Direito das Futuras Gerações

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Descrição do Produto

Direito das Futuras Gerações Organizadores Daury Cesar Fabriz • Julio Pinheiro Faro • Paulo Roberto Ulhoa Jovacy Peter Filho • Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes • Heleno Florindo da Silva

Direito das Futuras Gerações Organizadores Daury Cesar Fabriz • Julio Pinheiro Faro • Paulo Roberto Ulhoa Jovacy Peter Filho • Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes • Heleno Florindo da Silva

Colaboradores

Ficha Técnica Coordenação: • Daury César Fabriz

• Julio Pinheiro Faro

• Paulo Roberto Ulhoa

• Jovacy Peter Filho

• Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes

• Heleno Florindo da Silva

Anamaria Toma-Bianov

Editora/Copyright : Cognorama

Professora Doutora Assistente no Departamento de Direito da Universidade da Transilvânia em Braşov, Romênia.

Edição: 1ª

Carla Amado Gomes

Capa: Escultura “Humanidades“, de Penithencia, em foto de Weverson Roccio - 2013

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, ambas em Portugal.

Execução: Link Editoração Diagramação: Link Editoração

Carla Faralli

Revisão de texto: Dos próprios autores

Professora na Faculdade de Direito da Universidade de Bolonha, Itália.

Produção Gráfica: Eduardy Cabral

César Fiuza

Impressão: Grafitusa

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Professor Titular na Universidade FUMEC, Professor Associado na UFMG, Professor Adjunto na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Professor colaborador na UNIPAC, Advogado, Consultor e Parecerista.

ISBN: 978-85-66658-04-0 Todos os direitos reservados a COGNORAMA Rua Aleixo Neto, 454 – Sala 503 – Praia do Canto – CEP 29055-260 – Vitória/ES

Daury Cesar Fabriz Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela UFMG, Professor Associado do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Coordenador e Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Presidente da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH), Sociólogo e Advogado.

Elizabeth de Mello Rezende Colnago Mestranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Universidade de Vila Velha (PUC-SP/UVV), Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela UNESC, Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (FAPES), Professora de Direito Administrativo, Professora da Polícia Militar do Espírito Santo, Advogada e Administradora de Empresas.

Ernst-Ulrich Petersmann Professor Emérito de Direito Internacional e Europeu, Ex-Diretor do Departamento de Direito da European University Institute (Florence), Ex-Professor na University of Geneva e em seu Graduate Institute of International Studies, ExConsultor Jurídico no Ministério alemão de Assuntos Econômicos, no GATT e na OMC, Ex-Secretário, membro ou presidente de painéis GATT/OMC.

Filipe Knaak Sodré Mestrando em Ciências Criminais pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales (UCES, Argentina), Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/ES, Advogado Criminalista.

Colaboradores

Gustavo de Oliveira Vieira Doutor em Direito pela Universidade Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Professor de Direito Internacional do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Procurador do Estado do Estado do Rio Grande do Sul, Coordenador de núcleo de Estudos da Escola Superior da Magistratura, Membro do conselho consultivo do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ), Consultor ad hoc da CAPES, CNPQ, FAPERGS, FAPESC e Università degli studi di Roma Ter, Professor convidado da PósGraduação na Università del Salento, Universita de Firenze e Universidad de Sevilla, Coordenador do Grupo Estado e Constituição (CNPq), Pesquisador PQ/CNPq.

Heleno Florindo da Silva

José Luiz Quadros de Magalhães

Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Pós-Graduado em Direito Público e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva, Membro do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão (BioGEPE) e do Grupo de Pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais” da FDV, Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Espírito Santo (FAPES), Professor de Direito da Faculdade São Geraldo (FSG).

Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela UFMG, Bacharel em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II, Professor Titular da PUC Minas, Professor Associado da UFMG e Professor do Mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Professor visitante no mestrado em filosofia da Universidad Libre de Bogotá e do doutorado da Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires.

Ingrid Zanella Andrade Campos Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Professora, Presidente da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo e Membro da Comissão de Meio Ambiente da OAB/PE.

Ivy de Souza Abreu Mestranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Bolsista da FAPES, Membro do Grupo de Pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais” e do BioGEPE da FDV, MBA em Gestão Ambiental e Pós-Graduada em Direito Público, Licenciada em Ciências Biológicas, Professora Universitária, Advogada e Bióloga.

Alberto Del Real Alcalá

Jovacy Peter Fiho Mestre em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/ES, Diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB/ES, Vice-Presidente da ABDH, Professor de Direito Penal na Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Advogado Criminalista.

Júlia Cristina Faleiro Urbano Bacharela em Direito pela UFMG. Advogada.

Julia Silva Carone Pós-Graduada em Direito Constitucional, pela Faculdade Damásio de Jesus, e em Direito Processual Civil, Penal e do Trabalho pela Rede Doctum; Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Advogada.

Profesor Titular de Filosofía del Derecho, Universidad de Jaén, Espanha.

Julio Pinheiro Faro

Jackelline Fraga Pessanha

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais e Bacharel em Direito pela FDV, Secretário-Geral da ABDH, Pesquisador vinculado ao Programa de PósGraduação Stricto Sensu da FDV nos Grupos de Pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais” e “Direito, Sociedade e Cultura”, e ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu do Departamento de Direito da UFRN no Grupo de Pesquisa “Constituição Federal Brasileira e sua Concretização pela Justiça Constitucional”, Colaborador na UFES, Servidor Público Federal.

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vila Velha, Professora da Faculdade São Geraldo (FSG), Assessora do Ministério Público do Estado do Espírito Santo.

José Emílio Medauar Ommati Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela FD-UFMG, Professor de Teoria da Constituição, Direito Constitucional e Direito Administrativo I da PUC Minas – Campos Serro, Coordenador do Curso de Direito da PUC Minas – Campos Serro (2009-2014).

Jose Luis Bolzan de Morais Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pós-Doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Professor da UNISINOS,

Karoline Lins Câmara Marinho de Souza Mestre em Direito pela UFRN. Especialista em Direito Constitucional pela UFRN. Professora Efetiva da UFRN e Assessora Judiciária no TJRN. Professora de especialização da UFRN, da Universidade Potiguar, da UNI-RN e da Pós-Graduação em Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo da Faculdade Maurício de Nassau, Recife – PE.

Colaboradores

Katia Blairon

Ronaldo L. B. Segundo

Professora de Direito Público e Constitucional na Faculdade de Direito de Nancy, Universidade de Lorraine, França.

Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Advogado.

Leana Mello

Thaisa Nunes

Mestranda em Direito Privado do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas. Especialista em Direito Processual pelo IEC-PUC Minas. Professora de Direito Civil da PUC Minas (Campos Serro). Advogada.

Aluna Especial do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da UFES, Pós-Graduada em Direito Civil e Processual Civil, pela Faculdade Cândido Mendes/Consultime do Espírito Santo, Pós-Graduada em Direito Penal, pela Escola de Magistratura do Espírito Santo da Faculdade de Direito de Vila Velha, Espírito Santo. Advogada. Assessora Especial na Procuradoria do Estado do Espírito Santo.

Luís Carlos Martins Alves Jr Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), Doutor em Direito Constitucional pela UFMG, Professor no Centro Universitário de Brasília e Centro Universitário de Anápolis, Procurador da Fazenda Nacional.

Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes Mestrando em Direito pela UFES, Especialista em Direito Processual Civil e Graduado pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Professor Assistente na FDV, Assessor do Ministério Público Federal no Estado do Espírito Santo.

Maria Beatriz Nader Pós-doutora em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense, Doutora em História Econômica e Mestra em História e Filosofia da Educação pela USP, Professora Associada da UFES vinculada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em História Social das Relações Políticas e membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras.

Mariana de Siqueira Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora efetiva da UFRN. Professora da Especialização da UFRN. Professora da PósGraduação em Direito Marítimo, Portuário e do Petróleo da Faculdade Maurício de Nassau, Recife-PE. Professora da Pós-Graduação da Faculdade Maurício de Nassau, Natal-RN. Professora da Pós-Graduação em Direito do Petróleo da UNICAP-PE. Professora da Especialização da UNI-RN. Conselheira Estadual da OAB/RN.

Paulo Roberto Ulhoa Mestre em Direito pela UFMG, Graduado pela Faculdade Milton Campos em Belo Horizonte/MG, Coordenador do Curso de Direito da FSG, Professor de Direitos Humanos, Trabalho Interdisciplinar e Integrador, Propriedade Intelectual e Coordenador do Laboratório de Prática Jurídica da FSG, Tesoureiro da ABDH, Membro do Conselho de Direito Constitucional da OAB/ES, Membro da Associação Brasileira de Agentes de Propriedade Industrial (ABAPI) e do Conselho de Ética do Município de Cariacica.

Tiago Vieira Bomtempo Mestrando em Direito Privado do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC Minas. Especialista em Direito Público pelo IEC-PUC Minas. Membro da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB Minas Gerais. Investigador do Instituto de Investigação Científica Constituição e Processo. Biotécnico. Professor universitário.

Apresentação

A

Academia Brasileira de Direitos Humanos – ABDH – tem uma característica que lhe é peculiar como instituição: é inquieta por natureza. Com esse, por assim dizer, desassossego intelectual, quem ganha é a sociedade. Esta, eventualmente, é brindada com a chance de reciclar conhecimentos em âmbito dos direitos fundamentais do ser humano, por meio de eventos e obras trazidos à luz por esta orgânica Academia. Seria impossível à ArcelorMittal Tubarão apenas apresentar esta obra, sem discorrer, ainda que minimamente, sobre a personalidade institucional que insuflou a iniciativa deste livro que lhe está às mãos. Entidade jovem, mas com feitos dignos de um decano, poderíamos escolher aqui muitas perspectivas para um reconhecimento à ABDH. Optamos pela inquietude, porque esse nos parece o combustível que a inspira a integrar visões inovadoras e variadas quanto aos Direitos Humanos, como a própria pluralidade dessa matéria diversa e que requer um contínuo diálogo com a atualidade. Do contrário, os artigos aqui reunidos não passariam de um desfile estético do academicismo e da extemporaneidade. Afinal, as relações humanas expandem-se, cada vez mais, em volume, abrangência e complexidade, exigindo um acompanhamento arguto de necessidades jurídicas crescentemente atuais, inter e transdisciplinares. A despeito da condição humana exibir facetas múltiplas, seus dilemas e conflitos, inevitavelmente, circunscrevem-se à órbita de um cerne atômico e transversal que a sociologia ousou classificar como a “questão social”. Só é possível dividi-la em temas para facilitar a compreensão e a ação didaticamente, na tentativa hercúlea de transformar Direito em Justiça. Ao menos até onde as limitações o permitirem, ainda que soe pretensioso, a esse respeito, ultrapassar as raias da utopia. Limites invisíveis – e nem tão invisíveis assim – desviam a possibilidade de se manterem genuínos e plenos os princípios fundantes de um sujeito, sequer consciente de seus direitos e de que será inexoravelmente condenado a protagonista de sua própria história. Contudo, a Justiça, como proteção, em muito poderá amenizar processos de individuação, por vezes muito dolorosos, aos que tentam traçar trajetórias existenciais sem o amparo da lei.

Um vôo rasante pela extensão hermenêutica da impossibilidade de plenitude invoca os ares da humildade, ao revelar-se limitado o raio de ação do Direito. Até porque seus interstícios convivem com a elasticidade da política, nem sempre alinhada à lógica interpretativa dos signos cristalinos de seus códigos. Mas, a ABDH nunca se dá por vencida. Acredita que o substrato jurídico ainda seja um caminho eficaz para se minimizar arestas, iluminar consciências e por em xeque a inaceitável, e ainda latente, possibilidade de injustiça. Assegurar a proteção, individual, coletiva ou difusa à pessoa ou a um grupo delas, nos remete à chance de minimização do sofrimento, pessoal ou social. Para isso, uma direção segura é evitar retrovisores e descortinar horizontes por meio da antevisão, valendo-se dos olhos e das vozes dos que se prestam a pensar organicamente, tendo a realidade como foco e a lei como prioridade. Aqui está o Direito das Futuras Gerações, com todos os opcionais de vanguarda que seus autores, no auge de suas performances, se propõem a oferecer. Em um tempo de modernos holocaustos e da persistência de tantas formas de preconceito, de sofrimento evitável e descaso socioambiental, a ArcelorMittal Tubarão, sempre alinhada à legalidade, à ciência e à tecnologia, tem o prazer de lhes oportunizar a apresentação de mais esta grande realização da ABDH. Senão uma forma da instituição traduzir, mais uma vez, sua bem-vinda inquietude; então a materialização de novas possibilidades para se transformar o amanhã. Sidemberg Rodrigues Membro Honorário da Academia Brasileira de Direitos Humanos - ABDH Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP Presidente do Conselho Superior de Sustentabilidade e Responsabilidade Social da Federação das Indústrias do ES – FINDES Membro do Conselho de Responsabilidade Social da Confederação Nacional da Indústria – CNI-DF Gerente de Responsabilidade Corporativa, Relações Institucionais e Comunicação da ArcelorMittal Tubarão

Prefácio

A

comunidade jurídica e a sociedade civil celebram o lançamento de mais uma obra organizada pela Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Mantendo sua tradição democrática, multidisciplinar e de promoção dos direitos humanos, a ABDH congrega novamente nesta oportunidade um seleto grupo de autoras e autores que nos presenteiam com artigos sobre o Direito das Futuras Gerações. Pensar o futuro é algo inerente à sociedade contemporânea. O futuro não é mais um capricho dos deuses, é algo que a humanidade tem a pretensão de construir, mas o faz sobre as bases da incerteza, da contingência, do risco. É neste cenário que precisamos refletir criticamente sobre o papel do Direito, das instituições e das forças democráticas para lidar com esse novo paradigma social. Para tanto, o Direito precisa se soltar da ótica puramente retrospectiva que por tanto tempo marcou sua tradição. É preciso olhar para o passado e para o presente com consciência do futuro. Não se trata de futurologia – o jurista não é o novo oráculo da sociedade –, porém a atenção deve ser voltada não somente aos fatos pretéritos, mas também ao que pode acontecer; não podemos perder de vista como os direitos e as políticas públicas que hoje plantamos (ou deixamos de plantar) vão impactar o mundo e as futuras gerações. Como poderia se esperar, este cenário induz a transformações na estrutura do Estado de direito e da Constituição. O Estado de direito passa a se preocupar não somente com a regulação das relações civis, comerciais e trabalhistas, ou das prestações da seguridade social. O desenvolvimento deixa de ser visto como algo intrinsicamente bom, podendo gerar efeitos indesejados. Começa a se desenvolver ao longo da última metade do século passado a chamada regulação do risco, manifestando-se através de textos constitucionais, programas legislativos e administrativos, orientados à proteção da saúde, do meio ambiente, do consumidor, das pessoas em situação de vulnerabilidade, enfim, à proteção aos que suportam os efeitos dos riscos produzidos na sociedade.

Liberdade, igualdade e fraternidade – os elementos básicos do constitucionalismo – são substituídos, como sugere Denninger, por uma nova tríade: segurança, diversidade e solidariedade. No plano da diversidade, homens, mulheres, grupos étnicos e culturais, imigrantes, homossexuais e transexuais, pessoas com deficiências e idosos recebem tratamento diferente pelo direito, pois os textos constitucionais passam a ser vistos como registros programáticos para objetivos e demandas de grupos. A solidariedade, que se associa às noções de “respeito para com os outros” e de “espírito comum”, assume caráter transnacional e intergeracional. A segurança, por sua vez, deixa de significar a mera certeza jurídica, assumindo o prospecto de ilimitada e interminável atividade de proteção estatal em favor do cidadão contra perigos sociais, tecnológicos, ambientais, terroristas e da criminalidade. Esta reestruturação, todavia, não ocorre sem percalços. O próprio Estado nacional, no modelo westfaliano, já não consegue responder às demandas ligadas aos riscos e desafios globais, exigindo a criação de novas instituições transnacionais. Novas tecnologias desenvolvem-se em ritmo muito mais acelerado do que a produção de normas jurídicas voltadas à sua regulação, e, com isso, parcela do poder legislativo é transferida a órgãos burocráticos sem legitimação democrática. O progresso científico da biomedicina e da nanotecnologia testam os limites éticos que nos definem como humanos. Leigos e experts – e até experts entre si – discordam sobre temas fundamentais para a sociedade, afastando o ideal de consenso. Tribunais passam a julgar pelas consequências, desvinculando-se do código próprio do sistema jurídico. Além disso, a exigência de proteção pode dar lugar à implantação de um estado de exceção permanente e à supressão da intimidade privada, como se observa na infindável “guerra ao terror”. O desafio, portanto, é garantir a defesa dos direitos das futuras gerações sem perder as garantias constitucionais até aqui duramente conquistadas.

Prefácio

Sumário Introdução ________________________________________________ Constitucionalismo e Futuras Gerações

Estas e outras questões são objeto da notável coleção de artigos que compõem mais esta obra da ABDH. Diversos autores, variados assuntos, mas formando um todo coeso sobre o tema do Direito das Futuras Gerações agrupados nos tópicos Constitucionalismo e Futuras Gerações, Novas Tecnologias, Questão Genética e Autonomia sobre o Próprio Corpo, Sustentabilidade e Meio Ambiente, Alteridade e Ética com Responsabilidade, Democracia Participativa e Identidade Cultural. Convido-os a lerem esta obra, que, certamente, tornar-se-á uma referência obrigatória sobre os direitos humanos na atualidade.

20

1. O futuro dos direitos humanos e o constitucionalismo do futuro (Jose Luis Bolzan de Morais & Gustavo de Oliveira Vieira). ___________________________________________________________

27

2. Constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil? Reflexões a Partir da Ideia de um Direito das Futuras Gerações (José Emílio Medauar Ommati). __________________________________________________________

45

3. Multilevel governance of interdependent public goods in the 21st century: from national to multilevel and cosmopolitan constitutionalism? (Ernst-Ulrich Petersmann). __________________________________________________________

65

4. European Union’s Struggle for Gaining Food Safety Regulatory Autonomy under World Trade Organization Dispute Settlement Mechanism (Anamaria Toma-Bianov). ___________________________________________________________

87

Novas Tecnologias 5. O que pode o direito frente às novas tecnologias (Paulo Roberto Ulhoa). _________________________________________________________ Doutor Alceu Mauricio Junior

105

Questão Genética e Autonomia sobre o Próprio Corpo

Professor Universitário - Universidade Vila Velha (UVV-ES) - Faculdade de Direito.

6. Old and new rights in the postgenomic era (Carla Faralli).

Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio.

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É Mestre em Direito Público pela UERJ e Bacharel em Direito pela UFBA.

121

Foi bolsista da Comissão Fulbright e do Departamento de Estado dos EUA (H. Humphrey Fellowship Program).

7. Melhoramento humano: de ser para coisa? Uma abordagem a partir da (des)construção da personalidade (Leana Mello & Tiago Vieira Bomtempo).

É Juiz Federal na 2ª Região (RJ e ES)

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Cursou especialização na American University, Washington College of Law.

135

8. Eutanásia no sistema jurídico brasileiro: a urgência de uma nova análise sob o prisma dos princípios da dignidade humana e da autonomia privada (César Fiuza & Júlia Cristina Faleiro Urbano). _________________________________________________________

153

16. O “bullying” como fator estigmatizador das crianças advindas de famílias homoafetivas e a necessidade de alteração dessa mentalidade como forma de construir o “cidadão do futuro” (Jackelline Fraga Pessanha & Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes).

9. O direito das gerações futuras entre a livre disposição do próprio corpo e os “amputees by choice” (Julia Silva Carone & Julio Pinheiro Faro).

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175

Sustentabilidade e Meio Ambiente 10. A Sustentabilidade como Paradigma na Construção do Estado Contemporâneo e da Sociedade Civil na Contemporaneidade (Elizabeth de Mello Rezende Colnago). _________________________________________________________

185

11. Dos cata-ventos ao desenvolvimento: o papel da energia eólica na concretização da sustentabilidade energética nacional (Ingrid Zanella Andrade Campos, Karoline Lins Câmara Marinho de Souza & Mariana de Siqueira). __________________________________________________________

211

12. Por mares nunca de antes navegados: gestão do risco e investigação científica no meio marinho (Carla Amado Gomes).

293

17. Infância e erotização precoce (Maria Beatriz Nader & Thaísa Nunes).

313

18. O dever de educar e o ensino domiciliar (Ronaldo L. B. Segundo & Daury Cesar Fabriz). _________________________________________________________

321

19. A construção social do criminoso: um diálogo entre o direito penal e a psicanálise a partir da perspectiva dos direitos humanos (Jovacy Peter Filho & Filipe Knaak Sodré) _________________________________________________________

335

Democracia Participativa 20. Participative democracy and the fiscal issue (Katia Blairon). _________________________________________________________

353

13. A Exclusão Ambiental no Brasil: uma discussão do racismo ambiental e da biopolítica (Ivy de Souza Abreu).

21. O “Coronelismo” e a Democracia Brasileira: um breve ensaio reflexivo sobre a Lei da “Ficha Limpa” e sobre o financiamento das campanhas eleitorais, sob as luzes do magistério doutrinário de Victor Nunes Leal (Luís Carlos Martins Alves Jr.).

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223

235

Alteridade e Ética com Responsabilidade 14. A Ética da Alteridade e da Responsabilidade e a Hermenêutica Diatópica: um diálogo entre Lévinas e Panikkar e a busca pelo Reconhecimento do Outro na Construção Intercultural dos Direitos Humanos (Heleno Florindo da Silva). _________________________________________________________

263

15. O julgamento da ADPF n. 132 pelo STF como um caso modelo de uso de uma interpretação construtiva do Direito (Flávio Quinaud Pedron). _________________________________________________________

281

371

22. Submissões, Permissões e Pactos: Democracia, Constituição e a Alternativa do Estado Plurinacional (José Luiz Quadros de Magalhães). _________________________________________________________

393

Identidade Cultural 23. Controversias sobre el reconocimiento de la identidad cultural como derecho (J. Alberto del Real Alcalá). _________________________________________________________

415

Introdução

Introdução O TEMPO DOS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO DOS DIREITOS HUMANOS DAS FUTURAS GERAÇÕES: UMA INTRODUÇÃO Julio Pinheiro Faro Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes Jackelline Fraga Pessanha

E

m uma época em que as incertezas são cada vez mais certas, em que as vontades se amoldam ao sabor da última moda, em que os esforços envidados por órgãos e organizações pela preservação do meio ambiente, pelo uso de energias renováveis, pelo respeito às diferenças, pelas pesquisas biológicas, pela ética com responsabilidade, enfim, por uma participação mais democrática e por uma cooperação entre as pessoas, a Academia Brasileira de Direitos Humanos – ABDH lança sua nova obra coletiva, com uma reunião de ensaios sobre o Direito das futuras gerações. Trata-se de um contributo para que a sociedade cada vez mais seja menos individualista e estabeleça laços mais firmes de cooperação para as presentes e futuras gerações. Pensar o que ocorre no presente não é uma tarefa fácil. Projetar o futuro, muito menos. Essa coletânea de artigos demonstra a preocupação da Academia com o tratamento dado pela sociedade aos direitos humanos no tempo, tanto em relação ao que já foi reconhecido quanto ao que tem sido debatido, e aguarda, por isso, melhores desenvolvimentos teóricos e legislativos. Nesse sentido, o direito das futuras gerações apresenta um fio condutor que tem estreita relação com o tempo e sua influência sobre os direitos humanos. O futuro deve ser pensado, refletido e colocado em prática. As pessoas não estão entregues ao acaso. Para que haja um avanço da civilização, sempre foi necessário planejamento. Nesse sentido, a presente obra tem por escopo uma análise crítica dos mais variados temas que envolvem 20

N

as futuras gerações. A escritora brasileira, Clarice Lispector, em A Paixão segundo G.H., afirmava: “tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação”. Assim é que se apresenta a temática trazida nesta obra. O fim a ser alcançado com a análise crítica dos direitos das futuras gerações nos ensaios aqui reunidos é trazer à tona, além de importantes contribuições para o desenvolvimento econômico-social, bem como para o avanço das ciências e do pensamento contemporâneo, também objetiva tratar das feridas que a sociedade gerou a seus pares, como é o caso do preconceito e desrespeito social às diferenças e da omissão Estatal em regular efetivamente as condutas, a fim de impedir sua disseminação. Essas palavras introdutórias ao novo livro da ABDH têm, assim, o propósito de mostrar a relação entre os vinte e dois ensaios reunidos, para que o leitor tenha uma visão ampla dos mais variados temas discutidos. O seu fio condutor propõe que os trabalhos reunidos dialoguem sobre o Direito das futuras gerações, ainda que não sigam uma mesma matriz teórica, nem adotem metodologias iguais ou parecidas, já que seus autores pertencem a escolas de pensamento diversas. A beleza de uma obra coletiva está nisso, na liberdade e na autonomia dada aos colaboradores convidados para escolher quais temas e quais abordagens irão demonstrar dentro da temática central proposta. O livro inicia com dois ensaios voltados para o constitucionalismo e as futuras gerações. No primeiro, de José Luiz Bolzan de Morais e Gustavo de Oliveira Vieira, sobre O futuro dos direitos humanos e o constitucionalismo do futuro, os autores discutem as consequências da condição pós-nacional, promovida pela globalização e que impõe uma revisão do Direito, para instaurar, assim, um debate necessário sobre o presente e o futuro dos Estados nacionais constitucionais e sua relação com os direitos humanos. No segundo, Constitucionalização do direito administrativo no Brasil? Reflexões a partir da ideia de um direito das futuras gerações, José Emílio Medauar Ommati discute a possibilidade de constitucionalização do Direito administrativo brasileiro a partir de um direito genérico das futuras gerações. No ensaio seguinte, Multilevel governance of interdependent public goods in the 21st Century: from national to multilevel and cosmopolitan constitutionalism?, Ernst-Ulrich Petersmann discorre a necessidade da existência de um constitucionalismo cosmopolitano para uma melhor proteção dos bens públicos internacionais, em benefício dos cidadãos e de seus direitos constitucionais. Com uma reflexão parecida, Anamaria 21

N

Introdução

Toma-Bianov, em European Union’s struggle for gaining food safety regulatory autonomy under World Trade Organization dispute settlement mechanism, examina como a União Europeia defende sua autonomia regulatória na criação de padrões e medidas de segurança alimentar diante do cenário internacional. Na sequência, Carla Faralli, em Old and New Rights in the Postgenomic Era, abre o rol de ensaios sobre a questão genética e de autonomia sobre o corpo humano. Em seu trabalho, Faralli discorre sobre o Projeto Genoma Humano e as implicações morais, sociais e jurídicas dessa pesquisa, especialmente no âmbito dos direitos humanos e sua proteção em nível internacional. Seguindo esse tema, Leana Mello e Tiago Vieira Bomtempo, em Melhoramento humano: de ser para coisa? Uma abordagem a partir da (des) construção da personalidade, analisam a cláusula geral da tutela da pessoa humana a partir do biodireito, considerando as descobertas cujo foco é a melhoria da qualidade de vida, contrapondo a questão do uso de meios artificiais na busca da perfeição e os direitos de personalidade, questionando, assim, como as escolhas pessoais, isto é, a autonomia pessoal pode construir ou desconstruir a personalidade humana. Também refletindo sobre a autonomia humana e os direitos relacionados à personalidade, César Fiuza e Júlia Cristina Faleiro Urbano analisam, em Eutanásia no sistema jurídico brasileiro: a urgência de uma nova análise sob o prisma dos princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada, essa prática de abreviar a vida sob os princípios da dignidade humana e da autonomia da vontade, buscando subsídios para sua legalização. Terceiro ensaio que compõe essa lista no debate sobre a autonomia da vontade é o de Julia Silva Carone e Julio Pinheiro Faro, que, em O direito das gerações futuras entre a livre disposição do próprio corpo e os “amputees by choice”, fazem uma análise sobre a possibilidade de o ser humano, por ter liberdade de disposição sobre seu próprio corpo (autonomia), amputar membros saudáveis. Apresentando o tema voltado às novas tecnologias, Paulo Roberto Ulhoa, em O que pode o direito frente às novas tecnologias, destaca a importância das novas tecnologias para a comunicação entre as pessoas, visando a inclusão digital que está diretamente vinculada à exclusão econômica e educacional, como fundamento básico para o exercício da cidadania. Abrindo a questão ambiental, A sustentabilidade como paradigma na construção do Estado contemporâneo e da sociedade civil na contemporaneidade, de Elizabeth de Mello Rezende Colnago, traz uma reflexão sobre a necessidade de haver conscientização sobre a percepção da crise

ecológica mundial, criando-se uma governança ambiental direcionada para o desenvolvimento da sustentabilidade, especialmente para a manutenção dos direitos das futuras gerações. Também discorrendo sobre a sustentabilidade, Ingrid Zanella Andrade Campos, Karoline Lins Câmara Marinho de Souza e Mariana de Siqueira debruçam-se, em Dos cata-ventos ao desenvolvimento: o papel da energia eólica na concretização da sustentabilidade energética nacional, sobre o estudo do dever do Estado de prover fomento à energia eólica e sua relação com o princípio constitucional de desenvolvimento. Ainda no tema, em seu Por mares nunca de antes navegados: gestão do risco e investigação científica no meio marinho, Carla Amado Gomes analisa a questão da proteção do meio ambiente marinho diante das intervenções humanas, voluntárias e involuntárias, e a necessidade de haver uma gestão racional dos recursos do mar para prevenção de riscos. Por fim, Ivy de Souza Abreu analisa, em A exclusão ambiental no Brasil: uma discussão do racismo ambiental e da biopolítica, a questão da biopolítica e do biopoder e sua influência nas decisões estatais e sua face excludente diante de questões ambientais, gerando um tipo de biorracismo (outsiders ambientais). Abrindo o tema da alteridade e reconhecimento do outro e ética com responsabilidade, em A ética da alteridade e da responsabilidade e a hermenêutica ditópica: um diálogo entre Lévinas e Panikkar e a busca pelo reconhecimento do outro na construção intercultural dos direitos humanos, Heleno Florindo da Silva demonstra a necessidade de reconhecer o outro (alter) para que se possa alcançar uma construção intercultural dos direitos humanos, a fim de dar voz e de respeitar as diferenças culturais. Também com o mesmo tipo de reflexão sobre alteridade, temos o manuscrito O Julgamento da ADPF n. 132 pelo STF como um caso modelo do uso de uma interpretação construtiva do Direito, que traduz uma abordagem atual e recente acerca do tema relacionado à interpretação constitucional e as uniões homoafetivas. Seguindo ainda com o debate acerca da homoafetividade e seus reflexos na sociedade contemporânea, em Bullying e homoafetividade: necessidade de mudança de paradigmas para a construção do “cidadão do futuro”, Jackelline Fraga Pessanha e Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes discutem a falta de respeito ao próximo, cada vez maior na sociedade, especialmente naquilo em que se refere ao preconceito contra crianças e adolescentes inseridas em famílias homoafetivas. Maria Beatriz Nader e Thaísa Nunes analisam, em Infância e a erotização precoce, como o sentimento de infância e o fenômeno da erotização precoce se formaram historicamente, focando o paradoxo da infân-

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Introdução

cia, o qual distingue a criança do adulto do ponto de vista econômico, e que desafia e condiciona a menina a se portar, em condições sociais, à imagem de sua mãe. Na sequência, Ronaldo L. B. Segundo e Daury Cesar Fabriz discorrem sobre O dever de educar e o ensino domiciliar, abordando questões relativas à possibilidade de os pais cumprirem adequadamente seu dever de prover educação aos filhos mediante o ensino domiciliar, especialmente no que diz respeito à formação das gerações futuras. Por fim, ainda abordando a questão do outro, Jovacy Peter Filho e Filipe Knaak Sodré, em A construção social do criminoso: um diálogo entre o direito penal e a psicanálise a partir da perspectiva dos direitos humanos, analisando o quanto a sociedade contemporânea rotula e tarifa as pessoas, atribuindo-lhes estigmas. Abrindo os artigos sobre democracia, Katia Blairon trata sobre a questão deliberativa na democracia relacionando interesse coletivo e questão orçamentário-fiscal dentro do sistema representativo em Participative democracy and the fiscal issue. Também no viés da democracia, porém no contexto brasileiro, Luís Carlos Martins Alves Jr. faz uma análise, em O “coronelismo” e a democracia brasileira: um breve ensaio reflexivo sobre a Lei da “Ficha Limpa” e sobre o financiamento de campanhas eleitorais, sob as luzes do magistério doutrinário de Victor Nunes Leal, de um recente julgado da mais alta corte judicial brasileira sobre a questão democrático-eleitoral brasileira. Ainda sobre democracia, em Submissões, permissões e pactos: democracia, constituição e a alternativa do Estado plurinacional, José Luiz Quadros de Magalhães reflete sobre a relação entre democracia e constituição dentro de uma alternativa democrática dialógica, não hegemônica e pluridiversificada do Estado plurinacional. Por fim, há o ensaio de J. Alberto del Real Alcalá a respeito das Controversias sobre el reconocimiento de la identidad cultural como derecho, em que defende o reconhecimento positivo progressivo do direito à identidade cultural como um direito generalizado das pessoas individuais, e não como um direito restrito a grupos.

