissolução, que envolve a formação dos filhos para que constituam novas famílias. A dissolução pode ser natural, por morte dos membros, ou ética, com o atingimento da maioridade do filho e sua formação para a liberdade. Diz Hegel que “o casamento é uma unidade ética em sua imediatidade” (PhR, §176) e necessita de um elemento interno para que exista, qual seja, a vontade. No momento em que a vontade das partes em estarem casados cessa, está justificado o fim da instituição. Hegel comenta esse ponto em relação à formação do Estado: É porque o casamento depende inteiramente do sentimento, algo subjetivo e contingente, que pode ser dissolvido. O Estado, por outro lado, não é sujeito à partição, pois é baseado na lei [law]. O casamento deve ser indissolúvel, mas aqui novamente devemos parar no nível do dever; já que, sendo o casamento uma instituição ética, não pode ser dissolvido puramente por vontade, senão somente por uma autoridade ética, seja a igreja ou a corte de justiça (PhR, §176, Addition).

A família é dissolvida em uma pluralidade de famílias. O indivíduo, nessa primeira instituição, é uma parte na consecução dos interesses da família. Seus interesses particulares, entretanto, ainda não são plenamente satisfeitos. Nasce a necessidade de mediação entre os indivíduos na consecução de seus fins particulares. Surge o espaço, então, da sociedade civil. 15

Poderíamos entender que o não reconhecimento dessa relação pala autoridade não impede que a sociedade civil a reconheça de forma orgânica, como no exemplo do instituto da relação estável no Brasil, um formato familiar reconhecido socialmente que posteriormente teve o reconhecimento de sua legitimidade pelo Estado.

35 1.2.3.2 Sociedade Civil A segunda instituição da eticidade é a sociedade civil, instância mediadora por excelência, constituída como momento intermediário entre o a instituição mais instável da eticidade, a família, e a totalidade ética, o Estado. A família representava a ideia da eticidade num momento ainda conceitual, cujo desenvolvimento em “realidade objetiva autossuficiente” se dará na sociedade civil. Por isso trata-se a sociedade civil do “estágio da diferença” (PhR, §181). A família não é suficiente para o pleno desenvolvimento de seu membro, pois não dava conta de considerar a particularidade dentro do todo, o “eu” dentro do “nós”, daí a necessidade da sociedade civil, instância em que “os indivíduos se tornam realmente indivíduos e, desse modo, independentes e isolados, tomam a si mesmos como fim de sua atividade” (LEFEBVRE; MACHEREY, 1999, p. 26). A sociedade civil é o extremo oposto da família; nela, o “nós” é apenas um aglomerado de “eus” (REDDING, 1996, p. 189). É importante entendermos o que se quer dizer quando Hegel fala em sociedade civil e no indivíduo que nela está inserido. O autor comenta a instância como um sistema “prima facie considerado como o Estado exterior, o Estado baseado na necessidade” (Rph §183). Trata-se, antes de tudo, de um momento na concretização do Estado. Assim como a família é uma forma, ainda que paroquial, de Estado, o mesmo acontece com a sociedade civil. O indivíduo da sociedade civil é o “burguês”,16 entendido como o particular interessado na manutenção de sua propriedade e satisfação de seus interesses, ou necessidades. Ao “sair” da família, o indivíduo “entra” na sociedade civil como particular, isto é, como pessoa que tem a si mesma como fim, cujo comportamento é definido pelo seu interesse próprio. Trata-se do sujeito econômico, no sentido mais amplo, o “proprietário individual, que se define por essa vocação de defender o bem que propriamente lhe pertence e ao qual ele se identifica, porque sua aquisição ou sua conservação são necessárias a sua constituição particular, sua constituição como ‘particular’” (LEFEBVRE; MACHEREY, 1999, p. 30). Daí o uso do termo “burguês” para definir o indivíduo em relação à sociedade civil. Não se fala ainda em “cidadão”, forma pela qual se constitui o indivíduo perante o Estado. A sociedade civil, porém, apesar de composta primeiramente de indivíduos interessados na persecução de seus próprios fins, não é um ambiente de mônadas que

16

Lefebvre e Macherey (1999, p. 31) apontam que Hegel toma emprestado o termo “sociedade civil” de Adam Ferguson, sobretudo a partir do seu Ensaio sobre a História da Sociedade Civil [Disponível em: ], traduzindo o termo original “civil society” como “bürgerlische Gesellschaft”, ou “sociedade burguesa”.

36 circulam e agem livre e independentemente. O problema que se põe, então, é: como compatibilizar o interesse de um indivíduo com o interesse do outro? Para que haja a satisfação de um fim, é necessário que este fim seja mediado através do universal que então aparece como meio de sua realização. Em consequência, indivíduos podem atingir seus fins somente à medida que autodeterminarem seu conhecimento, vontade e ação em uma forma universal e criarem ligações nessa cadeia de conexões sociais (PhR, §187).

A consecução de fins individuais, portanto, só se dá através dessa mediação pelo outro, em um “sistema de dependência multilateral” (PhR, §143). A sociedade civil desempenha esse papel de mediação, dispondo das ferramentas para que os indivíduos estabeleçam entre si relações como de trabalho e de troca. Assim, embora a sociedade civil represente uma cisão com a família e corresponda ao momento da busca pelos interesses particulares, “continua sendo uma ‘sociedade’, isto é, ela mantém entre os indivíduos uma relação social que determina suas existências em referências a normas coletivas” (LEFEBVRE; MACHEREY, 1999, p. 31). Na busca da satisfação dos meus próprios desígnios, acabo contribuindo para a consecução da vontade substancial, e dos desígnios do outro. Apesar do elemento universal somente ser plenamente realizado no Estado, na sociedade civil ele já aparece, porém de uma forma não completamente desenvolvida. A definição da sociedade civil como “Estado exterior” é relevante para entendermos que nela já existe alguma forma da ideia de Estado per se, onde existe alguma universalidade, apesar de não plenamente desenvolvida. Para que se desenvolva e se torne efetiva, a ideia de Estado deve passar pelas contradições desse ‘Estado exterior’ que é a sociedade civil; o que significa que o Estado deverá ele próprio ‘sair’ da sociedade civil e de seu desenvolvimento imanente [...]. No momento em que esta transformação for operada, a própria relação entre sociedade civil e Estado será invertida: ficará visível que, embora a sociedade civil venha antes do Estado na sucessão das formas da socialidade, é não obstante nele que ela encontra seu suporte e seu fundamento, isto é, também o seu objetivo, o qual, sendo sua base efetiva, precede-a idealmente (LEFEBVRE; MACHEREY, 1999, p. 35).

A despeito de a sociedade civil ter como fim e fundamento o Estado, um ponto nevrálgico na teoria hegeliana do Estado é a marca clara da diferença entre os dois momentos, sobretudo em relação a seus fins. Se a sociedade civil tem como modo de relação intersubjetiva o “egoísmo universal”, o Estado se caracteriza pelo “altruísmo

37 universal” (cf. AVINERI, 1974, p. 134). Na sociedade civil, a pessoa busca fins particulares, ao passo em que no Estado almeja fins universais. Hegel é claro na necessidade dessa diferenciação: Se o Estado for confundido com a sociedade civil, e se seu fim específico for tomado como a segurança e proteção da propriedade e da liberdade individual, o interesse dos indivíduos como tal se torna o fim último de sua associação, e disso decorre que ser membro do Estado é algo opcional. Mas a relação do Estado com o indivíduo é bastante diferente. Por ser o Estado Espírito Objetivo, é somente como um de seus membros que o indivíduo adquire objetividade, individualidade verdadeira e vida ética (PhR, §258).

Essa observação pode ser vista como crítica ao fundamento das doutrinas contratualistas, que subordinam o Estado ao consentimento e, consequentemente, ao desígnio dos indivíduos particulares. Para Hegel, é característica da modernidade a noção de indivíduo como ente anterior a qualquer determinação social. Isto é, o indivíduo existe como tal independentemente de sua pertença a determinado papel social; reconhece-se como indivíduo abstraindo de sua participação na polis, diferentemente do que acontecia na Antiguidade, onde não se vislumbrava a separação entre o homem privado, característico da sociedade civil, e o homem público, cidadão político sob o Estado (cf. HARDIMON, 1994, capítulo 5). Daí a necessidade dessa distinção.17 O indivíduo na sociedade civil tem como característica de sua particularidade uma duplicidade de meios de consecução de seus objetivos: as coisas exteriores, isto é, a propriedade e o produto das vontades e necessidades dos outros, e o trabalho, “o meiotermo entre o subjetivo e o objetivo” (PhR, §189). A satisfação dos meus desejos precisa ser mediada com a satisfação dos desejos dos outros. A partir dessa necessidade, objeto de estudo da economia política, tem lugar o sistema das necessidades, que poderíamos também, numa atualização terminológica, chamar de mercado. Na sociedade civil, diferentemente do que aconteceria em um estado de natureza,18 as necessidades não podem mais ser satisfeitas imediatamente, mas requerem mediação, motivo pelo qual os indivíduos estabelecem entre 17

18

A Sociedade Civil, argumenta Hyppolite (1988, p. 103), “não é outra coisa senão o Estado do liberalismo econômico”. Os liberais não avançam para o nível posterior, do Estado (compreendendo este no sentido hegeliano), mas chamam de Estado o que para Hegel é a sociedade civil. Hegel, diferentemente dos liberais, dará à sociedade civil um papel subordinado em seu sistema. Em comentário ao §194, sabidamente contra Rousseau, Hegel discute a necessidade de superação das necessidades “imediatas” ou “naturais” intrínsecas ao estado de natureza: “Ficar confinado às meras necessidades físicas como tais e sua direta satisfação seria simplesmente a condição em que o Espírito é submerso na natureza e a liberdade é tolhida e resta a selvageria” (PhR, §194).

38 si relações (ainda que abstratas) de reconhecimento recíproco. Tais relações, por sua vez, tornarão concretas, isto é, sociais, as necessidades que eram até então individuais. Essas necessidades, agora socializadas, se organizarão num sistema que tem sua expressão mais notável no trabalho. Hegel define o trabalho como “o meio de aquisição e preparo dos meios particularizados apropriados às nossas necessidades similarmente particularizadas” (PhR, §196). O trabalho, na medida em que é socializado, é dividido e se torna cada vez mais especializado e abstrato. Essa abstração caminha junto com o nível de racionalidade que é o da sociedade civil; ela é que torna possível uma organização coletiva do trabalho. Em troca, essa racionalização tende a satisfazer a necessidade dos indivíduos, enquanto uma necessidade social. [...] O trabalho deixa então de ser uma atividade estritamente individual, orientada para a satisfação imediata de uma necessidade particular: ele preenche uma função geral, no âmbito da ordem econômica comum da produção (LEFEBVRE; MACHEREY, 1999, p. 45).

O sistema das necessidades é responsável por concretizar e tornar reconhecido o direito de propriedade, que no direito abstrato carecia de determinação ética. A proteção da propriedade se dará através do sistema de administração da justiça, segundo momento da sociedade civil. O terceiro momento envolve duas instituições: a polícia e a corporação. Por polícia entende-se autoridade pública, responsável tanto pelo combate ao crime quanto pelo provimento dos serviços públicos, envolvendo um papel que hoje poder-se-ia dizer ser de competência do poder executivo. As corporações, por outro lado, têm a função específica de organização e “posicionamento” dos indivíduos dentro da sociedade civil. No sistema das necessidades, há a especialização do trabalho e a divisão da sociedade civil em estamentos, ou classes. Hegel divide-os em três: o primeiro, mais imediato, o estamento de agricultores; o terceiro, de caráter universal, o estamento dos servidores civis, ou servidores do Estado; o estamento intermediário, formal, diz respeito aos produtores e negociantes, é a segunda classe. As corporações dizem respeito especificamente a essa classe intermediária. Por seu trabalho se tornar específico e ir se particularizando no desenvolvimento do conceito, a segunda classe se organiza em associação através de diferentes ramos. Tais ramos, a partir de quando organizados a fim de salvaguardar os interesses de seus componentes, são as corporações, entendidas como grupos de interesses próprios da sociedade civil. O indivíduo tem sua atividade formalmente reconhecida quando pertencente a uma corporação; afasta-se da pura individualidade e se reconhece como ser social, tendente ao universal. É por meio da

39 corporação que o indivíduo se encaminha ao pertencimento ao Estado, como cidadão, não mais meramente como burguês. “A corporação corresponde, portanto, ao momento da superação (Aufhebung) da sociedade civil: a partir dela, produz-se o Estado, do qual ela é condição de existência e antecedente racional” (LEFEBVRE; MACHEREY, 1999, p. 64). A corporação, dessa forma, é o locus da mediação interindividual na sociedade civil e a posterior entidade representativa de interesses perante o Estado. Está, de fato, numa zona gris entre as duas esferas; situa-se na sociedade civil, enquanto tende ao Estado. 1.2.3.3 Estado

A noção de indivíduo, até então, se dava de uma forma na família, onde o todo indispunha de meios necessários para a explicitação da particularidade da parte; e na sociedade civil, onde o todo era um mero conglomerado de partes. A eticidade, então, se vê entre esses dois extremos. Sua superação e reconciliação se dará na terceira instituição da eticidade, o Estado, onde o conceito do direito atinge seu grau mais elevado. Enquanto culminação da vontade substancial, mediada pelas instituições, o Estado, para Hegel, é a reserva ética de um povo e a concretização da liberdade. O Estado é a efetividade da ideia ética. É espírito ético enquanto vontade substancial manifestada e revelada a si mesma, sabedora e pensante de si mesma [...] O Estado existe imediatamente em costume; mediatamente na consciência individual, conhecimento e atividade; enquanto a consciência, em virtude de seu sentimento para com o Estado, encontra no Estado, como sua essência, o fim e o produto de sua atividade, sua liberdade substantiva (PhR, §257).

Dentro da sistemática da Filosofia do Direito, a exposição da figura do Estado é deixada para o final. Entretanto, todas as figuras e etapas apresentadas até então tinham o Estado como pressuposto. Todos os processos de desenvolvimento do conceito do direito tanto culminam no como partem do Estado. Pode-se dizer, portanto, que o Estado é, como concretização do Espírito Objetivo, o momento de reconciliação de “todas as contradições surgidas no curso do desenvolvimento da Sittlichkeit” (LEFEBVRE; MACHEREY, 1999, p. 68). No Estado, todas as cisões e incongruências dos momentos anteriores devem já estar superadas. O Estado é a culminação da eticidade, a “totalidade ética”. É possível entender, alguns sustentam, que a eticidade é “no fundo e devidamente entendida, uma teoria do Estado” (WEBER, 1993, p. 133).

40 Na estrutura da eticidade, o Estado aparece como o momento da universalidade. Deve ser entendido, apesar da aparente contradição em termos, como o “pináculo de sustentação” da estrutura da eticidade. Ao mesmo tempo em que é o resultado do movimento do Espírito nas instituições, é também seu fundamento; é pressuposto e resultado da vida ética. Em relação à sociedade civil, pode-se dizer que o Estado elevou as vontades daquela ao nível objetivo, substancial. É, portanto, a “autoconsciência particular elevada à sua universalidade” (WEBER, 1993, p. 134). Redding (1996, p. 224-225) entende que o Estado deve ser visto não como uma instituição de relações entre sujeitos, mas de “relações entre relações” Não se trata o Estado, como a família e a sociedade civil, de uma esfera de relações intersubjetivas. O Estado hegeliano é uma esfera de relações interinstitucionais, que une as esferas (estas sim) intersubjetivas anteriores à sua realização. O Estado não nega seus momentos anteriores, mas a partir deles é constituído—é um “círculo de círculos”. E sendo esses círculos, a

família e a sociedade civil,

intersubjetivamente desenvolvidos, o Estado não é senão uma instituição “interrecognitiva”, que eleva a um grau mais alto os reconhecimentos havidos anteriormente. No Estado é onde mais claramente se percebe a concretização do princípio de que “o que é racional é efetivo e o que é efetivo é racional” (PhR, Preface). Os conflitos havidos no seio da sociedade civil são resolvidos na “reconciliação” que promove o Estado. O ser e o dever-ser confundem-se em um só. O “efetivo”, aqui, deve ser entendido não como um estado, mas como um processo; como mediação contínua entre a essência e o ser-aí, a existência. Vale dizer, ainda, que essa reconciliação acontece no nível conceitual. A identidade do racional com o efetivo não significa que todas as contradições dos momentos anteriores serão extirpadas da realidade efetiva através de um movimento racional. Significa que as contradições serão “postas” como constitutivas do Estado, a nível conceitual ̌EK, 2013, passim). A existência do Estado parte da noção de Ideia do Estado, entendida como o ápice da racionalidade, que se determina de forma dúplice. Primeiro, como unidade entre liberdade objetiva (universal, da vontade substancial) e liberdade subjetiva (individual, da vontade

de

cada

membro

do

Estado,

em

seu

“saber”

e

“querer”).

Segundo,

consequentemente, no direito de autodeterminação de suas leis e princípios (cf. PhR, §258). Ainda não está em discussão, na Ideia do Estado, sua forma determinada historicamente, mas sim sua fundamentação racional. Hegel se aproxima de Rousseau ao identificar na vontade o fundamento do Estado, e não na força ou na autoridade divina. Rousseau, porém, deduzia o conceito de autoridade

41 estatal a partir da vontade subjetiva, individual, de cada membro do Estado. Para tanto propunha a ideia de um contrato social, postulado hipotético de justificação onde cada cidadão entraria em acordo com os demais a respeito do estabelecimento de uma autoridade superior a todo e qualquer indivíduo isolado e cujo conteúdo adviria da “vontade geral” do povo. O conceito de vontade geral em Rousseau, porém, como Hegel entende, permanece atado ao desígnio ou arbítrio (Willkür) individual. No lugar da vontade individual, Hegel se vale, na fundamentação da constituição do Estado, da ideia de Volksgeist, ou Espírito de um povo. A forma que o Espírito toma quando no Estado é a do povo. O Estado constituído historicamente é produto da consciência desse Espírito. A Constituição de um Estado não é uma lei escrita e aprovada por uma assembleia constituinte, senão o próprio Espírito do povo em sua manifestação nas instituições. Este nível, assim como os anteriores, Hegel divide em três momentos: a Constituição, realidade de um determinado Estado como entidade soberana e representativa de seu povo; o direito internacional, representante da relação entre diferentes Estados; e, por fim, a história universal, instância última de julgamento do direito. A questão que Hegel levanta no primeiro dos três momentos, o direito público interno, ou Constituição, é a da compatibilização da vontade subjetiva com a universalidade. Como ficam os interesses particulares em uma estrutura dedicada ao universal? O indivíduo é suprimido? Como é manifestada a vontade objetiva do Estado? Hegel, ao tratar do assunto, faz questão de deixar claro que a totalidade ética característica do Estado não pertence a uma instituição apartada dos indivíduos que nela se encontram suprassumidos. Ou seja, a liberdade concreta pela qual o Estado é responsável não existiria se não fosse levada a cabo pelos próprios indivíduos e seus interesses particulares (cf. PhR, §260). A ideia é que os indivíduos reconheçam o projeto do Estado como seu próprio e procurem alcançá-lo como seu próprio fim. O Espírito Objetivo não existe sem os indivíduos que o tragam à existência. Isso significa que a “a ‘substância’ em si não é de nenhuma forma ‘substancial’, senão essencialmente auto-negadora [self-negating]. Existe somente na medida em que existam seres intencionais para ‘carregá-la’, e é um aspecto essencial desses seres que eles possam abstraí-la e negá-la, ou transformá-la” (REDDING, 1996, p. 183). E aqui entra em jogo o conceito hegeliano de “liberdade”, que talvez não possamos entender senão como essencialmente liberdade “retroativa”. O que forma a consciência do indivíduo dentro do Estado é o próprio processo de formação (Bildung) que acontece nesse

42 Estado. Quando Hegel discute a ideia do estado de natureza e postula a incapacidade dos indivíduos naquele estado de tomarem uma decisão “racional” de pactuarem pela criação da sociedade civil (doutrina contratualista lato sensu), pois estão à mercê de seu arbítrio imediato (Willkür), a chave é entender que a própria liberdade (Wille) é um conceito que só faz sentido dentro dos limites do Estado, pois dele decorre, ou seja, tem uma construção histórica, e não simplesmente flutua no espaço como conceito autossuficiente. Žižek nos ajuda a entender: “A ‘liberdade’, portanto, é inerentemente retroativa: em sua forma mais elementar, não é um simples ato que, do nada, inicia uma nova ligação causal, mas é, ao contrário, um ato retroativo de determinação da ligação ou sequência de necessidades que ̌EK, 2013, p. 53). É dentro do próprio Estado que se constrói tal conceito de liberdade. Weber também é claro nesse ponto: Não há dúvida de que a realização da liberdade do indivíduo inclui necessariamente a realização no social. Nesse sentido, não há liberdade absoluta. A sua realização inclui certas condições, onde determinadas possibilidades são limitadas. Isso significa que o próprio conceito de liberdade passa a ter sentido quando historicamente determinado. A liberdade sempre está ligada a uma situação. Aliás, em Sartre encontramos a ideia da liberdade como projeto, ou seja, o homem é o que ele faz de si próprio. Não faz sentido falar em liberdade em si mesma. O indivíduo deve sair de si para se realizar na coletividade. Faz-se mister que a ideia da liberdade se desdobre. Isso é necessário. Limitação, no entanto, não significa eliminação da particularidade. Para que a convivência seja possível, ou seja, para que se possa falar numa identidade do particular e do universal, isto é, para que o indivíduo seja o universal como constitutivo, a condição encontrada por Hegel é a da restrição dos deveres ao âmbito do direito. Temos aí um critério de liberdade possível. Fundamentalmente, o cidadão só é livre no Estado, fazendo o que o Estado permite. Isso se pode chamar ‘necessidade compreendida’ ou interiorizada. Essa é a liberdade possível, em Hegel. As iniciativas, a criatividade, ou seja, o exercício efetivo do livre-arbítrio tem, portanto, seu campo delimitado pela ordem jurídica vigente. Esse é o resultado a que se chega com a diluição da contingência na necessidade. Tudo se torna necessário. Die Wahrheit der Notwendigkeit ist die Freiheit. (WEBER, 1993, p. 167-147).

A divisão do direito público interno se dá entre o poder soberano, ou o “príncipe”; o governo, ou executivo; e o legislativo. O primeiro é a incorporação subjetiva da vontade última do Espírito, responsável por manifestar a vontade deste através de sua assinatura, de um ato de querer objetivo; O segundo, executivo, é a parcela do poder responsável por “subsumir o particular no universal”, isto é, fazer adequar os casos particulares à vontade do soberano, a lei—diz respeito à administração da justiça e à polícia, que são geridas pela sociedade civil, mas demandam um aval ou sanção do Estado; O terceiro, legislativo, é o poder a que cabe a “determinar e estabelecer o universal” (PhR, §273).

43 Hegel compreende, portanto, que o regime político mais racional de um Estado é a monarquia, entendendo pela necessidade da concentração da vontade objetiva do Estado em uma pessoa. O problema da eventualidade de uma ação arbitrária dessa pessoa, Hegel entende, é secundário, visto que o monarca é apenas a encarnação de uma ideia, a ideia do Estado. Seu poder é, para todos os efeitos, formal. Sua figura não é influenciada por pressões populares ou desígnios pessoais, pois esses afetariam apenas o conteúdo de sua decisão, que não está a seu alcance. Quanto mais sólida for a Constituição, diz o adendo ao parágrafo 279 da Filosofia do Direito, mais simbólico será o papel do soberano, a quem caberá apenas o reconhecimento formal daquilo que já está reconhecido de fato.19 A existência concreta e histórica de um Estado se manifesta através de seu povo, nesse sentido é possível falar de uma soberania popular em Hegel. Idealmente, não há oposição entre soberano em povo, que se reconhecem mutuamente dentro da ideia de soberania, da qual são detentores. O Estado não está acima do povo, mas o integra. A vontade do povo, em última instância e depois de mediada, é a vontade do Estado. A realização substancial dessa mediação é competência do corpo administrativo do Estado, o executivo. “O poder prático do monarca [deve ser] completado por uma espécie de poder teórico, exercido por assembleias e administrações, sob a condução do governo” (LEFEBVRE; MACHEREY, 1999, p. 97). E como garantir que essas assembleias e administrações ajam de acordo com a vontade substancial do Estado, e não em proveito próprio? Nessa questão, é importante entendermos o conceito de poder em “poder executivo” apenas no sentido fraco, de subdivisão organizativa do Estado, não no sentido forte, de “poder soberano”, exclusivo do monarca. Os órgãos executivos e legislativos são submetidos ao poder soberano, e por ele são controlados. Da mesma forma, são observados “de baixo” pelas corporações da sociedade civil, que compõem o corpus necessário a seu funcionamento (cf. LEFEBVRE; MACHEREY, 1999, p. 100). Essa estrutura hierárquica de organização do poder pretende evitar qualquer exercício arbitrário do poder no seio da administração. Se a forma de um Estado, internamente, é a de um todo autossuficiente, externamente, em relação aos outros Estados, ele se comporta como um ente privado. O

19

É neste sentido que podemos dizer que “ao querer o que lhe foi sugerido pelos seus subordinados, o rei está ‘pondo’ as ‘pressuposições’ de sua própria identidade e ação. É neste ato que o Estado se torna um sistema autogerador [self-positing], uma instância do próprio Conceito” (REDDING, 1996, p. 230). Isto é, os pressupostos do Estado são definidos retroativamente, quando o movimento da Eticidade já estiver completo.

44 direito internacional é um direito privado, em função de suas partes não estarem submetidas a nenhuma autoridade superior. A única lei dessa ordem jurídica, portanto, é a de que os tratados internacionais, a forma própria do acordo de vontades entre Estados, sejam cumpridos (PhR, §333). Os Estados, neste nível, também têm reivindicações de reconhecimento de outros Estados, e na verdade dependem do reconhecimento de outros Estados soberanos para que também se constituam como tais. A falta ou falha nesse reconhecimento, dada a ausência de uma instância ética superior, implica na possibilidade de resolução dos conflitos através da guerra. Hegel, em comento da proposta kantiana da Liga das Nações, entende que uma entidade do tipo só seria possível com a manifestação de vontade dos Estados, que, por dependerem de moralidades particulares, “estaria infectada pela contingência” (PhR, §333, Remark). A unidade do Estado internamente e sua relação com outros Estados são momentos de sua explicação, mas não a esgotam. Um terceiro momento do Estado, e último da Filosofia do Direito, é a explicitação da História Universal. O Estado, em si, é um fim, um todo completo e autossuficiente. Entretanto, interage com outros Estados na esfera internacional, o que indica que o desdobramento dialético da ideia de liberdade não está absolutamente concluído. Aquilo que era “Espírito do povo” no nível interno ao Estado, se torna “Espírito do tempo” no nível mundial, ou universal. Com o Estado, temos o fim, o ápice do Espírito Objetivo. Este momento, porém, não diz respeito a todo o universo cultural de um povo, como lembra Marcuse (1955, p. 178), senão um domínio ainda incompleto do movimento do Espírito. Ainda está por vir, em seu movimento dialético, as esferas mais altas da verdade: a arte, a religião e a filosofia. O Estado, portanto, por mais perfeito e bem-acabado que possa ser, não é a realidade mais alta do sistema de Hegel. “Nem a deificação mais empática de Hegel do Estado pode suprimir essa subordinação do Espírito Objetivo ao Espírito Absoluto, da verdade política à verdade filosófica” (MARCUSE, 1955, p. 178).

45 2

CONTEXTOS E PRODUTOS DO RECONHECIMENTO

A filosofia hegeliana pode ser vista, como Habermas a definiu, como um “contradiscurso da modernidade” (HABERMAS, 1987, p. 295 apud WILLIAMS, 1997, p. 14), no sentido de oferecer uma alternativa, através do conceito de reconhecimento recíproco, ao modo de pensar centrado no sujeito individual característico da modernidade. O reconhecimento hegeliano pensa o todo a partir da relação do eu com o outro, concebendo um conceito de liberdade sempre de forma situada, em relação às relações e instituições que se dão no mundo. O objetivo geral deste trabalho é apresentar uma concepção intersubjetiva de direito, ou seja, um direito calcado na ideia de reconhecimento recíproco como seu processo formador e garantidor. A preferência pela manutenção de uma apresentação “linear” dos momentos da Fenomenologia e da Filosofia do Direito, feita no primeiro capítulo, pode não ter dado a devida atenção a uma necessária abordagem mais “analítica” dos conceitos abordados. É o caso, como é comum em Hegel, da parte não poder ser compreendida sem o todo e o todo não poder ser compreendido sem a parte. É para uma maior compreensão do que já foi abordado e para um refino conceitual que servirá de base para o que desenvolverei neste capítulo, em que meu objetivo é explicitar o que se entende por reconhecimento, a partir da análise de seus elementos constitutivos, de como ele acontece e de seus produtos. No item 2.1, discuto alguns conceitos centrais na exposição que se deu anteriormente: a consciência, o Espírito e a vontade. No item 2.2, busco explicar com se dá a formação de um “nós” a partir de seus “eus” constitutivos e como é possível a pertença simultânea de cada um desses momentos um no outro, demonstrando a possibilidade de conciliar-se individualidade e pertença social. No item 2.3, exponho diversas classificações quanto à questão do reconhecimento no que toca a suas dimensões e tipos, o que será relevante para o que se desenvolverá posteriormente no terceiro capítulo. No item 2.4, busco situar a posição de Hegel na clássica divisão jusnaturalismo–juspositivismo. Por fim, no item 2.5, apresento maneiras como o conceito de reconhecimento recíproco foi usado como categoria política, sobretudo nas discussões sobre justiça, tomando como exemplo as apropriações hegelianas de que se serviram Charles Taylor e Nancy Fraser. O objetivo do capítulo é servir de subsídio para uma transposição da discussão sobre o reconhecimento recíproco da filosofia política para a filosofia do direito; de categoria política para categoria jurídica, o que se proporá no terceiro capítulo.