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Constitucionalismo e Futuras Gerações

1 O FUTURO DOS DIREITOS HUMANOS E O CONSTITUCIONALISMO DO FUTURO Jose Luis Bolzan de Morais Gustavo de Oliveira Vieira

1  C  ONSIDERAÇÕES INICIAIS: NOTAS SOBRE O CONTEXTO CONTEMPORÂNEO DOS DIREITOS HUMANOS

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temática sugerida nesta intervenção busca refletir acerca das interfaces que se pode promover entre os tópicos presentes no título deste trabalho diante das perplexidades postas pelo fenômeno da mundialização em suas diversas facetas. Ou seja, pretendemos aqui promover uma rápida reflexão no que diz com os vínculos que se apresentam entre a questão da mundialização, como um fenômeno renovado no final do século XX e início do atual, dos Direitos Humanos, como projeto histórico de construção da dignidade humana, e do constitucionalismo, a partir de seus vínculos modernos com o Estado Nacional e da situação nova que se apresenta com o processo de desterritorialização e reconfiguração das fronteiras “modernas”. Não podemos nos furtar ao enfrentamento deste tema se quisermos dar vazão, com um certo grau de suficiência, ao necessário debate acerca do presente e do futuro dos nomeados Estados Nacionais Constitucionais, como Estados Democráticos, mesmo rompendo, desconstruindo e reconstruindo seus espaços e estratégias de atuação. Partindo deste pressuposto queremos sugerir uma leitura que veicule um ponto de vista que parte da contradição entre duas propostas distintas para aquilo que adiante nomearemos de um projeto mundial com exequibilidade local. Assim, desde logo poderíamos adiantar que se fossemos titulares de 27

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uma resposta à interrogação suscitada pelo tema enfrentado, seríamos tentados a dizer que a mundialização em seu sentido estrito, como projeto econômico hegemônico, unilateral e, por consequência, uniformizante, aparece como uma perversa farsa que impõe (pretende impor) um padrão único e totalizante – para sermos eufemísticos – de condutas, interrogando tanto o Direito quanto a Democracia – o constitucionalismo, portanto – enquanto mecanismos e vias de acesso e concretização dos Direitos Humanos. Por outro lado, se pensarmos a mundialização não enquanto tal, mas como um projeto civilizatório que conjuga uma perspectiva universal que se constrói em escala mundial e se concretiza no plano local a partir de padrões compartilhados de justiça e de interações variadas entre os diversos âmbitos onde se desenrolam as relações sociais contemporâneas – local, regional, nacional, supranacional, mundial, cosmopolita, em uma circularidade construtiva/destrutiva/(re)construtiva –, seríamos conduzidos a dizer que estaríamos, então, diante de uma nova perspectiva se quisermos construir uma sociedade justa e solidária, sob o viés de uma interação cosmopolita em um ambiente que Habermas nomeia de mundialização dos riscos ou que Ulrich Beck chama sociedade de riscos. Quem sabe poder-se-ia falar, desde uma lógica humanitária, em um pensamento universal democrático que, ao mesmo tempo em que se pretende “global”, não visa à diluição das diferenças, harmonizando e não unificando posições. A partir desta premissa o tema proposto sugere a possibilidade de uma leitura desde três vertentes1, a saber: a) da política, percebida desde a democracia, sugerindo a sua necessária universalização e qualificação, projetando-se por sobre as duas outras vertentes seguintes; b) do direito, tomado a partir do constitucionalismo, do Estado de Direito e dos Direitos Humanos, sugerindo a sua mundialização desde, por óbvio, seu caráter universal - não homogêneo; c) da economia, em sua interconexão planetária, tomada desde o seu caráter de mundialização e sua necessária vinculação ao projeto que poderíamos identificar com o Estado Democrático de Direito. Para tanto, podemos utilizar o exemplo comparativo proposto por Philippe Petit em entrevista a Zaki Laïdi segundo o qual para a Coca-co1 .  Esta segmentação tem apenas um caráter organizativo da discussão, não pretendendo, com isso, significar uma leitura segmentada do problema. Da mesma forma, esta tripartição não será objeto de análise pontual no presente texto. 28

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la ser uma bebida mundial, global ou universal não faz diferença. Agora, se formos sair do campo dos objetos, produtos ou técnicas, para os valores, o sentido dos termos universal e mundial se diferencia profundamente, sendo que a mundialização refere à difusão espacial de um produto, de uma técnica ou de uma ideia enquanto que a universalização implica um partilhar de sentidos2. Assim, para Mireille Delmas-Marty, deve-se operar com a distinção mundialização da economia/universalização dos Direitos Humanos, enquanto o termo mundialização manteria uma neutralidade, evitando-se o primado da economia sobre os Direitos Humanos3.

2  DIREITOS HUMANOS PARA ALÉM DO ESTADO NAÇÃO

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m primeiro lugar é necessário pensar a questão do chamado Estado de Direito e tomá-la sob as suas diversas vertentes, a saber: liberal, social e democrática de direito, para explorar o modo com que os Direitos Humanos se circunscrevem e ao mesmo tempo transbordam o “espaço” institucional do Estado nacional. Neste sentido, convém ter presente que a cada momento destes o projeto do Estado de Direito, ao mesmo tempo em que incorpora conteúdos novos – liberdades, igualdades e solidariedades – projeta uma atuação estatal privilegiadora de uma de suas funções – legislativa, executiva e jurisdicional, respectivamente –, bem como supõe garantias, prestações ou transformações. Hoje, sob o influxo do chamado Estado Democrático de Direito está-se imerso, ao mesmo tempo, em um projeto de transformação da sociedade, por um lado, e, por outro, em um esfacelamento das condições necessárias e suficientes para a sua concretização. 2 .  Ver: LAÏDI, Zaki. Malaise dans la Mondialisation. Entretien avec Philippe Petit., pp. 28-29, apud DELMAS-MARTY, Mireille, Trois défis pour um droit mondial. Paris: Seuil. 1998, p. 14. 3 .  Para ela: Du côté de l’économie, et plus précisément du droit économique, il s’agit en effet de globalisation si l’on entend par là une diffusion spatiale à l’échelle du globe; mais ce sera le plus souvent une diffusion unilatérale, donc uniformisante et non pluraliste. D’où le risque évident d’une mondialisation hégémonique, qui n’exprime rien d’autre que l’éternelle loi du plus fort.Quant aux droits de l’homme, ils sont en effet porteurs de sens,..., comme notre langage commun, à vocation universelle...Ver: DELMAS-MARTY, op. cit., p. 15 29

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Tal perspectiva nos põe frente ao problema dos Direitos Humanos, como veremos a seguir que é, a nosso ver, outro pilar desta discussão, para que entendamos privilegiadamente o quadro das relações internacionais contemporâneas, em especial no que diz respeito ao problema da soberania. Parece-nos fundamental a compreensão não só do estabelecimento, mas, em especial, do conteúdo dos ditos Direitos Humanos, assim como do processo de transformação por que passam com a emergência de novas realidades. Neste sentido, é mister que tracemos breves considerações a respeito do tema, na tentativa de lograr o estabelecimento de uma compreensão mínima acerca do papel reservado aos Direitos Humanos. Para tanto, é preciso que se tenha desde logo a aceitação de que os Direitos Humanos, como tais, não formam um conjunto de garantias cujo conteúdo possa ser adquirido e construído de uma vez por todas. Não são direitos elaborados a partir da compreensão do que seja uma dada “natureza” inerente à pessoa humana, como fora pensado em determinados momentos históricos - veja-se o caso de John Locke, para quem, com o desvelamento do conteúdo desta “natureza” seria viável a elaboração dos próprios Direitos Humanos. O que se deve ter como assente, portanto, é o caráter fundamentalmente circunstancial, o que não significa necessariamente efêmero, destes. Em razão mesmo deste caráter de historicidade que deve ser posto sob evidência no trato dos Direitos Humanos observa-se a total inadequação da tentativa de se estabelecer qualquer sentido de absolutização na definição dos mesmos. Tal assertiva pode ser corroborada inapelavelmente pela transformação que se percebe nos próprios Direitos Humanos desde a sua formulação mais festejada no transcurso do século XVIII. Percebe-se neste percurso a transposição dos chamados direitos de primeira geração (direitos da liberdade), circunscritos às liberdades negativas como de – aparentemente – oposição à atuação estatal, para os de segunda geração (direitos sociais, culturais e econômicos), vinculados à positividade de tal ação e preocupados com a questão da igualdade, aparecem como pretensão a uma atuação corretiva por parte dos Estados e, posteriormente, os de terceira geração que se afastam consideravelmente dos anteriores por incorporarem, agora sim, um conteúdo de universalidade não como projeção, mas como compactuação, comunhão, como direitos de solidariedade, vinculados ao desenvolvimento, à paz internacional, ao meio-ambiente saudável, à comunicação. Fala-se, já, de uma quar-

ta geração de direitos que incorporariam novas realidades, tais como aquelas afetas às consequências, e.g., da pesquisa genética. Por outro lado, é preciso que, para além da aceitação desse aspecto mutante, agregue-se ao nosso estudo a perspectiva de que a transformação histórica não significou apenas a incorporação de outros direitos aos já consagrados. A inovação repercutiu também, profundamente, em um aspecto que poderíamos nomear temporariamente de abrangência, além de fragilizar o seu caráter de conteúdos negativos. Embora sempre presente a universalidade, os Direitos Humanos foram primeiramente aqueles pertencentes a certas parcelas da humanidade, mas, mais do que isto, representavam, acima de tudo, direitos individuais, ou seja, direitos incorporados ao patrimônio singular de cada indivíduo, malgrado o acesso possível de todos. A construção de novos Direitos Humanos, frutos de uma sociedade que se expandia economicamente e que produzia novos carecimentos, distintos dos anteriores, implicou na elaboração de direitos que não mais seriam apropriáveis individualmente, mas, cuja dimensão se espraiaria para agrupamentos inteiros de indivíduos que se reúnem sob determinada situação que lhes é comum – os direitos de segunda e terceira gerações referem à ideia de um compartilhamento de situações em função dos interesses transindividuais que versam4. Quando adentramos nos chamados Direitos Humanos de terceira geração somos tomados pela percepção de que estamos diante, efetivamente, de uma nova realidade para os Direitos Humanos que, neste momento, se apresentam como detentores de uma “universalidade comunitária” no sentido de que o seu objeto diz respeito a pretensões que atingem inevitavelmente a comunidade humana como um todo. Não se trata mais de fazer frente ao arbítrio do Estado relativamente a determinados indivíduos, nem mesmo de demandar a solução/garantia de certas pretensões/benefícios a grupos determinados de pessoas. Trata-se, isto sim, de fomentar o caráter solidário do homem, fazendo-o compreender uma espécie de destino comum que o prende aos demais. A violação não se estabelece mais na relação do indivíduo com o Estado, sequer a pretensão se dirige a um Estado. Ambas refletem como que uma corresponsabilidade pela qualidade e continuidade da vida humana. A garantia ou a violação afetam a todos inexoravelmente.

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4 .  BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais: O Estado e o Direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. 31

Como se vê, há uma realidade mutante nos Direitos Humanos que implica na passagem das liberdades/garantias para os poderes/prestações e, por ora, para solidariedades, sem que isto signifique que a emergência de uma nova geração imponha o desaparecimento, ou mesmo o enfraquecimento, da anterior. Cada uma delas dirige-se para circunstâncias que lhes são próprias, embora se intercambiem. Neste contexto é necessário revisitarmos, rapidamente, o ambiente privilegiado de expressão dos Direitos Humanos – a Constituição –, tendo presente, sempre, os seus próprios dilemas. O que temos vislumbrado, quando as Constituições dos Estados Nacionais e o próprio constitucionalismo moderno são revisitados, é a perda de significado e capacidade diretiva dos próprios Direitos Humanos, apesar de seu privilegiamento textual nas mais diversas Cartas Políticas contemporâneas, em razão da própria fragmentação desta. Assim, é necessário começar repensando acerca dos reflexos no constitucionalismo e nas Constituições, como documentos básicos e fundamentais ordenadores da vida comunitária e da prática do poder político das questões trazidas pela dita mundialização. Tal interrogante passa, inicialmente, pelas questões postas pelo desenvolvimento tecnológico e, particularmente, pelas transformações que esta e outras estratégias derivadas fazem repercutir na organização econômica e nas formas produtivas em escala mundial. A mundialização – econômica - implica em uma radical mudança no perfil do Estado contemporâneo, particularmente em seu caráter soberano, o que inexoravelmente se reflete sobre a sua capacidade de auto-organização. Daí derivam, para o tema em tela, consequências significativas na medida em que a fragilização das estruturas estatais e a perda de sua centralidade exclusivista e superior faz repensar a questão constitucional, posto que as constituições foram sempre o reflexo da ocorrência do poder soberano dos Estados Nacionais dotados de um território – elemento objetivo – e de um povo – elemento subjetivo – sobre e para os quais se constituíam e organizavam em um documento legislativo supremo as formas e os conteúdos da vida política e social da comunidade. Desaparecido, transformado ou minimizado o poder característico do Estado Moderno - a soberania -, pode-se perguntar para onde se dirige o constitucionalismo, em especial quando o agigantamento do poder privado faz sombra à tradicional suprema potestade estatal, implicando, muitas vezes, na sua incapacidade em reagir ou controlar as decisões to-

madas alhures, ou mesmo, ter de se adaptar aos interesses e vontades do capital transnacionalizado, em um mundo onde está substituindo-se a política pelo mercado, como instância privilegiada de regulação social. Assim, se constrói um quadro onde essa soberania compulsoriamente partilhada, sob pena de acabar ficando à margem da economia globalizada, tem obrigado o Estado-Nação a rever sua política legislativa, a reformular a estrutura de seu direito positivo, a redimensionar a jurisdição de suas instituições judiciais mediante amplas e ambiciosas estratégias de desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização, implementadas paralelamente à promoção da ruptura dos monopólios públicos, bem como promover amplos e profundos programas de “reforma” dos instrumentos e programas de bem-estar social, além de enfrentar o que nomeamos fantochização da política como democracia. Neste contexto dramático de concorrência de poderes, a articulação entre estes diversos espaços, muitas vezes aponta para a flexibilização – para usar um termo da moda – do constitucionalismo, em sentida fragilização das conquistas sociais obtidas ao longo de séculos de luta cidadã, embora em uma perspectiva otimista possa-se falar em uma transformação do caráter soberano dos Estados Nacionais, passando estes a operarem sob o signo da cooperação. Na perspectiva humanitária tal contexto coloca o problema da concretização dos seus conteúdos. Este parece ser o grande ponto de estrangulamento de inúmeras questões ligadas a esta temática. Se, de um lado, o reconhecimento dos conteúdos das várias gerações de Direitos Humanos parece ser algo com o que as diversas correntes ideológicas sustentadoras dos mais diferentes governos podem conviver e, mais do que isso, buscar legitimação interna e internacional, de outro a tentativa de dar-se efetividade aos mesmos esbarra nos mais diferentes empecilhos, seja de ordem prático-política - e aí estão os inúmeros governos autoritários espalhados pelo mundo além das insuficiências de ordem social para uma ordem efetivamente democrática -; seja de ordem teórico-jurídica - e aí estão as posições da tradição jurídica do Estado Moderno, em especial naqueles países orientados pela tradição jurídica romano-germânica, que impõem uma postura contraditória em face de uma convivência de ordens jurídicas diversas, particularmente entre o direito interno e o direito internacional, ou pela supremacia de um discurso jurídico liberal que privilegia a figura do indivíduo como titular do direito desvinculada de suas relações sociais e das interfaces ambientais; seja, ainda, de ordem econômica - e aí estão

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as propostas neoliberais orientadas por um projeto econômico globalizado e predatório, onde a orientação da política e do jurídico - reféns da economia financeira do capitalismo neoliberal - se dá sob a égide de um discurso calcado na ideia de eficácia, flexibilização, desregulação, etc., como apontada acima. Pode-se sugerir, assim, que neste quadro, mais do que as estratégias normativas com base constitucional é o próprio sentido do poder político democrático representativo que se dilui – um projeto político comunitário que movimentou utopias e forjou instituições e não se efetivou em vários quadrantes se vê interrompido. Apesar disso, cremos ser importante recuperar/retomar o debate acerca da matéria visando compartilhar algumas preocupações no sentido de buscar mecanismos que nos permitam dar maior efetividade - no sentido dado pelo constitucionalista português Jorge Miranda - possível aos conteúdos normativos reconhecedores dos Direitos Humanos em suas diversas expressões, bem como aos conteúdos e mecanismos da política como democracia, em seu duplo aspecto formal/ procedimental e social/substancial. Pode-se dizer que, para além desta pretensão primária, muitas outras se colocam, podendo-se aduzir que: a) em primeiro lugar está, sem dúvida, a importância da temática, a qual veicula as preocupações relativas ao que há de fundamental para a construção de um quotidiano digno para o ser humano; b) em seguida, pode-se referir a necessidade de constante revitalização não apenas dos conteúdos próprios destas pretensões humanitárias mas, sobretudo, aos mecanismos que lhe dão efetividade, sendo indispensável que tenhamos sempre presente a necessidade de construirmos instrumentos cada vez mais facilitadores da colocação em prática e da possibilitação da usufruição destes conteúdos – colocação em prática que necessariamente passará por uma mudança estrutural na condição político-econômica da distribuição de riquezas e benefícios sociais apropriados por minorias; e, c) por fim, no caso brasileiro, é preciso que se busque, até mesmo pela experiência histórica, instrumentalizar os operadores jurídicos com os meios necessários para uma prática comprometida com a eficácia dos Direitos Humanos, especialmente a partir da promulgação da Carta Magna de 1988 que se assenta, fundamentalmente, na salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais, na esteira, diga-se, do constitucionalismo contemporâneo, estruturado sob a opção do Estado Democrático de Direito, com o uso de mecanismos jurídicos/judiciosos de garantia de direitos para

além do Estado nacional. E, mais do que isso, como prática político-jurídica de enfrentamento das estratégias de mundialização dominadas pelas práticas do capitalismo financeiro – tornando-se cabíveis instrumentos de mobilização social capazes de reacender a esfera pública em novas condições de autonomia e emancipação política. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, referenda alguns conteúdos que nos conduzem a compreendê-la como inserida no rol daquele constitucionalismo cujo objeto fundante está nos Direitos Humanos, conjugados no espectro do princípio da dignidade da pessoa, os quais devem orientar não apenas os trabalhos dos juristas, como também a atuação das autoridades públicas e da sociedade como um todo. Deve-se ter presente, para além da carta de Direitos Humanos expressa em seu interior e do caráter eficacial que lhe é atribuído - art. 5o, § 1o da CFB/88 -, dentre outros, o disposto no art. 5o, § 2o do texto constitucional brasileiro. Esta norma inovadora se apresentava, até o advento da Emenda Constitucional n. 45/04, como cláusula constitucional aberta, pois, a partir dela poder-se-ia construir a hipótese de que a mesma atribui natureza de norma constitucional aos tratados internacionais de Direitos Humanos que o Brasil é parte, diante da assunção da dignidade humana e dos Direitos Humanos como axiomas do fenômeno constitucional, o que se vincula à legitimidade material da Constituição - uma fundamentação substantiva para os atos do poder público afirmando-se como um parâmetro material, diretivo e inspirador dos mesmos, o que é fornecido pelo elenco dos Direitos Humanos. Entretanto, com a nomeada Reforma do Judiciário, e a inclusão de um novo parágrafo ao texto deste art. 5º, ingressa-se em uma nova fase, na qual tal “abertura” sofre um enclausuramento pela exigência, para a internalização dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos em sede constitucional após o entendimento jurisprudencial do STF (RE 466.343), de um procedimento legislativo idêntico àqueles próprios às emendas à Constituição. Assim, a atividade do jurista, como dito acima, deve ser a de consignar máxima efetividade às Normas Constitucionais, ou seja, a uma norma constitucional tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê; a cada norma constitucional é preciso conferir, ligada a todas as outras normas, o máximo de capacidade de regulamentação. Como diz Konrad Hesse, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição,

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estando submetida ao princípio da ótima concretização da norma, para que, assim, se viabilize um espaço valorizado de mundialização destes conteúdos. Diante desse panorama, o transbordamento dos referenciais do Estado nacional produzido pelos Direitos Humanos não estariam a descerrar novos horizontes ao constitucionalismo? De que modo e sob que condições estas transformações podem ser lidas a partir da Teoria do Estado e da Constituição?

3  O CONSTITUCIONALISMO ENTRE INTERNACIONALIZAÇÃO, DESTERRITORIALIZAÇÃO E ENRAIZAMENTOS LOCAIS

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á, ainda, um âmbito muito mais complexo a ser enfrentado, partindo-se, de um lado, das transformações sentidas nos e pelos arranjos político-institucionais modernos e, de outro, da pretensão de dotar os Direitos Humanos de uma “validação” global, com uma expansão geográfica não restringida por fronteiras nacionais, bem como não delimitadas por estratégias de negação. A negação que pode ser reduto de culturas autoritárias, resultante de pressuposições inautênticas – como a nomeada luta anti-terror capitaneada pelo governo estadunidense -, ou consequência de práticas políticas assentadas em pressupostos xenófobos, de exclusão social – como nas recentes legislações de alguns países europeus no trato da imigração. Por outro lado, a experiência constitucional da América Latina põe em pauta a necessidade de um novo olhar para o tema. A Constituição da República do Chile, por exemplo, expressa, no artigo 5º, o reconhecimento da abertura da soberania em favor do respeito aos Direitos Humanos. Segundo a Constituição chilena, “o exercício da soberania reconhece como limitação o respeito aos direitos essenciais que emanam da natureza humana. É dever dos órgãos do Estado respeitar e promover tais direitos, garantidos por esta Constituição, assim como pelos tratados internacionais ratificados pelo Chile e que se encontrem vigentes”. A mesma Constituição que já sofreu modificações por força da implementação da condenação sofrida pelo Chile por parte da Corte Intera36

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mericana de Direitos Humanos no caso “A Última Tentação de Cristo”. Simultaneamente, a abertura interna à normatividade externacional que acompanha o desenvolvimento dos direitos humanos e de outro lado, no plano internacional o fortalecimento normativo, institucional e jurisdicional, internacional, convergem à revisão de práticas autoritárias tradicionais rumo à efetividade dos Direitos Humanos – se não, pelo menos constituem instrumentos de reforço crítico com embasamento jurídico calcado na comunidade internacional para as transformações do porvir. Ou seja, estas divergências estão a indicar a necessidade de se lançar novos olhares para o problema, permitindo que se construa uma doutrina que reflita a transição paradigmática da modernidade no campo da teoria do Estado e do Direito5. O exemplo da regulação dos Direitos Humanos, que integram as “fronteiras” do direito entre o interno e o internacional, aponta para a necessidade de se recompor o constitucionalismo desde um de seus núcleos fundantes, ao lado do tema da organização do poder político, como trazido nas suas origens revolucionárias liberais – as liberdades, hoje consideradas em toda sua extensão historicamente construídas e, ainda, inacabadas. Trata-se, assim, de acatar a tarefa de revisar os pressupostos tanto teóricos quanto operativos do constitucionalismo, reconhecendo inclusive novas práticas e novas ambiências, sem abandonar suas tarefas históricas. Para Canotilho, estas constituições mantêm seu valor e função, mas saem do isolamento estatal para um ambiente rizomórfico, em rede, sem perder as suas funções identificadoras pelo fato de estarem em ligação umas com as outras funcionando como “meios de troca” e não como estruturas de fechamento, como característico dos modelos vinculados aos limites territoriais dos Estados Nacionais. A interconstitucionalidade evoca a interorganizatividade e a interculturalidade constitucional, pois, “o papel integrador dos textos constitucionais implica também inserir conteúdos comunicativos possibilitadores da estruturação de comunidades inclusivas”6. Dentre as diversas teses sobre os “novos espaços” e “novas interações” do e para o direito constitucional, é de se salientar a ideia de “Estado 5 .  DE JULIOS-CAMPUZANO, Alfonso. La Transición Paradigmática de la Teoría Jurídica: el derecho ante la globalización. Madrid: Dykinson, 2010. 6 .  CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Brancosos” e a Interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Lisboa: Almedina, 2006, p. 271. 37

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Constitucional Cooperativo” (de Peter Häberle)7, a de “interconstitucionalidade” (de J. J. Gomes Canotilho)8, o Constitucionalismo Multinível” (de Ingolf Pernice)9, o “Transconstitucionalismo” (de Marcelo Neves)10, dentre outras tantas que buscam respostas para um novo arranjo político-institucional que parece estar surgindo, sem abrir mão do papel civilizatório integrado à história do constitucionalismo, mesmo diante dos seus próprios limites como mecanismo de controle da violência e de promoção da paz e do bem-estar dos homens. Mas, desde esta perspectiva, o Direito Constitucional sob a influência do Direito Internacional e suas interconexões não internacionaliza apenas os conteúdos do Direito Constitucional, mas também a sua própria fabricação, a sua origem, o seu locus de produção e sua fonte de legitimação: o poder constituinte, como pretende evidenciar Nicolas Maziau11 tomando emprestada a experiência, mais pulsante, de internacionalização total do poder constituinte originário, suportada nos Acordos de Dayton que, pela decisão da comunidade internacional promulgou no anexo IV a Constituição da Bósnia & Herzegovina, com uma constituição formada com base heterônoma, rompendo com a ideologia clássica da origem popular das Constituições, resultado do desejo original de suas forças reunidas em Assembleia Constituinte, representativa nos moldes liberal-democráticos. Eis, aqui, um exemplo forte de transformação dos preceitos da soberania. Outra das teses que auxilia a compreender este novo fenômeno jurídico é a ideia de tentar compreender esta nova fase como de um constitucionalismo multinível, tomando emprestado referencialmente a experiência europeia, com a manutenção das constituições nacionais e, em patamar comunitário, a construção de uma constituição regional, europeia, de caráter pós-nacional – na linguagem habermasiana. Assim, o constitucionalismo se expressa em níveis distintos, alinhados 7 .  HÄBERLE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Tradução de Marcos Augusto Maliska e Elisete Antoniuk. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 8 .  CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “Brancosos” e a Interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Lisboa: Almedina, 2006 9 .  PERNICE, Ingolf. The Global Dimension of Multilevel Constitutionalism: A Legal Response to the Challenges of Globalisation. In: Common Values In International Law: Essays In Honor Of Christian Tomuschat. p. 973–1005. 10 .  NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. 11 .  MAZIAU, Nicolas. Les Constitutions internationalisées. Aspects théoriques et essai de typologie. In: Centre de Recherche et de Formation sur le Droit constitutionnel comparé de Sienne (Italia). Disponível em . Acesso em 15 mai 2012. 38

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numa compatibilidade de condições institucionais de reforço mútuo. Já, na doutrina brasileira, Marcelo Neves traz uma outra perspectiva para observar o fenômeno constitucional contemporâneo, a partir de um neologismo: transconstitucionalismo. Para compreender os efeitos da mundialização no direito constitucional, Neves evoca os fundamentos luhmannianos e define a ideia de constituição transversal, além do Estado, em vários planos normativos (internacional, supranacional, estatal, extra-estatal, etc.), como um sistema de níveis múltiplos e pluridimensional dos Direitos Humanos. Trata-se da superação do constitucionalismo provinciano ou paroquial, quando, agora, o Estado deixa de ser o locus privilegiado, como outrora se apresentava, de instalação do constitucionalismo e para o enfrentamento dos problemas constitucionais, pelo transconstitucionalismo, que implica no reconhecimento de diversas ordens jurídicas entrelaçadas. Entretanto, não é o entrelaçamento de ordens jurídicas – o transnacionalismo jurídico – que torna o transconstitucionalismo peculiar, senão o fato das ordens se inter-relacionarem no “plano reflexivo de suas estruturas normativas que são autovinculantes e dispõem de primazia”12. Diante de tais leituras, há que se reconhecer e assumir que um dos desafios, e dilemas, substanciais da teoria constitucional na contemporaneidade é o reconhecimento de que a pauta da integração entre o direito nacional e o direito internacional, ou melhor, o extranacional para incorporar a questão do direito comunitário e o direito estrangeiro, devem compor uma temática prioritária a nos debruçarmos, notavelmente naquilo que promove a efetivação dos Direitos Humanos.