46 2.1

CONSCIÊNCIA, ESPÍRITO E VONTADE

Para que compreendamos o significado que o reconhecimento toma na obra hegeliana, é necessário que se explicite o significado de alguns conceitos-chave e o papel que eles assumem no decorrer do sistema. Dentro do sistema de Hegel, é difícil entender o todo sem entender as partes; da mesma forma é entender as partes sem entender o todo. Por essa razão, optei, no primeiro capítulo, por uma metodologia que mantivesse a fluidez tanto da Fenomenologia quanto da Filosofia do Direito, para, posteriormente, abordar e explicitar individualmente os conceitos possivelmente problemáticos. Tal explicitação será feita nesta seção, que busca traçar balizas conceituais para interpretação dos conceitos de (i) Espírito, (ii) consciência (e auto-consciência) e (iii) vontade. Hegel é conhecido pela sistematização que fez das ciências, dividindo-as de forma tripartite entre a lógica, a natureza, e o Espírito. Essa divisão, como sistema, foi melhor apresentada em sua Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Conceitualmente, a lógica aparece por primeiro, tendo como objeto não apenas o próprio pensamento, mas o próprio ser. Opera dialeticamente e conceitualmente, numa explicação que parte das ideias de ser e nada (conceitos sem pressupostos) e chega até a ideia absoluta. No sistema da filosofia da natureza, Hegel trata da esfera da realidade efetiva, e procura demonstrar a racionalidade por trás dela. Finalmente, a filosofia do Espírito, terceira parte do sistema, tratará, em suma, da liberdade. (i) O Espírito é a forma que Hegel encontrou para dar conta do sujeito livre, no conhecimento das coisas, na interação social, e no saber absoluto. O Espírito, em seu desenvolvimento, compreende também três momentos: o Espírito Subjetivo, onde se apresenta como relação consigo mesmo, dentro de cujo locus está a Fenomenologia do Espírito, que tratará especificamente das condições e etapas de explicitação da consciência— num primeiro momento consciência das coisas e, em seguida, de si, até a culminação na razão; o Espírito Objetivo, ou Filosofia do Direito, que apresenta as formas de sua relação com o mundo e de concretização de sua essência, a liberdade; e, por fim, a síntese dialética dos momentos anteriores, do Espírito Subjetivo e do Espírito Objetivo: o Espírito Absoluto, que compreende as formas superiores do saber: a Arte, a Religião e a Filosofia. O seguinte organograma ajuda a posicionar conceitualmente cada parte do sistema e salienta os dois momentos de especial atenção deste trabalho, a Fenomenologia do Espírito e a Filosofia do Direito:

47

Sistema das Ciências Filosóficas

1 Lógica

2 Natureza

3.1 Espírito Subjetivo

3 Espírito

3.2 Espírito Objetivo (Filosofia do Direito)

3.3 Espírito Absoluto

Consciência (Fenomenologia do Espírito) Fonte: Elaboração minha a partir de Enc.

O conceito de Espírito, ou Geist, em Hegel, está ligado ao sujeito de seu sistema, ou, poderíamos dizer, ao sujeito da história. Como o centro da filosofia não é o indivíduo— quer dizer, sua filosofia não parte do sujeito individual—o sujeito de seu sistema é suprapessoal. O Espírito é a estrutura intersubjetiva que age no mundo. Não se trata de uma concepção religiosa de um ser superior, senão a forma que toma a concatenação de reconhecimentos intersubjetivos que se dão no mundo. Trata-se da forma com que podemos falar de um povo, uma comunidade, uma sociedade, sem nos referirmos à particularidade de cada indivíduo. Não se trata, porém, de uma concepção que arrase com o sujeito individual; pelo contrário, o Espírito só é em sua manifestação, só existe quando há pessoas que o corporifiquem, quando é determinado. O Espírito não é nem o isolamento radical do indivíduo, nem a sua completa subsunção num todo totalitário. Nesse sentido, diz Redding (1996, p. 114), “essa estrutura circular não pode ser entendida de forma abstrata nem atomisticamente, nem holisticamente. Também não é o caso de que o ‘nós’ resulte da combinação de ‘eus’ concebíveis independentemente, nem o caso de que os ‘eus’ são meras partes derivativas do ‘nós’ auto-subsistente”. Este talvez seja o ponto onde mais claramente possa se notar que Hegel foi o “pai dos comunitaristas”.1 Como explicar que eu faço parte de um mesmo todo que Pero Vaz de Caminha, Sepé Tiaraju ou Anita Garibaldi, por exemplo, se não os conheci pessoalmente, nunca interagimos diretamente, não fomos contemporâneos? Ao revolver o centro da filosofia do sujeito individual para o Espírito (de um povo, do tempo etc.), essas questões não mais importam. Quando o foco passa a ser comunidade, não o indivíduo, o fato de que 1

Frase do Professor Thadeu Weber.

48 a experiência direta não foi vivida por mim, mas por outra pessoa, é secundário, já que aquelas pessoas integram a mesma comunidade que eu. Aqueles fatos “podem ser comunicados a mim através da linguagem e da cultura que me unem aos outros” (REDDING, 1996). O Espírito Objetivo é a forma de compreender a totalidade de interações intersubjetivas que se dão no desenvolvimento do conceito de direito—a ideia de liberdade.2 O Estado, totalidade ética, é um todo completo dentro do Espírito Objetivo. Não é o final do sistema, porém. Além dele há o Espírito Absoluto, nas formas mais elevadas de conhecimento: a Arte, a Religião e a Filosofia. O agente da filosofia hegeliana não é o sujeito individualizado do cogito, mas uma entidade suprapessoal que une os indivíduos e se determina através deles. Se o foco passa do sujeito individual para uma entidade como o Espírito, então—e, ao mesmo tempo, como entendo, não se advoga por um organicismo totalitário, que suprima a particularidade— Hegel precisa dar conta do sujeito individual e do conhecer-se a si mesmo. Esse sujeito individual será a consciência-de-si. (ii) Na Fenomenologia do Espírito, Hegel procurou demonstrar, inicialmente, como uma consciência, esse sujeito individual, toma conhecimento das coisas exteriores a si. Num segundo momento, o foco é explicar como funciona o processo pelo qual uma consciência passa a conhecer não objetos exteriores, mas a si mesma, tornando-se consciência-de-si. Essa experiência da consciência se dá de forma fenomenológica— determina-se na medida e a partir de seu desenvolvimento (cf. FdE, §85).3 Até o momento da consciência-de-si, em que a consciência tem a si mesma como objeto, ela se via como sujeito contemplativo do mundo ao seu redor. Esse cenário se altera quando passa a ter a si mesma como objeto, momento em que demonstra que mais do que espectadora do mundo, a consciência é formadora, constituinte do mundo em que faz parte. “Uma vez que esse ‘mito 2

3

Wilhelm Dilthey entende que Hegel, com sua noção de Espírito Objetivo, apresentou a formulação mais explícita da concepção de realidade social implícita na escola hermenêuticohistórica alemã (REDDING, 1996, p. 166). Redding (1996, p. 83) sugere, didaticamente, que a explicitação (hermenêutica) da consciência-desi da Fenomenologia pode ser interpretada da melhor forma por nós, leitores, se nos colocarmos no papel de espectadores de uma peça de teatro (certamente Beckettiana) que tenha como personagem principal a consciência, onde vemos no palco, antes de mais nada, a própria consciência, talvez representada como uma boca, ou apenas uma voz desencarnada, “pensando alto, tentando capturar a certeza do ‘aqui’ e ‘agora’”, onde posteriormente, à medida que vai conhecendo, o cenário passa a se completar, aparecendo personagens distintos com quem a consciência interagirá, surgindo as formas de vida e os momentos históricos. Onde os conceitos vão se determinando na medida em que aparecem e são conhecidos, enquanto nosso papel como observadores é de apenas “observar” esse desdobramento.

49 do dado’ [myth of the given] é eliminado”, diz Redding, “a consciência agora se torna ‘autoconsciência’, reinterpreta a natureza como seu objeto de perscrutação, e começa novamente” (1996, p. 83). Como conceito com que Hegel trabalhará a noção de indivíduo, a consciência-de-si tem sua constituição a partir de quando perscruta o mundo a seu redor e, como demonstrado na dialética do senhor e do escravo, se depara com outra consciência-de-si. Isto é, “para a estrutura da auto-consciência existir, suas formas internas e mediadoras da consciência devem tomar como ‘objeto’ nada menos que outra auto-consciência” (REDDING, 1996, p. 106). Isso quer dizer que mesmo o conceito usado para se dar conta da individualidade, a consciência-de-si, tem sua origem na relação com o outro, através de dinâmicas de reconhecimento recíproco já explicitadas. O fim de uma consciência-de-si, portanto, é outra consciência-de-si. Sua constituição se dá na relação com o outro. E na medida em que temos uma relação em que ambas as consciências são “eus”, sujeitos, e “outro”, objetos, uma para a outra, já estamos diante, diz Redding, do conceito de Espírito. A consciência, portanto, pode ser conceituada como a forma que toma o Espírito quando opera subjetivamente (lembrando que subjetividade em Hegel é intersubjetividade). Na relação de consciências-de-si, temos uma forma de Espírito. O que falta às consciências-de-si ainda, porém, é descobrir o que esse Espírito é: “a unidade de diferentes e independentes consciências-de-si, que, em sua oposição, gozam de perfeita liberdade e independência: um ‘Eu’ que é ‘Nós’ e um ‘Nós’ que é ‘Eu’” (REDDING, 1996, p. 113) (iii) O terceiro conceito que julgo merecer explicação é o da vontade, observado sobretudo nas dinâmicas que têm lugar na Filosofia do Direito, e tratado como “vontade livre”. A Filosofia do Direito se apresenta como uma espécie de fenomenologia da vontade livre, ou seja, como uma exposição ou desdobramento das formas através das quais o Espírito opera objetivamente, quer dizer, de forma interindividual, nas instituições e na história. Enquanto a consciência é a forma subjetiva do Espírito, a vontade é sua forma objetiva—ou prática, em oposição a teórica, como prefere Steven Smith (1989). O conceito de vontade, como não poderia ser diferente, na ontologia relacional hegeliana, não nasce a partir de uma individualidade atomística, senão num contexto onde as vontades são múltiplas. O surgimento da vontade, por paradoxal que possa parecer, tem seu lugar apenas quando da interação intersubjetiva, entre dois “eus” que formam um “nós”. Poderíamos dizer que enquanto a interação no plano da Fenomenologia do Espírito dá forma à consciência-de-si, a interação na Filosofia do Direito dá forma à vontade. Como explica

50 Smith, “a vontade não é algo anterior a sua ação, ou—colocando de outra forma—uma pessoa não pode ser totalmente desvinculada dos tipos de responsabilidades e escolhas que fez, porém está sempre incorporada em um mundo ‘objetivo’ de instituições políticas e jurídicas, que atingem sua fruição na ideia do Estado” (SMITH, 1989). 2.2

O MESMO E O OUTRO

As “dinâmicas de reconhecimento” que se dão no decorrer do desenvolvimento, ou desdobramento, do Espírito (a luta do senhor e do escravo, a constituição da pessoa de direito, a pertença à família, a cidadania etc.) têm origem na interação interindividual. O “nós” que se forma com a união dos “eus” é superior a cada uma das partes, mas ao mesmo tempo conserva a particularidade de cada uma delas. Como é possível que isso aconteça? A leitura da Fenomenologia do Espírito deu margem a interpretações parciais que priorizaram, de um lado, o caráter identitário que assumem as partes na luta, uma em relação à outra, e, de outro, a diferença e oposição entre os lutadores. A primeira, tendente a ver a relação como supressora de qualquer alteridade, com o sujeito “auto-reflexivo” subordinando o outro a si mesmo, sem diferença; a segunda, de forma oposta, priorizando sobretudo a diferença, a despeito da identidade. Total diferença e total identidade, porém, são formas opostas e parciais de se ver o todo que é um processo de reconhecimento recíproco. Não há diálogo em cada um desses extremos. Não há troca. De um lado, por não haver qualquer “base comum” sobre o qual uma troca possa acontecer. De outro, pelo diálogo se tornar um monólogo, com o “eu” e o “outro” sendo totalmente engolidos pelo “nós” (REDDING 1996, p. 46). Diz Williams a esse respeito: A análise deve focar na diferença entre o eu e o outro [difference of self and other] e, nessa diferença, na identidade e união. É fácil errar ao focar-se na diferença, excluindo-se a identidade [...], e na identidade, excluindo-se a diferença [...]. Deve-se atentar tanto à diferença entre o eu e o outro quanto a sua identidade nessa diferenciação. Mas por que é necessária essa atenção aos significados dúplices? [...] O motivo é que não apenas subjetividade, mas intersubjetividade está em jogo [...]. A paradoxal dialética da intersubjetividade significa que ‘cada um dos dois contém a totalidade da relação’ (WILLIAMS, 1997, p. 50-51).

A chave, dessa forma, está em entender que as relações de reconhecimento recíproco, sobretudo aquela epitomada na luta do senhor e do escravo, são constitutivas de uma forma de identidade que dá conta, ao mesmo tempo, de preservar a diferença. Na luta,

51 “cada um [...] é igual a—e ao mesmo tempo o mesmo que—o outro, mas somente em oposição ao outro” (HEGEL, 1987, p. 192). Essa “diferença identitária”, ou “identidade diferencial” oriunda de dois “eus” produzirá, então, um “nós”—de dois particulares surgirá um universal. Veja-se que não é o caso de se compreender que um indivíduo existente como tal passa a fazer parte de um “nós” a partir de quando se submete a uma dinâmica de reconhecimento. O caso seria de que a própria noção de indivíduo só surgirá depois de tal dinâmica. Em outras palavras, o “nós” gera o próprio “eu” (o indivíduo), seu pressuposto, de forma retroativa. “O reconhecimento não é um ato que é simplesmente o ato de um sujeito préexistente. Ao ser um ato que constitui o outro de uma forma determinada, e sendo necessariamente recíproco, é um ato que simultaneamente constitui o agente como tal” (REDDING, 1996, p. 16). Essa é a concepção de reconhecimento como personalidade. A pessoa do direito se determina a partir dessa dinâmica. Hyppolite coloca nos seguintes termos: “O indivíduo é uma abstração, a verdadeira unidade, quando plenamente desenvolvida, é o povo” (HYPPOLITE, 1988, p. 17). Da mesma forma que o Estado, culminação da Eticidade, “põe” seus pressupostos (suas formas não completamente desenvolvidas), o “todo” põe seus pressupostos, o indivíduo particular, a pessoa. Aparece novamente, então, a questão: como se explica que o particular não seja “engolido” pelo universal, e que este seja formado num processo que conserve aquele? O indivíduo é anterior ou posterior ao todo? Menor ou maior que ele? No plano social, ou político, o problema se põe na forma da tentativa de conciliar o indivíduo, de um lado, com a sociedade civil e o Estado, de outro. Desde o século XVI, aponta Hyppolite (1988, p. 95), a concepção de indivíduo que se desenvolvia era sempre deste em oposição às instituições públicas, em oposição ao Estado. O “público”, nessa concepção paradigmática, se punha como uma limitação à liberdade individual, não, como Hegel propunha, uma forma de efetivá-la. Nesse sentido, diz Hegel, nada se tornou mais ordinário do que a ideia de que cada qual deva limitar sua liberdade em relação à liberdade dos outros; e que o Estado seja a condição em que tem lugar tal limitação recíproca, e as leis sejam os limites. Neste modo de ver, a liberdade é concebida apenas como um capricho acidental e um arbítrio (Enc., §539, A).