4  O CONSTITUCIONALISMO SOB DILEMAS CONTEMPORÂNEOS

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problema constitucional hoje englobaria tanto a capacidade de disciplinar quanto a de limitar o exercício do poder, quanto o liberar o potencial de setores especializados dos subsistemas sociais. Como atores e regimes não estatais estariam incorporados à esta nova fase do constitucionalismo?

12 .  NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Transconstitucionalismo. Tese apresentada para concurso de professor titular de Direito Constitucional na USP. São Paulo, 2009, p. 265. 39

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Desde esta perspectiva, há que se indagar se esta percepção da sociedade mundial não se limitaria a continuar sendo uma compreensão elitista dos “sobre-integrados”, em relação aos “subcidadãos”, excluídos ou teria capacidade de aspirar transpor uma mudança estrutural em direção a uma revisão da condição político-econômica para a redistribiução das riquezas e do bem-estar produzidos pela civilização e fruto do ambiente comum. Como o constitucionalismo forjado em concomitância com o liberalismo político, mas também econômico poderia produzir uma condição autorreflexiva reestruturante da ordem econômica e política para estender o bem-estar social às maiorias numéricas, ainda que sediadas em latitudes transfronteiriças? Se o constitucionalismo democrático representou e representa um projeto ainda inacabado, o projeto constitucional que nasce para integrar e projetar a sociedade nacional passa a apresentar uma abertura para a humanidade e ao mesmo tempo se confrontar com dualidade inquieta que incorpora força e fraqueza, reconhecimento e descompromisso, prestígio teórico e desprestígio prático (como sugeriu Dalmo Dallari já nos idos dos anos 1980). E é nessa dialética entre idealismo e realismo, entre “força normativa” e “folha de papel” que o modelo inicialmente circunscrito à nação tende a assimilar/incorporar valores aos poucos tidos como universais, bem como se “constitui” a partir de outros lugares e atores que não apenas o Estado Nacional e a sociedade política. A própria ideia da dignidade humana como um princípio que extrapola a perspectiva nacionalista promove o reconhecimento sistemático da positivação do Direito Internacional provocada por sua humanização em matéria de Direitos Humanos. E este “engate” é fundamental para sintonizar a humanização do direito internacional com o constitucionalismo democrático em um ambiente no qual o modelo estadual moderno confronta-se com a idiossincrasia de sua superação/continuidade/transformação. Desta abertura, reconhecida por tantos autores, resultaria um constitucionalismo em rede, ou, quem sabe, melhor denominar-se “em redes”, a partir do reconhecimento do valor da cooperação interestatal, e de novas demandas socioambientais e democráticas. As constituições não podem – mais - serem vistas/compreendidas e aplicadas como caixa de ressonância unicamente do Estado Nacional, sobretudo diante dos efeitos “destrutivos” porque passa esta instituição – talvez a mais característica, no âmbito político-institucional, da modernidade – afetada

por inúmeras “crises”, originadas em diversas circunstâncias e perspectivas, afetando seus fundamentos, suas funções e seus procedimentos característicos, como apresentado mencionado anteriormente13. Ainda, há que considerar a possibilidade de se pensar um “novo” constitucionalismo, o qual, sem romper com os fundamentos materiais/ substanciais do próprio constitucionalismo moderno, bem como compactuando com o nomeado neoconstitucionalismo do pós-guerras, signifique um deslocamento espacial que passe a alocar a ideia de Constituição em um âmbito “para além” dos Estados Nacionais, como quê um constitucionalismo mundial – do que já Gomes Canotilho mencionava -, que, agora sim, possa promover o terceiro vértice revolucionário, aplicando o conteúdo solidariedade a todos e em todos os lugares. Agora, se isto irá significar a transferência do lócus do constitucionalismo ou apenas uma justaposição – do que já temos notícias, bastando tomar em conta, recentemente, a decisão do caso do pai brasileiro que perdeu seu poder paternal, julgado em 31/1/12, pela Corte Europeia de Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo, na França, determinando ao Governo português o pagamento de uma indenização em razão de não ter assegurado ao mesmo a possibilidade de um acesso ao sistema de justiça adequado (Affaire Assunção Chaves C. Portugal, Requête no 61226/08) – ainda não se tem resposta. São nestes vieses que, por ora, cabe averiguar os temas do constitucionalismo, sua transformação e interação com o direito internacional, bem como o surgimento de um novo “território” para o mesmo, capaz de promover e produzir um novo campo de saber e projetar novos caminhos para a humanidade, buscando os sinais do novo, impondo a necessidade de se reforçar os estudos em torno das tendências do e para o (pós) Estado Constitucional contemporâneo, bem como de suas mesmas instituições. O fato, delimitado aqui, é que experienciamos, cotidianamente, desde esta perspectiva, uma nova fase do constitucionalismo e dos vínculos entre as normas locais, as normas internacionais e aquelas originadas em novos ambientes regulatórios, bem como, a partir disso, reconhecemos uma dupla abertura da jurisdição constitucional em sede de controle concentrado, uma no que diz respeito à interação entre direito in-

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13 .  BOLZAN DE MORAIS, Jose Luis. As Crises do Estado e da Constituição e a Transformação Espaço-Temporal dos Direitos Humanos. Coleção Estado e Constituição. Nº 1. 2ª ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. 41

ternacional dos Direitos Humanos que o país participa e outra no que tange à democracia, na complexa e intrincada relação entre direito e política, desde os novos mecanismos de interação democratizantes da tarefa jurisdicional – realização de audiências públicas e adoção de amicus curiae – e de sua integração na “aldeia mundo” estabelecendo “conversações” ou “diálogos” interinstitucionais. Tal panorama aponta para a necessária formação de uma teoria geral dos Direitos Humanos e fundamentais para os Estado democrático de direito, ou Estados de direito democráticos, sob o nexo da abertura e da formação de redes interestatais pautadas pela lógica cooperativa. Em suma, atenta-se para as evidências de um constitucionalismo em transição, que supera, transcende ou ressignifica pressupostos da modernidade jurídica no que diz respeito, em particular, ao seu lócus privilegiado (Estado), recolocando a possibilidade do direito, também, como vetor de emancipação e transformação social a despeito dos fossos estratificadores que a mundialização fomenta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1

. Ainda assim, provavelmente, ao final não haverá como fechar conclusões definitivas, sem antes ponderar os desafios e os riscos que uma eventual condensação de culturas jurídicas tende a enfrentar, sobretudo diante dos riscos de pretensões homogeneizantes em torno de um determinado “modelo” civilizatório que se pretenda hegemônico.

2

. Os limites da soberania, o empoderamento de órgãos internacionais de observação e concretização de direitos, além da acentuação dos efeitos de uma esfera pública que também acompanha o movimento rumo ao cenário pós-nacional precisam ser adequadamente decifrados para a própria realização do constitucionalismo que em sua origem está engatado ao compromisso de efetividade dos Direitos Humanos.

4

. Evidente que este caráter socialmente transformador e espacialmente de pretensão universal dos Direitos Humanos incidem enquanto um vetor-chave para a mudança, que não é nada cosmética, mas efetivamente estrutural da sociedade, em seus aspectos além de jurídicos, políticos (igualdade política, democracia, políticas corretivas das tradições segregacionistas, e.g.) e econômicas ( de distribuição de riqueza nos povos e entre os povos). Trata-se, portanto, de um aguilhão fincado num ponto nevrálgico do corpo que é formado pela imbricação da Sociedade-Estado-Mercado, a (tencionar) mover-lhe(s) rumo à emancipação social.

5

. A dimensão local precisa ser também profundamente considerada e refletida no constitucionalismo, para que os desenhos institucionais e conteúdos jurídicos sejam permeados pela faticidade do território ao qual deverá exercer sua força normativa.

6

. Tal transição demanda novas interpretações, atitudes e práticas, exigindo a construção de uma doutrina que dialogue com estas novas circunstâncias, como o caminho aqui esquematizado, realçando a problematização sobre a disparidade das realidades latino-americanas ou terceiromundistas e dos subalternos; a(s) implicação(ões) do mimetismo de formas e conteúdos(?); a(s) circunstâncias de instauração de “nova(s)” forma(s) de colonização. Tal se dará, sob a perspectiva do resgate das promessas da modernidade – tendo como mote as teorias do Estado, da Constituição e dos Direitos Humanos - numa amplitude global, mesmo sob a interrogação de ser isso desejável ou, mesmo, possível(?) ante as problemáticas envolvidas pela ampliação dos quadrantes que passam a serem englobados nessa mesma gramática.

3

. Os mimetismos de formas e de gramáticas constitucionais na linha dos Direitos Humanos não tem uma correspondência direta com o avanço nos indicadores de efetivação dos mesmos. Pelo menos isso certamente não ocorre num primeiro momento. Contudo, seria certamente excessivo considerar que de tais mudanças jurídico-formais não frutificam quaisquer progressos. 42

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2 Constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil? Reflexões a Partir da Ideia de um Direito das Futuras Gerações* José Emílio Medauar Ommati

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presente trabalho pretende discutir se, a partir de um direito genérico das futuras gerações, é possível se falar de uma constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil. Caso seja possível se falar em constitucionalização do Direito Administrativo Brasileiro, como compreender tal fenômeno. Destarte, para que fique clara qual a relação entre esse suposto direito genérico das futuras gerações e uma possível constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil, em um primeiro momento, desenvolverei a ideia de um direito das futuras gerações; a seguir, em um segundo passo, mostrarei como aparece e se desenvolve a noção de constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil, para, na parte final do presente texto, desenvolver ideias que relacionem essa constitucionalização com o direito das gerações futuras.

1  A Construção de um Direito das Futuras Gerações

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ode-se afirmar que a construção de um direito das futuras gerações ocorre na década de 60 do século passado quando a teoria do Direito volta a discutir o próprio conceito de Direito e o papel da discricionariedade na decisão e interpretação jurídicas. Embora a construção desse direito possa se dar a partir de perspectivas teóricas bastante distintas, como, por exemplo, a Teoria do Direi45

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to e da Democracia, de Jürgen Habermas1, ou a teoria dos sistemas, de Niklas Luhmann2, pretendo abordar a construção desse direito a partir do debate que se desenvolveu ao longo de mais de 30 anos entre Herbert L.A. Hart e Ronald Dworkin. Isso porque me parece que a construção da teoria do Direito de Ronald Dworkin poderá ser capaz de justificar a existência de um direito das futuras gerações. Pois bem. Quando Hart desenvolve sua obra fundamental, O Conceito de Direito, ele pretende justamente se contrapor a uma teoria positivista bastante em voga no mundo anglo-saxão que defendia uma tese simples de que o direito se define apenas pela existência de sanção em suas normas, que são seguidas por terem sido fruto da ordem de um determinado soberano. Ao construir sua teoria, Hart pretende justamente se opor a essas duas ideias: de que somente são válidas juridicamente as ordens emanadas de um soberano e que a característica fundamental de uma norma jurídica é o fato de ser uma ordem dotada de sanção.3 Pretendendo apenas descrever o Direito, como se tivesse chegado à Terra um alienígena, de modo que essa descrição do funcionamento do Direito fosse universal, Hart demonstra que esse conceito tradicional de Direito é deveras simplista. Na verdade, se observarmos atentamente os diversos ordenamentos jurídicos perceberemos que eles não são formados apenas por regras dotadas de sanção, mas também por regras que estabelecem direitos, além de regras de competência para a criação de outras regras, seja no âmbito legislativo, seja no âmbito judiciário; e, por fim, uma regra que estabelece os critérios através dos quais determinada regra pode ser considerada jurídica ou não, denominada por Hart de regra de reconhecimento.4 Além disso, dizer que * Dedico esse artigo aos meus entes mais queridos: minha mãe, Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Ommati; meus irmãos, Larissa Veloso Mendes Ommati e Ricardo Emílio Veloso Mendes Medauar Ommati; minha esposa, Sarah Noeme Maria de Freire Lopes Ommati; e meu filho, José Emílio Ommati Neto(Emilinho).

1 .  Nesse sentido, vide: HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el derecho y el Estado Democrático de Derecho en Términos de Teoría del Discurso. 4ª edição, Madrid: Trotta, 1998, capítulo 3. 2 .  Nesse sentido, vide: LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. México: Universidad Iberoamericana, 2002.

é Direito apenas um comando dado por um soberano não é correto, já que quando um soberano morre e outro o sucede como definir o momento exato em que a população em geral terá que seguir esse novo soberano? E mais: se o Direito fosse apenas fruto de ordens dadas por um determinado soberano, a cada nova sucessão teríamos que o novo soberano deveria recriar todas as regras existentes ou, se pretendesse manter as existentes, expressamente assim se manifestar. Algo que não ocorre. Muito pelo contrário. Assim, a descrição até então tradicional, pelo menos para o Direito anglo-saxão, não se sustentava empiricamente e apresentava graves problemas conceituais e classificatórios que Hart pretendeu solucionar com sua obra. Para Hart, não se pode dizer que o Direito é um conjunto de ordens emanadas por um soberano, ordens essas dotadas de sanção. Uma norma será considerada jurídica ou não se passar no teste do pedigree, ou seja, se tal norma for compatível com a chamada regra de reconhecimento.5 Além disso, existe uma pluralidade de regras no Direito: regras dotadas de sanção, que Hart denominou de regras primárias; regras que estabelecem direitos e procedimentos para a criação de outras regras, denominadas por Hart de regras secundárias; e, por fim, a regra de reconhecimento, que será responsável pela determinação se determinada regra será considerada jurídica ou não. Portanto, já na perspectiva de Hart, o Direito é um fenômeno muito mais complexo do que anteriormente pensado. Totalmente apartado da Moral, o Direito possibilitará, em virtude de sua textura aberta, que, em determinadas situações os juízes possam criar direito novo sem se vincularem ao Direito pré-existente. Esse poder dos juízes, conhecido como discricionariedade, somente poderá ser exercitado naquelas situações denominadas por Hart de casos difíceis, ou seja, casos nos quais não há uma regra prévia que estipule o resultado claramente ou há uma concorrência entre regras que levam a decisões diversas. E essa discricionariedade faria parte do Direito justamente pelo fato de que a regra de reconhecimento, que apresenta uma natureza social no sentido de que a comunidade reconhece poder aos juízes para decidirem todo e qualquer caso, também autoriza a esses juízes que criem direito novo caso não encontrem uma regra prévia para a solução do caso.6

3 .  HART, Herbert L.A. O Conceito de Direito. 3ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 4 .  HART, Herbert L.A. Op.cit.; No mesmo sentido: OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 134 a 136.

5 .  HART, Herbert L.A. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. Op.cit.

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6 .  HART, Herbert L.A. Op.cit.; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. Op.cit. 47

Será justamente contra todos esses pressupostos positivistas que se insurgirá a Teoria do Direito como Integridade, de Ronald Dworkin. Para o autor norte-americano, não é correto pensar o Direito como um domínio separado da Moral. Como diz o autor, se visualizarmos essa questão a partir de uma perspectiva adequada, perceberemos que o Direito é um compartimento da Moral.7 Mas, o que mais interessa para a construção do presente trabalho não é a relação entre Direito e Moral, mas sim como compreender o conceito de Direito. Será que o Direito pode ser conceituado apenas como um conjunto convencional de regras estabelecidas por uma determinada autoridade em determinado tempo histórico, de modo que, se o aplicador atual não encontrar uma regra poderá livremente criar direito novo, como pretende Hart? A resposta dada por Dworkin é pela negativa e, para mostrar o erro em que incorre Hart ao assim descrever o Direito, o autor desenvolverá sua teoria do Direito como Integridade. Inicialmente, ao contrário de Hart, Dworkin demonstra consistentemente que não é possível simplesmente descrever o Direito sem, ao mesmo tempo, participar dele. É dizer: a perspectiva positivista de que a Ciência do Direito deve apenas descrever seu objeto não se sustenta, pois, a partir de Hans-Georg Gadamer8, já se sabe que nenhuma descrição é isenta de pressupostos. Toda teoria, portanto, já tem uma porção de normatividade, ou seja, não apenas revela o que o objeto é, mas também o que ele deve ou deveria ser.9 As teorias jurídicas são pensadas para resolver problemas de determinado contexto, ou, se quisermos utilizar a linguagem de Thomas Kuhn10, para resolver quebra-cabeças jurídicos e, assim, apresentam sempre uma prioridade local. Se puderem ser utilizadas em outros contextos para os quais não foram pensadas, tanto melhor. Poderíamos, então, dizer, que as teorias jurídicas não são universais, mas universali-

7 .  Sobre isso, vide: DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006; DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010; DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Lisboa: Almedina, 2012. 8 .  GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. 5ª edição, Petrópolis: Editora Vozes, 2003.

záveis ou passíveis de universalização. Para que isso ocorra, de fundamental importância que o teórico que pretende utilizar uma teoria alienígena para seu contexto consiga demonstra que tal teoria se adapta, descreve e responde aos problemas locais. E assim é, porque, ao contrário de Hart, que ainda constrói uma teoria baseada em classificações, para Dworkin, o Direito não se esgota em um catálogo de regras ou de regras e princípios.11 O Direito é um fenômeno interpretativo.12 Esse fenômeno interpretativo, chamado Direito, se constitui a partir das práticas sociais dos seus participantes. Assim, ao contrário do que pensava Hart, o juiz não tem discricionariedade nos casos difíceis, já que outros padrões normativos podem ser utilizados para a solução de casos controversos. A esses padrões, Dworkin os denomina de princípios.13 Observando essa prática interpretativa denominada Direito, percebe-se que advogados, juízes, promotores e comunidade em geral não argumentam nesses casos difíceis como se o juiz pudesse decidir que qualquer modo. Pelo contrário. A argumentação cotidiana com e sobre o Direito revela que, mesmo quando todos se encontram divididos sobre qual é a decisão correta a ser dada, ainda sim não se afirma que o julgador pode dar qualquer decisão.14 Mas, como encontrar essa única decisão correta? Como interpretar corretamente o Direito? Entendendo que o Direito é uma prática interpretativa, Dworkin nos convida a não apenas interpretarmos essa prática, mas a justificá-la à sua melhor luz, de modo a torná-la a melhor que ela pode ser. É o que o autor denominará de hipótese estética.15 E isso é possível porque o Direito não se explica apenas por si mesmo, já que ele apresenta um propósito político. Assim, o Direito somente será digno desse nome se ele conseguir legitimar as práticas da comunidade que deve se ver como uma comunidade de princípios, ou seja, uma comunidade baseada na ideia de que é formada por pessoas livres e iguais. Como afirma Dworkin, a legitimida-

11 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit., p. 492. 12 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.; DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

9 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

13 .  DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

10 .  KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5ª edição, São Paulo: Perspectiva, 1997.

15 .  DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit.

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14 .  DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Op.cit.

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de estatal e do Direito está assentada na medida em que esse Estado e o Direito conseguem demonstrar que tratam a todos aqueles que estão sob o seu império com igual respeito e consideração.16 A igualdade, entendida como o direito a que as pessoas sejam tratadas como iguais, é a virtude soberana de uma comunidade de princípios.17 Dessa forma, o juiz não pode, em uma situação em que aparentemente não há uma regra clara, inventar uma regra para o caso retroativamente, pois se assim agir, estará ferindo princípios caros à ideia de comunidade de princípios como aquela que pretende tratar a todos os seus membros com igual respeito e consideração. Princípios tais como o do Estado de Direito, legalidade, separação dos poderes, segurança jurídica, só para citar alguns, sairão violados se ainda defendermos a discricionariedade, seja na função judiciária, seja na função administrativa.18 Não se pode afirmar a existência da discricionariedade no Direito justamente porque o Direito se apresenta como um projeto que se atualiza ao longo do tempo. É uma prática interpretativa em que cada nova geração deve se questionar sobre quais são as ambições do Direito para si mesmo, sobre como melhor desenvolver esse projeto político que visa a tratar a todos os membros da comunidade como dotados de igual respeito e consideração ou igual dignidade.19 Assim, a interpretação jurídica é semelhante à escrita de um romance em várias mãos, um romance em cadeia. Assim como ao se escrever um romance em conjunto, cada autor de um capítulo não pode iniciar uma nova obra, mas continuar a obra existente de modo a torná-la a melhor que ela pode ser, o aplicador do Direito(juiz, administrador e cidadãos em geral) não está autorizado a começar uma nova história, mas deve dar continuidade à história que vem sendo construída de modo a torná-la a melhor que ela pode ser, é dizer, cada novo capítulo do romance intitulado Direito da Comunidade, devem ampliar e aprofundar a virtude soberana da comunidade: os direitos de igualdade e liberdade.20

Dessa forma, a interpretação do Direito não pode ser descrita como apenas seguir o que sempre se fez, como pensam os positivistas, como também não pode simplesmente desconsiderar o passado e olhar apenas para o futuro, como pretendem escolas jurídicas as mais diversas, tais como a Análise Econômica do Direito, os Estudos Jurídicos Críticos e alguns autores pragmatistas.21 A teoria do direito como integridade faz as duas coisas e nenhuma delas ao mesmo tempo! Ora, se a prática interpretativa chamada Direito não se preocupa apenas com o passado, mas apresenta uma certa dose de consequencialismo, ou seja, com os impactos futuros de uma decisão, surge aí o espaço para se falar em direito das futuras gerações. Sendo o Direito um projeto que nunca se fecha e nunca termina, cada momento histórico deve se responsabilizar para desenvolver o Direito da melhor forma possível, de modo a torná-lo o melhor que ele pode ser, justamente para que as próximas gerações possam assumir sua responsabilidade política em não apenas continuar a prática, mas fundamentalmente melhorá-la, aprofundá-la e ampliá-la. É justamente por isso que Dworkin afirmará que o juiz tem uma responsabilidade política fundamental em pensar, ao dar uma decisão, quais são os compromissos políticos da comunidade da qual ele faz parte e como construir um futuro honrado a partir de sua decisão. O intérprete deve, ao decidir, imaginar e explicar como sua decisão se encaixa e aperfeiçoa um objeto externo a ele, mas, ao mesmo tempo, interno, de modo a tornar esse objeto melhor do que é agora sem, no entanto, desvirtuá-lo ou transformá-lo em outra coisa. Esse objeto é o Direito.22 É possível já visualizar que a teoria do direito como integridade consegue explicar e justificar um direito das futuras gerações. As questões que pretendo discutir nos dois últimos itens dizem respeito ao processo de surgimento da constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil e como essa ideia pode contribuir para o desenvolvimento do direito das futuras gerações.

16 .  DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e Prática da Igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 17 .  DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 18 .  Sobre a crise da discricionariedade na função administrativa, vide: OMMATI, José Emílio Medauar. Do Ato ao Processo Administrativo: A Crise da Ideia de Discricionariedade no Direito Administrativo Brasileiro. IN: Revista dos Tribunais, Ano 102 – Abril de 2013 – Vol. 930, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 23 a 49. 19 .  Sobre a ideia de dignidade humana, vide: DWORKIN, Ronald. Justiça para Ouriços. Op.cit.

21 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.

20 .  DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Op.cit.

22 .  DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Op.cit.

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2  Um Breve Histórico da Formação do Direito Administrativo e da Constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil

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doutrina administrativista pátria majoritária continua até hoje a dizer que o Direito Administrativo teria surgido como que por um “milagre”, na medida em que a Revolução Francesa teria, a partir da ideia de separação dos poderes, limitado externamente a Administração Pública que, no Antigo Regime, era ilimitada ou com poucas limitações. Assim, ainda hoje, repete-se que o Direito Administrativo teria nascido a partir da Lei de 28 do pluviose do ano VIII, editada em 1800, organizando e limitando externamente a Administração Pública. Tal lei simbolizaria a superação da estrutura de poder do Antigo Regime, fundada não no direito, mas na vontade do soberano. A mesma lei que organiza a estrutura da burocracia estatal e define suas funções operaria como instrumento de contenção do seu poder, agora subordinado à vontade heterônoma do Poder Legislativo. Contudo, alguns autores nacionais e estrangeiros mais atuais já questionam tal origem “milagrosa” do Direito Administrativo Moderno. Nesse sentido, Gustavo Binenbojm assevera com razão: “O direito administrativo não surgiu da submissão do Estado à vontade heterônoma do legislador. Antes, pelo contrário, a formulação de novos princípios gerais e novas regras jurídicas pelo Conseil d’État, que tornaram viáveis soluções diversas das que resultariam da aplicação mecanicista do direito civil aos casos envolvendo a Administração Pública, só foi possível em virtude da postura ativista e insubmissa daquele órgão administrativo à vontade do Parlamento”.23 No mesmo sentido, o jurista português Paulo Otero afirma: “[...]a ideia clássica de que a Revolução Francesa comportou a instauração do princípio da legalidade administrativa, tornando o Executivo subordinado à vontade do Parlamento expressa através da lei, assenta num mito repetido por sucessivas gerações: a criação do direito administrativo pelo Conseil d’État, passando a Administração Pública a pautar-se por normas diferentes daquelas que regulavam a actividade jurídico-privada, não foi um produto da vontade da lei, antes se configura como

uma intervenção decisória autovinculativa do Executivo sob proposta do Conseil d’État.”24 Assim, para esses autores, a invocação do princípio da separação de poderes foi um simples pretexto, mera figura de retórica, visando a atingir o objetivo de alargar a esfera de liberdade decisória da Administração, tornando-a imune a qualquer controle judicial. Não foi por outro motivo que em França criou-se uma “jurisdição especializada” para a Administração Pública, já que se entendia à época que julgar a Administração ainda era administrar. Percebe-se aí uma leitura toda própria da separação dos poderes para manter uma esfera de imunidade de controle para a Administração Pública.25 Todavia, embora reconheça que houve muita continuidade entre o Antigo Regime e o constitucionalismo moderno, que fundou o Estado Constitucional em sua vertente liberal com as revoluções burguesas, não consigo concordar com a tese pura e simples de continuidade entre essas duas realidades. Deve ter havido também alguma ruptura. Destarte, parece mais acertada a posição de Odete Medauar quando afirma: “Melhor se configura orientação que leva em conta os dois aspectos, sem extremos, para vincular o direito administrativo à Revolução Francesa em termos de princípios, não em virtude da origem de um tipo de organização; e para levar em conta noções e mesmo práticas do Antigo Regime acolhidas em parte pelo direito em formação, embora em outro contexto sociopolítico”.26 Como diz a autora, essa posição não significa neutralidade ou comodismo científico por dificuldades na defesa, sem incoerências, de uma das orientações. Pode-se dizer que a convivência do vínculo ao passado e da novidade, existente no seu surgimento, tornou-se polarização típica do direito administrativo. Assim, aspectos antigos foram mantidos, tais como a ideia de autoridade da Administração, de prerrogativas e de atos discricionários, como também novidades foram inseridas e, dentre 24 .  OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade. 1ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2007, p. 271. 25 .  BINENBOJM, Gustavo. Op.cit., p. 13. No mesmo sentido: OTERO, Paulo. Op.cit.; MACHETE, Pedro. Estado de Direito Democrático e Administração Paritária. Coimbra: Almedina, 2007. Pedro Machete, por sinal, em obra extremamente instigante, chega a afirmar que houve, na verdade, uma continuidade entre o Antigo Regime e o Estado Constitucional que, nesse primeiro momento, se afirmou como Estado de Direito. Sobre mais características do Estado de Direito relacionadas à Administração Pública, vide: DIAS, Maria Tereza Fonseca. Direito Administrativo Pós-Moderno. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

23 .  BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 11.

26 .  MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. 2ª edição revista, atualizada e ampliada, São Paulo: Editora RT, 2003, p. 21.

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estas, o fato de a Administração ter que respeitar os direitos dos cidadãos.27 Além do respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, outras novidades foram introduzidas, como nos relata Odete Medauar: “O novo, que se sucedeu à Revolução Francesa, pode ser sintetizado nos seguintes pontos: a) formação de conjunto sistemático de preceitos obrigatórios para autoridades administrativas de todos os níveis, muitos dos quais limitativos de poder; b) reconhecimento de direitos de particulares ante a Administração, com previsão de remédios jurisdicionais; c) quanto à ciência, elaboração doutrinária abrangente de todos os aspectos legais da atividade administrativa; d) elaboração jurisprudencial vinculativa para a Administração e norteadora da construção de novos institutos jurídicos”.28 Não é por outro motivo que ainda hoje o Direito Administrativo seja tão arredio aos avanços produzidos pelo Direito Constitucional e pela Teoria do Direito. Ao contrário do que a doutrina tradicional apresenta, o Direito Administrativo não surgiu como uma concretização do Direito Constitucional, mas sim, em alguma medida, como mecanismo de manutenção das práticas de poder do Antigo Regime.29 Somente bem recentemente que se pode dizer que o Direito Administrativo se tornou o Direito Constitucional concretizado. Em outras palavras, foi somente com as modificações operadas pela crise do Estado Social e o surgimento do Estado Democrático de Direito ou Estado Pós-Social, para alguns autores30, que se pode dizer que a Administração Pública busca pautarse pelo respeito à Constituição e aos direitos fundamentais.31 Na verdade, a história do Direito Administrativo Ocidental pode ser lida como uma luta permanente contra as imunidades do poder, como nos ensina Eduardo García de Enterría.32 E, como todo processo histórico, é cheio de percalços, de idas e vindas, de vitórias e fracassos. Pois bem. Fazendo dessa história uma história breve, bastante bre-

27 .  MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. Op.cit., p. 22. 28 .  MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. Op.cit., p. 22 a 23. 29 .  Quando nos referimos à doutrina tradicional, pensamos em autores tais como Hely Lopes Meirelles, Celso Antônio Bandeira de Mello e Maria Sylvia Zanella Di Pietro. 30 .  Dentre esses autores, vide: SILVA, Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da. Em Busca do Acto Administrativo Perdido. 1ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2003. 31 .  Sobre essa questão, vide: BAPTISTA, Patrícia. Transformações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

ve, podemos dizer que no Estado de Direito a Administração Pública era pautada pela ideia de negatividade, ou seja, ela deveria respeitar os direitos negativos dos cidadãos, concernentes à igualdade, liberdade e propriedade, entendidos em um aspecto meramente formal. De acordo com Maria Teresa Fonseca Dias, ao se referir à Administração Pública no Estado Liberal: “O direito público deveria assegurar, tão-somente, o não retorno ao absolutismo mediante a limitação do Estado à lei e a adoção do princípio da separação dos poderes. Uma das preocupações do Direito Administrativo liberal foi criar um sistema de garantias ao particular em relação às atividades da Administração Pública executadas por via do exercício de poderes autoritários”.33 Para Maria João Estorninho, o nascimento liberal do Direito Administrativo está claramente de acordo com a visão liberal de mundo da época, assente na separação entre o Estado e a sociedade, de modo a garantir a propriedade e a intimidade, valores fundamentais que o liberalismo procurou preservar a todo custo.34 No Brasil, essa Administração Pública liberal terá ainda um problema para se estruturar de maneira adequada: a confusão entre público e privado que o país herdara de Portugal. Assim, de acordo com Sérgio Buarque de Holanda, em estudo clássico, um dos grandes problemas brasileiros foi a cordialidade do homem brasileiro, significando não a amabilidade e a cortesia ou a educação para com as demais pessoas, mas sim o fato de que no Brasil sempre houve uma dificuldade enorme de separar o público do privado. Assim, o homem cordial é aquele que não consegue decidir a partir de razões públicas, o que é uma exigência do Estado Constitucional, mas sempre com o coração. Em outras palavras, a Administração Pública Brasileira sempre foi vista como a continuidade da casa do dono do poder do momento.35 Não foi por outro motivo que, como nos mostra Maria Tereza Fonseca Dias, apenas com Getúlio Vargas, na década de 1930, que o Brasil conseguiu institucionalizar com relativo sucesso uma burocracia estatal profissionalizada.36 33 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 139. 34 .  ESTORNINHO, Maria João. A Fuga para o Direito Privado: Contributo para o Estudo da Actividade de Direito Privado da Administração Pública. Reimpressão, Porto: Almedina, 1999, p. 31.