A solução que Hegel deu para essa questão passa por sustentar que é possível que as pessoas efetivem sua liberdade tanto como indivíduos quanto como membros de um todo

52 social.4 O argumento central é de que os indivíduos são essencialmente sociais, sendo a própria concepção de individualidade formada a partir da interação interindividual, através das dinâmicas de reconhecimento recíproco. Hardimon (1994) propõe a análise do problema a partir de uma distinção conceitual entre individualidade num sentido mínimo e num sentido forte. O primeiro, em sentido mínimo, diz respeito à concepção que um indivíduo tem de si mesmo como distinto de outros—sei que eu sou um indivíduo a partir de quando sei que não sou outro indivíduo; tenho características que são próprias a mim. O segundo, em sentido forte, envolve a concepção de individualidade no sentido fraco somada a uma concepção de si como (i) mesmo (self), (ii) portador de interesses divisíveis e particulares, (iii) possuidor de direitos individuais e (iv) sujeito de consciência. Hegel sustenta que a concepção de indivíduo da modernidade é uma concepção de indivíduo no sentido forte, pois, de acordo com ela, (i) as pessoas são capazes de abstrair de seu papel social e relacionar-se consigo mesmas de forma reflexiva, (ii) são capazes de discernir seus interesses pessoais dos interesses de outras pessoas ou de sua comunidade, ou família; (iii) são capazes de compreender seus direitos como independentes de qualquer papel ou posição social que possam cumprir ou assumir e (iv) são capazes de ver a si mesmas como fontes independentes de juízos morais. A diferença principal entre a concepção moderna de individualidade e a concepção de individualidade antiga está no fato de que a partir daquela, moderna, entende-se a pessoa como ente apartado de seu papel social, ou, melhor, seus papeis ou posições sociais são vistos como tais, papeis e posições, não mais como elementos constitutivos da personalidade, como era o caso dos tempos pré-modernos de forma geral. A partir dessa concepção de individualidade, moderna, o indivíduo pode manter uma relação autoreflexiva consigo. Hegel concebe o indivíduo como ser essencialmente social, no sentido de que a satisfação tanto das necessidades e desejos biológicos, sociais e culturais quanto das capacidades humanas, como pensamento e linguagem, é atingida através da interação social. Indivíduos são manifestações do Espírito e, por esse motivo, têm sua origem (conceitualmente, é claro) na sociedade e na cultura.5 Hegel procura demonstrar que a 4

5

A explicação que segue é baseada na abordagem e nas categorias propostas em HARDIMON, 1994, sobretudo no capítulo 5—Individuality and Social Membership. Interessante notar que, apesar de Hegel ter sido central para o desenvolvimento das teorias comunitaristas contemporâneas, sua concepção de pertença social diverge da comunitarista. A ideia comunitarista de indivíduo, se pudéssemos resumir de forma simples, pressupõe que o indivíduo não pode se desvincular dos papeis sociais que interpreta e da posição social que ocupa. ...

53 individualidade é compatível com a pertença social. Porém, de um lado, temos a noção de que o indivíduo é concebido socialmente; de outro, de que é capaz de abstrair da posição social que ocupa. Como seria possível conciliar as duas? A solução, aponta Hardimon, está em entender a relação através da ideia de identificação reflexiva. O indivíduo pode compreender-se em termos dos papeis sociais que desempenha, porém o faz entendendo-os como tais, como papeis, desempenhados por um self independente: A identificação reflexiva, como Hegel a concebe, é uma forma de identificação porque envolve conceber a si mesmo em termos de seus papeis [sociais] [...]. A identificação reflexiva é reflexiva por proceder através do ato reflexivo de ‘dar um passo atrás’ em relação ao papel social e avaliá-lo. [...] Identificar-se com seus papeis sociais é identificar-se com eles como um self. A identificação reflexiva então fornece um meio (Hegel diria o meio) de unir o espaço entre o self e seus papeis, que é aberto pelo ato reflexivo da abstração (HARDIMON, 1994, p. 166-167).

A individualidade, diz Hardimon, interpretando Hegel, não é apenas compatível com a pertença social, mas a tem como pressuposto de existência. Significa dizer que a concepção moderna de indivíduo no sentido forte é produto da interação de pessoas, com interesses e vontades particulares, na seara social. Não há uma oposição entre agir como indivíduo e como membro da sociedade; na interação intersubjetiva, o indivíduo age como indivíduo. Individualidade e “socialidade” se imbricam mutuamente. Individualidade no sentido completo passa por ser membro de uma família, burguês de uma sociedade civil e cidadão de um Estado. Ao mesmo tempo, perceba-se, a dimensão individual da pertença social inclui necessariamente os papeis de membro da família, burguês de uma sociedade civil, e cidadão de um Estado. Nenhum desses aspectos da efetivação do Espírito Objetivo subsiste por si só, nem suprime ou limita o outro. “A individualidade”, diz Hegel, “é a unidade da particularidade com a universalidade” (PhR, §7, Remark). 2.3

À GUISA DE UMA CLASSIFICAÇÃO

O conceito de reconhecimento recíproco deu frutos na filosofia social e política pós-Hegel, como se verá no item 2.5 deste trabalho. Por ter se tornado conceito central na discussão da

A pertença social é essência do indivíduo. Hegel, por outro lado, é advogado da concepção de indivíduo em sentido forte, segundo a qual o indivíduo pode ter uma relação auto-reflexiva consigo mesmo, mesmo sendo “social” em sua origem.

54 justiça e da concepção de pessoa, foi objeto de vários estudos que propunham uma ou outra forma de sua conceituação e classificação. Neste item, o objetivo será apresentar algumas dessas propostas de classificação e clarificação, a fim de conferir rigor semântico ao conceito de direito que investigarei no capítulo 3. Exporei, num primeiro momento, dimensões e elementos constitutivos das “dinâmicas de reconhecimento” e, em seguida, níveis e tipos do fenômeno. Ludwig Siep distingue quatro dimensões distintas do reconhecimento:6 (i) autonomia, (ii) união, (iii) auto-superação e (iv) liberação. (i) A primeira, autonomia, diz respeito à ruptura com a determinação natural que o reconhecimento traz ao sujeito. É independência de qualquer coação oriunda de uma lei externa à própria razão, como inclinações, paixões, a lei positiva etc. Da mesma forma que para Kant, autonomia é para Hegel entendida como independência de influências exteriores. Diferentemente de Kant, porém, para Hegel essa autonomia só pode ser alcançada no seio de uma comunidade ética, sendo social e intersubjetiva por essência. (ii) Por união (Vereinigung), ou associação, se define a consequência, trazida pelo reconhecimento, de o outro deixar de ser um limite ou impedimento à minha liberdade. A liberdade passa a ser vista não em oposição ao outro, mas como construção conjunta. Não se entende o conceito como fusão completa, mas como relação, ou relacionamento. “Na união com o outro os limites que separam o self do outro—seja o outro, a comunidade ou a natureza—são ao mesmo tempo preservados e superados” (WILLIAMS, 1997, p. 81). Um exemplo onde é saliente o elemento união é o amor, onde não se produz uma fusão e absorção de um pelo outro, mas conserva-se a particularidade e supera-se o conflito, o estranhamento. A união não contradiz a autonomia. Para Hegel, a união intersubjetiva é, pelo contrário, condição para a autonomia. (iii) Auto-superação (Selbstüberwindung) é a sucessão da união. Trata-se, dentro do movimento dialético, da Aufhebung da imediatidade do indivíduo. “O outro supera os limites do individualismo restrito [narrow individualism], desabsolutiza e relativiza a si” (WILLIAMS, 1997, p. 82). Nesta dimensão, o outro faz com que o self deixe de se conceber de maneira solipsista e individualista, ou auto-interessada (selbstsüchtig). Ao me relacionar com o outro, me relaciono comigo mesmo, ao mesmo tempo em que ao me relacionar comigo, me relaciono com o outro. O próprio conceito de si mesmo, ou de self, é alargado.

6

A classificação que segue tem origem em SIEP, 1992, através da leitura de WILLIAMS, 1997.

55 (iv) Por fim, o movimento de liberação, dimensão final do processo de reconhecimento. Diz respeito a “deixar o outro livre”, de uma parte considerar a outra como tal, reconhecendo sua alteridade. Negativamente, é a renúncia de qualquer tentativa de controle sobre o outro; positivamente, é afirmar o outro da forma como ele se determina (WILLIAMS, 1997, p. 84). É o momento final de uma dinâmica de reconhecimento recíproco, principalmente notada na dialética do senhor e do escravo. Neste momento consuma-se a transfiguração dos “eus” em “nós”, sem que se subsuma um no outro. Essas dimensões, ou momentos, salientam o caráter processual do reconhecimento. Não se trata de uma estrutura estanque, mas de um movimento contínuo. Esse movimento, como visto no primeiro capítulo, se manifesta como forma de concretização da liberdade, seu telos, em diferentes esferas: na família, na propriedade, no contrato, nas corporações, no Estado (cf. WILLIAMS, 1997, p. 20-21). Para Allen Wood (1990, p. 90-91), em sua abordagem “analítica” do fenômeno, são quatro as teses centrais hegelianas a respeito do reconhecimento, que tomam a forma do esqueleto da Fenomenologia do Espírito: (i) a subjetividade (selfhood) envolve o desejo pela certeza-de-si

(self-certainty);

(ii)

a

certeza-de-si

requer

o

reconhecimento;

(iii)

reconhecimento unilateral, ou parcial, não é suficiente para a satisfação do desejo da certeza-de-si; e (iv) o reconhecimento através de uma auto-consciência universal requer uma comunidade de pessoas que se relacionem umas com as outras através de relações de direito abstrato. Redding compreende essa “narrativa” seria análoga as encontradas nas teorias contratualistas tradicionais: No centro dessa teoria está uma série de teses ‘antropológicas’ a respeito de um impulso [drive] humano fundamental e das condições de seu desenvolvimento e satisfação. Esse impulso é o impulso pela certeza-de-si [self-certainty], que representa um papel análogo àquele cumprido pelo impulso de sobrevivência na teoria política hobbeseana [...] Esse impulso só pode ser satisfeito dentro de um contexto de relações recognitivas intersubjetivas, e é essa combinação que permite que a teoria de Hegel seja sensível à história e à cultura na forma que teorias mais tradicionais de naturalismo ético não foram. Mas essa sensibilidade não é adotada a troco do relativismo, já que as relações sociais de diferentes épocas e culturas satisfazem de forma maior ou menor o impulso humano pela certeza-de-si (REDDING, 1996, p. 234, nota 21).

Quanto aos níveis (Stufen) em que o reconhecimento pode se dar, Ludwig Siep distingue dois: (i) entre indivíduos diretamente (ou entre “eus”), através de relações como a do amor, do casamento e da família; e (ii) entre indivíduos e instituições (ou entre um “eu” e um “nós”) (WILLIAMS, 1997, p. 20). Dentro do primeiro tipo, do reconhecimento entre

56 indivíduos, distinguem-se ainda dois tipos: primeiro, uma forma de reconhecimento que acontece com uma espécie de convergência ou união de vontades, o amor; e a forma que reflete uma oposição e conflito de vontades, a luta.7 O segundo nível, entre indivíduos e instituições, diz respeito a uma concepção normativa teleológica de como devem se organizar as instituições sociais. Segundo Hegel, o indivíduo deve se reconhecer nas instituições e as instituições devem funcionar de forma que isso aconteça. O processo é teleológico porque parte de uma situação de falta de liberdade até o máximo atingimento da liberdade, através das instituições—partindo da família e culminando no Estado. O objetivo de Hegel é determinar a existência das instituições a partir do próprio conceito de liberdade, como condições da realização da liberdade no mundo (WILLIAMS, 1997, p. 21). O primeiro nível de reconhecimento entre “eus” foi essencial para a formação de uma concepção de pessoa, ou indivíduo, alternativa à tradicional da modernidade. O segundo nível, entre um “eu” e um “nós”, será relevante para as discussões sobre a fundamentação do direito, que segue essa lógica. Ikäheimo e Laitinen (2007, p. 34-36), situados numa discussão inaugurada pela filosofia do reconhecimento de Honneth, propõem uma distinção classificatória tripartida das possibilidades de reconhecimento. De acordo com os autores, o reconhecimento pode ser entendido como (i) identificação, como (ii) confirmação (acknowledgement), ou como (iii) reconhecimento em sentido estrito. Todos os três casos funcionam a partir do modelo “A considerando B como X”. Sob o termo (i) identificação restam quaisquer coisas que podem ser identificadas quantitativa e qualitativamente por um agente de forma genérica. (ii) Acknowledgement diz respeito exclusivamente a entidades normativas: regras, leis, princípios, valores etc. A valoração a qual diz respeito o reconhecimento nesta possibilidade pode ser no sentido de tomar a entidade normativa como “válida”, “correta”, “boa”, “adequada” etc. E, finalmente, como (iii) reconhecimento em sentido estrito, que só pode ser exercido em face de, ou perante, pessoas, em relações, por exemplo, de amor, respeito e estima. Ikäheimo e Laitinen propõem que, segundo o esquema “A considerar B como X”, o conteúdo, ou o “X”, do reconhecimento em sentido estrito é o conceito de “pessoa”.

7

Interessantemente, Siep entende que a luta pelo reconhecimento, da forma como é narrada na dialética do senhor e do escravo, não começa propriamente com uma luta. O momento inicial, diz, está no self se ver como exterior a si mesmo, e buscar essa reconciliação consigo no outro. A dinâmica inicial da luta pelo reconhecimento, portanto, não é de luta, mas de amor (cf. SIEP, 1974, p. 194 apud WILLIAMS, 1997, p. 20).

57 Portanto, para os autores, a definição de reconhecimento como tal está em “considerar alguém como pessoa, cujo conteúdo seja entendido e cuja consideração seja aceita por outra pessoa” (IKÄHEIMO; LAITINEN, 2007, p. 42). Tal definição parece acertada, sobretudo quanto à noção de que a origem da própria definição de pessoa se dá através do reconhecimento. Poderíamos dizer que não é o caso de uma pessoa reconhecer a outra como tal, ou seja, como pessoa, apenas importando o conceito já acabado para a relação de reconhecimento. Mas sim da relação se dar no nível de agentes (ou lutadores) que dispendem um determinado tratamento em relação um ao outro. Esse tratamento será responsável por, retroativamente, conferir a cada uma das partes da relação o status de pessoa. A forma como um agente trata o outro será, da mesma forma, retroativamente determinada como reconhecimento da personalidade. 2.4

HEGEL, JUSNATURALISMO E JUSPOSITIVISMO

Uma compreensão de direito em Hegel calcada na ideia de reconhecimento recíproco teria um viés jusnaturalista ou juspositivista? O próprio Hegel é um jusnaturalista ou um juspositivista? As categorias de positivismo e naturalismo são bastante caras ao estudo do direito, sobretudo no Brasil, e dizem respeito, como as entendo, à discussão sobre o locus da norma jurídica: para os jusnaturalistas, o direito está na lei natural, conhecida pela razão ou por providência metafísica; para os positivistas, na lei positiva, promulgada por um poder legitimado para tanto. Talvez o texto mais esclarecedor para tentarmos posicionar Hegel no contínuo “juspositivismo–jusnaturalismo” (isto é, dentro ou fora dele), seja seu ensaio do período de Jena As Maneiras de Tratar Cientificamente do Direito Natural (HEGEL, 1972). Neste ensaio, Hegel sustenta que a utilização de artifícios da razão como o “estado de natureza”, caro às doutrinas jusnaturalistas, resulta sempre em uma petitio principii, ou seja, a visão normativa das pessoas e da sociedade que tais doutrinas buscam justificar é justamente aquela que acabam por pressupor. Teóricos jusnaturalistas—Hobbes, Locke, Grócio, por exemplo—se valem da abstração do estado de natureza, situação pré-social hipotética, a partir da qual são deduzidas as qualidades da natureza humana. Para Hegel, ao abstraírem da vida social e das comunidades éticas historicamente constituídas, tais autores estão separando de forma arbitrária e não justificada o que consideram inerente e constitutivo da natureza humana daquilo que veem como acidental, porque advindo da tradição, dos costumes etc. (cf.

58 BENHABIB, 1986, p. 24). Por não haver explicitação do motivo pelo qual se separa o “necessário” do “acidental”, o jusnaturalismo se torna um dogmatismo. O argumento sistemático de Hegel contra as teorias do direito natural pode ser posto da seguinte forma, como sintetizado por Seyla Benhabib: Se uma teoria começa se valendo de uma abstração contrafactual, o teórico deve possuir critérios à luz dos quais determinados aspectos da condição humana são ignorados enquanto outros são incluídos na abstração inicial. Porém, quaisquer critérios do tipo seriam normativos, pois dependeriam do que o teórico considera aspectos essenciais ou não essenciais da natureza humana. Quando se examina os critérios normativos com que se opera nas teorias do direito natural, percebe-se que cada a priori é na verdade um a posteriori, ou a forma como os humanos são na sociedade burguesa moderna é o critério que serve de lastro para se determinar como eles devem ser ou podem ter sido no estado de natureza. A abstração contra factual inicial da qual o teórico parte não justifica, mas somente ilustra, o conceito de natureza humana e razão aos quais ele subscreve (BENHABIB, 1986, p. 25).

Em suma, aquilo que surge da interação intersubjetiva e do reconhecimento recíproco é reduzido a uma “necessidade da psicologia” (BENHABIB, 1986, p. 25); o advindo da formação cultural de um povo, de sua cultura (Bildung), é relegado a um plano do acidente, não constitutivo da natureza humana. A crítica se dirige tanto ao empirismo científico, como o do tipo hobbesiano, por conduzir sempre à oposição entre Estado e natureza, quanto ao idealismo kantiano e fichteano, por acabar separando o universal de qualquer determinação empírica (HYPPOLITE, 1988, p. 67-68). Apesar de sua dura crítica às categorias de pensamento desenvolvidas pelos jusnaturalistas, Hegel não pode ser visto como a antítese das doutrinas do direito natural. Como aponta Bobbio, essa antítese está não em Hegel, mas na Escola Histórica, notadamente em seu contemporâneo Friedrich Carl von Savigny. Apesar de ambos se valerem do conceito de Espírito do Povo (Volksgeist) na justificação do direito, o fazem de maneiras distintas. O historicismo da Escola Histórica é uma justificação do que está dado historicamente, uma positivação exclusivamente retrospectiva (cf. KUTNER, 1972), e, nesse sentido, irracionalista. O apelo histórico de Hegel, por outro lado, é racionalista (BOBBIO, 1991, p. 27). Segue uma lógica, um telos, que é a determinação do princípio da liberdade. Não é apenas o efetivo que é racional, mas também o racional que é efetivo. O jusnaturalismo, de um lado, e a Escola Histórica, de outro, podem ser vistos como os extremos opostos contra os quais se depara Hegel. Ao considerar que o direito não existe como um a priori em relação ao homem, Hegel avança em relação ao formalismo das

59 doutrinas contratualistas. Ao mesmo tempo, busca não cair numa mera justificação do status quo, como corria o risco a Escola Histórica, sustentando um lastro racional que tornasse possível juízos sobre a justiça ou injustiça da lei positiva. A saída de Hegel, calcada na ideia de totalidade ética—união dos reconhecimentos recíprocos havidos no curso de seu desenvolvimento—se estrutura na forma de “uma razão objetiva que se revela nas instituições históricas” (BOBBIO, 1991, p. 73). O locus do direito não é nem a natureza, tendo como portador o homem, nem no que meramente foi promulgado por uma autoridade legítima a partir dos costumes de uma região. Não é, portanto, nem jusnaturalismo, nem juspositivismo. “Contra a totalidade ética, por fim, entendida como organismo vivo e histórico, terminava por estilhaçar-se o próprio constitutivo de todo sistema de direito natural: a distinção entre direito natural e direito positivo” (BOBBIO, 1991, p. 38). 2.5

JUSTIÇA: RECONHECIMENTO COMO CATEGORIA POLÍTICA

Como pode ter se feito perceber até aqui, o conceito de reconhecimento proposto por Hegel é um manancial para exploração teórica e aplicação em diversas esferas da filosofia moral, social/política e jurídica. Tanto no campo da filosofia moral quanto da filosofia política, discussões sobre reconhecimento ganharam corpo a partir do final do século XX, sobretudo depois dos eventos de maio de 1968 na França e de sua repercussão pelo mundo. O paradigma da justiça redistributiva, então, passa a dar espaço a um conceito de justiça que envolve uma gramática social não apenas de clivagem econômica e de classe, mas que atenta também a questões envolvendo minorias étnicas, colonialismo, gênero e raça. Nesse metiê, o pensamento hegeliano toma lugar de destaque nas discussões mais recentes, especialmente em duas correntes de pensamento. De um lado a Teoria Crítica, sendo Axel Honneth talvez o neohegeliano mais bem sucedido na tarefa de reintegrar o conceito de reconhecimento no campo da teoria da justiça, e, de outro lado, os filósofos comunitaristas, com sua crítica ao liberalismo político, privilegiando as comunidades éticas em relação ao indivíduo singular como sujeito da política e propondo que o Estado promova ativamente ideias de bem. Meu interesse nesta área está principalmente em investigar a forma pela qual a discussão se desenvolve a partir dos conceitos trazidos por Hegel e de que forma o reconhecimento é tratado pelos autores contemporâneos como categoria política, moral e normativa. A ideia é colher subsídios para a proposta de transposição da discussão do campo

60 político para o campo jurídico, discutida no capítulo 3. Por ora, exporei a teoria de dois autores que tratam do tema do reconhecimento como categoria política e buscarei explicitar o uso dos conceitos abordados até agora na obra de cada um deles. O primeiro deles é Charles Taylor, a segunda é Nancy Fraser. 2.5.1 Charles Taylor Charles Taylor, filósofo canadense, além de fazer uma interpretação do texto hegeliano em seu livro Hegel, expõe, em The Politics of Recognition, sua visão própria do conceito de reconhecimento como identidade ou autenticidade. A discussão tem como pano de fundo o caso canadense da província do Québec e das atitudes necessárias do Estado para a manutenção de uma sociedade multicultural que reconheça o direito de um determinado povo à sobrevivência. Taylor vincula a noção de reconhecimento ao nascimento da concepção moderna de “dignidade”, que, com o colapso das hierarquias sociais institucionalizadas, tomou o lugar da antiga noção de “honra” na sociedade. O reconhecimento da importância de um indivíduo não se dá mais em razão de sua posição na sociedade, mas da dignidade inerente a sua condição de pessoa. O reconhecimento, entende Taylor, é essencial para a formação da autenticidade, a ideia de cada indivíduo possuir uma forma particular de ser humano, e da consciência do caráter dialógico da vida: “Nós nos tornamos agentes humanos completos, capazes de compreendermos a nós mesmos, e portanto capazes de definir nossa identidade, através de nossa aquisição de ricas linguagens de expressão [...] por meio da interação com outros. [...] Minha própria identidade depende crucialmente da minha relação dialógica com outros” (TAYLOR, 1994, p. 32-34).8

Postos estes prolegômenos, o autor parte para uma análise contemporânea das dinâmicas de reconhecimento social, notadamente em relação à minoria francófona canadense. São distinguidas duas formas de ação política emergentes no mundo ocidental quanto ao trato de grupos que carecem de reconhecimento. A primeira, que o autor chama de “liberalismo de igual dignidade”, entende que o princípio do igual respeito a todos 8

Taylor adota aqui a teoria desenvolvida por George Mead dos “outros significativos”, segundo a qual as relações dialógicas estabelecidas entre uma pessoa e outra durante o curso de suas vidas é o elemento fundante de suas identidades. Trata-se de uma aplicação dos conceitos de reconhecimento e intersubjetividade ao campo psicológico.

61 requer que as pessoas sejam tratadas de forma “cega às diferenças”, pressupondo a existência de princípios universais que estariam acima de qualquer particularidade cultural. A segunda forma, mais ligada à noção de identidade, preza pelo reconhecimento e inclusive incentivo à particularidade. A crítica da primeira (liberal) à segunda (comunitarista) é de que ela viola o princípio da não-discriminação; A crítica da segunda à primeira é de que ela força as pessoas a um “molde”, uma forma de vida determinada, o que “já seria ruim o suficiente se o molde fosse neutro—o molde de ninguém em particular—”, entretanto, argumenta Taylor, “o rol supostamente neutro de princípios cegos à diferença das políticas de igual dignidade é, na verdade, um reflexo da cultura hegemônica. Dessa forma, somente as culturas minoritárias ou suprimidas seriam forçadas a aceitar uma forma adventícia [de vida]” (TAYLOR, 1994, p. 43). Tratando do caso da minoria francófona do Québec, o autor entende que melhor saída para a preservação da minoria é a aplicação de uma “política da diferença”, que demanda um conhecimento “não neutro” da diferença do grupo social a fim de por em prática procedimentos que assegurariam a sobrevivência da cultura. Taylor salienta que o objetivo aqui não é somente preservar a língua francesa para aqueles que quiserem dispor dela, mas “garantir que haverá uma comunidade de pessoas que, no futuro, irá se valer da oportunidade de usar a língua francesa”. Fica claro que essas políticas não buscam somente a manutenção dos membros já existentes dessa comunidade, mas buscam também ativamente criá-los, para que sirvam de exemplo às futuras gerações que se reconhecerão como francófonas (TAYLOR, 1994, p. 58-9). O movimento de reconhecimento deixa de ser entre sujeitos individuais, como na constituição da consciência-de-si, em Hegel, mas é aplicado entre grupos sociais. Utilizando a tripartição da Eticidade, o devido reconhecimento da particularidade de grupos minoritários se dá tanto a partir de outros grupos sociais como do Estado. O que fica patente do argumento de Taylor quanto ao reconhecimento é seu papel de formador de identidade de grupo. Não basta que se deixe que uma determinada cultura sobreviva; é necessário que ela seja reconhecida na sua particularidade. Taylor retoma Hegel ao lembrar que o reconhecimento de um grupo por outro não pode ser “demandado” por aquele, senão deve ser “orgânico”, mútuo e simultâneo. Um julgamento imediato de um grupo a outro seria essencialmente etnocêntrico, “paroquial”, pois seria pautado pelos padrões do povo que o faz; ou seja, “aceitar-se-ia o outro por ser como nós”. A saída para um reconhecimento efetivo entre grupos sociais seria o que Taylor chama do “embarque no estudo do outro”. Um grupo, para poder fazer um juízo de reconhecimento de outro grupo,

62 deve necessariamente conhecê-lo, pois somente dessa forma, com uma “fusão de padrões”, estaria apto a reconhecer o valor do outro (TAYLOR, 1994, p. 70-3). Apesar de não ficar patente no texto de Taylor, há margem para que se entenda a forma de mediação intergrupal como uma espécie de “luta por reconhecimento”. Neste ponto, Taylor se aproxima de Honneth, principalmente ao considerar a luta como conceito de “auto-realização” (individual ou de grupo), não essencialmente de justiça. 2.5.2 Nancy Fraser Nancy Fraser, filósofa crítica estadunidense, aborda a questão do reconhecimento como dimensão de um conceito amplo de justiça. Ao discutir a temática, notadamente em From Redistribution to Recognition?, ensaio de 1995 publicado na New Left Review e, mais recentemente, retomando o tema em Redistribution or Recognition?, discussão com Axel Honneth que obteve grande repercussão, Nancy Fraser pensa as relações entre o reconhecimento e a redistribuição para a construção de um conceito de justiça. Fraser argumenta que, no mundo contemporâneo, as reivindicações de justiça se dividem em dois tipos: demandas por reconhecimento e por redistribuição, sem que uma se subsuma na outra. A primeira, que reconhece a origem na filosofia hegeliana, é tida como pertencente à ordem ética. A segunda, oriunda principalmente da tradição liberal angloamericana, representada principalmente por John Rawls e Ronald Dworkin, em oposição à primeira, tem a ver com a ordem moral (FRASER, 2003, p. 9-10). Nancy Fraser aborda o tema do reconhecimento a partir de três macroperspectivas: filosofia moral, teoria social e teoria política. Do ponto de vista da filosofia moral, Fraser entende o reconhecimento como questão de justiça, ao contrário de Taylor e Honneth, que o entendem como uma questão de auto-realização. Fraser chama sua visão de “modelo de status”, onde “o não-reconhecimento [misrecognition] não é nem uma deformação material nem um impedimento à auto-realização ética. Pelo contrário, ele constitui uma relação institucionalizada de subordinação e uma violação à justiça. Sofrer de falta de reconhecimento, dessa forma [...], é ser constituído de padrões institucionalizados de valor cultural de forma a ser impedido de participar como par na vida social” (FRASER, 2003, p. 29).