32 .  GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Lucha Contra las Inmunidades del Poder en el Derecho Administrativo(poderes discrecionales, poderes de gobierno, poderes normativos). Lima: Palestra Editores, 2004.

35 .  HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 3ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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36 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 167 a 183. 55

E justamente esse Direito Administrativo negativo passa a ser profundamente criticado já no final do século XIX e início do século XX. A sociedade se torna, nesse momento, mais complexa, passando a exigir do Direito e da Administração Pública intervenções no sentido de garantir igualdade material, liberdade de fato e uma redistribuição de renda. Surge, assim, com a Constituição de Weimar, na Alemanha, em 1919, o chamado Estado Social, que modificará profundamente o perfil do Direito Administrativo e da Administração Pública no Brasil e no mundo. Para esses autores do Estado Social, o Direito Administrativo e a Administração Pública devem se pautar pela idéia de administração soberana consensual. Além disso, deve haver a transformação da Administração Pública de persona superior(em relação ao particular) em sujeito paritário, ofuscando-se também a bipartição entre o direito público e o privado.37 No Brasil, o paradigma do Estado Social influencia a Administração Pública a partir de duas reformas promovidas em períodos autoritários: a Reforma do DASP, do período getulista e a Reforma do Decreto-Lei 200, de 1967, no auge da Ditadura Militar. As duas reformas pretenderam criar uma estrutura burocrática que pudesse responder às grandes transformações sociais pelas quais passava a sociedade brasileira. A Reforma do DASP pretendeu profissionalizar o serviço público brasileiro, tentando acabar com o patrimonialismo. Já a Reforma do Decreto-Lei 200, de 1967, pretendeu racionalizar a estrutura da Administração Pública Brasileira. As duas reformas foram relativamente bem sucedidas. A Reforma do DASP, apesar de ter contribuído para a profissionalização do serviço público, criando-se carreiras no âmbito da Administração Público, a serem preenchidas através de concurso público, não conseguiu eliminar os cargos de confiança de livre nomeação e exoneração do Chefe do Executivo. Mantinha-se, ainda, um resquício do patrimonialismo, denunciado por Sérgio Buarque de Holanda. Já a Reforma do Decreto-Lei 200, de 1967, embora tenha conseguido estruturar a Administração Pública Brasileira, criando as categorias de Administração Direta e Indireta recepcionadas pela Constituição de 1988, acabou por enrijecer em excesso a estrutura burocrática brasileira, de modo que já antes da Constituição de 1988 havia fortes críticas a essa estrutura burocrática, por ser emperrada e não conseguir realizar os fins sociais a que se propunha.38

Apesar do sucesso do Estado Social, esse paradigma entra em crise já no final da década de 60 e durante toda a década de 70 e 80, em virtude fundamentalmente de não ter conseguido realizar e promover a cidadania prometida. O Estado Social conseguiu criar clientes do Estado, não conseguindo realizar todas as tarefas impostas a ele.39 Dessa forma, uma série de fatores desencadeou a crise do Estado Social e o surgimento do que ficou conhecido como Estado Democrático de Direito: críticas promovidas pelos movimentos sociais; transformações surgidas a partir das revoluções tecnológicas; as sucessivas crises econômicas; e a luta por mais direitos. Nesse paradigma, a Administração Pública passa a ser vista não mais como apenas uma prestadora de serviços para cidadãos-clientes e apáticos. Passa-se a se discutir cada vez mais a qualidade dos serviços prestados pela Administração como também mecanismos de controle e coparticipação dos cidadãos na gestão da coisa pública.40 Prega-se também uma maior agilidade para a Administração Pública e que ela seja pautada por princípios que norteiem sua atuação. Defende-se nesse momento a ideia de que as ações administrativas apenas serão legítimas e, portanto, juridicamente válidas, se contarem com a participação e assentimento dos possíveis afetados pela decisão. É a processualização da atividade administrativa que agora passa a ser vista não mais como uma atuação autoritária, mas consensual.41 Não se fala mais a partir desse momento em unilateralidade, mas sempre em plurilateralidade, em coparticipação: “No contexto do paradigma procedimental do direito, a participação deixa de ser uma expressão meramente ‘retórica’ e passa a representar a medida de legitimação da atuação administrativa mediante a ampliação dos canais de comunicação existentes na periferia da esfera pública para o centro do subsistema administrativo”.42 No Brasil, o surgimento da Constituição de 1988 estabelecendo os princípios constitucionais da Administração Pública pretendeu justamente desburocratizar a atividade administrativa, abrindo-a para a participação da cidadania em geral. Contudo, por uma interpretação equivocada dos princípios constitucionais, tal desiderato não foi com39 .  OMMATI, José Emílio Medauar. A Igualdade no Paradigma do Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004. 40 .  HABERMAS, Jürgen. Op.cit.

37 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 145. No mesmo sentido: ESTORNINHO, Maria João. Op.cit.; MACHETE, Pedro. Op.cit.

41 .  Nesse sentido, dentre vários outros: MACHETE, Pedro. Op.cit.; MEDAUAR, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo. Op.cit.

38 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 183 a 196.

42 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Op.cit., p. 164.

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pletamente alcançado, tendo sido necessária uma reforma da Administração Pública brasileira, a chamada Reforma Gerencial promovida principalmente através da Emenda Constitucional 19/98, para que esse processo de horizontalização da Administração Pública passasse a ser implantado no nosso país. No entanto, como nos mostra Maria Tereza Fonseca Dias, essa Reforma, apesar de alguns elementos interessantes, ainda trouxe muitos problemas, pois houve uma despreocupação com mecanismos de controle da gestão pública. Se é verdade que a Reforma passou a entender o público como algo bem mais amplo do que o estatal, possibilitando a gestão da coisa pública por entidades da sociedade civil(por exemplo, os contratos de gestão com OS e OSCIP), também é verdade que não se preocupou em criar mecanismos de controle eficientes em relação a esses novos contratos.43 Não terei como objetivo aqui analisar a Reforma Gerencial, mas sim como a Constituição de 1988 já poderia ter sido o motor de transformação da realidade administrativa brasileira, a partir da principiologia constitucional. Em outras palavras, pretendo analisar se a Constituição de 1988 realmente conseguiu constitucionalizar a Administração Pública. Com isso, não pretendo analisar se a “prática” administrativa se constitucionalizou completamente. A resposta a essa questão é obviamente negativa! Até porque se isso tivesse ocorrido os próprios princípios constitucionais perderiam sua função! Na verdade, quero perceber se a doutrina administrativista pátria conseguiu levar até as últimas consequências a suposta constitucionalização do Direito Administrativo. Pois bem. Inicio com a própria expressão constitucionalização do Direito Administrativo. Como bem ressalta Virgílio Afonso da Silva, a Constituição de 1988 promoveu uma “onda” de constitucionalização em todos os ramos do Direito. Essa expressão, constitucionalização do Direito, contudo, é, no mínimo dúbia e, no máximo, sem sentido.44 A expressão pode significar que somente é válido o Direito que estiver de acordo com a Constituição. Mas, com isso, não temos nenhuma novidade, já que todos sabem que o fundamento de validade de todo o Direito se encontra na Constituição. Por outro lado, a expressão pode significar

que haveria uma parte de determinada área do Direito sob a influência da Constituição e outra parte isenta de tal influência, o que é um absurdo. Portanto, a expressão em nada agrega ao debate jurídico, embora continue a ser utilizada.45 Hoje, para grande parte da doutrina administrativista brasileira, o Direito Administrativo se constitucionalizou com a promulgação da Constituição de 1988.46 Isso significa para parcela majoritária da doutrina nacional que a atuação da Administração Pública apenas será legítima se pautada não apenas pelos princípios constitucionais da Administração Pública, mas por todos os princípios constitucionais. Daí Marçal Justen Filho afirmar, por exemplo, ser o direito administrativo um conjunto de normas jurídicas de direito público que disciplinam as atividades administrativas necessárias à realização dos direitos fundamentais.47 Contudo, essa suposta vinculação da Administração Pública à Constituição foi feita pela metade por parte da doutrina brasileira ou então não foi feita. Isso porque se a Administração Pública se constitucionalizou, como não cansa de ressaltar a doutrina mais atual do Direito Administrativo, a compreensão dos princípios constitucionais e dos impactos que tais princípios podem trazer para a atividade administrativa ainda deixam muito a desejar, dificultando a construção de uma atuação administrativa que considere e respeite o direito das futuras gerações. Para não me alongar em demasia, vejamos apenas três casos paradigmáticos relacionados aos princípios da legalidade, da moralidade administrativa e um suposto princípio da supremacia do interesse público. Quanto à legalidade, hoje se entende que tal princípio significa não mais respeito estrito e restrito à lei, mas incorpora a ideia de juridicidade, ou seja, legalidade significa hoje fundamentalmente respeito à Cons-

45 .  SILVA, Virgílio Afonso da. Op.cit.

43 .  DIAS, Maria Tereza Fonseca. Terceiro Setor e Estado: Legitimidade e Regulação. Belo Horizonte: Fórum, 2008. No mesmo sentido: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: Concessão, Permissão, Franquia, Terceirização, Parceria Público-Privada e outras Formas. 6ª edição, São Paulo: Atlas, 2008.

46 .  A primeira autora a expressar essa ideia no Brasil parece ter sido a hoje Ministra do STF, Cármen Lúcia Antunes Rocha, em obra cuja leitura é obrigatória sobre o tema: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. Depois dela, vários outros autores se referiram a esse movimento. Dentre todos, apenas exemplificativamente, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Constitucionalização do Direito Administrativo: O Princípio da Juridicidade, a Releitura da Legalidade Administrativa e a Legitimidade das Agências Reguladoras. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Princípios do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

44 .  SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: Os Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.

47 .  JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 8ª edição revista, ampliada e atualizada, Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 68.

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tituição, ou seja, é constitucionalidade ou juridicidade.48 Mas, se legalidade significa constitucionalidade e juridicidade, ou seja, cumprir a lei por parte da Administração é, antes de tudo, cumprir a Constituição, como compatibilizar tais afirmações com aquelas que continuam a repetir que, de acordo com o princípio da legalidade administrativa, a Administração somente pode agir se houver expressa previsão legal autorizando-a? A incompatibilidade se dá justamente porque os princípios constitucionais nem sempre são expressos. Muitos deles decorrem e dependem de uma atividade hermenêutica por parte da Administração Pública para serem revelados. Inclusive, hoje, a própria dicotomia princípios expressos e implícitos encontra-se em crise.49 Além disso, se legalidade significa fundamentalmente constitucionalidade, como compatibilizar tal ideia com a doutrina ainda em voga no Brasil no sentido da inexistência de decreto autônomo? Ora, grande parte da doutrina brasileira ainda pensa o decreto como simples realizador de comandos legais, impossibilitado de inovar no ordenamento jurídico.50 Mas, nessa nova visão da legalidade, a Administração não poderia diretamente, via decreto, cumprir e realizar os comandos constitucionais? Deve ela aguardar sempre o legislador infraconstitucional para, só depois, agir? Para mim, as duas respostas são pela negativa. E, com a legalidade, paro por aqui. Vamos para a moralidade administrativa e aí a coisa ou piora ou é tão ruim quanto com o tema da legalidade. Apesar da Constituição se referir à moralidade administrativa, incorporando a tese de Ronald Dworkin no sentido de que o Direito é um compartimento da Moral, os autores ainda teimam em separar Direito e Moral, revelando uma filiação positivista. Assim, há desde autores, como Maria Sylvia Zanella Di Pietro51 que afirmam que viola a moralidade administrativa toda e qualquer violação à Moral do homem comum, passando por Odete Medauar52 48 .  Dentre tantos, vide: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Op.cit.; BINENBOJM, Gustavo. Op.cit. 49 .  Sobre a crise e inconsistência da distinção princípios expressos e princípios implícitos, vide: DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. Op.cit.

que dirá que somente viola a moralidade administrativa se a conduta ferir a moralidade institucional da Administração, no final, acabam por afirmar que uma conduta pode ser ilegal, mas moral ou imoral, mas legal! A moralidade administrativa não se cumpre ao se observar a moral do homem comum como também não se cumpre ao se observar a moral institucional da Administração Pública. No primeiro caso, porque a moral do homem comum é bastante relativa para servir de parâmetro para a Administração Pública; no segundo, porque se a moralidade da Administração Pública for a do “jeitinho”, do “você sabe com quem está falando” e outras coisas do gênero, será que a manutenção dessa moralidade institucional da Administração Pública cumpre constitucionalmente o princípio da moralidade administrativa? A resposta somente parece ser pela negativa. E paro por aqui quanto à moralidade administrativa. Por fim, vejamos o suposto princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, na verdade hoje defendido apenas por Celso Antônio Bandeira de Mello.53 Na verdade, se supremacia do interesse público sobre o particular for princípio, é a própria Constituição de 1988 que passa a ser negada. Não há qualquer elemento constitucional que leve à afirmação de tal princípio! Embora a doutrina mais atual tenha rejeitado tal princípio, o problema se centra na argumentação utilizada para rejeição, pois abre espaço para mais decisionismo e arbitrariedade, já que os argumentos estão baseados em uma suposta ponderação de valores.54 Aqui, não terei espaço para desenvolver de modo mais aprofundado as críticas, tanto em relação à supremacia do interesse público sobre o particular quanto as formas que a doutrina vem defendendo para superar e demonstrar a inexistência de tal princípio. Apesar do caráter exemplificativo do meu argumento, acredito que já é possível perceber que a construção e afirmação de um direito das futuras gerações passam necessariamente por uma reformulação da vinculação da Administração à juridicidade. É o que mostrarei no último ponto do presente texto.

50 .  Por todos, vide: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26ª edição, São Paulo: Malheiros, 2009. 51 .  DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 24ª edição, São Paulo: Atlas, 2011.

53 .  BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op.cit.

52 .  MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 15ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

54 .  Sobre os problemas relacionados à ponderação de valores, vide: OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. Op.cit.

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3  À Guisa de Conclusão: Uma Nova Leitura da Principiologia Constitucional-Administrativa para a Construção do Direito das Futuras Gerações Se, como demonstrei nos itens anteriores, o Direito é um projeto coletivo que visa afirmar a igualdade e liberdade dos membros da comunidade de princípios, e se, inclusive, já há autores afirmando que a Administração Pública tem como obrigação jurídica fundamental cumprir e realizar direitos fundamentais, a construção do direito das futuras gerações passa necessariamente pelo rompimento de antigos dogmas que ainda assolam o Direito Administrativo brasileiro. Assim, em um Direito Democrático, não é mais possível se afirmar que a Administração Pública encontra-se em posição de superioridade em relação aos administrados. A própria expressão administrado deve ser retirada dos livros de direito administrativo e da prática da Administração Pública. Isso porque a Administração não lida com administrados, sujeitos passivos e que tudo aceitam sem saber o que querem da vida. A Administração Pública lida com cidadãos que devem participar em situação de igualdade na construção das ações administrativas; até porque tais ações irão repercutir na esfera de vida e de direitos dessas pessoas. Também não é mais possível defender a ideia de que a Administração Pública sempre defende o interesse público e, em assim sendo, deve ter prerrogativas e privilégios que os cidadãos comuns não podem ter. Isso é indefensável em uma democracia constitucional, pois a Administração pode estar privatizada nas mãos de poucos. Além disso, a própria construção do interesse público depende da participação do público para definir as prioridades. Isso porque as sociedades contemporâneas são marcadas por aquilo que, certa vez, John Rawls denominou de fato do pluralismo.55 Significa dizer que a sociedade não é homogênea, mas apresenta interesses conflitantes, estando unida apenas em função de um projeto coletivo comum: o desenvolvimento de uma comunidade de pessoas que se respeitam e que se enxergam como livres e iguais, apesar de suas diferenças. Para que a geração atual como também as futuras sejam respeitadas, é de fundamental importância uma participação mais ativa dos cidadãos na gestão pública. Uma Administração Pública paritária, igualitária. 55 .  RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 62

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Da mesma forma, não se pode mais defender a ideia de que a Administração Pública seja parcial. Assim, a impessoalidade deve ser lida não apenas como uma Administração que não persegue nem favorece pessoas específicas, mas fundamentalmente deve englobar também a imparcialidade, já que a função primordial da Administração Pública é a de realizar e desenvolver os direitos fundamentais dos cidadãos. A publicidade deve ser vista como proibição de propaganda institucional, como também a necessidade de transparência na gestão pública, o que levará necessariamente a ampliação dos controles internos e externos da atividade administrativa. Por fim, a eficiência não pode se basear apenas em metas construídas de modo acrítico que devem ser buscadas a qualquer preço. A construção da eficiência administrativa também deve levar em consideração a participação dos cidadãos para que as metas e os mecanismos de sua realização sejam fruto de um diálogo da Administração Pública com a sociedade em geral. Somente assim acredito que poderemos transformar de fato e de direito a Administração Pública brasileira em construtora e realizadora dos direitos fundamentais, construindo-se um novo capítulo para o nosso direito, de modo que as gerações futuras possam ser consideradas parceiras na continuidade e desenvolvimento do projeto do direito democrático. Utopia? Pode ser. Mas, se a utopia ou teoria é boa e a prática ruim, então mudemos a prática!56

56 .  Frase de Ronald Dworkin constante na seguinte obra: DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: A Teoria e a Prática da Igualdade. Op.cit. 63

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3 MULTILEVEL GOVERNANCE OF INTERDEPENDENT PUBLIC GOODS IN THE 21ST CENTURY: FROM NATIONAL TO MULTILEVEL AND COSMOPOLITAN CONSTITUTIONALISM? Ernst-Ulrich Petersmann

1  F  rom Constitutional Nationalism to ‘UN Multilevel Constitutionalism’

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n contrast to private goods produced spontaneously in private markets, the ‘non-excludable’ and ‘non-exhaustive’ characteristics of PGs entail ‘market failures’ requiring government interventions for the collective supply of ‘weakest link PGs’ (like a dike) and ‘aggregate PGs’ (like democratic peace).1 Since republican constitutionalism in ancient Greece, almost all states have learned through ‘trial and error’ the need for adopting national Constitutions as a necessary legal framework for democratic supply of national PGs (like rule of law, a common market). Since World War II, all 193 UN member states have also joined functionally limited treaty constitutions like the Constitutions (sic) of the International Labour Organization (ILO), the World Health Organization (WHO), the UN Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) and the Food and Agriculture Organization (FAO); the ‘constitutional functions’ of this functionally limited ‘UN multilevel constitutionalism’ include (1) establishing multilevel governance institutions, (2) limiting their legislative, executive and dispute settlement powers, (3) regulating their collective supply of functionally limited ‘aggregate PG’ through ‘primary rules of conduct’ and ‘secondary rules of recognition, change 1 .  For a discussion of the different kinds of public goods and related ‘production strategies’ see: S.Barret (2007) and E.U.Petersmann (ed, 2012). 65

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and adjudication’, and (4) justifying the governance systems, for instance in terms of protecting labour rights and ‘social justice’ through ILO law, fundamental rights to health protection through WHO law, human rights to education, justice and ‘rule of law’ through UNESCO law, or ‘ensuring humanity’s freedom from hunger’ through FAO law. The more globalization transforms national PGs into global ‘aggregate PGs’, the more national (big C) Constitutions turn out to be ‘partial constitutions’ that can protect international PGs only in cooperation with other states based on international law and institutions. Yet, due to intergovernmental power politics focusing on ‘state sovereignty’ rather than ‘popular sovereignty’, ‘individual sovereignty’ and related ‘sovereign responsibilities’, neither the UN nor UN Specialized Agencies nor the WTO have succeeded in realizing their human rights objectives and protecting other international PGs effectively. As first explained by Kantian legal theory, state-centered ‘multilevel constitutionalism’ cannot effectively protect human rights and other international PGs without additional multilevel constitutional safeguards of cosmopolitan rights and corresponding constitutional restraints on abuses of power in all human interactions at national, transnational and international levels.2 Power-oriented ‘Westphalian conceptions’ of international law focusing on foreign policy discretion for maximizing ‘national interests’ - without effective parliamentary control, judicial review and other constitutional restraints of intergovernmental power politics and of its often welfare-reducing effects on domestic citizens - become all too often captured by rent-seeking interest groups abusing import protection and non-transparent financial deals (eg loan agreements, concession agreements) generating ‘protection rents’ for politicians and powerful producer interests at the expense of domestic consumer welfare.

2 .  Cf E.U. Petersmann (2012), chapts II and III. 66

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2  E  uropean ‘Cosmopolitan Constitutionalism’ Regulates ‘Collective Action Problems’ and Protects PGs More Effectively

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uropean human rights and economic integration law confirms that citizen-oriented ‘cosmopolitan constitutionalism’ protecting cosmopolitan rights, ‘participatory democracy’, transnational rule of law and multilevel judicial remedies for the benefit of citizens across state borders – eg in the context of the European Convention on Human Rights (ECHR), European common market and competition law, international investment and commercial law and arbitration – have protected PGs in more legitimate and more effective ways than state-centered regimes prioritizing rights of governments (eg under UN and WTO law) over rights and judicial remedies of citizens.3 The ‘multilevel constitutionalism’ initiated by the ILO, FAO, WHO and UNESCO ‘constitutions’ failed to protect international PGs effectively (like labour rights protecting ‘social justice’, human rights to education, health protection and adequate food) because citizens and democratic parliaments were often not effectively empowered (eg by ‘countervailing rights’ limiting abuses of executive powers through judicial remedies); political abuses of power (eg in non-democratic UN member states) were not effectively constitutionally restrained (eg through supervisory powers of UN institutions and compulsory jurisdiction of international courts of justice limiting ‘harmful externalities’ of violations of human rights). European common market and competition rules realized the PG of consumer-driven, open markets because EU citizens could directly enforce the European Union (EU) and European Economic Area (EEA) rules in domestic courts; and independent guardians of ‘community interests’ (like the EU Commission) could enforce the rules also in the EU Court of Justice (CJEU) as well as in the European Free Trade Area (EFTA) Court. The multilevel legal, democratic and judicial guarantees were linked, for instance by cooperation among national and European courts (eg based on ‘preliminary rulings’ by the CJEU) and individual access also to the CJEU, the EFTA Court and the European Court of Human Rights

3 .  Cf. Petersmann (note 2), at 145 ff. 67

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(ECtHR). Also the multilevel HRL in Europe can be directly enforced by self-interested citizens in national and European courts, just as international investment and commercial law and arbitration offer decentralized legal and judicial remedies aimed at protecting transnational rule of law. European integration law protects individual, constitutional and democratic diversity and subsidiarity of governance as constitutional rights and values (eg in Articles 2-5 of the Lisbon Treaty on EU). The cosmopolitan constitutionalism underlying the European treaties constituting, limiting, regulating and justifying European PGs (like the common market, transnational protection of human rights, rule of law, multilevel democratic governance) deals with the five major ‘collective action problems’ in supplying international PGs more effectively than traditional regulatory approaches focusing on ‘constitutional nationalism’ (eg in hegemonic countries like the USA, Russia and China) and state-centered ‘UN multilevel constitutionalism’. For instance:

1

. The jurisdiction gap (ie the limited jurisdiction and incapacity of individual states to provide ‘aggregate PGs’ unilaterally without international cooperation) requires not only constituting, limiting, regulating and justifying intergovernmental powers for collective supply of international PGs. Democratic exercise of multilevel governance powers must also link the law of international organizations to cosmopolitan rights, parliamentary control and judicial remedies of citizens. The common market law of the EU, and its extension to EFTA countries through the Agreement establishing the European Economic Area (EEA) as well as through bilateral free trade agreements (eg with Switzerland), illustrate diverse ‘cosmopolitan IEL approaches’ that have protected the PG of a citizen-driven, rule-based common market effectively. By contrast, free trade agreements outside Europe (such as NAFTA and ASEAN) remain subject to governmental impunity to violate international law for the benefit of powerful interest groups (including diplomats interested in excluding their own legal, democratic and judicial accountability vis-à-vis citizens), or to redistribute income among domestic citizens by discretionary ‘trade remedies’, restraints of competition and subsidies distorting non-discriminatory conditions of competition to the detriment of consumer welfare.

2

. The governance gap (ie the inability of most intergovernmental organizations to regulate and govern the collective supply of in68

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ternational public goods democratically and effectively) requires new forms of multilevel constitutional, legislative, administrative and judicial commitments and institutions for collective protection of human rights and other PGs. In contrast to ‘constitutional nationalism’ (as illustrated by the ‘hegemonic international law’ conceptions of most UN Security Council members) and to power-oriented ‘UN multilevel constitutionalism’, European cosmopolitan constitutionalism empowers not only governments but also citizens, parliaments, functionally limited regulatory agencies (like multilevel competition authorities and central banks), national and international courts of justice. The focus of ‘cosmopolitan empowerment’ on extending the ‘constitutional trias’ of human rights, rule of law, and democratic self-government to multilevel governance – rather than on foreign policy discretion and intergovernmental power politics - prioritizes constitutionally restrained, and democratically more legitimate problem-solving capacities (eg through European networks of competition authorities subject to multilevel protection of individual rights and judicial remedies) that can mobilize more effectively democratic support for peaceful economic integration and political cooperation (eg through ‘participatory’ and ‘deliberative democracy’ complementing the inadequate control of ‘intergovernmentalism’ by national parliaments).

3

. The incentive gap (ie the inherent temptation of free-riding in the collective supply of international PGs whose costs and benefits are distributed unevenly) requires making ‘common but differentiated responsibilities’ for private and public, national and international actors more effective. Financial and technical assistance for poor countries (eg if they provide transnational environmental services by protecting tropical forests that are of global importance for bio-diversity and carbon-reduction), or WTO provisions for capacity-building and trade facilitation assisting less-developed countries (LDCs) in participating in world trade and in implementing WTO obligations, illustrate how legal and financial incentives for private and public participation in the supply of international PGs may assist in limiting ‘governance failures’ and promoting equitable sharing of adjustment costs. The limited incentives for LDCs to make use of the power-oriented GATT dispute settlement system were successfully reduced by the WTO provisions for legal assistance for LDCs (cf. Article 27 DSU) and by the establishment of a separate Advisory Center on WTO Law assisting developing countries 69

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in WTO dispute settlement proceedings and in implementing WTO obligations. The European experiences with financial redistribution (e.g. by EU regional, structural and development funds), capacity-building and ‘human rights conditionality’ illustrate how citizen-oriented ‘community law’ and rights-based ‘integration law’ can transform power politics by cosmopolitan rights, development assistance and rule of law. The focus of the WTO ‘Development Round’ on assisting the majority of less-developed WTO member countries to benefit from trade and from welfare-increasing trade regulation has been a necessary, yet insufficient incentive for promoting participation of LDCs in the consensus-practice of the WTO. The continuing disagreement on how to maximize the gains of LDCs from trade illustrates the need for limiting consensus-based WTO negotiations by more legal flexibility for ‘plurilateral trade agreements’ among ‘coalitions of the willing’. As ‘human development’ depends on respect for human rights, and democratic control of foreign policy powers cannot remain effective without transnational rule of law, cosmopolitan rights and judicial remedies are indispensable incentives for citizens to assume their democratic responsibilities for their economic and democratic self-development in a globally interdependent world.

4

. The participation gap (ie the need for inclusive consensus-building mobilizing democratic support and participation in collective supply of PGs) requires empowerment of citizens by cosmopolitan ‘access rights’ to public goods, legal and institutional protection of ‘deliberative governance by discussion’, institutionalized leadership (e.g. by international organizations with mandates for initiating rule-making for global public goods) and financial assistance for ‘capacity building’ by ‘coalitions of the willing’ so that all relevant public and private actors cooperate in the collective supply of interdependent ‘aggregate PGs’. As in HRL and European economic law, multilevel governance must be promoted by insisting on ‘responsible sovereignty’ based on ‘duties to protect’ human rights and other public goods, international duties of cooperation (e.g. among national governments and international organizations, national and international courts) and promotion of ‘regulatory competition’ through plurilateral agreements among ‘alliances of the willing’. WTO law encourages ‘competing liberalization’ at worldwide and regional levels, as illustrated by the increasing recourse to free trade areas, customs unions and preferential agreements among 70

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LDCs as ‘second best’ policies in the absence of worldwide consensus on concluding the Doha Round negotiations. Transnational economic and environmental PGs are crucially dependent on private stake-holder participation, for instance by private industries developing product, production and consumer protection standards, industrial and medical innovation (eg ‘green technologies’), and ‘private-public partnerships’ in regulating economic markets (eg labour markets, Internet governance, ‘carbon emission trading systems’ contributing to adjustment to climate change). As illustrated by the citizen-driven European economic, legal and human rights regimes, transnational economic, environmental and legal PGs (like ‘rule of law’ for the benefit of citizens) cannot become effective and legitimate without rights of all affected citizens to have recourse to legal and judicial remedies against unjustified restrictions of individual rights and market distortions.

5

. The hundreds of functionally limited treaty regimes for multilevel supply of international PGs (eg mutually beneficial free trade agreements), and their constitutional foundation in diverse national legal systems, entail a ‘rule of law gap’ that must be reduced through mutually ‘consistent interpretations’ of interdependent, multilevel legal systems. Both national as well as international legal systems tend to proceed from the legal assumption that governments are presumed to act in conformity with their international legal obligations (cf. Article 31 VCLT). Also HRL emphasizes, since the Universal Declaration of Human Rights (UDHR, 1948), the need for protecting ‘human rights … by the rule of law’, including a human right ‘to a social and international order in which the rights and freedoms set forth in this Declaration can be fully realized’ (Preamble, Article 28 UDHR). Numerous treaties and UN resolutions acknowledge this need for implementing international law in domestic legal systems in good faith in view of the interdependence of national and international rule-of-law systems (as an ‘aggregate PG’).4 Both ‘constitutional nationalism’ as well as ‘UN multilevel constitutionalism’ prioritizing ‘sovereign freedom of states’ to disregard international law inside national legal systems (subject to international ‘state responsibility’) tend to aggravate the ‘policy coherence 4 .  On UN protection of rule of law beyond the state see the annual reports by the UN Secretary-General on ‘The Rule of law at the national and international levels’ (Delivering Justice: Programme of Action to Strengthen the Rule of Law at the National and International Levels. Report by the Secretary-General, A/66/749, 16 March 2012). 71

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gap’ resulting from the rule-of-law-gap caused by the legal fragmentation among hundreds of national, international and transnational legal regimes and from parochial disregard for the ‘coherent interpretation requirements’ recognized in national and international legal systems.