A autora sustenta sua posição argumentando que, por não existir um modelo de vida

63 boa compartilhado por todos os membros de uma sociedade, uma teoria do reconhecimento como auto-realização seria essencialmente sectária. O modelo de status apelaria somente a um conceito de justiça, gozando, portanto, de ampla aceitação (FRASER, 2003, p. 30). O argumento parece ser semelhante ao do overlapping consensus de Rawls: um conceito de justiça política seria compatível com, e ao mesmo tempo independente de, diversas “doutrinas morais abrangentes”, o que garantiria sua cogência (cf. RAWLS, 1987). Para entendermos o uso que a autora faz dos termos reconhecimento e redistribuição, é necessário termos em mente sua classificação do injusto, dividido entre injustiças socioeconômicas de um lado e injustiças culturais, ou simbólicas, de outro. Injustiças socioeconômicas, argumenta, têm como remédio políticas redistributivas, enquanto injustiças culturais devem ser remediadas sob a forma reconhecimento, que envolve mudanças simbólicas, como a valoração positiva de um grupo étnico/social/cultural específico ou, mais profundamente, a total revaloração dos padrões sociais de representação. Ambas as demandas, por reconhecimento e por redistribuição, argumenta Fraser, são mutuamente imbricadas, não podendo uma subsumir-se na outra. Todos os problemas de injustiça social possuem essa característica bidimensional. Embora possamos imaginar situações ideais em que grupos possuem demandas unicamente por redistribuição ou por reconhecimento—a autora ilustra hipoteticamente com a noção marxiana de classe, baseada unicamente na exploração material, portanto enfrentando problemas de ordem sócio-econômica, e a intolerância sexual, baseada inteiramente na falta de reconhecimento social—pragmaticamente não faz sentido tratar ambos os aspectos como totalmente dissociados. “Portanto, superar injustiças, em virtualmente todos os casos, requer tanto redistribuição quando reconhecimento” (FRASER, 2003, p. 25). O conceito bidimensional de justiça proposto por Nancy Fraser tem como chave a noção de paridade de participação. O argumento de Fraser é de que para haver justiça, “todos os membros (adultos) de uma sociedade devem interagir uns com os outros como pares” (FRASER, 2003, p. 36) e, para isso, duas condições devem ser satisfeitas: “a distribuição dos recursos materiais deve ser tal que garanta a independência e ‘voz’ dos participantes”, o que se entende por redistribuição e “os padrões institucionalizados de valor cultural [devem] expressar igual respeito a todos os participantes e garantir a igual oportunidade de atingirem estima social” (FRASER, 2003, p. 36), ou seja, reconhecimento. Fraser elabora um critério para identificar demandas legítimas por reconhecimento e redistribuição. Seguindo sua ideia de paridade de participação, os demandantes de

64 reconhecimento e de redistribuição devem mostrar, respectivamente, que os padrões institucionalizados de valor cultural e o modelo econômico vigente lhe negam as condições subjetivas e objetivas para que haja paridade de participação. Em fazendo isso, suas demandas estão justificadas (FRASER, 2003, p. 41). A autora se questiona se seu critério de justiça exigiria o reconhecimento da particularidade de indivíduos e grupos acima do reconhecimento de nossa “humanidade em comum”. Nesse sentido, entende que somente uma análise pragmática da forma de nãoreconhecimento que deve ser superada poderia responder a pergunta.

Taylor entende o conceito de reconhecimento como o meio através do qual grupos sociais distintos devem se apresentar um ao outro e a partir do qual devam surgir juízos políticos quanto à salvaguarda da existência de grupos minoritários; Fraser enxerga o conceito como uma ferramenta para que grupos que sofrem alguma subjugação simbólica atinjam estima social e consigam participar da vida social como “pares”. Apesar de cada um deles admitir uma diversidade de ocasiões em que se dê o movimento do reconhecimento, cada um—como também é o caso de Honneth, ao limitar o reconhecimento às esferas do amor, da legalidade e da solidariedade—se mantém preso a uma faceta determinada que o conceito assume na filosofia política. O uso do conceito de reconhecimento nos moldes hegelianos ultrapassa qualquer modelo particular adotado por Taylor e Fraser. Uma abordagem completa do tema, tendo em vista a tripartição da Filosofia do Direito de Hegel, não pode se limitar a nenhum dos momentos (direito abstrato, moralidade ou eticidade). A carência do debate sobre o reconhecimento especificamente na discussão a respeito da existência e garantia de direitos dá margem à discussão que proponho no próximo capítulo.

65 3

DIREITO: RECONHECIMENTO COMO CATEGORIA JURÍDICA

A ideia de reconhecimento e intersubjetividade tem perpassado, posteriormente a Hegel, discussões sobre o tema da justiça nas áreas da filosofia moral e da filosofia política. A categoria do reconhecimento tem se mostrado útil para a explicação do desenvolvimento da consciência, da pessoa, e análise das dinâmicas sociais no sentido de atingir-se um conceito de justiça. Meu objetivo aqui, entretanto, é testar a hipótese de se utilizar o conceito de reconhecimento como categoria jurídica, como caracterizadora do que é o objeto da ciência do direito. O reconhecimento recíproco intersubjetivo é o que dá conteúdo, a partir de duas vontades singulares, e retroativamente, a pessoa do direito. O imperativo do direito é “sê pessoa e respeita os outros como pessoas” (PhR, §36). Reconhecer o outro como pessoa é conferir-lhe capacidade jurídica; reconhecer nele um portador de direitos equivalentes aos meus; expressar que o outro goza de igual liberdade em relação a mim. Reconhecer no outro um portador de direitos e o outro ter direito ao reconhecimento recíproco são pontos que se imbricam mutuamente. Ter personalidade jurídica significa possuir um elemento universal de liberdade, compatível com o do outro, o que possibilita que eu e o outro estabeleçamos relações jurídicas, como a de troca, venda etc. (cf. DOUZINAS, 2002, p. 388). “A personalidade começa não com a mera consciência geral que o sujeito tem de si como concreto e determinado [...], mas sim com sua consciência de si como um eu completamente abstrato em que toda limitação concreta é negada e invalidada” (PhR, §35). Essa abstração do eu é necessária para que ela posteriormente se concretize através das relações. Na posse, por exemplo, relação minha com uma coisa, meu eu que era universal e abstrato se torna particularizado e concreto. Minha vontade deixa de ser abstrata, e é particularizada, exteriorizada em uma coisa. A mera posse, como vimos, é contingente e carece de determinação intersubjetiva. Daí a propriedade, o instituto no qual a posse se transforma a partir de quando é reconhecida intersubjetivamente. A propriedade, portanto, é uma relação entre pessoas à medida que reconhecem as vontades umas das outras em sua exteriorização. A propriedade, dessa forma, é o “nascimento do sujeito” (DOUZINAS, 2002, p. 388). Ao contratarem, as partes não apenas trocam objetos—isto é, não se trata de uma relação de uma pessoa com um objeto—mas também reconhecem uma à outra como portadoras de

66 direitos e deveres equivalentes, como pessoas de direito.1 Para a efetivação da pessoa como tal, é necessário, diz Hegel, que todos sejam proprietários (cf. PhR, §49). Daí poder-se falar em um sentido normativo do reconhecimento. Sem propriedade, não posso alcançar a completa fruição da minha potencialidade para a personalidade.2 É nesse sentido que podemos conceber o reconhecimento como um direito. Hegel diz que “o direito absoluto é o direito a ter direitos” (HEGEL, 1983, p. 127 apud WILLIAMS, p. 240) Ora, ter direitos significa ser reconhecido como pessoa do direito, como portador de direitos. Diz Williams: [O] direito absoluto é o direito de reconhecimento. Desde os manuscritos de Jena, Hegel funda o conceito de direito no reconhecimento intersubjetivo da liberdade. Liberdade é a base e possibilidade subjetiva do direito, mas o direito da liberdade de estar presente no mundo, na subjetividade ou nas instituições, não é objetivo até que seja reconhecido (WILLIAMS, 1997, p. 240).

Fica claro, então, que o reconhecimento recíproco, entendido seu caráter normativo, pode ser entendido como um direito. Nesse sentido é que se fala em direito de reconhecimento, ou no reconhecimento como direito. Significa dizer que o reconhecimento tem sua origem como direito, na medida em que é normativo. A essa formulação, porém, proponho somar uma segunda, que explicite não apenas que o reconhecimento tem sua origem no direito, mas que o direito tem sua origem como reconhecimento. Veja-se que não se está a falar de coisas distintas, apenas de “pontos de vista” diferentes em relação ao mesmo fenômeno: o direito. Além do reconhecimento como direito, a proposta é investigar o direito como reconhecimento, ou seja, chamar a atenção para a forma possível de entender o próprio direito como um fenômeno fundamentado no—e garantido pelo—reconhecimento recíproco.

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A propriedade, como Redding salienta, não é uma relação entre uma vontade e uma coisa, mas entre vontades: “Para Hegel, a relação do sujeito com os ‘objetos’ como sua propriedade ou suas próprias ações podem ser apenas superficialmente entendidas em termos do esquema de uma simples relação com um objeto. Em todos esses casos, tal relação existe apenas porque, simultaneamente, outros sujeitos a reconhecem como existente. Isto é, enquanto a relação de propriedade, por exemplo, aparenta ser uma relação entre um proprietário e a propriedade, é, na realidade, dependente de uma relação entre proprietários” (REDDING, 1996, p. 236). Hegel deixa claro, neste sentido, que “a relação de vontade para vontade é a base própria e verdadeira na qual a liberdade tem sua existência” (PhR, §71). Daí poder-se dizer que a pobreza, a falta de propriedade, não é apenas um problema econômico, mas, sobretudo, ético.

67 3.1

RECONHECIMENTO COMO FONTE DO DIREITO

Estudar a origem do direito é o mesmo que estudar as formas através das quais o conceito do direito vai se determinando. Kojève (1981) entende que a investigação acerca do conceito do direito, de sua origem e desenvolvimento, deve proceder através da aplicação do modelo de reconhecimento intersubjetivo, criador de um conceito de justiça, às instituições e épocas históricas. Uma mesma dinâmica de reconhecimento, constitutiva do ser humano, ou da pessoa, como tal (que Kojève chama de ato antropogênico), pode engendrar normas jurídicas distintas em diferentes povos ou diferentes tempos históricos (KOJÈVE, 1981, p. 234). O ato de reconhecimento é o ato próprio que gera o conceito de pessoa. O desejo primordial de uma vontade livre é ser reconhecida, desejando outro desejo. A relação que satisfaz esse desejo, o desejo de reconhecimento, é constituinte da pessoa. “O homem não existe como ser humano senão à medida que é reconhecido” (KOJÈVE, 1981, p. 240). Uma dinâmica de reconhecimento recíproco, portanto, constitui retroativamente aquilo que se chamará de sujeito de direito, a partir de dois indivíduos—constituídos como tais pela luta—quando se relacionam. O resultado do reconhecimento, diz Kojève, é a formação de um sujeito de direito determinado: o cidadão. O cidadão é síntese de seus princípios lógicos, o senhor e o escravo, uma passagem da potência ao ato (KOJÈVE, 1981, p. 243). Este será o sujeito a qual o direito se reportará. Sendo o desejo de reconhecimento satisfeito apenas através de uma relação de reconhecimento recíproco, e sendo essa relação constituinte da própria pessoa de direito, estabelece-se um telos à relação: a aquisição de personalidade—o que constituirá a relação não apenas como um ser, mas também como um dever-ser. A partir disso pode-se dizer que o reconhecimento recíproco adquire um caráter normativo. O reconhecimento recíproco é um ideal a partir do qual podem ser emitidos juízos a respeito da justeza da realidade existente. Ao constatar que a realidade está diferente daquele ideal, pode-se dizer que ela não está como deveria estar; da mesma forma que ao ver que a realidade está adequada ao ideal, diz-se que ela está como deve estar (KOJÈVE, 1981, p. 249). Esse aspecto normativo da relação de reconhecimento recíproco, onde a liberdade pode ser entendida como a vontade consciente de sujeição a tal relação, será a fonte da ideia de justiça (KOJÈVE, 1981, p. 250), que se desenvolverá em três momentos, seguindo a dinâmica da luta do senhor e do escravo: (i) a justiça da igualdade, relativa ao senhorio; (i) a justiça da equivalência, relativa à

68 escravidão; (iii) e a justiça da equidade, síntese de seus momentos anteriores, relativa ao cidadão. (i) No primeiro momento, põe-se como elemento central na definição da justiça o consentimento mútuo. Ambas as partes concordam uma com a outra em entrarem na luta. Esse consentimento, portanto, por dizer respeito à decisão de participar da luta de vida ou morte, é anterior à luta em si. Por haver consentimento das duas partes, considera-se excluída a possibilidade de injustiça (o que significa que a relação será justa ou neutra, mas não injusta). Diz-se que a relação é justa porque é por definição igual para ambas as partes— os adversários estão nas mesmas condições (KOJÈVE, 1981, p. 253). Eis o primeiro conceito de justiça nascido da dinâmica. Aqui está presente uma forma primitiva de contrato, onde as duas partes consentem mutuamente a respeito de uma coisa. Neste primeiro momento, forma-se o conceito de justiça igualitária. (ii) Num momento posterior ao acordo sobre a entrada na luta, porém, como vimos no item 1.1, um dos participantes abandona a luta, por medo da morte, e se submete ao outro. Neste ponto, diz Kojève, ainda há mutualidade de consentimento. “Uma parte oferece sua submissão porque acredita que ela será livremente aceita, e a outra a aceita porque supõe que ela foi livremente proposta” (KOJÈVE, 1981, p. 255). Por esse motivo, a relação entre as duas partes ainda seria justa. Entretanto, não há mais igualdade propriamente dita entre os lutadores, pois o reconhecimento se deu de forma unilateral, não recíproca. Essa desigualdade seria substituída pela ideia de compensação. O mestre se submeteu a um maior risco na luta, pois não temeu a morte, e, portanto, foi compensado com o status de maestria. A segurança que o escravo adquiriu ao poupar-se do risco de morte através de sua submissão foi compensada por seu status de servidão. Por este segundo conceito (parcial) de justiça, a situação ainda poderá ser considerada justa, pois as condições das duas partes são equivalentes—cada desvantagem foi compensada com uma vantagem, e vice-versa. À justiça igualitária, inicial, soma-se a ideia de uma justiça da equivalência. Aqui, em razão da proposta de compensação de vantagens com desvantagens, há uma determinação maior do conceito de contrato que surgiu no primeiro momento. A relação entre as duas partes, entretanto, continua engendrando uma forma parcial de contrato, pois não atingiu-se a mutualidade e reciprocidade plenas. A relação que assume o senhor com o escravo é a relação de propriedade. “O escravo é juridicamente propriedade do mestre” (KOJÈVE, 1981, p. 256).

69 A análise jurídica da luta antropogênica mostra que a ideia de justiça surge sobre a forma dúplice de uma justiça de igualdade e de uma justiça da equivalência. De forma que o homem se cria simultaneamente como mestre e como escravo em sua relação antitética; sobre uma forma antitética é que toma consciência, segundo uma ideia dúplice de justiça, do aspecto jurídico de sua própria origem (KOJÈVE, 1981, p. 256-257).