3  H  RL Requires ‘Access to Justice’ and ‘Cosmopolitan Constitutionalism’ also in IEL

C

osmopolitan constitutionalism differs from national (big C) Constitutionalism and state-centered ‘UN multilevel (small c) constitutionalism’ by its objective of protecting cosmopolitan rights across national frontiers through more democratic, multilevel governance institutions and stronger, multilevel judicial protection of transnational rule of law for the benefit of citizens. Since the UN Declaration on the ‘Right to Development’ adopted in December 1986 up to the ‘Millennium Declaration’ of December 2000 committing UN member states to ‘making the right to development a reality for everyone and to freeing the entire human race from want’, the linkages between human rights protection and human development needs are specified in ever more UN legal instruments and development reports. Also national Constitutions increasingly refer to international law and international organizations as preconditions for protecting international PGs through multilevel governance. In IEL, transnational rule of law has rarely been secured only by rights and responsibilities of states without additional constitutional limitations of multilevel governance (eg by judicial remedies). The 2013 Report of the Panel on Defining the Future of International Trade convened by WTO Director-General P. Lamy concluded ‘that governments face a four-pronged convergence challenge’: (1) failures to promote further convergence of their trade regimes through multilateral WTO negotiations; (2) incoherencies of preferential and WTO trade regimes; (3) incoherencies between ‘trade and other domestic policies, such as education, skills and innovation’; and (4) inadequate ‘coherence between trade rules and policies, norms and standards in other areas of international co-operation’.5 5 .  The Future of Trade: The Challenges of Convergence (WTO, 2013), at 39. 72

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The unnecessary poverty and lack of democratic governance in many LDCs (notably in Africa and Asia) illustrate similar ‘governance gaps’ and ‘rule of law gaps’: UN law continues to fail protecting effectively human rights, rule of law, democracy and other PGs in many UN member states; it offers no protection for the economic liberties (like freedom of profession), common market freedoms and property rights, whose guarantees in in European law enabled more than 60 years of unprecedented economic and social welfare and democratic peace. Hence, the ‘human rights approaches’ advocated by the UN High Commissioner for Human Rights for interpreting and developing IEL6 must be complemented by multilevel constitutional, legislative, administrative and judicial regulation of ‘market failures’ as well as of ‘governance failures’ in IEL - with due respect for the legitimate reality of ‘constitutional pluralism’, for instance regarding the diverse traditions of parliamentary democracy, ‘constitutional democracy’, and the ‘balancing’ of civil, political, economic, social and cultural rights. If the purpose of constitutionalism and democracy is defined in terms of institutionalizing ‘public reason’ for protecting constitutional rights of citizens in legitimate ways, then the power-oriented domination of UN and WTO institutions by the self-interests of governments (eg in limiting their legal, democratic and judicial accountability vis-à-vis citizens) is part of the problem - rather than of the solution - of multilevel governance of ‘aggregate PGs’. Due to the absence of a transnational ‘demos’ and of effective parliamentary and judicial control of intergovernmental power politics, transnational ‘cosmopolitan democracy’ must rely more on rights-based ‘participatory democracy’, cosmopolitan rights and their multilevel, legal and judicial protection as ‘countervailing powers’ to the diffusion of ever more regulatory powers to international institutions and non-governmental actors due to globalization. As many rulers are complicit in abuses of public and private power (eg by means of foreign loan and concession agreements for exploiting natural resources, restrictive business practices), the vigilance of self-interested citizens and of independent ‘courts of justice’ may offer more effective ‘countervailing powers’7 limiting the ubiquity of abuses of 6 .  Cf. Petersmann (2012), chapters IV and VII. 7 .  This conception was emphasized by the CJEU in its Van Gend en Loos judgment (Case 26/62, ECR 1963, 1), where the CJEU stated that ‘the vigilance of the individuals 73

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power in transnational economic relations than reliance on ‘Westphalian ideals’ of ‘benevolent governments’ committed to ‘Aristotelian virtue politics’. By linking the ‘cosmopolitan functions’ of IEL to existing domestic constitutional guarantees of civil, political, economic and social rights of citizens and to the universal human rights obligations of all UN member states, ‘cosmopolitan interpretations’ of IEL and their judicial protection for the benefit of citizens can initiate ‘cosmopolitan reforms’ and more citizen-oriented ‘public reason’ in multilevel governance of PGs, as illustrated by the common market rights of European citizens and the derivation of investor rights from bilateral investment treaties and their multilevel judicial protection by arbitral and national courts. Also the General Agreement on Tariffs and Trade and the WTO Agreements include a large number of requirements to make available judicial, arbitral or administrative tribunals and independent review procedures not only at international governance levels among WTO members, but also in domestic legal systems in the field of GATT (cf Article X), the WTO Antidumping Agreement (cf Article 13), the WTO Agreement on Customs Valuation (cf Article 11), the Agreement on Pre-shipment Inspection (cf. Article 4), the Agreement on Subsidies and Countervailing Measures (cf Article 23), the General Agreement on Trade in Services (cf Article VI GATS), the Agreement on Trade-Related Intellectual Property Rights (cf Articles 41-50, 59 TRIPS) and the Agreement on Government Procurement (cf Article XX). As the legal and ‘dispute settlement system of the WTO’ is explicitly committed to ‘providing security and predictability to the multilateral trading system’ (Article 3 DSU) and to ‘raising standards of living, ensuring full employment’ and promoting ‘sustainable development’ for the benefit of citizens (Preamble WTO Agreement), the WTO guarantees of ‘access to justice’ and of ensuring inside each WTO member ‘the conformity of (domestic) laws, regulations and administrative procedures with its obligations as provided in the annexed Agreements’ (Article XVI:4 WTO Agreement) justify interpreting precise and unconditional WTO obligations of governments also in terms of cosmopolitan rights of their citizens. HRL and regional environmental concerned to protect their rights amounts to an effective supervision in addition to the supervision entrusted by (ex) Articles 169 and 170 to the diligence of the Commission and the Member States’. 74

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law likewise include numerous guarantees of access to justice or to ‘a review procedure before a court of law or another independent and impartial body established by law’ in transnational environmental regulation (cf Article 9 of the 1998 Aarhus Convention on Access to Information, Public Participation in Decision-Making and Access to Justice in Environmental Matters).8 As some national Constitutions have responded to systemic governance failures by providing for broad legal and judicial remedies whenever ‘rights are violated by public authority’ (eg Article 19:4 German Basic Law), and some regional economic agreements (like the Lisbon Treaty) are explicitly committed to facilitating ‘access to justice’ (Article 67:4 TFEU), ‘rule of law’ (Article 2 TEU) and a ‘right to an effective remedy and to a fair trial’ whenever ‘rights and freedoms guaranteed by the law of the Union are violated’ (Article 47 EU Charter of Fundamental Rights), interpreting national, regional and international legal guarantees of ‘access to justice’ in mutually coherent ways for the benefit of citizens can be justified also as a legal requirement of the ‘consistent interpretation principles’ underlying national and international legal systems (cf Article 31 VCLT).

4  ‘Cosmopolitan Constitutionalism’ as a ‘Struggle for Justice’

A

lmost a century ago, the German jurist R.Jhering noted that the ‘life of the law’ often depends on citizens struggling for their rights; such ‘struggle for his rights’ may be a ‘duty of the person whose rights have been violated’ as well as a ‘duty to society’.9 In US antitrust law as well as in European economic law, individual plaintiffs invoking and enforcing competition and common market rules have been likened to ‘attorney generals’ promoting also ‘community interests’ rather than only individual self-interests. Following the recognition of human 8 .  Cf. A.A.Cançado Trindade (2011). The terms ‘effective remedy’ and ‘access to justice’ are often used interchangeably for protecting individual rights to effective access to a dispute resolution body; rights to fair proceedings; rights to timely resolution of disputes; rights to adequate redress; and the principle of efficiency and effectiveness of legal remedies. 9 .  R. Jhering (1915), chapters II to IV. 75

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rights and other ‘principles of justice’ as integral parts of national and international legal systems, ever more national and international courts throughout Europe interpret international guarantees of freedom, nondiscrimination and rule of law for the benefit of citizens even if the international rules were addressed to states without explicitly providing for cosmopolitan rights: “‘the fact that certain provisions of the Treaty are formally addressed to the Member States does not prevent rights from being conferred at the same time on any individual who has an interest in compliance with the obligations thus laid down (see Case 43/75 Defrenne v Sabena [1976] ECR 455, par. 31). Such consideration must, a fortiori, be applicable to Article 48 of the Treaty, which … is designed to ensure that there is no discrimination on the labour market’”.10 The increasing legal and judicial guarantees of ‘access to justice’ and of cosmopolitan rights offer individuals decentralized and de-politicized instruments to enforce IEL against illegal government restrictions and irresponsible interest group politics. The more the ‘constitutional trias’ of human rights, rule of law and democracy becomes an ‘acquis communautaire’ of national Constitutionalism and a paradigm for ‘constitutionalizing’ also multilevel governance of transnational PGs, the more citizens and courts of justice must struggle for ‘cosmopolitan re-interpretations’ of UN law and WTO law ‘in conformity with principles of justice’ and ‘human rights and fundamental freedoms for all’, as required by HRL and the customary methods of treaty interpretation (cf Preamble, Article 31 VCLT) and adjudication. For example, interpreting ‘state sovereignty’ in conformity with ‘popular’ and ‘individual sovereignty’ in terms of ‘responsible sovereignty’ - focusing on the universal obligations of all UN member states to respect, protect and fulfill human rights – justifies limiting the Westphalian paradigm of ‘intergovernmental rule by law’ by a paradigm of rights-based ‘cosmopolitan democracy’ beyond the state based on transnational ‘rule of law’, cosmopolitan rights and their multilevel, legal and judicial protection, with due respect for ‘constitutional pluralism’ and subsidiarity promoting diversity inside UN member states as well as in functionally limited international organizations. The more the ‘rational ignorance’ of citizens vis-à-vis the complexity of multilevel governance problems and the diversity of national democratic preferences limit the space for

transnational parliamentary representation and control, the more important becomes ‘constitutionalization’ of transnational governance powers through ‘cosmopolitan constitutionalism’ protecting individual and democratic diversity in multilevel governance. Transnational regulation of multilevel governance in international organizations without effective parliamentary control (like the Bretton Woods institutions, the ILO, the WTO) will continue to differ depending on the functionally diverse governance problems. For example, the regulation of ‘market failures’ through competition, environmental, social and consumer protection laws and policies may be guided more by economic theories (e.g. on ‘internalizing external effects’) than by human rights considerations. The legal ranking of trade policy instruments in GATT/WTO law is influenced by economic theories that differ from those justifying regulation of monetary organizations and regional common markets. The regulation of many ‘collective action problems’ in supplying international public goods may be guided by political ‘public choice’- and ‘public goods’-theories emphasizing the diversity of ‘production strategies’ for ‘single best effort public goods’ (like an invention), ‘weakest link public goods’ (like nuclear non-proliferation) and ‘aggregate public goods’ (like ‘rule of law’).11 In a globally interdependent world, democratic self-government risks remaining an illusion unless treaties ratified by national parliaments are not respected. Yet, transnational ‘rule of law’ differs from ‘rule by law’ and must be promoted by recognizing, ‘balancing’ and reconciling competing rights and constitutional claims on the basis of common constitutional principles (like guarantees of human rights and popular self-determination in UN law), with due respect for legitimately diverse interpretations in conformity with different national constitutional traditions and democratic preferences. As intergovernmental rules often unduly restrict individual rights, transnational ‘rule of law’ – as a constitutional, jurisdictional and judicial restraint protecting equal individual rights against abuses of ‘rule by law’ – may require ‘struggles for justice’ as illustrated by the citizen-driven jurisprudence of European courts, for example in the Kadi-judgments of the ECJ refusing application of UN Security Council sanctions vi-

10 .  Cf. Case C-281/98, Angonese [2000] ECR I-4139.

11 .  Cf. Barret (2007) and Petersmann (2012), at 25 f, 56 f, 94 ff.

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olating human rights.12 In contrast to power-oriented ‘Westphalian diplomacy’ focusing on foreign policy discretion by government executives without legal and judicial accountability vis-à-vis citizens (e.g. for welfare-reducing trade protectionism, inadequate financial regulation), democratic self-government and the ‘subsidiarity principle’ call for legal empowerment of citizens and decentralized government ‘as openly as possible and as closely as possible to the citizens’ (Article 1 TEU). If, as claimed by most economists in conformity with Rawls’ Theory of justice, the poverty in most LDCs is unnecessary and due to inadequate constitutional restraints of welfare-reducing abuses of public and private power13, civil society and parliaments must struggle for stronger cosmopolitan rights and constitutional restraints of multilevel economic and environmental governance in compliance with international treaties ratified by parliaments. European integration confirms that overcoming discriminatory ‘legal nationalism’ requires ‘multilevel guardians of PGs’ based on cosmopolitan rights of citizens, independent institutions (like the EU Commission) with rights to initiate rule-making and promote ‘deliberative democracy’, multilevel judicial protection of transnational rule of law, and accountability of governments for violations of internationally agreed rules. The transformation of GATT 1947 into the rules-based WTO trading system with compulsory, national and international jurisdiction for the peaceful settlement of disputes and judicial protection of rule of law was achieved by ‘intergovernmental leadership’ by constitutional democracies (e.g. insisting on the compulsory WTO dispute settlement system and on terminating GATT 12 .  See joined cases C-402/05P and C-415/05 P, Kadi and Al Barakaat International Foundation v Council of the EU and Commission of the European Communities (judgment of 3 September 2008, ECR 2008 I-6351), para. 284: ‘It is also clear from the caselaw that respect for human rights is a condition of the lawfulness of Community acts (Opinion 2/94, paragraph 34) and that measures incompatible with respect for human rights are not acceptable in the Community (Case C-112/00, Schmidberger [2003] ECR I-5659, paragraph 73 and case-law cited).’ For an explanation of the importance of ‘human rights coherence’ and respect for legitimate ‘constitutional pluralism’ for the interpretation, legitimacy and effectiveness of IEL see: Petersmann (2012), chapters II to IV. 13 .  Cf. J.Rawls (1999), at 37-38, 106-120 (‘the crucial element in how a country fares is its political culture – its members’ political and civic virtues – and not the level of its resources’, at 117). For instance, China and India – whose trade liberalization since the 1990s has helped to lift hundreds of millions out of poverty – could have avoided the impoverishment of many of their citizens if they had complied with GATT rules since the GATT membership of China and India in1948. 78

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1947). The ‘governance failures’ in concluding the ‘Development Round’ negotiations in the WTO illustrate the need for additional, legal and cosmopolitan governance reforms of the WTO legal system, for instance by promoting leadership based on an enlarged mandate of the WTO Director-General, creation of a new WTO Executive Committee, regular review of the WTO legal and dispute settlement systems by a WTO Legal Committee, institutionalizing the inter-parliamentary cooperation inside the WTO, and introducing more flexibility for ‘plurilateral trade agreements’ among WTO members. Just as international investment law has succeeded in depoliticizing investment disputes (eg in the International Court of Justice) by offering non-governmental actors access to investor-state arbitration, many international trade disputes in the WTO could be avoided and decentralized by empowering citizens through cosmopolitan rights to challenge arbitrary violations of WTO obligations and of transnational rule of law in domestic courts.

5  C  onstitutional Pluralism as ‘Overlapping Consensus’ for Piecemeal Reforms

T

here are many diverse conceptions of ‘cosmopolitan rights’ and legal duties vis-à-vis foreigners, for instance depending on whether national boundaries are considered to have moral significance (eg in terms of ‘democratic responsibility’ of a people for its own welfare). ‘Cosmopolitan constitutionalism’ must respect this legitimate reality of ‘constitutional pluralism’ by searching only for an ‘overlapping consensus’ (J.Rawls) among individuals, people and governments with often conflicting conceptions of a good life and of social justice.14 Yet, as securing human rights in multilevel governance of PGs is ‘a matter of justice’ rather than of charity or foreign policy discretion of the rulers, citizens and people will continue to struggle (eg in the ‘Arab spring’) for ‘constitutionalizing Westphalian power politics’ and insist also on stronger constitutional and democratic accountability of foreign policy

14 .  Cf. Petersmann (2012), chapter VI. 79

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powers and intergovernmental rule-making, notably in terms of ‘principles of justice’ and ‘human rights and fundamental freedoms for all’ as required by the customary rules of treaty interpretation and adjudication. Realizing this ‘democratic responsibility’ for ‘cosmopolitan democracy’ is impeded by the ‘rational ignorance’ of many citizens vis-à-vis the complexity of multiple governance problems: ŠŠ

Which powers of initiative, rule-making, rule-application, adjudication and rule-enforcement should be transferred to higher governance levels?

ŠŠ

Should the delegated powers be of an exclusive nature (e.g. for international adjudication of disputes among states) or concurrent powers (e.g. for clarification and enforcement of rules) with due regard to the ‘principle of subsidiarity’, i.e. that governance powers should be exercised ‘as closely as possible to the citizens’ (cf. Article 1 TEU)?

ŠŠ

ŠŠ

Does the economic theory of ‘separation of policy instruments’ justify the separate mandates of UN Specialized Agencies? How should the coherence and cooperation between monetary, trade, development and environmental agencies be strengthened in order to promote synergies and reduce collective action problems? To what extent should membership of international economic and environmental organizations go beyond governments and provide for rights and duties also of non-governmental and parliamentary institutions and civil society in order to institutionalize ‘cosmopolitan public reason’ and ‘participative parity’ in deliberations so as to promote ‘transformative decisions’ on competing claims of just distribution? How can the different operational logics of markets (e.g. their ‘power of exit’) and organizations (e.g. their communitarian loyalties) be reconciled in order to promote ‘just responses’ to global problems?

Answers to such questions may differ depending on the policy area concerned. For instance, multilateral negotiations in the UN and WTO could be enhanced by granting the UN Secretary-General and WTO Director-General more ‘powers of initiative’. Synergies between regional and global PGs could be promoted by stronger incentives for using regional agreements (e.g. on free trade areas, environmen80

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tal regulation) as ‘building blocks’ for global PGs and for connecting multilevel ‘courts of justice’ in their joint task of protecting human rights and rule of law. However, the differences between the compulsory jurisdiction of WTO dispute settlement bodies and the ‘compliance procedures’ of multilateral environmental agreements (e.g. focusing more on fact-finding, mediation, financial assistance and capacity-building) illustrate that international dispute settlement procedures must be tailored to the specific regulatory problems. For instance, whereas multilevel rule-making may be most effective if based on internationally agreed minimum standards, multilevel administration and rule-enforcement are often more effective and more democratically acceptable at decentralized, national or private levels rather than international levels. Examples include ŠŠ

the ‘global corporate economy’ governed by private law structures;

ŠŠ the decentralized enforcement of European economic law by citizens empowered by effective legal and judicial remedies in national courts; ŠŠ the governance of the Internet based on US corporate law, administrative law and intergovernmental coordination; or ŠŠ the use of the US Alien Torts Claims Act for holding multinational corporations legally accountable for abuses of workers’ rights in foreign jurisdictions.15 The effectiveness and legitimacy of multilevel governance depend on bottom-up support by citizens and parliaments as well as on legal protection of the overall coherence of multilevel governance. As UN law offers only few effective safeguards of cosmopolitan rights and responsibilities (eg under international criminal law as protected by national and international courts), empowerment of individuals and transnational protection of PGs may be promoted more effectively by multilevel protection of cosmopolitan rights and judicial remedies in IEL, possibly following the example of protection of cosmopolitan rights and judicial remedies in European economic law, international investment treaties, the WTO Protocol on the Acces15 .  For case studies of these diverse forms of multilevel governance see : C.Joerges/ E.U.Petersmann (2006). 81

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sion of China, and regional human rights treaties. IEL - eg the US Reciprocal Trade Agreements Act of 1934 delegating limited powers for negotiating reciprocal trade liberalization agreements subject to congressional ‘fast track approval’ - offers multiple lessons for regulating the ‘collective action problems’ in supplying transnational PGs through ‘transformative strategies’ limiting ‘constitutional failures’ of ‘constitutional nationalism’ and of related international law conceptions. This contribution has argued that human rights and globalization require cosmopolitan ‘revolutions in legal thinking’ that most constitutional lawyers, international lawyers and diplomats resist even in citizen-driven areas of transnational cooperation like IEL. ‘Cosmopolitan constitutionalism’ offers the most convincing framework for the biggest policy challenge in the 21st century, ie constituting, limiting, regulating and justifying multilevel governance of transnational ‘aggregate PGs’ in order to protect the human right to an international order enabling fulfillment of the universal human rights obligations of all states (cf. Article 28 UDHR). As diplomats and other interest groups often oppose cosmopolitan ‘re-interpretations’ of ‘Westphalian international law’ (eg in order to limit their legal, judicial and democratic accountability vis-à-vis citizens), political pragmatism suggests to acknowledge ‘constitutional functions’ and ‘multilevel constitutional restraints’ of international legal rules even if governments and judges do not (yet) acknowledge the cosmopolitan dimensions of ‘multilevel constitutionalism’ (eg of WTO guarantees of multilevel judicial remedies). For instance, WTO diplomats and lawyers may find it easier to construe the WTO guarantees of judicial remedies at national and international levels (eg in Articles X, XXIII GATT) in mutually coherent ways on the basis of the ‘consistent interpretation’ requirements of national and international legal systems than on grounds of human rights like access to justice (as recognized in Article 47 EU Charter of Fundamental Rights). Likewise, linking the ‘constitutional functions’ of IEL to domestic constitutional guarantees, and adjusting domestic constitutionalism to the ‘collective action problems’ of multilevel governance of ‘aggregate PGs’ (eg by granting ‘fast-track legislation’ for parliamentary approval of international ‘public goods agreements’), can promote ’public reason’ and limit ‘constitutional failures’ even if many governments do not (yet) recognize the cosmopolitan dimensions of UN law and IEL. In the absence of legal hierarchies among

functionally limited treaty regimes, reducing ‘legal fragmentation’ and promoting rule of law for the benefit of citizens requires legal and judicial ‘balancing’ of the respective treaty principles through more inclusive, democratic and dispute settlement procedures. As governments often find it easier to acknowledge transnational individual rights and remedies on the basis of principles of ‘good governance’ and ‘global administrative law’ than on the basis of ‘cosmopolitan constitutional law’, explaining ‘multilevel constitutionalism’ by the need for a coherent ‘multilevel constitutional house’ (President Gorbatev, T.Cottier) may be easier to understand for many citizens than ‘cosmopolitan constitutionalism’. This is particularly true in the current economic and social crises in view of the political disagreement among citizens and national parliaments about whether and to what extent constitutional and governance failures abroad (eg due to corruption in tax and financial regulations in Greece) justify financial redistribution on grounds of cosmopolitan rights from ‘law-complying’ Euro countries (often with on average poorer families) to Euro members that have never complied with the fiscal and debt disciplines prescribed by EU law (cf Article 126 TFEU). As long as governments and courts (including the CJEU) interpret and apply UN law and also WTO guarantees of freedom, non-discrimination and rule of law as ‘Westphalian law’ (eg by granting the EU institutions ‘freedom of maneuver’ to restrict freedom of trade in manifest violation of WTO obligations) without protecting cosmopolitan rights of adversely affected citizens (eg their rights of access to justice and rule of law), ‘multilevel constitutionalism’ is a more realistic description of the ongoing ‘struggles for justice’ challenging Westphalian power politics than the normative ideal of ‘cosmopolitan constitutionalism’.16 Similarly, while European HRL has evolved into an effective ‘multilevel cosmopolitan law’, UN HRL is more correctly described in terms of ‘multilevel constitutionalism’ as long as it fails to effectively protect cosmopolitan rights and judicial remedies for the benefit of citizens. Also the legal design and collective supply of some international ‘weakest link PGs’ (like nuclear non-proliferation) will continue to be dominated by ‘intergovernmental approaches’ rather than by ‘cosmopolitan law’. Such policy constraints

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16 .  Cf. Petersmann, Can the EU’s Disregard for ‘Strict Observance of International Law’ (Article 3 TEU) Be Constitutionally Justified? in: Bronckers et alii (2011), 214-225. 83

challenge neither the cosmopolitan ideal of constitutionally limited self-government among free and equal citizens nor the resultant requirement of establishing constitutionally legitimate authority (eg for more effective regulation of nuclear non-proliferation). Yet, in order to pragmatically promote ‘transitional justice’, ‘multilevel constitutionalism’ limiting abuses of power may continue to be a more realistic ‘foreign policy paradigm’ allowing ‘cosmopolitan interpretations’ by constitutional democracies as well as participation by non-democratic governments interpreting their claims to ‘sovereign equality of states’ in statist terms rather than in terms of universal cosmopolitan rights. As long as the procedures for negotiating IEL remain dominated by power politics without protecting cosmopolitan rights and ‘justice as fairness’, courts of justice should take more seriously their constitutional duties of protecting cosmopolitan rights of citizens against intergovernmental power politics.17 The bailout agreements for Greece and Cyprus illustrate the limits of ‘cosmopolitan justice’ vis-à-vis governments and citizens failing their ‘cosmopolitan duties’ to prevent ‘governance failures’ at home (like persistent violations of EU fiscal, debt and financial disciplines) with harmful externalities on citizens and governments in other EU member states.

Literature S.Barret, Why Cooperate? The Incentive to Supply Gobal Public Goods (Oxford: OUP, 2007) M.Bronckers/V.Hauspiel/ R.Quick (eds), Liber Amicorum for J. Bourgeois (Cheltenham: Elgar, 2011) A.A.Cancado Trindade, The Access of Individuals to International Justice (Oxford: OUP, 2011) R. Jhering, The Struggle for Law (Chicago: Callaghan, 1915) C.Joerges/E.U.Petersmann (eds), Constitutionalism, Multilevel Trade Governance and Social Regulation (Oxford: Hart Publishing, 2006) E.U. Petersmann, International Economic Law in the 21st Century. Constitutional Pluralism and Multilevel Governance of Interdependent Public Goods (Oxford: Hart Publishing, 2012) E.U.Petersmann (ed), Multilevel Governance of Interdependent Public Goods. Theories, Rules and Institutions for the Central Policy Challenge in the 21st Century (Florence: EUI Working Paper RSCAS 2012/23). J.Rawls, Law of Peoples (Cambridge: Harvard University Press, 1999)

17 .  See the numerous case-studies of judicial promotion of teleological ‘reformative justice’ rather than merely textual ‘conservative justice’ in Petersmann (2012), chapter VIII. 84

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4 European Union’s Struggle for Gaining Food Safety Regulatory Autonomy under World Trade Organization Dispute Settlement Mechanism Anamaria Toma-Bianov

Introduction

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n the World Trade Organization (WTO) the Member States enjoy a certain freedom of manoeuvre with regard to food safety regulatory objectives. Since any food standard or regulation may be a barrier to trade, the main concern of WTO Dispute Settlement Body (DSB) is to distinguish between their legitimate and protectionist effect. In order to decrease the possible side-effects resulting from the states regulatory autonomy and to overpass the dichotomy existent between trade liberalization and domestic regulation, the WTO law offers solutions for a more homogenous approach in the field of food safety. Thus, Article 3.2 of SPS Agreement settles that if the domestic food safety standards are emanating from recognized international standard bodies (such as the Codex Alimentarius Commission), it shall be presumed that they are consistent with WTO law. The same presumption operates under Article 2.5 of TBT Agreement, according to which if a technical regulation is adopted or applied in accordance with relevant international standards, it shall be rebuttably presumed not to create an unnecessary obstacle to international trade. Although, there is a strong recommendation of using international standards where possible, there is no place in the WTO for a legislative harmonisation of food safety standards. Both TBT and SPS Agreement offer the WTO Member States a freedom of manoeuvre with regard to regulatory objectives, and the DSB case-law shows that panels and the

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Appellate Body were receptive to domestic regulatory objectives1. The gateways that allow members to set domestic food safety regulation which are not based on international standards can be traced in the exception clauses provided by Article XX of GATT and by TBT and SPS Agreements. For example, the SPS Agreement settles that the WTO members may have more restrictive food safety standards if they have scientific evidence to show that the standards increase the level of food safety above that implied by international standards. In practice, Article 2.2 is largely made operative through Article 5.1, which requires SPS measures to be based on risk assessment2. In case there is insufficient scientific evidence, Article 5.7 permits Members to take precautionary measures on the basis of available pertinent information. Thus, the applicability of Articles 2.2 and 5.1, on the one hand, and of Article 5.7, on the other hand, will depend on the sufficiency of the scientific evidence3. In its dispute settlement case-law, the Appellate Body has repeatedly affirmed that WTO Members have the prerogative right in setting any level of protection that they consider appropriate in order to protect human, animal or plant life and health. The “appropriate level of protection” is defined in Paragraph 5 of Annex A to the WTO SPS Agreement, as being “the level of protection deemed appropriate by the Member establishing a sanitary and phytosanitary measure to protect human, animal or plant life or health within its territory”. Still, the WTO Agreements provide for specific obligations that a WTO Member must respect when adopting the regulatory measures to fulfil its goals of protection. Thus, a WTO Member’s regulatory autonomy in setting the appropriate level of protection suffers constraints that are a permanent source of tension within the international trade system. The main issue that the DSB addressed in its case-law regarding the food safety regulatory autonomy is how to distinguish between unlawful barriers to trade and legitimate do1 .  See G. Marceau & J. P. Trachtman, “The Technical Barriers to Trade Agreement, The Sanitary and Phytosanitary Measures Agreement, and the General Agreement on Tariffs and Trade. A map of the World Trade Organisation Law of Domestic Regulation of Goods” in Journal of World Trade, vol.35, no.5, 2002, pp.811 - 881 2 .  See WTO Panel Report, European Communities – Measures Concerning Meat and Meat Products (EC – Hormones I), WT/DS48/R/CAN, adopted 18 August 1997 3 .  See WTO Appellate Body Report, European Committee – Measures Concerning Meat and Meat Products (EC – Hormones II), WT/DS16/AB/R, adopted 16 January 1998 88

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mestic regulation. In this context, the DSB is called to state if the domestic regulations serve legitimate, non-protectionist purposes, such as consumer protection, safety and health. This article examines the way the European Union defends its regulatory autonomy in establishing food safety standards in front of DSB and how it engaged in the defence of certain principles typical for European food policy, such as precautionary principle. In this context, we shall refer to three different cases brought in front of DSB where European Union (formerly European Communities) was respondent, namely EC-Hormones, EC-Sardines and EC-Biotech. The article also offers an historical overview of the European Union food safety regime in order to create a better understanding of the European approach of harmonizing food standards within EU market place, an approach that responds to market-distortion and market-segregation represented by multiple national standards.

1  H  istorical Overview of the European Food Safety Regulatory Regime

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he Treaty of Rome, signed in 1957, did not provide any guidance for food regulation since the major objective for the EC was freedom of movement of foodstuffs4. Still, recognizing the need to harmonize food standards, the EC issued a set of directives in the 1970s. These directives created standards of composition for certain foodstuffs5. As stated by the scholars, the main goal of those directives was to guarantee the free movement of food within the European Common Market, rather than to ensure consumer health protection6. In 1985, the EC came up with a new approach. Instead of trying to harmonize all of the food regulations, it decided to use labelling to indicate the differences in composition and production methods, allowing consumers to make an informed decision7. It adopted the principle of 4 .  See K. Goodburn, “Introduction: The Development of EU Food Law”, in K. Goodburn (ed.), EU Food Law: a Practical Guide, Woodhead Publishing, 2001 5 .  A. Alemanno, “Food Safety and the Single European Market”, in C. Ansell & D. Vogel (eds.), What’s the Beef? The Contested Governance of European Food Safety, MIT Press, 2006, pp. 237, 240 6 .  Idem, p.240 7 .  Idem, p.241 89

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mutual recognition, requiring a Member State to allow the free circulation of goods produced in conformity to equivalent standards of other Member States. This mutual recognition principle was established by the Cassis de Dijon8 case, in which a German law prohibited the marketing of liqueurs below a certain alcoholic strength. As a result of this prohibition, plaintiff, a German importer of liquor, could not market his liquor that contained less alcohol, Given the fact that the importer was able to sell the liquor in France, which did not have this limitation, the European Court of Justice held that since plaintiff’s liquor contained less alcohol than what the German law allowed, the justification of its prohibition could not be in the public interest and therefore could not stand. Thus, the Court held that the German law impeded on the principles of free circulation of goods and introduced the principle of mutual recognition9. This principle required a rather horizontal harmonization of food standards, although a centralized approach in this field was required. After the adoption of the Single European Act in 1987, the EC adopted additional regulations in the field, but a proper reform of the European food regulation regime wasn’t done. At that moment, the food safety regulations were adopted “in conjunction with EC efforts to eliminate trade barriers arising from different domestic legislation in order to establish an internal market”10. The mid-’90s food crisis episodes, such as BSE crisis and the dioxin contamination, lead to reconsideration of the European food regulation regime. The BSE crisis “created a window of opportunity for the development of a more internally integrated food safety policy (and consumer health policy in general)”11. The increasing mechanization of food production (e.g. genetically modified food (GMOs), “functional food”) and a growing interdependence in food trade both in the European internal market and in global trade were additional factors contributing to the need for reform. In 1997, the European Commission issued a Green Paper on food safety concluding that the current food legislation fell short of meeting the needs of consumers, producers, and manufacturers of food 8 .  ECJ, Case 120/78, Rewe-Zentral AG v. Bundesmonopolverwaltung für Branntwein, 1979, E.C.R., parag. 649, 660 9 .  Idem, parag. 664

products. In 2000, European Commission issued a White Paper on food safety recognizing the need for measures to deal with foodstuffs from farm to table, the Commission concluded upon the necessity of creating an independent European food authority in order to ensure food safety. European institutions struggle to find answers to how to guarantee the quality and security of food, bringing the question of new forms of governance in food safety regulation up for debate. Protecting consumers from possible health consequences which can result from the production or consumption of food is today an important criterion for developed social statehood. The regulation of risks – also of food-related risks – has become, besides forms of self-regulation by the industry, an integral part of a state’s tasks. Accordingly, in 2002, the Council of the EU and the European Parliament adopted Regulation (EC) No. 178/2002, presenting the certain principles on food safety regulation and detailed rules for the institutional design of European Food Safety Authority (EFSA). The Regulation (EC) No. 178/2002 represents the General Food Law in European Union Law. Prior to the creation of the EFSA, EU policy had been aimed at eliminating trade barriers within the European market and its goal was economic success rather than safety assurance12. To accomplish this goal, each Member State had regulated its own foodstuffs. In contrast, the EFSA is an independent agency that provides scientific advice to Member States and EU institutions. It gathers data to help anticipate risks and issues opinions on matters relating to human nutrition, animal welfare, plant health, and genetically modified organisms. The EFSA gives scientific assessments but does not handle any of the risk management. Instead, the EU institutions and the Member States themselves are responsible for risk management, a division of authority that poses an obstacle to greater centralization. EFSA’s risk assessments tend to lead to harmonization of the definition of food scares and emergencies. Traceability and labeling are probably the biggest part of the harmonization of standards and principles that the EU has undertaken in the realm of food safety regulation in order to allow the recording of the entire from farm to fork system. The EU aims to provide consumers with information about products in order for them to make informed choices.

10 .  A. Alemano, op. cit., p. 238 11 .  T. Ugland & F. Veggeland, “Experiments in Food Safety Policy Integration in the European Union”; in Journal of Common Market Studies, Vol. 44, no.3, 2006, p.618 90

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12 .  A. Alemano, op. cit., p.240 91

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2  E  uropean Union as Respondent in cases involving regulatory autonomy

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uropean Communities – Measures Affecting Livestocks, Meat and Meat Products. The dispute13 opposing Argentina, Canada and the US to the European Communities concerned a number of EC directives regarding the prohibition of hormones grown meat on the Community market, namely Directive 81/602/EEC14, Council Directive 88/146/EEC15 and Council Directive 88/299/EEC16. In defending its case, the EC noted that article 2.2 required that SPS measures must be based on scientific principles, as opposed to non-scientific ones. Therefore, when adopting the measure that aimed at reducing or eliminating a risk to health, the European legislative body followed a scientific approach of the measure. Now, could have been contested the scientific evidence of the contested measure? The problem was that the SPS Agreement had not defined the term “scientific evidence”, its content depending on the principles, methods, experiments and data used. That might be a reason for the SPS Agreement only required “sufficient”, not clear or certain, scientific evidence. The EC argued that the term “sufficient” could not mean other than the minimal level of scientific evidence required. EC concluded that neither the Panel nor any other member might judge the adequacy of the scientific evidence upon which a member based its contested measure. In other words, if a part of available scientific evidence indicated that there might be potential hazards to human or animal health, a member would be entitled under the SPS Agreement to take a precautionary approach. In this respect, it was sufficient if the government maintaining the measure had a scientific basis for it. However, the EC stressed that this did not mean that members were 13 .  See EC-Hormones I and EC-Hormones II supra notes 1, 2 14 .  Council Directive 81/602/EEC of 31 July 1981 concerning the prohibition of certain substances having a hormonal action and of any substances having a thyrostatic action OJ L 222 du 7.8.1981, p. 32–33 15 .  Council Directive 88/146/EEC of 7 March 1988 prohibiting the use in livestock farming of certain substances having a hormonal action, OJ L 70 du 16.3.1988, p. 16-18 16 .  Council Directive 88/299/EEC of 17 May 1988 on trade in animals treated with certain substances having a hormonal action and their meat, as referred to in Article 7 of Directive 88/146/EEC, OJ L 128 du 21.5.1988, p. 36–38 92

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obliged to demonstrate a scientifically confirmed adverse effect from a particular hazard before they might take measures. In other words, the Member States were not supposed to wait until people were actually sick or dying before adopting a sanitary measure. It is the prerogative of the member in question to decide whether the international standard, guideline or recommendation is sufficient to achieve its appropriate level of sanitary protection. The level of protection is decided by the member alone and this judgment should not be based on scientific principles or scientific evidence. The EC also stated that the SPS Agreement requires Members to take into account risk assessment techniques developed by relevant international organizations. However, in the EC’s view, at that particular moment, the Codex Alimentarius Commission was far from developing any such techniques. Due to that context, a WTO member was free to make an assessment of the risk appropriate to the circumstances prevailing in its territory. Article 5.2 laid down the elements a WTO member should take into account in an assessment of the risk: available scientific evidence, relevant processes and production methods, relevant inspection, sampling and testing methods, prevalence of specific diseases, etc. In addressing the issue of “available scientific evidence”, the EC stressed the distinct meanings of the phrase: the evidence a member took into account for its risk assessment had to be scientific, i.e. it must have the minimal attributes of scientific inquiry, and it should be part of the body of scientific knowledge in the area of concern, even if it was not the prevailing view among scientists. The EC also pointed out that the difference in degree of regulation was due to the greater attachment of the EC to the precautionary principle. Accordingly, where there was a doubt over the safety of a product, the EC had given the benefit of doubt to the consumer, especially in cases where the potential risks might affect very large parts of the population. The EC showed that the essential features of the precautionary principle were well known and widely accepted; as a consequence the principle had reached the status of a generally accepted principle of international law, particularly in the area of prevention of risks to human or animal health or the environment. With regard to the hazard having been identified in the case, the lack of scientific knowledge on the exact mechanisms by which the hazard operated was not a sufficient excuse for failing to take strict measures to prevent it. 93

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The EC also stated that there was a wider angle from which the alleged risks might be examined and a broader regulatory context. The use of science in the regulatory process had its limitations. Scientific certainty in a regulatory process being difficult to achieve, the regulation might have been done in a context of uncertainty. The question was how much uncertainty a legal system was prepared to accept. The EC precautionary approach was required to avoid situations as those portrayed by many cases of health hazards which only became apparent long after substances or products had been assumed to be safe. European Communities – Trade Description of Sardines. This dispute17, having Peru as a complainant, concerned the trade description of two species of fish scientifically known as Sardina pilchardus Walbaum (Sardina pilchardus) and Sardinops sagax sagax (Sardinops sagax), The former specie is found mainly around the coasts of the Eastern North Atlantic, in the Mediterranean Sea and in the Black Sea, whereas the latter can be found in Eastern Pacific along the coasts of Peru and Chile. Despite various morphological differences, the two species display similar characteristics and living habits. Both fish are used in the preparation of preserved and canned fish products. The measure in relation to which Peru, a producer and manufacturer of Sardinops sagax, claimed the nullification was Regulation (EEC) 2136/89 laying down common marketing standards for preserved sardines18. The Regulation defined the standards governing the commercialization of preserved sardines in the European Communities. The mainly contested provision was article 2 of the EC Regulation providing that only products prepared from Sardina pilchardus may be commercialized as preserved sardines. In this respect no other product, including those made out of Sardinops sagax, was allowed to be named and commercialized under the description of preserved sardines. The Regulation also prohibit the labeling of 17 .  WT/DS231, European Communities – Trade Description of Sardines; Panel report, WT/DS231/R, 29 May 2002, and WT/DS231/R/Corr.1, 10 June 2002; AB report, WT/DS231/R/ AB, 26 September 2002. 18 .  Council Regulation (EEC) No 2136/89 of 21 June 1989 laying down common marketing standards for preserved sardines, OJ L 212, 22.7.1989, p. 79–81, subsequently amended by Commission Regulation (EC) No 1181/2003 of 2 July 2003 amending Council Regulation (EEC) No 2136/89 laying down common marketing standards for preserved sardines, OJ L 165, 3.7.2003, p. 17–18, and by Commission Regulation (EC) No 1345/2008 of 23 December 2008 amending Council Regulation (EEC) No 2136/89 laying down common marketing standards for preserved sardines and trade descriptions for preserved sardines and sardine-type products, OJ L 348, 24.12.2008, p. 76–78 94

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other sardines species using the geographical provenience, for example Pacific-Sardines. Concerning also the very same issue of sardines naming, in 1978 the FAO-WHO Codex Alimentarius Commission had adopted a standard, named Codex Stan 94, for canned sardines and sardine-type products. Article 1 of Codex Stan 94 stated that this standard applied to canned sardines and sardine-type products packed in water or oil or other suitable packing medium. The standard did not apply to speciality products where fish content constitutes less than 50% m/m of the net contents of the can. Article 2.1 Codex Stan 94 provided that canned sardines or sardine-type products were prepared from fresh or frozen fish from a list of 21 species, amongst them Sardina pilchardus and Sardinops sagax. With regard to the issue of labelling, article 6 of the Codex Stan 94 specified that the name of “sardines” to be reserved exclusively for products containing Sardina pilchardus. For the remaining 20 species to which it applied, the standard established the name “X sardines”, where X stands for a country, a geographic area, the species, or in the alternative the common name of the species in accordance with the law and custom of the country in which the product is sold, and in a manner not to mislead the consumer. Peru claimed in the first instance the inconsistency between the EC Regulation prohibiting the use of the term “sardines” in relation to species other than Sardinas pilchardus and article 2.4 TBT on the ground that the EC did not use the naming standard set out in Codex Stan 94. Peru also stated that the Regulation was inconsistent with article 2.2 TBT because it was more trade-restrictive than necessary to fulfil the legitimate objective of market transparency that the EC claimed to pursue. Peru also requested the Panel to find that the measure is inconsistent with article 2.1 TBT because it is a technical regulation that accords Peruvian products prepared from fish of the species Sardinops sagax a less favourable treatment than that accorded to like European products made from fish of the species Sardina pilchardus. The EC rejected Peru’s interpretation of article 2.5 of TBT Agreement contending that the scope of article 2.5 is solely to enhance the transparency that a central government body has to follow when preparing, adopting and applying a technical regulation and that therefore the provision is not intended, as Peru alleged, to establish a higher threshold of explanation. On the relevance of Codex Stan 94, the EC made the preliminary ob95

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servation that this standard contains 20 very different “sardine-type” species belonging to 11 genera, the common name for some of these species not being sardines and other species that are called “sardines” in other parts of the world not being included in Codex Stan 94. In its view, the policy of species inclusion within Codex Stan 94 was influenced by the concern that the list set out therein would end up including a too high number of species. To illustrate the difficulties involved in determining the coverage of the species under Codex Stan 94, the EC referred to the fact that Peru was exporting Sardinops sagax to more than 20 countries under the trade description of “sardines” rather than “Pacific sardines” even though Codex Stan 94 does not permit Sardinops sagax to be called “sardines” without any further qualification. With regard to the relevance of Codex Stan 94 as an international standard, the European Communities argued the obligation contained in Article 2.4 is to use relevant international standards as a basis for the technical regulation where they already exist or their completion is imminent. In other words, according to the EC’s view, article 2.4 does not require members to follow these standards or comply with them. The EC argued that the separate but interdependent objectives pursued by article 2 of the Regulation are consumer protection, market transparency and fair competition. It further explained that the legitimate objectives of the entire EC Regulation are the following: 1) to keep products of unsatisfactory quality off the market; 2) to facilitate trade relations based on fair competition; 3) to ensure transparency of the market; 4) to ensure good market presentation of the product; 5) to provide appropriate information to consumers. According to the European Communities, the first objective only relates to preserved Sardina pilchardus and it is pursued through the prohibition of the marketing of products of substandard quality. The EC underlined that, as long as the objective is legitimate, WTO members have the right to choose the level of protection they consider appropriate. The prohibition on the use of the term “sardines” for species other than Sardina pilchardus was necessary to allow different products to be distinguished. In this regard, the EC noted that one of the legitimate objectives recognized by article 2.2 TBT is the prevention of deceptive practices. The Community reasoned that even if Peru were to demonstrate that the Regulation was trade restrictive, it would still have to show that it is more trade restrictive than necessary in the light of the risks addressed by article 2 of the EC Regulation. According to the EC, article

2.2 does not strictly require that the measure is “necessary” to fulfil the legitimate objective – only that its effects not be more trade restrictive than necessary, meaning that between two equally effective measures, the less trade restrictive should be chosen. The EC argued that it was only the impact of the measure on imports or exports that could be relevant to the analysis under article 2.2. In its view, this follows from the very concept of not more trade restrictive than necessary. The EC argued that under article 2.2, one has to compare the trade effects of two measures, not the necessity of one measure. The EC disagreed with Peru’s assertion that a less restrictive measure would be to provide that preserved Sardinops sagax be called Peruvian or South American sardines. European Communities – Measures Affecting the Approval and Marketing of Biotech Products (GMOs). The biotech dispute19 concerned two distinct matters: on the one hand, the operation and application by the EC of its regime for approval of biotech products and, on the other, certain measures adopted and maintained by EC Member States prohibiting or restricting the commercialization of biotech products. Argentina, Canada and the United States initiated a dispute settlement procedure with a view to challenge what they allege to be a general moratorium in the EC concerning the approval of genetically modified organisms (GMOs), the alleged failure to approve a number of specific applications for the placing on the market of certain GMOs, and certain temporary measures adopted by six EC Member States concerning GMOs that have already been authorized by the EC. In its defence, EC argued was that was not plausible to argue that GM products are or should be treated as equivalent to non-GM products. Since the first commercialization of GMOs in the early ‘90s, governments around the world have in fact started to address the question of how to regulate GMOs. Regulatory approaches range from complete bans to regulatory inaction, most governments setting up an approval system specific to GMOs, based on a case-by-case detailed risk assessment. Often such systems are based on a precautionary approach, and decisions are sometimes made not only in consideration of scientific factors, but also of socio-economic factors. In order to achieve interna-

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19 .  WTO, DS291, DS292 and DS293, European Communities - Measures Affecting the Approval and Marketing of Biotech Products; requests for the establishment of a Panel by the United States, WT/DS291/23, Canada, WT/DS292/17, and Argentina, WT/DS293/17, of 8 August 2003; Panel report WT/DS291/R, WT/DS292/R, WT/DS293/R of 29 September 2006 97

tional consensus, governments have also addressed the issue in various international fora. In 2000, they came to adopt the Cartagena Protocol on Biosafety20, whose 103 signatory parties include Canada and Argentina. The Protocol addressed the safe transfer, handling and use of living modified organisms that may have adverse effect on biodiversity. Based on the understanding that the inherent characteristics of GMOs require them to be subject to rigorous scrutiny, the Protocol incorporated the precautionary principle. In addition, other specialized agencies and other international bodies or organisations such as Codex Alimentarius, FAO, WHO, UN, OECD, ASEAN and the African Union are still trying to address this issue. The guidance documents established by these fora, in particular, recognize the need for a case-by-case decision on individual GMOs based on a scientific risk assessment and on risk management considerations. The EC’s regime for approval of biotech products is based upon Directive 2001/187321 (and its predecessor, Directive 90/2207422) governing the deliberate release into the environment of genetically modified organisms and Regulation 258/9723 with regard to novel foods and novel food ingredients. The objective of the EC regime was to protect human health and the environment, the European institutions being assessed to conduct a case-by-case evaluation of the potential risks biotech products could pose. On the basis of that evaluation, the commercialization of a particular biotech product could be banned. The contested EC measures outlined the administrative procedure to be conducted in the event a company sought to obtain approval to place a biotech product on the market and the standards by which an application for approval was to be evaluated. The EC legislation under certain condi20 .  Cartagena Protocol on Biosafety to the Convention on Biological Diversity, reported in OJ L 201, 31.7.2002, p. 50. 21 .  Directive 2001/18/EC of the European Parliament and of the Council of 12 March 2001 on the deliberate release into the environment of genetically modified organisms and repealing Council Directive 90/220/EEC, OJ L 106 of 17.4.2001, p. 1–39. 22 .  Council Directive 90/220/EEC of 23 April 1990 on the deliberate release into the environment of genetically modified organisms, OJ L 117 of 8.5.1990, p. 15–27, preamble, as amended by Commission Directive 94/15/EC of 15 April 1994 adapting to technical progress for the first time Council Directive 90/220/EEC on the deliberate release into the environment of genetically modified organisms, OJ L 103 of 22.4.1994, p. 20–27, and Commission Directive 97/35/EC of 18 June 1997 adapting to technical progress for the second time Council Directive 90/220/EEC on the deliberate release into the environment of genetically modified organisms, OJ L 169 of 27.6.1997, p. 72–73. 23 .  Regulation (EC) No 258/97 of the European Parliament and of the Council of 27 January 1997 concerning novel foods and novel food ingredients, OJ L 43 of 14.2.1997, p. 1–6. 98

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tions allowed Member States to adopt safeguard measures in respect of biotech products that had obtained approval for EC wide marketing. More particularly, individual Member States may provisionally restrict or prohibit the use and/or sale of an approved biotech product in their own territory if they had detailed grounds for considering, based on new or additional information or scientific knowledge, that the particular product posed a risk to human health or the environment. In cases where a member State adopted such a safeguard measure, it had to inform other Member States and the Commission and a decision on the adopted safeguard measure had then be taken at Community level within a prescribed time period. US, Canada and Argentina requested the Panel to find that the measures at issue were inconsistent with a number of WTO provisions. First, the complainant parties claimed the violation of the SPS provisions concerning the prohibition to adopt unnecessary SPS measures which are not based on scientific evidence and produce unduly restrictive effects on international trade; of provisions concerning the assessment of the risk and the determination of the appropriate level of protection; of provisions concerning transparency and control, inspection and approval procedures. Secondly, the complaining parties argued the breach of TBT provisions concerning the preparation, adoption and application of technical regulations and the procedures for conformity assessment. Moreover, they also alleged that EC and Member State’s adopted measures were in breach of articles I:1, III:4, X:1 and XI:1 GATT and of article 4.2 of the Agreement on Agriculture. The EC in turn requested the Panel to reject the complaining parties’ claims and to find that, first of all, the delays in the examination of the applications as well as the Member States’ national measures were not in violation of the SPS Agreement, the TBT Agreement or the GATT and that there was no general suspension of the process of authorizing GMOs and GM products on the part of the Community. The EC emphasized that it had not adopted any general position against GMOs, neither in favour of biotechnologies, trying to be neutral in this particular issue, but in the same time cautious. As a consequence, EC did not try to impose its prudent approach on other countries, but it tried to stress the whole socio-political, legal, factual and scientific complexity of the case, including the process that led to the conclusion of the Cartagena Protocol on Biosafety. In this respect, the EC underlined that the aims of its policies on GMOs was reaching further beyond the 99

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protection against the specific risks covered by the SPS Agreement. More specifically, the EC’s overall approach to the biotech dispute consisted of following arguments: 1) GMOs display characteristics which were recognized by the international community to pose potential threats to human health and the environment, and they could not be treated as like or equivalent to their non-GMO counterparts; 2) the Community regulatory framework for the marketing of GMOs operated on a case-by-case basis and there had been no de jure or de facto moratorium in respect of the authorization process; 3) the EC’s approach to the identification, assessment and prevention of risks to human health and the environment had been fully consistent with applicable international standards; 4) the measures which had been taken to protect the environment and to conserve biodiversity were reasonable and legitimate, were not necessarily sanitary or phytosanitary in character, and fell in whole or in part outside the scope of the SPS Agreement; 5) to the extent that any such measure could be said to be subject to the SPS Agreement, there had been no undue delay or breach of any part of that Agreement on the part of the EC or of the Member States, and in any event such measures were provisionally justified on the basis of the insufficiency of scientific evidence; 6) all measures taken by the EC and its Member States were also consistent with the TBT Agreement and the GATT, and in any event were justified in accordance with article XX GATT.

3  C  oncluding Remarks on EU’s Defence of Its Food Safety Regulatory Autonomy The analysis of the above disputes, which had EC as respondent before the DSB, allows us to identify univocally the EU struggle to defence its regulatory autonomy in the field of food safety. In all of the disputes analysed, the EC stood for the defence of its freedom to choose the appropriate level of protection. Moreover, it asserted that all contested measures aimed at a legitimate objective and satisfied the necessity test. On occasions the EC put forward the argument of the irrelevance of international standards, on the ground of the inappropriateness of those to achieve the legitimate objective pursued.

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With regard to European Union reliance of the precautionary principle, we must observe that it has been an established principle of EU environmental and health law, and, as such, has been implemented in many concrete regulatory frameworks of risk regulation. Historically, the precautionary principle has been officially recognised as the basis for EU’s environmental policy in the moment of its incorporation into the EC Treaty. Article 174 II EC (now Article 191 II TFEU) states: “Community policy on the environment shall aim at a high level of protection taking into account the diversity of situations in the various regions of the Community. It shall be based on the precautionary principle and on the principles that preventive action should be taken, that environmental damage should as a priority be rectified at source and that the polluter should pay”. The ‘core’ idea of precautionary principle states that ‘where there is a threat to human health or environmental protection a lack of full scientific certainty should not be used as a reason to postpone measures that would prevent or minimise such a threat’24. Thus, it expresses that in cases of scientific uncertainty ‘no evidence of harm’ should not be equated with ‘no harm’25. The idea is that public decision makers should be sceptical towards the completeness of scientific knowledge; therefore they should be aware of the limitations of science when identifying risks and pay more attention to the scientific uncertainties involved in public health and environment regulation26. The first legal definition of the precautionary principle under EU law was settled in Article 7 of the Regulation (EC) No. 178/2002 (General Food Law). Accordingly, “(1) In specific circumstances where, following an assessment of available information, the possibility of harmful effects on health is identified but scientific uncertainty persists, provisional risk management measures necessary to ensure the high level of health protection chosen in the Community may be adopted, pending further scientific information for a more comprehensive risk assessment. (2) Measures adopted on the basis of paragraph 1 shall be proportionate and no more restrictive of trade than is required to achieve the high level of protection 24 .  See E. Fisher, “Opening Pandora’s Box: Contextualising the Precautionary Principle in the European Union”, in E. Vos and M. Everson (eds.), Uncertain Risks Regulated, Routledge, Cavendish, 2008 25 .  See E. Fisher, “Precaution, Precaution Everywhere: Developing a “Common Understanding” of the Precautionary Principle in the European Community”, in Maastricht Journal of European and Comparative Law, vol.9, no.7, 2002 26 .  See Communication from the Commission on the Precautionary Principle, COM (2000) 1 101

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chosen in the Community, regard being had to technical and economic feasibility and other factors regarded as legitimate in the matter under consideration. The matters shall be reviewed within a reasonable period of time, depending on the nature of the risk to life or health identified and the type of scientific information needed to clarify the scientific uncertainty and to conduct a more comprehensive risk assessment”. As a consequence, the European Commission can apply the precautionary principle by taking a discretionary decision whether a scientific uncertainty has been identified in the risk assessment. In both EC-Hormones and EC-Biotech cases, EC relied upon precautionary principle. EC tried to argue its prudent approach, stressing up the whole socio-political, legal, factual and scientific complexity of the cases. Furthermore, depending on the specific circumstances prevailing in each country, scientific information may or may not be deemed sufficient to decide appropriate measures and must therefore be considered as matters of concern to the domestic legislator. With regard to international standardization of food, EC has always defended its interests in food safety matters within the Codex Alimentarius Commission, engaging thus in the defence of the principle typical of European food safety policy. Although compliance with Codex standards is voluntary in WTO law, as we have already mentioned, these standards enjoy a special status under the SPS and TBT Agreements. Accordingly, national measures that are based upon food standards adopted by the Codex Commission are presumed to comply with WTO principles. Thus, WTO members have strong incentives to comply with Codex standards. Thus, Codex standards were crucial in EC-Hormones case. In this case, the concurrent existence of harmonized international standards made it difficult for the EC to justify its measures, which resulted in a higher level of health protection than that ensured by measures based on the relevant Codex standard. In the so-called ‘sardine case’, the compatibility of an EC measure with the WTO principles was evaluated by reference to a 1978 Codex standard. In both cases, EC argued that the Codex standards are ineffective or inappropriate to fulfill the legitimate objectives pursued by the EC regulations, hence reaffirming EC’s continuous struggle for gaining regulatory autonomy.

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Novas Tecnologias

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5 O QUE PODE O DIREITO FRENTE ÀS NOVAS TECNOLOGIAS Paulo Roberto Ulhoa “A idade das nações já passou. Senão quisermos morrer, é hora de sacudirmos os velhos preconceitos e construir a Terra. A Terra não se tornará consciente de si mesma por nenhum outro meio senão pela crise de conversão e de transformação.” Teilhard de Chardin1

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azer a natureza executar o que o homem quer que ela execute é sonho antigo da humanidade. Sonho que se transformou muito desde os gregos. Sobretudo após a Revolução Industrial com o aparecimento de novas tecnologias. Ao longo de toda a evolução da técnica2, buscou-se o que se poderia chamar de eficiência industrial, ou seja, pensamento de fluxo, domínio das operações etc. Alguns efeitos qualitativos desta eficiência industrial foram atingidos. No entanto, a técnica como produto do social gerou inúmeros desequilíbrios com relação a estrutura de poder, criando avanços mas também incertezas às chamadas “novas tecnologias”. Para Herbert Marcuse3 – A técnica por si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo. “No decorrer do processo tecnológico, uma nova racionalidade e novos padrões de individualidade se disseminaram na sociedade, diferentes e até mesmo opostos àqueles que iniciaram a marcha da tecnologia.”4 Pensar o impacto das tecnologias na sociedade vai além do ponto de 1 .  Chardin, Theilard. O Fenômeno Humano. Trad. José Kuiz Archanjo. São Paulo: Cultrix, 1995. 2 .  Gille, Bertrand – O império das técnicas. Pág. 29. 3 .  Marcuse, Herbert – Tecnologia, guerra e facismo. Unesp, 1999 4 .  Marcuse, Herbert. Op. cit. 1999. 105

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vista técnico – do aparato da indústria, transporte, comunicação; passa pela influência direta da tecnologia sobre os indivíduos, de forma a organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, a manifestação do pensamento, dos padrões de comportamento dominantes e o controle de dominação5. Esse controle de dominação, esse poder é a soma das faculdades e oportunidades que possibilitam aos homens ou aos governos a consecução dos objetivos propostos. Segundo o professor Arthur Diniz “a tecnologia possibilitou a uma elite o controle da vida e do destino de milhões de pessoas”6 Assim, nessa idéia de eficiência industrial onde o “esforço científico visa eliminar o desperdício, intensificando a produção e padronizando o produto”, serve também, para aumentar a eficiência lucrativa que se apresenta como realização final do individualismo.7 Sabemos que o social e o jurídico se impõem como eventos da espécie humana e colocam o direito e seus operadores diante das constantes hipóteses de conflitos, principalmente, após a disseminação dos computadores pessoais e o advento da Internet, onde temos um maior vínculo do direito com as novas tecnologias. O chamado paradigma cibernético8 promoveu uma nova revolução no mundo, com um universo de novas possibilidades. Com a internet, “o indivíduo renasce no entendimento dessas novas relações. A coletividade, por exemplo, é a soma dos indivíduos que a compõem, porém com forte perfil individual. “Decerto que a coletividade é marca característica da nova dinâmica. Ela é a imagem ampliada da vida dos indivíduos. No entanto, afirmar que quanto maior é a consciência coletiva, menor a individualidade, não procede no ciberespaço.” 9

5 .  Ibidem 6 .  Diniz, Athur José Almeida. O Poder e os mitos. Revista Brasileira de estudos Políticos, No72, 1991. Belo Horizonte/MG.