(iii) As duas formas anteriores de justiça tomavam a forma de uma justiça do mestre (igualitária) e uma justiça do escravo (da equivalência), que se opunham uma à outra. Kojève argumenta que, tendo a pessoa se constituído por um ato único (mesmo que recíproco) do reconhecimento, a realização da pessoa como tal não pode se dar senão através de um retorno à unidade, através da síntese dos conceitos anteriores e parciais de justiça em um conceito de justiça do cidadão, a justiça da equidade. Sendo todas as pessoas em certa medida cidadãs, diz Kojève, “toda justiça admitida efetivamente não é senão uma síntese [...] entre a justiça aristocrática da equidade e a justiça burguesa da equivalência: é uma justiça da equidade” (KOJÈVE, 1981, p. 257). A ideia de justiça que se forma da relação primordial de reconhecimento recíproco, portanto, é a da justiça da equidade. Tal ideia, porém, enquanto tal, não configura propriamente um conceito jurídico. Essa transformação de um conceito normativo moral para um conceito jurídico, argumenta Kojève, dar-se-á quando da apropriação da ideia de justiça por um terceiro. A partir de quando um terceiro assume a ideia de justiça e busca realizá-la, está configurada uma relação jurídica. “Podemos dizer que o fenômeno da justiça se transforma espontaneamente em fenômeno do direito a partir de quando é constituído na consciência de um terceiro” (KOJÈVE, 1981, p. 260). A este terceiro caberá tornar as situações sociais que se lhe apresentam conformes à ideia de justiça por ele apropriada. A questão sobre a origem do direito, ou sua formação a partir da ideia de justiça, “se reduz à questão de saber como aparece um terceiro humano e como a ideia de justiça penetra a sua consciência” (KOJÈVE, 1981, p. 260). Esse papel de apreender um conceito de justiça e posteriormente aplicá-lo às relações sociais, como argumentarei nos itens subsequentes, será desempenhado não por uma vontade subjetiva (ou um “terceiro humano”, como diz Kojève), mas por uma vontade objetiva, formada no processo de desenvolvimento da eticidade e que culmina no Estado e na história. 3.2

A OBJETIVAÇÃO DO RECONHECIMENTO NA ETICIDADE

Podemos estudar o desenvolvimento conceitual do direito a partir das figuras e momentos do reconhecimento recíproco. O progresso que parte da justiça igualitária, passa pela

70 justiça da equivalência e culmina na justiça equitativa demonstra que o direito pode ser fundamentado a partir do reconhecimento recíproco intersubjetivo. A análise do desenvolvimento do direito a partir de suas figuras lógico-conceituais, porém, sobretudo da forma que faz Kojève a partir das categorias da Fenomenologia do Espírito, fica limitada a um nível abstrato, indeterminado, que poderíamos entender como pertencente ao direito abstrato. Isso leva a uma concepção exclusivamente privatista do direito, que desconsidera sua determinação história nas instituições; ou seja, não atenta ao papel da eticidade na determinação desse conceito de direito. Como foi demonstrado no primeiro capítulo, o direito abstrato padece de um “sofrimento de indeterminação”, e deve ser superado e guardado nas suas instâncias superiores: a moralidade e, mais importante, a eticidade, o que, compreensivelmente, não é feito por Kojève—dada sua preferência de estudo do conceito do direito a partir, sobretudo, da Fenomenologia—e resta obscuro mesmo em Hegel.3 Douzinas nota de certa forma esse problema: Enquanto o edifício hegeliano está movendo inexoravelmente todos os seus particulares na direção de um estágio histórico final, Hegel não propôs um novo tipo de reconhecimento jurídico para a eticidade. [...] A abordagem ética do reconhecimento jurídico parece falhar no seu momento mais crucial, precisamente quando fora criada a expectativa de que as formas anteriores, formais e parciais, da lei e do direito seriam transcendidas por uma forma mais inclusiva de uma ética do cuidado. Sem esse movimento, [porém], as relações jurídicas e os direitos permanecem no seu estágio kantiano [...] (DOUZINAS, 2002, p. 394-395).

Isto é, sem considerar a eticidade como formadora do conceito de direito, assume-se o risco de cair novamente em um formalismo do tipo kantiano, criticado frequentemente por Hegel. O direito abstrato deve se tornar concreto, adquirir efetividade, através da mediação das instituições sociais até sua culminação no Estado (e posterior interação entre Estados e história universal). Se Hegel não explicitou totalmente a necessidade de uma concepção de direito como reconhecimento que seja determinada na/pela eticidade (e alguns de seus leitores simplesmente ignoraram esse ponto), pelo menos foram deixadas pistas, como quando Hegel salienta o papel da eticidade em estabelecer leis válidas que estejam “acima da 3

Como comenta Smith (1989, p. 3), “Hegel é melhor conhecido como crítico do que defensor dos direitos”, sobretudo em suas críticas ao jusnaturalismo, às doutrinas contratualistas e ao formalismo kantiano. Por esse motivo talvez não seja nem um pouco óbvia uma definição positiva de direito em Hegel.

71 opinião e do capricho subjetivos” (PhR, §144). A eticidade, ao mesmo tempo em que é substância objetiva, tem a subjetividade diretamente ligada a ela, sob a forma de identidade (cf. PhR, §147). Dessa forma, entendo que a saída possível está em compreender que o reconhecimento intersubjetivo, que foi responsável por tornar concreto o conceito de direito, se tornará progressivamente, na eticidade, reconhecimento objetivo, substancial. A relação de reconhecimento constituinte do direito, que se operava na forma de um “eu” com um “eu”, passará a se dar na forma de relação entre um “eu” e um “nós”, típica das instituições da eticidade. O direito, na eticidade, passará a ser entendido, usando o conceito proposto por Kojève, como o reconhecimento do cidadão nas instituições e das instituições no cidadão. Se, antes, ser proprietário passava pela necessidade de ser reconhecido como tal por outros sujeitos individuais numa relação de reciprocidade; agora, o critério será a lei e a Constituição, esta nada mais sendo do que a consubstanciação do Espírito do Povo em uma determinada época histórica. Significa dizer que, na eticidade, o direito ultrapassa a mera subjetividade da vontade, e passa a depender de uma vontade objetiva, a substancialidade ética. A realização da vontade livre tem como momento necessário essa objetivação. A liberdade só atinge plena realização nas instituições: a família, a sociedade civil e o Estado. Na substancialidade ética, lembra Weber, “desaparece a vontade puramente particular, mas não como eliminada e sim como negada, guardada e superada” (2013, p. 106). Isto é, um direito expresso, por exemplo, em uma lei, não anula ou negligencia os reconhecimentos intersubjetivos que lhe deram origem, mas os conserva em uma posição superior, movimento de objetivação que subsume potenciais contingências, como o não reconhecimento. Tomemos o exemplo do crime. Enquanto no direito abstrato o crime é o desrespeito por uma vontade livre a um “contrato” intersubjetivo de reconhecimento (no crime, o criminoso nega ao outro o reconhecimento de sua personalidade), na eticidade a relação será elevada a um nível superior. O crime passa a ser o desrespeito a uma vontade universal objetiva: a negação daquilo que é a consubstanciação na lei da vontade oriunda das etapas de desenvolvimento da eticidade. No direito abstrato, a resposta à pergunta “o que significa ter um direito?” seria ter uma vontade exteriorizada reconhecida intersubjetivamente. Ou seja, ter um direito significava ser reconhecido pelos “pares” como portador de um direito. Sou proprietário de uma coisa na medida em que sou reconhecido (por aqueles que igualmente reconheço) como legítimo na manifestação da minha vontade naquela coisa. Na língua inglesa usa-se o termo

72 entitlement para referir-se à legitimidade de uma reivindicação sobre uma coisa. Diz-se que a pessoa “A” é entitled à coisa “X” se sua reivindicação sobre ela for legítima. A palavra é formada a partir do substantivo title, título. Ter um direito de propriedade de uma coisa, ou seja, ter uma reivindicação legítima sobre a propriedade de uma coisa significa ter um título válido sobre aquela coisa. O que vai dizer se esse título é válido, ou legítimo, porém, partindo de Hegel, não será um a priori da razão ou um dado da natureza, na forma de um direito natural, mas sim o reconhecimento. Como comenta Williams, “esta é uma correção amigável ao individualismo liberal clássico: liberdades individuais, direitos etc., são socialmente e intersubjetivamente assegurados, e o que os assegura é serem reconhecidos. (WILLIAMS, 1997, p. 21. grifo nosso). No primeiro momento, do direito abstrato, temos o reconhecimento intersubjetivo. Tenho direito a uma coisa na medida em que sou reconhecido, pelas pessoas que igualmente reconheço, como legítimo portador de um título sobre aquela coisa. A legitimidade desse título será conferida pelo reconhecimento intersubjetivo que eu alcançar. Em suma, o título legítimo é um título de reconhecimento. Podemos entender todo o desenvolvimento do direito a partir da ideia de título de reconhecimento. Os diferentes graus de reconhecimento social, agora quando falamos das instituições, trarão diferentes sujeitos contra os quais esse título será oponível. Na família, o título de reconhecimento como membro (primeira forma de formação da “segunda natureza”, a social) será oponível apenas no seio da família em que o membro se encontra. Sou membro de uma família na medida em que não sou membro de outra família. Não posso exigir o reconhecimento como membro de uma família que não é a minha. Na sociedade civil, quando falamos das corporações, entende-se que o título de reconhecimento na forma de honra guarda uma relação direta com a corporação que o “concedeu”. Só posso ter honra profissional, nos termos que Hegel a põe, quando pertenço a uma corporação que me reconheça como “pertencente a um todo que é em si mesmo um órgão de toda a sociedade” (PhR, §253). O reconhecimento entre particulares, fórmula do direito abstrato, se transforma no reconhecimento por um grupo (ligado ainda por relações naturais) na família. Na sociedade civil, através das corporações, o reconhecimento se dá, agora, num grupo unido por relações abstratas, numa instituição tendente ao universal, mas ainda conservando seu caráter particular, a corporação. No Estado, então, última etapa da eticidade, o reconhecimento será como cidadão, e o direito advindo desse reconhecimento será oponível contra todas as pessoas e instituições daquele determinado Estado. Como

73 culminação da eticidade, no Estado “todo direito é ao mesmo tempo um dever” (WEBER, 2013, p. 107). E sendo a “efetivação da vontade substancial” (PhR, §258), o reconhecimento se dá não mais através de vontades subjetivas, mas de uma vontade puramente objetiva, expressa na lei. Poderíamos extrair uma concepção hegeliana de direito que desse conta da determinação do conceito na eticidade a partir da ideia de “título de reconhecimento”. Ter um direito a algo significa possuir um título de reconhecimento como legítimo reivindicante daquele algo. Uma forma de direito que se pretende determinada, concreta, deve levar em conta o processo de “objetivação” da vontade que se dá na eticidade. Não mais um título de reconhecimento entre sujeitos individuais, a culminação da eticidade que se dá no Estado fornece títulos de reconhecimento através do arcabouço jurídico: a Constituição, as leis, as decisões judiciais etc. Ao objetivar-se nas instituições e culminar no Estado, o ápice da objetividade, a vontade de onde parte o reconhecimento passa a ser oponível contra todos os cidadãos e instituições de um Estado. Uma lei ou decisão judicial poderá ser dita justa ou injusta na medida em que se adeque mais ou menos ao reconhecimento social que foi produto do desenvolvimento da eticidade. Afasta-se um critério a priori como única determinação da justeza de um ato normativo (a lei natural, por exemplo), e dá-se lugar a um critério a posteriori, social. Uma legislação será justa a partir da “capacidade que ela demonstra de expressar os costumes [de um povo], de elevar o costume à dignidade de vontade reconhecida e consciente” (BOBBIO, 1991, p. 74). É importante que fique claro que a mútua identidade entre o racional e o efetivo não significa que todo e qualquer ato que parta do Estado será justo. A partir de quando temos um lastro segundo o qual podemos emitir juízos de valor sobre a justeza de uma legislação (a maior ou menor adequação desta ao reconhecimento social consubstanciado na vontade objetiva), os cidadãos e as instituições devem ter garantido seu direito de oposição. Os direitos e garantias de uma Constituição valem inclusive contra um Estado histórico potencialmente autoritário. É responsabilidade das instituições da sociedade civil, sobretudo das corporações e dos estamentos, “fiscalizar” a adequação do Estado a seu fim. Na vigilância do Estado contra qualquer arbitrariedade “está a importância dos estamentos, como órgãos mediadores entre o governo e o povo. Sem os estamentos [...] o Estado fica totalitário e o poder do príncipe, ou de um presidente, arbitrário (WEBER, 2013, p. 122).

74 3.3

RECONHECIMENTO COMO GARANTIA DO DIREITO NA HISTÓRIA

A justeza dos direitos vai sendo julgada, dentro do Estado, pelas instituições. A vontade objetiva, o Espírito de um Povo, culmina no Estado. Mas o Estado não é o final da história. Os Estados interagem entre si no plano internacional e dão lugar, finalmente, à história universal. Se o que é justo ou injusto, de acordo ou contrário ao direito, é determinado internamente e, quando partindo do Estado, adquire efeito entre todos os cidadãos e instituições deste Estado, no plano internacional os próprios direitos nascidos nos Estados particulares se submeterão ao juízo do “tribunal da história” (cf. PhR, §341): Justiça, virtude, injustiça, poder, vício, talentos, conquistas, paixões, culpa, inocência, grandiosidade individual e nacional, autonomia, sorte, azar de Estados e de indivíduos—todos esses têm sua significância e valor específicos no campo da efetividade conhecida; lá são julgados e lá tem sua—parcial, apenas parcial—justificação. A história universal, porém, está acima do ponto de vista de onde essas coisas importam. Cada um de seus estágios é a presença de um momento necessário na Ideia do Espírito Universal [world mind], e esse momento atinge seu direito absoluto neste estágio (PhR, §345).