Breve história do Ciberespaço

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Termo “cyberspace” foi inventado pelo escritor “cyberpunk” de ficção científica William Gibson no seu monumental “Neuromancer”de 1984. Para Gibson, o ciberespaço é um espaço não físico ou territorial, que se compõe de um conjunto de redes de computadores através dos quais todas as informações (sob as suas mais diversas formas) circulam. O ciberespaço gibsoniano é uma “alucinação consensual” onde podemos nos conectar através de “chips” implantados no cérebro. A Matrix, como chama Gibson, é a mãe, o útero da civilização pós-industrial onde os “cybernautas” vão penetrar. Seria, digamos, como o lugar onde estamos quando entramos num ambiente virtual através de um conjunto de redes de computadores, interligados ou não, em todo o planeta. Mesmo sem ser uma entidade física concreta, pois é um espaço imaginário, o ciberespaço constitui-se em um espaço intermediário. Ele não é desconectado da realidade, mas, ao contrário, parte fundamental da cultura contemporânea. Na definição da Unesco10, o ciberespaço é um novo ambiente humano e tecnológico de expressão, informação e transações econômicas. Consiste em pessoas de todos os países, de todas as culturas e linguagens, de todas as idades e profissões fornecendo e requisitando informações; uma rede mundial de computadores e outros dispositivos móveis interconectada pela infraestrutura de telecomunicações que permite à informação em trânsito ser processada e transmitida digitalmente. O ciberespaço então é um caos organizado, que funciona. Com um fator diferencial que é o uso inicialmente do computador hoje difundido em diferentes formatos, tamanhos e utilidade, como smartphones, tablets, entre outros. “O ciberespaço faz parte do processo de desmaterialização do espaço e de instantaneidade temporal contemporâneos... Se na modernidade o tempo era uma forma de esculpir o espaço, com a cybercultura contemporânea nós assistimos a um processo onde o tempo real vai aos poucos exterminando o espaço.”11 Theillard de Chardin12 considera a evolução humana em termos intelectuais e espirituais. No mundo físico existem duas energias: uma radial – correspondente ao conceito de força newtoniana de causa e efeito

7 .  “. In Harbermas, Jurgen. Op. cit. 1994 8 .  Leary, Timothy “Caos & Cyber Culture” – Ronim Pblishing. 1994

10 .  http://www.unesco.org/cybersociety/cyberspace_spec.htm. Em 12.05.2002.

9 .  Reis, André Silva Fábio. Uma Breve Análise Sociológica do Ciberespaço. www.infojur. ccj.ufsc.br. 16/03/2001.

11 .  Unesco. Op. cit. 2002.

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12 .  Chardin, Teillard – O Fenômeno Humano. Editora Cultrix. São Paulo. 1995. 107

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– e uma energia tangencial que vem de dentro, de onde o divino aparece. Essa energia tangencial seria de três níveis, que Chardin chama de prévida – para os objetos inanimados, que seriam o mundo mineral, o mundo animal e o mundo da consciência. Essa camada de consciência, ele chama de “Noosfera”. Uma rede invisível da consciência humana que virtualmente engloba todo o planeta terra. Para Piere Lévy, as tecnologias podem levar a circulação do saber, que pode levar a uma “inteligência coletiva”. Partindo de uma análise antropológica do espaço, Lévy vai mostrar que, depois de terra (espaço do mito e do rito, marcado por uma ligação completa do homem ao cosmos), do território (fruto da revolução neolítica onde surge a agricultura, as cidades, a escrita e o Estado), do mercado (espaço de trabalho e da velocidade, instaurado no século XVI com as conquistas marítimas e a globalização dos mercados com fluxos de matéria-prima, de mão de obra e de capital), surge como quarto espaço o ciberespaço, um espaço do saber. Esses espaços antropológicos não são excludentes, podendo interagir como camadas comunicantes. Guattari e Deleuze13 falam de uma estrutura rizomática como um sistema de formas as mais diversas, como um verdadeiro rizoma, com extensão ramificada em todos os sentidos. (...) Os rizomas se ramificam e se reticulam permitindo estratificações e territórios, da mesma forma que cria linhas de fuga e de desterritorialização. Existe assim um processo de desterritorialização e reterritorialização. Assim, a extensão do ciberespaço acompanha e acelera uma virtualização geral da economia e da sociedade. Precisamos nos atentar para a evolução da sociedade através dessa evolução da técnica e apontar alguns fatores que repercutem nas novas relações jurídicas, de forma a corresponder às expectativas de Um Estado Democrático de Direito. Neste quadro de deslocamentos e rupturas, o fenômeno Internet precipitou mudanças de paradigmas que podem ser absorvidas em sintonia com a idéia de humanização da sociedade. Neste cenário, o Estado precisa ser rotineiramente redefinido a fim de mediar os conflitos presente e futuros. A constituição, então, deve realizar-se de modo a alcançar a pretendida jurisdição constitucional, através de uma nova ordem jurídica. É certo que esse impacto tecnológico fez surgir, também, um direito novo. As novidades tecnológicas implicaram em novas concepções 13 .  Deluze, G.; Guattari, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia.” Ed. 34.. 2002. 108

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de tempo e espaço, trazendo conseqüências sociais e econômicas. Traz, também, problemas com os conceitos de democracia, territorialidade, jurisdição, bem como o rompimento com a arquitetura dos espaços de comunicação na Internet, onde a inteligência coletiva reorganiza, a todo instante e interativamente, as massas de informações disponíveis on line, para usufruto público, por meio de conexões transversais e simultâneas e, conseqüentemente, por uma falta de eficácia em operar esse direito através da formas tradicionais. Partindo do pressuposto tecnológico desse novo fenômeno, precisamos remontar princípios para então buscar formular um novo direito, diante das condições sociais novas. Depois de renovado esse contato com o novo mundo, talvez consigamos inspirar e conduzir as transformações necessárias da ordem positiva. Entender essa nova dinâmica, sob os mais diversos pontos de vista e análise, facilita o trabalho de legisladores e aprofunda o entendimento dos conflitos existentes na sociedade atual e das que existirão no futuro. A globalização que anunciou a chegada de um novo século amplificou as desigualdades, ofuscou conquistas e vem potencializando uma ordem mundial fundada no desequilíbrio das relações de poder político e econômico e no controle absoluto. A informatização e a robotização, com relações desiguais no comércio internacional, favorecem os países ricos, à custa dos mais pobres. À medida que se cresce em abundância de bens e de serviços produzidos pela informatização, cresce também o número dos excluídos do emprego e dos excluídos sociais. Assim, há que se perguntar o que pode a cultura jurídica, em face dos problemas culturais, econômicos, sociais e políticos de hoje? A resposta segundo San Tiago Dantas”14 “O bem estar coletivo, a maior satisfação das necessidades humanas com as utilidades ilimitadas que a técnica pode proporcionar, a igual repartição das riquezas, a justiça social, conforme já nos apresentava E o local onde se deve discutir estas questões é a própria Constituição política, onde preconizamos um “Direito teorizado, argumentado como base das relações interindividuais. Um Direito vocacionado para o justo. Um Direito vivo que se insira no âmbito da tensão existente entre o dissenso e o consenso, estabelecido este último a partir de uma razão comunicativa e comunicante (Habermas). 14 .  San Tiago Dantas, F.C. A cultura jurídica e o mundo moderno. Revista Forense. Rio de Janeiro. 1945. 109

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A Constituição política, como nos traz Daury Fabriz, estabelecida como espaço público necessário “à convivência harmônica e democrática da sociedade. Nessa perspectiva, o conceito de constituição mostrase em constante evolução, à medida que deva comportar-se e adequarse às várias transformações que ocorrem no âmbito da sociedade.”15 É preciso “re-ligar” o nosso mundo a assuntos polêmicos que ganham força à medida que se aprofunda e acelera a difusão das novas tecnologias, e que em escala geométrica afasta a sociedade de uma resposta jurídica eficaz, capaz de conter a exclusão social. Neste sentido é que o Direito não pode isolar-se do ambiente em que vigora e deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica. Se as normas positivas não evoluem à proporção que evolve a coletividade, consciente ou inconscientemente, a conduta ética colocar em discussão um mínimo necessário para que os indivíduos possam realizar-se como cidadãos, para conseguir que todos se beneficiem das suas vantagens e para evitar que o abismo entre pobres e ricos continue aumentando.

Por uma nova cultura jurídica

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ão é fácil analisar o novo. Ainda mais quando ele se impõe e se transforma rápido e bruscamente. Para San Tiago Dantas16 “se queremos defender o direito, temos de saber, primeiro, o que o ameaça; e temos, depois de examinar, sem idéias preconcebidas, o que ele pode representar nas soluções de problemas sociais de hoje.” A maior e mais séria ameaça ao prestígio do direito, vem da própria “cultura jurídica”, que não pode hesitar em “assumir uma posição avançada na revisão de conceitos dogmáticos e no ajustamento da ciência às novas realidades legislativas e às superiores exigências da reforma social.” Então, neste mesmo sentido, apreendemos que para “defender o direito é, assim, essencialmente, renovar o direito”. Com o crescente desenvolvimento da ciência, formando o grande patrimônio cultural da humanidade, é que podemos examinar, segundo Professor Daury Cesar

15 .  Fabriz, Daury Cesar. “Bioética e Direitos Fundamentais.” Mandamentos. Belo Horizonte. 2003. 16 .  San Tiago Dantas, F. C. “A cultura Jurídica e o mundo moderno”. Revista Forense. Rio de Janeiro. 1945. 110

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Fabriz17 “a formação de uma cultura jurídica, não só como ciência, mas principalmente como experiência histórica”, visto que “ a Ciência Jurídica apareceu depois de uma interpretação lógica-formal e normativa de uma sociedade que até então vivera o Direito sem o teorizar”.18 Segundo ainda Fabriz “A experiência jurídica surge então como uma experiência cultural de viabilização civilizatória”, e conclui citando o professor Reale19, que o “homem não é apenas um realizador de interesses (...) é também um ser que sente indeclinável necessidade de proteger o que cria, de tutelar as coisas realizadas e de garantir para si mesmo, acima de tudo, a possibilidade de criar livremente coisas novas”. A evolução acertou o ser humano ao ponto de torná-lo completamente dependente, mas adaptável ao seu meio. Ao acordar, o homem não apenas passeia por milhares de informações distribuídas em seu dia-a-dia. Ele é capaz de se manifestar, organizar e intervir diretamente na realidade e transformar o futuro. Os exemplos estão aí nas manifestações da praça Tahrir, e na forma de organização das manifestações que se espalharam pelo Brasil. Del Vecchio20 nos ensina também, que “A História da Filosofia é, por conseguinte, meio de estudo e de investigação, e, como tal, poderosa ajuda para o nosso trabalho: oferece-nos repositório de observações, de raciocínios, de distinções, que a um homem só, no decurso da vida seria impossível ocorrer”. A cultura jurídica torna-se, assim, para Del Vecchio21 “um processo contínuo que reúne as experiências passadas, aliadas às modificações do tempo presente, na intenção de solucionar os problemas que o homem se depara com a realidade social; processo esse que se desenvolve com a Ciência Jurídica e a comunicação do Direito. A busca pela experiência jurídica de outros povos, o conhecimento de outros ordenamentos que se realiza pela comunicação do Direito”. Examinando os reflexos jurídicos de toda essa nova realidade, buscamos a direção do Direito Público e Privado, onde já encontramos aspectos relacionados diretamente com o impacto dessa realidade tec17 .  Fabriz, Daury Cesar. A Estética do Direito. Editora Del Rey. Belo Horizonte. 2000. 18 .  Reale, Miguel. Filosofia do direito. 17. ed., São Paulo. Saraiva. 1996. Apud Daury César Fabriz – A Estética do Direito(pág. 50) 19 .  Reale, Miguel. “Filosofia do direito”. Op. cit. 1996 20 .  Del Vecchio, Giorgio. “Lezione di filosofia del diritto. 9. ed., Milano; Giuffre. 1953. 21 .  Ibdem 111

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nológica, especialmente envolvendo a padronização do produto, a virtualização da produção e novas formas de fiscalização e participação nas decisões do Estado, com o acesso à informação. Nesses campos ligados às novas tecnologias encontramos a regulamentação de questões conectadas a tal ambiente. São questões ora globais, ora individuais, ora de informática, ora das telecomunicações, ora privada e outras vezes pública, são questões de momento e ao mesmo tempo de futuro. Para Sevcenko, afinal, chegamos ao terceiro milênio atrasados e com pressa22. Dentro dessa amplitude, apenas para exemplificar, temos: E-law (Environmental Law Alliance Worldwide) ligada a atividades jurídicas, questões ambientais, manipulação biológica de material genético, Propriedade Intelectual (direito autoral, propriedade industrial, softwares e cultivares), tráfego comercial (Acceptable Use Policy), Domínios (DNS – Domain Name System), Contratos de Adesão (shrink-warp), Provedores de Acesso, Pirataria e comércio eletrônico, documento digital, consumidor, territorialidade, acesso à informação, o direito de expressão em rede, a censura, novas definições de gênero, identidade digital, comunidades digitais, plágio, sobrecarga informacional digital, privacidade e controle social digital. Qual então o papel de Estado senão regulamentar e oferecer aos cidadãos, primado no estabelecido no texto constitucional, o bem estar e a justiça social. O resgate da complexidade social para o mundo jurídico é a difícil tarefa que não podemos mais jogar só para o futuro, mas que tem que ser construído desde agora. É certo, que toda mudança de paradigma gera bônus e ônus. Para minimizar os benefícios oferecidos pelo paradigma tecnológico há de se combater os abusos cometidos pelo homem. A atitude do Estado e da sociedade diante das vantagens e riscos decorrentes dessa mesma tecnologia deve ser multifacetária, de modo a buscar um equilíbrio de tratamento que contemple a inovação, o consumidor, a cidadania, a ética, a competição, e a segurança, como no caso Edward Snowden. Apesar de também ser um fato social, a revolução tecnológica não possui autonomia como fator inibidor da plena fruição, por exemplo, do direito à vida privada, a liberdade de expressão. O conceito

de vida privada que demarca, em essência, a individualidade23 do homem, não só frente aos outros indivíduos e à sociedade, mas também, frente ao Estado; Da mesma forma, a Liberdade de expressão também é garantia fundamental para evitar a estagnação cultural e o desenvolvimento da raça humana. E todo e qualquer tipo de censura não pode ser admitida, como no caso recente da blogueira cubana Yoani Sánchez, Julian Assange. Neste sentido nos ensina o Professor José Luiz Quadro de Magalhães24 que “são diversas as formas de expressão de pensamento, que vão constituir as liberdades derivadas do direito individual que se expressa livremente. São liberdades fundamentais que devem ser asseguradas conjuntamente, para se garantir a liberdade de expressão no seu sentido total”. E quando o tema é cidadania, nos focamos em Hannah Arendt nos traz que os homens não nascem iguais, tornam-se iguais por conquistas políticas. A cidadania no século XXI ganha um renomado interesse, o seu conceito parece integrar noções centrais de filosofia política, como os reclamos de justiça e participação política, no entanto, conforme esclarece Axel Honneth25 “a luta pelo reconhecimento é o fundamento contemporâneo da teoria crítica”. Indo além do paradigma da comunicação (informação) ele se preocupa com as condições de reconhecimento e com as causas sociais de sua violação. As lutas pelo reconhecimento de identidade têm caráter emancipacionista, ao serem articuladas numa esfera pública democrática.

Por uma exigência ética

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o plano global presenciamos nos últimos anos uma redução das assim chamadas “grandes narrativas”. Essa redução assim autoriza a volta do ético, o caráter cada vez mais competitivo das relações humanas cria uma demanda, uma necessidade, um clamor por ética. Afinal, o que pode ser uma exigência ética? Seu eixo é que o poder não se confunda com força, mas se limite por valores que a todos se 23 .  Magalhães, José Luiz Quadros de. “Direito Constitucional – TOMO I. Editora Mandamentos. Belo Horizonte. 2000. 24 .  Idem

22 .  Sevcenko, Nicolau. Op. cit. 2001

25 .  Honneth Axel. Op. cit. 1996 112

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imponham. O distingue o poder e a mera força? No caso desta temos apenas o vigor físico. No caso do poder, temos um assentimento, uma opinião de que é legítimo um mandar e o outro obedecer, segundo Renato Janine Ribeiro.26 Para exemplificar, pensemos na lei de trânsito. Se não houvesse alguma opinião de que ela (Lei) é legítima, se não houvesse alguma idéia de que por trás dela esta o poder, só a obedeceríamos pela força – e isso significaria que a cada esquina estaria um guarda, se possível armado, para literalmente nos forçar a obedecer à lei. Mas, quando temos poder, e assentimento ou consentimento, não cabe ter, o tempo todo, força: teremos obrigações, que são mais de ordem ética, moral, pertencendo ao mundo da opinião, como apresenta o professor Renato Janine Ribeiro.27 A novidade é que a contraposição de força/poder estará em entender por força não apenas a força física, mas também a econômica. A questão, então, está em estabelecer um direito acima da força, ao mesmo tempo que se constata que o que tradicionalmente se chama poder na verdade tem alguma parte com a força. A legitimação dos direitos humanos e a efetivação do direito acima da força significam que o Estado não constitui mais um quadro suficiente para a legalidade. A internet precipitou mudanças de paradigmas que podem ser absorvidas em sintonia com a idéia de humanização da sociedade. Na virada do milênio profundas mutações reconfiguram o campo irreversível da informação. Este surto de transformações se divide em dois períodos básicos, intercalados pela Segunda Guerra Mundial. No primeiro momento prevalece um padrão industrial que vinha representar o desdobramento das características introduzidas pela Revolução Científico-Tecnológica dos fins do século XIX, e a segunda fase após a guerra, que foi marcada pela intensificação de mudanças – imprimindo, segundo Sevcenko28, à base tecnológica um impacto revelado sobretudo pelo crescimento dos setores de serviços, comunicações e informações - , o que a levou a ser caracterizada como período pós-industrial. “Uma verdadeira avalanche de inventos, descobertas científicas e inovações técnicas são realizadas nesse período”29, elevando a taxa de crescimento dos conhecimentos técnicos, que desde o começo dos sé-

culo XX em 300 por cento por ano, e com previsões de dobrar a cada cinco anos. Com o fim da guerra, explica Sevcenko, os Estados Unidos se viram numa situação privilegiada, como a mais forte coeza e próspera economia mundial. Conforme o professor Arthur de Almeida Diniz30 “As receitas econômicas preconizadas pelo Fundo Monetário Internacional além de inúteis, sacrificam mais vidas do que todos os inocentes imolados nos altares Aztecas, babilônicos, para não se equiparar as perdas ao número do Holocausto nazista.” Já naquela época as ameaças à estabilidade nacional não mais vem de países vizinhos, mas de qualquer parte do mundo, sem nacionalidade, fronteira ou ideologia, que varrem o mundo com a velocidade proporcionada pelos novos meios de comunicação. O modelo de Estado Social, conforme ensina o professor Menelick31, com o final da segunda guerra mundial “começa a ser questionado, conjuntamente com os abusos perpetrados nos campos de concentração e com a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, bem como pelo movimento hippie da década de sessenta. O Estado interventor transforma-se em empresa acima de outras empresas. As sociedades hipercomplexas da era da informação ou pós-industrial comportam relações extremamente intricadas e fluidas. Tem lugar aqui o advento dos direitos de 3a geração, os chamados interesses ou direitos difusos32, que compreendem os direitos ambientais, do consumidor e da criança, dentre outros. Informa o Professor Menelick33, que esses direitos de 3a geração “são direitos cujos titulares, na hipótese de dano, não podem ser clara e nitidamente determinados. O Estado, quando não diretamente responsável pelo dano verificado foi, no mínimo, negligente no seu dever de fiscalização ou de atuação criando uma situação difusa de risco para a sociedade. A relação entre o público e o privado é novamente colocada em cheque. As associações da sociedade civil34 passam a representar o interesse

26 .  Ribeiro, Renato Janine. “Direito e ética na sociedade da informação”. I Ciberética. 1998. 27 .  Ibdem, Ribeiro, Renato Janine.

32 .  Capez, Fernando “Tutela dos Interesses Difusos e Coletivos”, Ed. MPM. 4a Edição, 1997 – São Paulo

28 .  Sevcenko, Nicolau. A corrida para o século XXI. Cia das Letras. São Paulo, 2001.

33 .  Carvalho-Neto, Menelick de. Op Cit. 1999.

29 .  Sevcenko, Nicolau. Op. cit. 2001

34 .  Vieira, Liszt.Os argonautas da cidadania. Editora Record. Rio de Janeiro. 2001. p.28/29. 114

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30 .  Diniz, Arthur José Almeida.”O Poder e os Mitos”. Revista Brasileira de Estudos Políticos. UFMG. Belo Horizonte. 1991. 31 .  Carvalho-Neto, Menelick de. “Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado. Pós-Graduação da FD/UFMG, Belo Horizonte: mandamentos, 1999.

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público contra o Estado privatizado e omisso. Os direitos de 1a e 2a geração ganham novo significado. Os de 1a são retomados como direitos (agora revestidos de uma conotação sobretudo processual) de participação na debate público que informa e conforma a soberania democrática de um novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto. Tem-se início com uma visão ainda individual, segundo Eliana Calm35 on “a igualdade real de cada um, merecedora de proteção do Estado – direito à educação, ao pleno emprego, à segurança, etc.” Enfrentam-se as mazelas da globalização, sem conseguir cumprir os compromissos sociais, o mundo atual se vê sem condições de implementar as políticas sociais e ambientalistas propostas constitucionalmente, e sem conseguir fortalecer os grupos minoritários, que surgiram como complicador e de exclusão social provocado pelo apartheid econômico: os desempregados, os subempregados e a economia marginal ou informal. A multiplicação de redes de computadores, comunicações por satélite, cabos de fibras ópticas e mecanismos eletrônicos de transferência de dados e informações em alta velocidade, até a proliferação dos pequenos dispositivos móveis com acesso à Internet, desencadeou uma revolução nas comunicações, permitindo uma atividade real e especulativa sem precedentes. As exigências sociais chegaram a um nível de sofisticação tão elevado que o regramento da vida do indivíduo e da sociedade na qual ele se insere tornou-se insuficiente, sendo necessário ordenar, regrar e disciplinar o espaço físico e o meio ambiente. Assim, a preocupação apresentada não é mais pela vida, mas pela qualidade de vida. Segundo Eliana Calmon36 “a taxa de mortalidade diminuiu e a longevidade se estende à medida que se avança a ciência, fazendo com que o homem tenha praticamente o poder sobre a vida, determinando o nascimento e a morte. A transformação do código genético de plantas, animais ou microorganismos por meio de engenharia genética já é uma realidade.” E ainda, “Este poder científico do homem e a rapidez das descobertas biológicas, pela biotecnologia, levam a uma grande questão: qual o comportamento a ser adotado pelos profissionais das diversas áreas, ao enfrentarem os desafios decorrentes desta evolução? Como tratar questões extremamente polêmicas, dentro de um universo de valores ainda envelhecidos? Qual será o limite para a vida e para a morte?”

Assim, informa Amadeu dos anjos Vidonho Junior37 que “sem dúvida podemos afirmar modernamente que a Internet tal como a História da Filosofia, citando Del Vecchio38 “oferece-nos repositório de observações, de raciocínios, de distinções, que a um homem só, no decurso da vida, seria impossível ocorrer”, e ainda mais, oferece-nos acesso à universalidade, onde podemos pesquisar e encontrar os pensamentos de todo o planeta.

Conclusão

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ssim, à guisa da conclusão, a Internet, como um dos meios de comunicação mais completos já vislumbrados pela mente humana, tornou possível a comunicação em nível global, transformando-se em verdadeira praça pública, onde todos, independentemente de raça, cor e nacionalidade, têm direito ao uso da palavra, numa versão moderna da Ágora da Grécia Antiga. Um meio de comunicação tão fantástico, revolucionário e hábil para a realização de atividades pessoais, interpessoais e comerciais é sinal inconteste de sua legitimidade como instrumento de progresso social, mas também de grandes desigualdades. Imprescindível, no entanto, para maior satisfação das necessidades humanas com as inúmeras possibilidades que a técnica proporciona que ocorra uma integração das facilidades da comunicação aos sistemas jurídicos vigentes, e que seja em sede constitucional, como garantia dos direitos humanos e fundamentais para combater a exclusão social através da inclusão digital, pressuposto inafastável do pleno exercício da cidadania. Neste sentido é que o Direito não pode isolar-se do ambiente em que vigora e deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica; e esta não há que corresponder imutavelmente às regras formuladas pelos legisladores. Se as normas positivas não evoluem à proporção que evolve a coletividade, consciente ou inconscientemente, a conduta ética deve antes colocar em discussão um mínimo necessário para que os indivíduos possam realizar-se como cidadãos, para conse-

35 .  Calmon, Eliana. “As Gerações de Direitos e as Novas Tendências”. Ed. Consulex. 2002.

37 .  Vidonho Junior, Amadeu dos Anjos. “Reflexões sobre o jusfilósofo do século XXI” in Internet Legal – O Direito na Tecnologia da Informação. Editora. Juruá. Curitiba. 2003.

36 .  ______________Ibidem Calmon, Eliana.

38 .  Del Vecchio, Giorgio. Lições da Filosofia do Direito. Coimbra. Armênio Amado Editor. 1979.

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guir que todos os seres humanos se beneficiem das suas vantagens e para evitar que o abismo entre pobres e ricos continue aumentando. Independente de concordamos com a taxação de ser a globalização “uma nova versão do feudalismo” - que de carona no desenvolvimento informacional, prolonga a perversidade da lógica capitalista do privilégio do capital sobre a pessoa humana -, hoje se realiza de forma acelerada e irreversível. Neste cenário, onde o Estado precisa ser redefinido a fim de mediar os conflitos, é que o constitucionalismo se renova e fortalece, ganhando novos pressupostos principiológicos e novas dimensões, ultrapassando seus limites tradicionais para afirmar-se num espaço juspolítico mais amplo. A constituição deve realizar-se, assim, como processo aberto de participação, alcançando a pretendida jurisdição constitucional, através de uma ordem jurídica comunitária e internacional. Nesse contexto, dever-se-ia começar uma incursão pelos direitos fundamentais, inicialmente, como forma de combater a exclusão social através da inclusão digital, que está diretamente vinculada à exclusão econômica e a exclusão educacional, como pressuposto básico do exercício da cidadania de forma a corresponder efetivamente às expectativas do Estado Democrático de Direito.

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Questão Genética e Autonomia sobre o Próprio Corpo

q6 Old and New Rights in the Postgenomic Era1* Carla Faralli

1  A  New Form of Discrimination: Genetic Discrimination

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s is known, a Human Genome Project was started in the late 1980s which drew the public’s attention to a revolution begun a few decades earlier, in 1953, with the discovery of the DNA’s double-helix structure. As the name suggests, the purpose of the project was to map the human genome by describing the structure, position, and function of the genes that characterize the human species. This research has been amplified and distorted under the pressure of great economic interests, among other factors, and has been touted as “the culminating phase in the quest for the biological Grail,”2 revealing what it means to be human, and having the potential to change our philosophical self-understanding by showing us how life works. And so there are great expectations this research has engendered as to the use it can be put to in diagnosing, curing, and preventing many diseases, this on the basis of the assumption that every aspect of our individual and social life can be traced to our genes. 1 .  * Translated by Filippo Valente.

2 .  These words can be found in W. Gilbert, “A Vision of the Grail,” in The Code of Codes: Scientific and Social Issues in the Human Genome Project (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1992). Some of the most critical commentary can be found in R. Hubbard and E. Wald, Exploding the Gene Myth (Boston: Beacon Press, 1993); D. Nelkin and M. S. Lindee, The DNA Mystique: The Gene as a Cultural Icon (Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1995); and R. Lewontin, It Ain’t Necessarily So: The Dream of the Human Genome and Other Illusions (New York: New York Review of Books, 2000). 121

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More recent studies have underscored the significant role of nongenetic factors in an organism’s formation and behaviour, this owing, for example, to the complexity of the processes by which genes, proteins, and the environment interact. Further, as much as genetic testing may make it possible for us to detect, before or after birth, genetic anomalies responsible for a disease now in progress or potentially in the making, and may also make it possible to locate defective genes in DNA, there is nothing like a cure in most of these cases, because there is still too wide a gap between progress in diagnosis and available therapy. The moral, social, and legal consequences attendant on this kind of research did not escape the project’s own promoters, who set up a special commission under a project called ELSI (Ethical, Legal, and Social Implications project) so as to inform and raise awareness about the research in progress and to encourage debate, in an effort to keep at bay distorted uses of the knowledge gained, especially those uses driven solely by biological conceptions of the person and by discrimination based on genetic differences. Beginning in the 1990s, different international documents addressed the protection of individual rights in connection with the issues raised by genetics: First came the Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights, adopted by UNESCO in 1997; then the Oviedo Convention on Human Rights and Biomedicine, also of 1997; then the Charter of Fundamental Rights of the European Union (CFR), of 2000; then the International Declaration on Human Genetic Data, of 2003; and finally the Universal Declaration on Bioethics and Human Rights, of 2005. The Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights reads in its preliminary matter that its own principles are introduced, “recognizing that research on the human genome and the resulting applications open up vast prospects for progress in improving the health of individuals and of humankind as a whole, but emphasizing that such research should fully respect human dignity, freedom and human rights, as well as the prohibition of all forms of discrimination based on genetic characteristics.”3 Having proclaimed in Article 1 that the “human genome [...] in a symbolic sense [...] is the heritage of humanity,” the document sets down 3 .  UNESCO, The Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (1997). Available online at . 122

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in Article 2 the principle that “everyone has a right to respect for their dignity and for their rights regardless of their genetic characteristics,” and “that dignity makes it imperative not to reduce individuals to their genetic characteristics and to respect their uniqueness and diversity.” And Article 6 states, “No one shall be subjected to discrimination based on genetic characteristics that is intended to infringe or has the effect of infringing human rights, fundamental freedoms and human dignity.” In 2003, UNESCO relied on this document for its own International Declaration on Human Genetic Data, setting forth principles for the collection, processing, use, and storage of such data, which it recognizes in Article 4 as having a special status, for it “may have a significant impact on the family, including offspring, extending over generations, and in some instances on the whole group to which the person concerned belongs.” The Convention on Human Rights and Biomedicine,4 for its part, and as is known, was the outcome of a long and laborious process begun in 1991, and not until 1997 did it come into force, when numerous states signed it in Oviedo. It codifies preexisting yet scattered pronouncements the Council of Europe had issued to member states beginning in 1970 with the aim of achieving international cooperation on medical ethics, and it also codifies some (likewise scattered) recommendations on genetics dating to the 1980s, beginning with Recommendation No. 934 on Genetic Engineering, which will be discussed in Section 2. Chapter 4 of this convention is devoted to the human genome, with four articles prohibiting discrimination in any form against anyone on account of their genetic heritage (Article 11); allowing genetic testing only for medical purposes and for research, and only with appropriate genetic counselling (Article 12); permitting intervention on the human genome only for preventive, diagnostic, or therapeutic purposes, and only if its aim is not to modify the genome of any offspring (Article 13); and prohibiting the use of medically assisted procreation for the purpose of choosing a child’s sex, unless such use is necessary to avoid a serious hereditary disease related to sex (Article 14). So we have here a series of provisions affirming a right to an individual’s genetic identity—this by way of a corollary, as it were, of the rights to life and health.