Os direitos consubstanciados nas vontades substanciais, ou objetivas, dos Estados históricos, e expressos na forma de títulos de reconhecimento oponíveis entre todos os pertencentes àquele Estado, estão como negados, superados e guardados na história universal. A tendência, como aponta Weber (1993, passim), é que a contingência vá sendo progressivamente interiorizada na necessidade. Dentro de um Estado histórico, a objetivação e universalização das vontades previamente subjetivas e particulares servirá como forma de negar estas últimas, dado seu caráter contingente. A contingência vai dando lugar, na forma de superação dialética, à necessidade. O mesmo, de certa forma, ocorre na história universal. A história segue um curso racional, que é o do desenvolvimento progressivo da liberdade. A partir daí pode-se extrair a ideia de progresso histórico. Um determinado Estado atinge um nível maior de progresso quanto maior for a liberdade que possuir e de que tiver conhecimento. Entra em jogo, novamente, a noção da identidade entre o racional e o efetivo. Se a história segue um curso racional (teleológico—no sentido de ter a liberdade como fim), só subsiste historicamente aquilo que é racional. Vale lembrar, “o que é racional é efetivo e o que é efetivo é racional” (PhR, Preface). O racional se reporta diretamente ao efetivo, ao processo de determinação da realidade existente; ao mesmo tempo em que o

75 efetivo só o será se passar pelo “juízo de racionalidade”. Quem fará esse juízo será a história, ao julgar os Estados históricos determinados. Essa concepção, da história como julgador a posteriori do direito dos Estados particulares, poderia levar a entender a teoria da história de Hegel como “amoral”, no sentido de que o juízo histórico diz respeito à mera aprovação ou condenação contingente de fatos ou atos históricos (cf. MCCARNEY, 2000, p. 115). O que determinaria sua moralidade seria o próprio juízo, portanto de forma retrospectiva. Hegel, porém, não propõe uma doutrina jurídica de mero aval ou sanção daquilo que é dado historicamente. Não há a proposta de que aquilo que é é o que deve ser: A história universal não é o veredito da mera força [might], isto é, a inevitabilidade abstrata e irracional de um destino cego. Pelo contrário, sendo o Espírito razão tanto implícita quanto efetiva, e sendo a razão explícita para si no Espírito como saber, a história mundial é o desenvolvimento necessário, a partir do conceito da liberdade do Espírito, dos momentos da razão e portanto da consciência de si e liberdade do Espírito. Esse desenvolvimento é a interpretação e efetivação do Espírito Universal (PhR, §342).

Hegel faz questão de lembrar, em sua defesa, do princípio orientador de todo o movimento do Espírito quando opera objetivamente: a ideia da liberdade. A manutenção desse telos, a liberdade, evita o mero reconhecimento histórico do que é como o que deve ser. McCarney põe o argumento hegeliano nos seguintes termos: As forças opostas à razão não têm o vigor necessário para resistir a ela [a razão] indefinitivamente, [...] o que é de direito vem, no longo prazo, a ser chancelado pela força [might]. É dessa convicção que a autoridade da história, como a corte que ‘julga o longo prazo’, deriva. Sua autoridade é, ao fim e ao cabo, a autoridade da razão; enquanto a mera força, como tal, não pode ser de nenhuma forma uma fonte de legitimação (MCCARNEY, 2000, p. 116).

Isso significa que o critério para divisão das etapas do progresso histórico é o grau de consciência da liberdade (WEBER, 1993, p. 197). O direito que, no plano interno, era oponível, na forma de título de reconhecimento, a cada membro e cada instituição daquele Estado, no nível internacional se tornará, a partir do juízo racional da história, título de reconhecimento oponível erga omnes, contra todas as

76 pessoas e instituições do mundo. São os direitos humanos.4 Neste nível, o direito atinge seu grau mais elevado e universal. É a respeito dos direitos humanos que realmente podemos dizer que “a pessoa conta como pessoa tão-somente em virtude de sua personalidade; não por ser judia, católica, protestante, alemã, italiana etc.” (PhR, §209). Não se está mais a falar do reconhecimento objetivo que se consubstancia na eticidade e é garantido pelo Estado, mas sim de um reconhecimento provido pela história, última instância decisória, a mais alta corte de justiça, espécie de escatologia do desenvolvimento do direito.5 Em Hegel, o direito abstrato e a lei moral, diferentemente de Kant, não são absolutos, mas admitem exceções em situações particulares. Por esse motivo, os princípios estabelecidos aprioristicamente necessitam de uma determinação a posteriori, que será dada pela história. A concepção que se pode ter de direitos humanos, a partir de uma visão hegeliana, passa por entendê-los como garantias ex post facto. Será a partir de necessidades históricas que determinados direitos passam a ser reconhecidos universalmente. Como propõe Smith, entendendo ser esta uma das maiores contribuições de Hegel à filosofia política, a própria história pode ser compreendida como uma espécie de “Bildung coletivo— uma educação moral da raça humana—no sentido do reconhecimento mútuo do direito” (SMITH, 1989, p. 4). A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, teve origem, sobretudo, como reação às formas através das quais se determinava o direito no ancien régime. Não era um corpo de legislação de um determinado Estado apenas, mas possuía pretensões universais. Pretendia sentar pressupostos para qualquer futura concepção de direito. Da mesma forma a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, condenava a experiência histórica do nazi-fascismo na Europa. Como marcos históricos divisórios, esses documentos são demonstrações do julgamento do tribunal da história sobre fatos ocorridos. A partir do que se sucedeu da

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Hegel não usa a expressão “direitos humanos”. Uso-a aqui num sentido muito próprio, que não deve ser tomado diretamente como uma espécie de direito calcado na essência do homem a partir de um direito natural universalmente válido, ou seja, como um prius, senão como um resultado do juízo histórico sobre o direito já estabelecido nos Estados historicamente situados, ou seja, um posterius. Não é o caso de se falar em um “fim da história” em Hegel como momento de cessação ou completude do movimento dialético e atingimento de uma espécie de direito final ou total, mas sim no sentido de estarmos sempre no fim da história. O “agora” é a concatenação lógica de seus momentos anteriores, posição a partir da qual julga-se o passado e, nesse caso, os direitos dos Estados históricos.

77 Segunda Guerra, por exemplo, não é mais concebível que se faça em nenhum lugar do planeta experiências com fins eugênicos em seres humanos. São casos transitados em julgado. O Tribunal de Nuremberg, que reconheceu como crimes contra a humanidade o cometido por diversos partícipes do regime nazista na Alemanha, serviu como uma verdadeira manifestação do tribunal da história. Através do próprio juízo do tribunal, os atos cometidos por oficiais nazistas foram reconhecidos como antijurídicos, como atentados ao que a história reconhece como de direito. É partir desses momentos históricos que vai se formando aquilo que é reconhecido como direito (humano) na esfera da história universal. Não se trata de um direito cujo conteúdo pode ser extraído a partir de uma norma da razão, mas que vai sendo determinado historicamente. É claro que aqui se pode levantar a objeção de que, ao entendermos que a determinação do conteúdo dos direitos humanos se dá de forma a posteriori, na forma de juízos retrospectivos, ficamos à mercê da história, não podendo julgar o que se passa no presente. Isso abriria um espaço para um cometimento de arbitrariedades, por exemplo, por líderes carismáticos que tomassem o poder de um determinado Estado em uma determinada época e cometessem atrocidades que só viríamos a julgar como condenáveis depois de já terem acontecido, portanto “tarde demais”. Ora, é importante lembrar que os momentos anteriores de determinação do conceito de direito—todos eles, desde o direito abstrato, com seu princípio de respeito aos outros como pessoas, até a maior determinação que se pode alcançar dentro do Estado, a lei—não são aniquilados quando passamos para o nível do direito na história universal. São, porém, negados, superados e guardados. Significa dizer que estão contidos nas determinações que se alcançarem neste nível. Dito de outra forma, o desenvolvimento do direito através do direito abstrato, da moralidade e da eticidade, nos Estados particulares, compõe o conceito de direito que se alcançará na história universal (cf. PhR, §344). Continuam valendo os princípios do direito. A diferença é que eles são complementados pela determinação que vai dando o juízo histórico ao conceito. Adquirem maior concretude e, ao mesmo tempo, “universalidade absoluta” (PhR, §352). O conceito de direito vai se transformando a partir de conquistas históricas que a humanidade atinge. Seguindo a racionalidade que lhe é intrínseca, a história se desenvolve no sentido do progresso da

78 humanidade na direção da liberdade. Uma conquista histórica é um fato (julgado dessa forma pela história) que contribui para essa consecução da liberdade.6 Surge a pergunta, novamente, de outra forma: como é possível distinguir, então, uma conquista histórica de um mero fato histórico? A única resposta possível, a partir do sistema proposto por Hegel, está em compreender uma conquista histórica como um fato que contribui para o progresso da humanidade no sentido da liberdade. Quem fará esse juízo, porém, é a própria história. Dessa circularidade, me parece, não temos como fugir. Ao fim e ao cabo, será digno de apreço jurídico pela história universal aquilo que por ela for julgado como tal. Existe um princípio lógico que é o da progressiva explicação do Espírito Universal no sentido da liberdade, mas a determinação desse conceito só será dada pelo tribunal da história. Dado que é impossível que determinemos o conteúdo do conceito do direito exclusivamente a partir de um exercício da razão, é necessário que consideremos o contexto. O que determinará os conceitos jurídicos, como salienta Robert Brandom, será sua aplicação. São “atitudes normativas”, afinal, que instituem “status normativos” (BRANDOM, 2014) e não nenhuma mera dedução lógica de princípios postos pela natureza, por Deus ou pela razão. A partir dessa constatação, é necessário considerar que a contingência, como demonstra Weber (1993) está presente em todos os momentos do movimento do Espírito. Na história universal o caso não é outro. Se está afastada a hipótese de um fim da história, é porque a dialética não pode ser em algum momento completada, pois nela sempre resta, mesmo que progressivamente negado, guardado e superado, algum grau de contingência. É a abertura à contingência que garante a possibilidade de algo tanto ser quanto não ser. O expurgo da contingência do sistema significaria, no fim das contas, a supressão da possibilidade de escolha e a aniquilação da liberdade. O círculo nunca se fecha. Uma concepção de direito que pretenda de alguma forma dar conta do fenômeno com algum 6

De certa forma—apesar de eu reconhecer que uma afirmação como essa não pode ser feita com segurança sem um estudo sobre as categorias lógicas propostas na Ciência da Lógica de Hegel, o que não foi possível dentro do escopo deste trabalho—creio que poderia ser dito que a história universal apresenta os seus juízos de forma retroativa, como dados, ou seja, como prius, mesmo que constituídos ex post facto. Hegel diz, no parágrafo 346 da Filosofia do Direito, que “a história é o Espírito formando a si mesmo na forma de eventos ou da efetividade imediata da natureza. Os estágios de seu desenvolvimento são, portanto, apresentados como princípios naturais imediatos” (PhR, §346. Grifo nosso). Se justificada essa leitura, seria a forma mais clara de justificar a existência de direitos humanos (direitos de caráter universalíssimo, que se aplicam a qualquer pessoa em qualquer momento) contra sua aceitação clássica jusnaturalista. Sob essa perspectiva, direitos humanos seriam títulos de reconhecimento adquiridos historicamente e retroativamente válidos como oponíveis contra todas as pessoas e instituições em todos os momentos e lugares. Valem de forma a priori, mas são constituídos a posteriori.

79 lastro na realidade precisa, necessariamente, atentar para esse fato, e dar conta das consequências que isso traz.

80 CONSIDERAÇÕES FINAIS A progressiva consecução da liberdade, através da estrutura da Filosofia do Direito de Hegel, é toda acompanhada por dinâmicas de reconhecimento intersubjetivo. No direito abstrato, o reconhecimento recíproco de duas partes como pessoas do direito se mostra como o primeiro nível de reconhecimento intersubjetivo. Na moralidade, com a esperada identidade entre o agir subjetivo e o agir dos outros, da vontade racional, avançamos para um nível posterior no desenvolvimento da liberdade. Na eticidade, temos as instituições sociais, onde o indivíduo é reconhecido como membro de uma família, uma corporação e um Estado. A cada etapa desse desenvolvimento, ou explicitação, da liberdade, mais concretude e universalidade vai ganhando o direito. Parte-se do mais indeterminado e busca-se o mais determinado. Nesse desenvolvimento, especialmente no campo da eticidade, as instituições são responsáveis por realizar a mediação da particularidade com a universalidade. No Estado, culminação da eticidade, há o maior grau de atingimento da liberdade e uma identificação conceitual total entre o ser e o dever-ser. A origem de um direito pode ser traçada a partir do reconhecimento intersubjetivo que tem como objeto as vontades. A propriedade é o reconhecimento, por outras vontades, da legítima exteriorização da minha vontade sobre uma coisa. Quando passamos para o nível das instituições, esse reconhecimento, até então intersubjetivo, vai progressivamente se tornando reconhecimento objetivo, substancial, consubstanciando-se, por fim, na forma da lei de um Estado A lei de um Estado, porém, não é o último grau de determinação do direito. Os próprios Estados particulares serão julgados pelo “tribunal da história”, a instância decisória da história universal. Neste nível, fala-se de direitos que são oponíveis erga omnes, contra todas as pessoas e instituições. Os títulos de reconhecimento, que originalmente eram individuais, adquirem sua máxima universalização, na forma de direitos humanos.

Em toda a obra hegeliana, é bastante clara a ideia de progresso, ou de um objetivo final da história que seria a conquista da maior liberdade. A história seguiria um curso racional no sentido da liberdade. Essa visão, porém, pode ser apontada como característica de certo necessitarismo na obra de Hegel. Não no sentido de que atingiremos, algum dia, o final da história, a completude de toda a dialética, mas de que caminhamos

81 inexoravelmente, e a cada dia, na direção de uma maior conquista da liberdade. Será realmente o caso? Pode-se dizer que a história, conceitualmente falando, se desdobra na direção da liberdade? Ou seria essa concepção produto de uma visão bastante específica de um momento histórico vivido por Hegel? Quantas vezes mais pudemos falar num Espírito Absoluto chegando “a cavalo” na nossa história recente, como o fez Hegel se reportando à chegada de Napoleão em Jena? Por outro lado, do ponto de vista do direito, como ficaríamos sem esse telos da conquista da liberdade? Poderíamos entender que o necessitarismo de Hegel cumpre seu papel, que é o de estabelecer uma situação ideal, despreocupada com suas versões históricas, de como deve ser um Estado. Compreendido dessa forma, seria um contrassenso abandonarmos o dever-ser do direito. O que seria o direito sem o dever-ser? São questões que a pesquisa jurídica e filosófica sobre Hegel devem se perguntar. Da mesma forma é a questão da relação do “eu” com o “nós” nas instituições sociais. Idealmente, na eticidade, o indivíduo se reconhecer nas instituições e as instituições funcionam de forma que isso aconteça. O diálogo do indivíduo com as instituições, porém, quando partimos da essência para a existência efetiva, raramente se dá de tal forma, como “diálogo”. O comum é que, perante as instituições como o Estado, o mercado etc., o indivíduo particular se relacione apenas como polo passivo de um monólogo, sem nenhum poder de negociação ou influência. Não cessaria, nesse ponto, o reconhecimento do indivíduo nas instituições e das instituições no indivíduo? Uma teoria do reconhecimento que não incorpore, dessa forma, a sujeição, forma como a relação entre o particular e o universal se dá frequentemente, não é suficientemente dialética, e padece de um idealismo avesso à história ou a efetividade das coisas, tradicional crítica hegeliana a Kant. Qualquer atualização da teoria hegeliana deve preferir um Hegel “errado, mas vivo” a um Hegel “correto, mas morto”. Isto é, deve-se ter a sensibilidade de distinguir aquilo que é necessário daquilo que é contingente na própria obra de Hegel. É claro que não é tarefa fácil. A busca por alternativas ao necessitarismo, à abertura à arbitrariedade, devem ser pautas perenes da pesquisa em filosofia do direito.

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