4 .  Convention for the Protection of Human Rights and Dignity of the Human Being with regard to the Application of Biology and Medicine: Convention on Human Rights and Biomedicine (Oviedo, 4 April 1997). Available online at . 123

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In 2008, a protocol to the convention was issued on genetic testing,5 setting forth some fundamental principles, among which an obligation to ensure adequate genetic counselling when doing genetic testing, and the right not to be informed. Particularly interesting in this regard is Article 13 of the protocol, introducing an exception to Article 6 of the Oviedo Convention on Human Rights and Biomedicine (exceptionally, and by derogation from Article 6(1) of that convention and from Article 10 of the protocol itself), on the protection of those who cannot consent: The exception states that genetic testing may be carried out on someone lacking the capacity to consent if such testing is undertaken for the benefit of family members, this so long as certain conditions are met, including the condition that the benefit gained be important to the health of this person’s family members, or otherwise that the test allow them to make an informed choice with respect to procreation, and that certain criteria be met ensuring minimal risk for the person subject to the test. The EU Charter of Fundamental Rights (CFR)—signed in Nice in 2000, and now referenced in the Treaty of Lisbon, which came into force on 1 December 2009—includes genetic features in Article 21 in a full list of prohibited grounds of discrimination: “Any discrimination based on any ground such as sex, race, colour, ethnic or social origin, genetic features, language, religion or belief, political or any other opinion, membership of a national minority, property, birth, disability, age or sexual orientation shall be prohibited.”6 The special emphasis that discrimination receives in the documents just briefly discussed shows that genetic discrimination has now made its way into the open menu of forms of discrimination, and yet it differs from these other forms in at least two respects. In the first place, considering the nature of genetic data, discrimination based on genetic features is discrimination affecting not the single individual but the biological family the individual belongs to. This biological membership group makes it necessary to carefully consider the question as to who makes up this group and what rights they each

have, as concerns, for example, the ability to access information about other members of the group, or the privacy of those concerned (including under this heading the right not to be informed), and the authority to use data pertaining to the group. Clearly, there are profound implications for our individual personality once we find out what our genetic destiny will be as revealed through a predictive test (and it should be mentioned in passing from the outset that these tests are reliable only for monofactorial genetic diseases, and that in the vast majority of cases the disease will instead be polifactorial, making it impossible to predict its onset). But in any event, the information so gained can lead us to take a preventive strategy designed to reduce or minimize the risk involved, but it can just as easily act as a source of anxiety and may even lead to depression or to tragic choices. (The most frequently cited case in this regard is that of Huntington’s disease, which tends to have a late onset.) Whence the need to respect everyone’s right to decide whether to be informed about genetic test results and what they mean. On a philosophical level, the right not to know comes into conflict with the principle of responsibility, to be sure, but it is certainly a component of the right of self-determination, or the right to freely choose for oneself in life. Stefano Rodotà comments in this regard that the ability to predict our biological future paves the way for greater control on our part, enabling us to freely make choices in situations hitherto treated as necessitated, such that what is now left to chance will at some point be a matter of freedom. We are in this way working toward situations facilitating us in deliberately designing our biological future: This opens up the prospect of an “antidestiny,” where the human being governs situations rather than sustaining them.7 In the second place, genetic discrimination differs from all other forms of discrimination in that it may target an individual not on the basis of a current condition but on the basis of the risk (or the presumed risk) that such a condition may at some point develop, even though it may not develop at all.

5 .  “Additional Protocol to the Convention on Human Rights and Biomedicine, concerning Genetic Testing for Health Purposes,” Strasbourg, 27 November 2008. Available online at .

7 .  Stefano Rodotà has been among the first civil lawyers in Italy to address the question of genetic data, presciently anticipating contemporary legal doctrine by arguing for the exceptional status of such data. This is a view he first set out in Tecnologie e diritti (Bologna: Il Mulino, 1998) and then amplified in La vita e le regole: Tra diritto e non diritto (Milan: Feltrinelli, 2008) and Il diritto di avere diritti (Rome and Bari: Laterza, 2012).

6 .  Article 21 of the Charter of Fundamental Rights of the European Union, OJ C 83/392, 30.3.2010. Available online at . 124

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This is because, unlike any other kind of personal data, genetic data provides information not only about what someone is but also about what he or she could become. As Rodotà comments, this expands the range of possibilities for classification by introducing concepts such as prediction, (risk) proneness, and at-risk person. But these interpretive categories—consider that a cautious use of them is already being recommended even in predictive medicine—can give place to perilous misunderstandings if “tapped” from mainstream genetics and made to spill over into the realm of social policy. Indeed, we incur the risk of taking a potential condition, or worse, a hypothetical one, its likelihood often determined on the basis of statistical methods, and turn it into an unchangeable predestination, thus fostering an environment receptive to an entire spectrum of consequences, involving matters ranging from the legal treatment of those concerned to our social perception of them, and, perhaps even more alarmingly, involving the world of work and insurance, by threatening to usher in a caste society with a class of people regarded as so much a “risk” or a “liability” that they become “unemployable” and “uninsurable.” It is against the background of these potential risks that a trend has recently developed in genetic research with the emergence of so-called genetic reductionism, a sort of modern avatar of the biological reductionism propounded by Francis Galton (1822–1911) and Cesare Lombroso (1835–1909). This brand of genetic research has received strong criticism, though, with a firm stand taken against it by many geneticists, not least of whom Craig Venter and Francis Collins, the promoters of the Human Genome Project, who have observed, “We’re clearly much, much more than the sum total of our genes.”8 For which reason, as has been underscored by another great American geneticist, Victor McKusick, it would be a grave mistake to think we have understood everything about ourselves just because we have sequenced our own genome, and likewise grossly misguided would be the idea that the human condition is simply the direct and inevitable consequence of our genome.9 8 .  The White House, Office of the Press Secretary, press release of June 26, 2000, “Human Genome Project Information.” Available online at , site sponsored by the U.S. Department of Energy Office of Science, Office of Biological and Environmental Research, Human Genome Program.

2  Gene Therapy and New Rights

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enetic research for therapeutic purposes has given birth to a technique that is still mostly experimental, and that is gene therapy, which essentially consists in the transfer of genetic material to either prevent or cure disease. In the 1980s and ’90s, a few developments took place that drew much interest but at the same time gave rise to public concern: In 1980, the biologist A. Chakabarty was granted the first patent for a genetically modified organism; in 1990, gene therapy was administered to a four-year-old girl in the United States for a serious immunodeficiency condition; and, finally, in 1997 came the cloning of Dolly the sheep. Gene therapy can be grouped in two classes: There is germ-line gene therapy, whose effects can be passed on to later generations, and there is somatic gene therapy, which, by contrast, only affects the individual’s cells (and is in this sense uninheritable). Germ-line gene therapy that has been tested on transgenic animals can in theory be extended to humans, but so far this has not been attempted. The whole range of issues arising in connection with these developments have drawn the attention of the Council of Europe since the early 1980s, when experimentation on gene therapy was just getting started. Thus in Copenhagen on May 25 and 26, 1981, the Council of Europe held its 7th public parliamentary hearing, where the Danish parliamentarian M. Elmquist presented a report on the issues raised by genetic engineering.10 As a result of this hearing, the Council of Europe issued the previously mentioned Recommendation 934 (1982) on Genetic Engineering,11 and reductionism, the view that with complete knowledge of the human genome sequence, it is only a matter of time before our understanding of gene functions and interactions will provide a complete causal description of human variability. The real challenge of human biology, beyond the task of finding out how genes orchestrate the construction and maintenance of the miraculous mechanism of our bodies, will lie ahead as we seek to explain how our minds have come to organize thoughts sufficiently well to investigate our own existence.” J. Craig Venter, Victor A. McKusick, et al. “The Sequence of the Human Genome,” Science 291 (2001): 1304–1351, on p. 1348. 10 .  See I. R. Pavone, La convenzione europea sulla biomedicina (Milan: Giuffrè, 2009), p. 27.

9 .  As McKusick has remarked, “there are two fallacies to be avoided: determinism, the idea that all characteristics of the person are ‘hard-wired’ by the genome;

11 .  Parliamentary Assembly of the Council of Europe (PACE), “Recommendation 934 (1982) on Genetic Engineering.” Available online at .

14 .  Parliamentary Assembly of the Council of Europe (PACE), “Recommendation 1100 (1989) on the Use of Human Embryos and Foetuses in Scientific Research.” Text adopted by the assembly on 2 February 1989 (24th sitting). Available online at .

12 .  Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms, signed in Rome on 4 November 1950. Available online at .

15 .  European Parliament, “Resolution on the Ethical and Legal Problems of Genetic Engineering,” OJ C 96, 17.04.1989, p. 165–71. Available online at .

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which his consent obtained” (Article 22), and calling as well “for an absolute ban on all experiments designed to reorganize on an arbitrary basis the genetic make-up of humans” (Article 27) and “for legislation prohibiting any gene transfer to human germ line cells” (Article 28). Underling these principled statements there seems to be a conception whereby it is a law of nature, eternal and immutable, that defines the individual’s genetic characteristics, a conception reinforced by the view, expressed in Articles 29 and 30, that an individual’s genetic makeup bears importantly on this person’s identity, which is already defined in the embryo. Article 30, in particular, says that even a recombination of genes that only partly alters the genotype falsifies the individual’s identity, and would thus be “both irresponsible and unjustifiable because a very individual legal asset is involved.” These recommendations and this resolution were followed by the aforementioned Oviedo Convention on Human Rights and Biomedicine (1997), which under Article 13 states: “An intervention seeking to modify the human genome may only be undertaken for preventive, diagnostic or therapeutic purposes and only if its aim is not to introduce any modification in the genome of any descendants.” As we can see, this article, taking up the guidelines set out in the policy statements in question, draws a distinction between two sorts of interventions: those intended to protect and individual’s health—these are deemed legitimate—and those that modify the germ line, thus also affecting the offspring’s genome, and these are not deemed legitimate. So, as was previously observed, with these provisions the 1997 Oviedo Convention sets forth, on the one hand, the right of future generations to inherit an unmodified genetic makeup, and on the other the right of every individual to undergo genetic interventions on the somatic cell line (and hence interventions whose modifications are not passed on to the individual’s offspring), so long as the purpose is preventive, diagnostic, or therapeutic, and on the condition of obtaining the free and informed consent of the individual concerned or of his or her legal guardian.16 UNESCO’s previously mentioned Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights (also adopted in 1997) does not frontal16 .  On this point, see D. Neri, “La Convenzione europea di bioetica e la terapia genetica,” Bioetica 4 (1998): 516–25, and D. Neri and M. Mori, “Perils and Deficiencies of the European Convention on Human Rights and Biomedicine,” Journal of Medicine and Philosophy 26, no. 3 (2001): 323–33. 130

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ly address the problem of germ-line gene therapy, but it does prohibit genetic practices contrary to human dignity, and when it turns to implementation it refers to the International Bioethics Committee of UNESCO as the body that should “give advice concerning the follow-up of this Declaration, in particular regarding the identification of practices that could be contrary to human dignity, such as germ-line interventions” (Article 24). In this follow-up, the Bioethics Committee published in 2003 a document presenting and discussing the most controversial genetic practices, including the genetic manipulation of human germ cells.17 Somatic cell gene therapy, for its part, is likened to any other form of medical intervention and so is required to be carried out in compliance with the general principles covering any medical procedure. Under Article 5 of the Universal Declaration on the Human Genome, ŠŠ

a. Research, treatment or diagnosis affecting an individual’s genome shall be undertaken only after rigorous and prior assessment of the potential risks and benefits pertaining thereto and in accordance with any other requirement of national law.

ŠŠ

b. In all cases, the prior, free and informed consent of the person concerned shall be obtained. If the latter is not in a position to consent, consent or authorization shall be obtained in the manner prescribed by law, guided by the person’s best interest.

Under Article 8, “every individual shall have the right, according to international and national law, to just reparation for any damage sustained as a direct and determining result of an intervention affecting his or her genome.” And under Article 12(a), “benefits from advances in biology, genetics and medicine, concerning the human genome, shall be made available to all, with due regard for the dignity and human rights of each individual.” The question of the person’s right to integrity is addressed in the previously mentioned CFR (the EU Charter of Fundamental Rights, ratified in Nice in 2000), which under Article 3 reads as follows: ŠŠ

1. Everyone has the right to respect for his or her physical and mental integrity.

17 .  See UNESCO, International Bioethics Committee (IBC), “Report of the IBC on Pre-implantation Genetic Diagnosis and Germ-line Intervention,” Paris, 24 April 2003. Available online at . 131

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ŠŠ

2. In the fields of medicine and biology, the following must be respected in particular:

ŠŠ

(a) the free and informed consent of the person concerned, according to the procedures laid down by law;

ŠŠ

(b) the prohibition of eugenic practices, in particular those aiming at the selection of persons;

ŠŠ

(c) the prohibition on making the human body and its parts as such a source of financial gain;

ŠŠ

(d) the prohibition of the reproductive cloning of human beings.

The preparatory work on the CFR reveals that the charter, in its final draft, was supposed to contain a right to genetic integrity,18 and that it was also meant to prohibit genetic modifications which may be passed on to offspring, while consequently legitimizing genetic modifications only insofar as they are effected for preventive, diagnostic or therapeutic purposes.19 According to some commentators, on a broad interpretation of Article 3 CFR, the right to the integrity of one’s genetic endowment ought to be recognized as falling within the more general right to physical integrity (Article 3(1) CFR); and the prohibition against eugenic practices and reproductive cloning (Article 3(2)(b) and (d) CFR, respectively) would entail a broader prohibition against any genetic intervention on the germ line, that is, against any genetic modification that can be passed on to offspring, unless the intervention is therapeutic, being justified on the basis of the descendant’s right to health, a right recognized as prior to the right to genetic integrity. According to other commentators, by contrast, the reason for not 18 .  “Everyone has the right to the protection of his/her life and of his/her physical, psychological and genetic integrity.” Article 2 (“Right to Life”) of the Draft Charter of Fundamental Rights of the European Union (Charte 4157/00; Contrib 42), Brussels, 13 March 2000. Available online at . 19 .  “Any intervention directed at alteration of the human genome may be undertaken only for preventive, diagnostic or therapeutic purposes and only if it is not intended to bring about any alteration in the genome of progeny.” Proposed amendment to Article 3 of the Draft Charter of Fundamental Rights of the European Union (Charte 4332/00; Convent 35), Brussels, 25 May 2000. Available online at . 132

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explicitly recognizing a right to genetic integrity in the CFR is that its framers, in prohibiting eugenic practices and reproductive cloning, did not want a future scenario where, on the one hand, advancements in biomedicine would make it possible to prevent or treat serious genetic diseases by modifying the human genetic makeup, and yet, on the other, the treatment would be unavailable precisely for that reason (because it would involve modifying the human genetic makeup).20 The documents we have looked at can be said to share a core set of principles, including the right to human dignity, nondiscrimination, and equality, as well as to self-determination and its corollaries, namely, informed consent and privacy. These principles offer themselves as an answer to some questions we are increasingly being forced to deal with: Should everything that is technologically possible also be considered morally admissible, socially acceptable, or legally permissible? Where should we draw the line between therapy and enhancement? On the basis of what criteria can enhancement be distinguished from eugenics? As Stefano Rodotà has commented, the debate on these issues can be framed, however much with a good measure of oversimplification, by dividing the participants into two broad camps: on the one hand are the “bioconservatives,” and on the other the “transhumanists”21—the former resolutely committed to restoring our natural rights; the latter championing a new freedom, namely, the freedom to exploit without hindrance the unprecedented power we are invested with. But a similar polarization in the debate is not helpful, for it appeals to notions like nature, artifice, health, disease, and normality that are highly problematic and call for philosophical reflection. One ought to consider, in this regard, authors like Jürgen Haber-

20 .  See esp. M. G. Giammarinaro, “Luci ed ombre della Carta Europea dei diritti,” Bioetica 4 (2001): 710–25; G. Ferrando, “La Carta dei diritti dell’Unione Europea: Oltre le polemiche,” Bioetica 4 (2001): 700–704; A. Santosuosso, “Integrità della persona, medicina e biologia: Art. 3 della Carta di Nizza,” Danno e responsabilità 8–9 (2002): 809–16; C. Casonato, “Il contenuto della Carta tra conferme, novità e contraddizioni,” in Diritto, diritti, giurisdizione: La Carta dei diritti fondamentali dell’Unione Europea, ed. R. Toniatti, pp. 99–118 (Padua: CEDAM, 2002); and R. Bifulco, “Dignità umana e integrità genetica nella Carta dei Diritti Fondamentali dell’Unione Europea,” Rassegna Parlamentare 1 (2005): 63–115. 21 .  By transhumanism, or post-humanism, Rodotà means the complex of technologies that make it possible to overcome the limitation of human form. See S. Rodotà, Il diritto di avere diritti (Rome and Bari: Laterza, 2012), p. 344. 133

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mas,22 for whom intervention on the human genome could cause human beings to lose what Habermas calls the reflexive attitudinal preconditions for moral agency (our self-understanding as members of the species), along with our naturality. Others, like John Harris,23 argue that manipulation of the human genome aimed at raising the quality of life is part of the natural aspiration of humans, who have always, in every age, pursued the good of improvement by employing the means at their disposal. And others still, like Buchanan, Brock, Daniels, and Wikler,24 hold that, even if gene therapy involves the manipulation of the genetic makeup, its use is legitimate when it can mitigate the disadvantages owed to disability and disease, for in these cases it can help in the effort to ensure equality and equal opportunity. These are open issues unfolding in a context that, as was noted at the beginning of this section, is still largely experimental.

22 .  J. Habermas, The Future of Human Nature, translated by Hella Beister and William Rehg (Cambridge, UK: Polity, 2003). 23 .  J. Harris, Enhancing Evolution: The Ethical Case for Making Better People (Princeton: Princeton University Press, 2010). 24 .  A. Buchanan, D. W. Brock, N. Daniels, and D. Wikler, From Chance to Choice: Genetics and Justice (Cambridge: Cambridge University Press, 2000). 134

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7 MELHORAMENTO HUMANO: DE SER PARA COISA? UMA ABORDAGEM A PARTIR DA (DES)CONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE Leana Mello Tiago Vieira Bomtempo

1  INTRODUÇÃO

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resencia-se o momento da chamada “revolução biotecnológica”, a era da transformação, não somente do homem sobre o ambiente em que vive, mas também sobre si mesmo, da autoconstrução ou, porque não, da desconstrução. A biotecnologia, segundo Pessini: “[...] significa muito mais que seus processos e produtos: trata-se de uma forma de empoderamento humano. Por meio de suas técnicas (por exemplo, na recombinação de genes), instrumentos (como os seqüenciadores de DNA) e produtos (novos medicamentos e vacinas), a biotecnologia dá aos seres humanos poder para controlar suas vidas de maneira mais efetiva, diminuindo a sujeição à doença e minimizando a influência aleatória da biologia. As técnicas, instrumentos e produtos da biotecnologia aumentam as capacidades dos seres humanos de agir e “funcionar” efetivamente, direcionando-as para muitos objetivos diferentes”1. Junto a isto, retoma-se a ideia de melhoramento humano ou enhancement, possibilidade hoje vislumbrada na genética, na estética, na nanotecnologia, na robótica e nos esportes na busca do ser humano perfeito. De acordo com Silva e Moreno: “O desenvolvimento científico e tecnológico nos traz, a cada dia, novas possibilidades de intervenções no corpo. As necessidades de pro­dução e acúmulo que rondam o contex1 .  PESSINI, Leocir. Bioética e o desafio do transumanismo: ideologia ou utopia, ameaça ou esperança?. Revista Bioética, Brasília, v.14, n.2, jul. 2009. Disponível em:http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/14. Acesso em: 03 Abr. 2013. p.127-128. 135

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to atual nos empurram para a busca do desempenho, do ponto ótimo de performance. O corpo tornou-se ob­soleto. As introjeções tecnológicas surgem a fim de “turbinar” a máquina humana, ampliando-a, melhorando-a, melhor adaptando-a às necessida­des ambientais. É como se a seleção “natural” de Darwin ganhasse outros contornos e nós, à mercê das leis evolutivas, tivéssemos de nos adaptar”2. Entretanto, até que ponto pode-se afirmar que o estágio de perfeição não redefine o conceito de corpo e de pessoalidade? Existe limite para a autonomia humana? Sob a ótica do Direito, estamos a um passo da construção de uma nova personalidade ou de desconstrução da personalidade jurídica atualmente existente? Neste sentido, este artigo buscará não responder a estas questões, mas trazer elucidações para que se possam discutir os novos contornos que a personalidade jurídica está passando diante dos avanços tecnocientíficos. Para tanto, necessário é abordar uma breve evolução dos direitos de personalidade, a ser tratada no capítulo 2. Após, analisar os aspectos que envolvem o melhoramento humano e possível coisificação da pessoa no capítulo 3. Por fim, propor em que sentido o Direito, representado pelo Biodireito, aplica-se diante das técnicas de enhancement, no reconhecimento de uma nova construção da personalidade jurídica ou de desconstrução do modelo atual existente, a partir da cláusula geral de tutela da pessoa humana.

2  B  REVE EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

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ratar-se-á nesse capítulo sobre uma breve explanação dos direitos de personalidade que intrinsecamente está ligada à ideia de ser pessoa. Segundo o dicionário Aurélio, personalidade é “1.caráter ou qualidade do que é pessoal.2. O que determina a individualidade duma pessoa moral; o que a distingue de outra.”3 A personalidade faz com que al2 .  SILVA, André Luiz; MORENO, Andréa. Frankenstein e cyborgs: pistas no caminho da ciência indicam o “novo eugenismo”. Pensar a Prática, Goiânia, v.8, n.2, Jul./Dez. 2005. Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/fef/article/view/110/1556. Acesso em: 03 Abr. 2013. p.126. 3 .  FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário da língua portuguesa. 3ª Ed. 136

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guém seja protegido pelo ordenamento jurídico como sujeito de direitos, merecedores de respeito pela condição de serem seres humanos. A doutrina de Bittar é clara ao dizer que “a construção da teoria dos direitos da personalidade humana deve-se, principalmente: a) ao cristianismo, em que se assentou a ideia da dignidade do homem; b) à Escola de Direito Natural, que firmou a noção de direitos naturais ou inatos ao homem, correspondentes à natureza humana, a ela unidos indissoluvelmente e preexistentes ao reconhecimento do Estado; e, c) aos filósofos e pensadores do Iluminismo, em que se passou a valorizar o ser, o indivíduo, frente ao Estado”. Assim, de modo geral, tanto no espaço público quanto no privado, os direitos da personalidade começaram a ser reconhecidos. A tutela geral da personalidade foi criada através de junções das construções e rupturas políticas, econômicas, sociais e jurídicas. Vários movimentos no direito público contribuíram para tal desenvolvimento seja a Revolução Industrial, a Declaração francesa, Declaração Universal da ONU, Declaração norte-americana bem como a preocupação com os direitos humanos, com as liberdades públicas. Ademais, no âmbito privado, a nova visão da pessoa como fim em si mesma, foi alertando os legisladores de que era importante a proteção da pessoa humana e seus atributos. Rosa Maria Andrade Nery4 traça uma distinção importante sobre o tema personalidade na concepção da teoria geral do direito privado e da teoria geral do direito de personalidade; enquanto esta é mais específica, pois nela são estudadas “situações jurídicas que têm por objeto determinados componentes de nossa própria humanidade”.5 aquela pode ser interpretada como o homem, sujeito de direitos e obrigações, concedendo-lhe poderes para ser parte e titular de uma vida jurídica como indivíduos. Nesse tópico que é objeto de estudo, a teoria geral do direito de personalidade se torna presente em qualquer vínculo que envolva as relações humanas patrimoniais bem como negócios jurídicos de todas as espécies. Esses objetos fazem parte da essência humana não como um rol taxativo, mas como meio exemplificativo de acordo com o caso conRio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.419 4 .  NERY, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2008. 5 .  Nery, Rosa Maria de Andrade. Introdução ao pensamento jurídico e à teoria geral do direito privado. São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2008, p. 272. 137

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creto, com a vivência das pessoas dessa sociedade complexa e de mudanças diárias de concepções. Surgem então novos aspectos da personalidade que devem ser protegidos além dos já consolidados como vida, saúde, liberdade, dignidade, integridade, identidade, honra e imagem. Há divergência entre os doutrinadores quanto à natureza dos direitos de personalidade. A maioria entende se tratar de direitos subjetivos pelo fato de o homem ter o poder de utilizar de sua autonomia, do exercício de sua dignidade, sendo titular de suas próprias escolhas e objetivos. Outros já veem como um direito objetivo de personalidade, ou seja, regras impostas que exigem a efetivação da dignidade da pessoa humana. De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos, os direitos objetivos constituem “a regulação jurídica relativa à defesa da personalidade consagrada, quer no direito supranacional, quer na lei constitucional, quer na lei ordinária, cuja ratio se funda em razões de ordem pública e de bem comum, e que é alheia à autonomia privada.”6 Carlos Alberto Bittar7 interpreta os direitos de personalidade como direitos inatos devendo o Estado apenas cumprir o seu dever de sancioná-los. Nesses termos, a pessoa já nasce com esses direitos sem necessariamente fazer algo para adquiri-los. É perceptível que ao longo da história dos direitos de personalidade, no período do direito romano em que prevaleciam os estatutos, só possuíam personalidade aqueles indivíduos que eram livres, cidadãos e tinham o status de família. Com o passar do tempo, outros períodos foram surgindo em substituição aos estatutos, prevalecendo assim a religião e a vingança privada desde a monarquia como uma forma de os homens punirem aqueles que tivessem provocado um dano ou descumprido uma obrigação. Essa atitude era considerada uma forma de tutela dos direitos de personalidade, embora a forma como eram observados os direitos de personalidade não se comparava com a visão de que se tem na contemporaneidade. Mesmo com a Lei das XII Tábuas ainda prevalecia a vingança privada, além de pena pecuniária em casos de lesões corporais graves. O Império veio para estruturar a vida política, econômica e social e com ius praetorium junto com ius civile as deficiências da Lei das XII Tábuas sobre os direitos da personalidade foram obtendo novos rumos. A

injúria romana “constitui o embrião do direito geral de personalidade”8. A actio iniuriarum tutelava a moral e os bens imateriais da pessoa humana mesmo com a Escola dos Glosadores (sec. XII) e Escola dos Comentadores (sec. XIV). Não houve nenhuma mudança significativa nos direitos da personalidade. Somente com o Renascimento e com o Humanismo do século XVI houve a criação de um direito geral de personalidade denominado ius in se ipsum.9 Mas somente com a Constituição da República Federal Alemã e posteriormente da Suíça e Áustria que foram estabelecidas legislações sobre o direito geral de personalidade. Em 1949, na Alemanha, a Constituição Federal previa que todos tinham o direito de desenvolvimento de sua personalidade de forma livre, respeitando os seus limites e não violando os direitos dos outros. Os direitos de personalidade, nesse sentido, eram de direitos subjetivos.10 O código civil da Itália de 1942 “veda a disposição do corpo, que importe em diminuição permanente de sua integridade ou contrária à lei, à ordem pública ou aos bons costumes (art. 5º); consagra o direito ao nome (art. 6º) e confere ação para sua tutela (art.7º)”11 além de outros direitos como à imagem e à propositura de ações de indenização. O Código Civil de Portugal de 1966, a Constituição da República Portuguesa de 1976 e suas respectivas revisões de 1982 e 1989, também sustentavam um direito geral de personalidade, protegendo os cidadãos de qualquer ofensa a sua personalidade física ou moral. Segundo Capelo de Sousa, “foi através das sanções penais que os elementos constitutivos e as manifestações da personalidade humana começaram por ser jurídico-estadualmente tutelados” e ainda entende que outro fato importante para o aparecimento do direito geral de personalidade foi “a afirmação e tutela, ao nível do poder jurídico-político, dos direitos inatos ou fundamentais, inclusive direitos fundamentais de personalidade de cada cidadão face ao Estado e aos demais entes públicos”.12 8 .  CAPELO DE SOUSA, Radindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade. Coimbra Editora, 1995, p.54 9 .  CAPELO DE SOUSA, Radindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade. Coimbra Editora, 1995. 10 .  CAPELO DE SOUSA, Radindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade. Coimbra Editora, 1995.

6 .  VASCONCELOS, Pedro Pais de. Direito de Personalidade. Coimbra: Almedina, 2006, p.50. 7 .  BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. 138

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11 .  BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 7ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p12. 12 .  CAPELO DE SOUSA, Radindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalida139

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No direito brasileiro, o código civil de 2002 tratou de sistematizar os direitos de personalidade nos artigos 11 a 21, além da existência de outras leis especiais que entraram em vigor ao se preocuparem com a proteção e reconhecimento dos direitos das pessoas. O próprio Código Civil, no seu artigo 11, traça algumas características desses direitos da personalidade sendo eles intransmissíveis e irrenunciáveis, além de poder considerá-los como indisponíveis, imprescritíveis, extrapatrimoniais, oponíveis erga omnes. Quanto ao aspecto da (ir)renunciabilidade, embora entendido pela doutrina tradicional como um direito que está atrelado à pessoa do seu titular, Stancioli, 13 traz um capítulo em seu livro retratando a diferença entre a renúncia ao direito da personalidade e renúncia ao exercício de direito da personalidade, ou seja, num há a interpretação de que haveria a perda da titularidade do direito de personalidade e noutro ele entende como exercício da autonomia, ao considerar que “a renúncia é fator fundante do livre desenvolvimento da personalidade e da afirmação da pessoalidade. Ela é a mais perfeita expressão do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.”14 Os direitos de personalidade são direitos essenciais e qualidade de ser pessoa que estão previstos no ordenamento jurídico acompanhando o sujeito por toda a sua vida, tendo como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição da República de 1988. A pessoa, hoje, deve ser o centro do ordenamento jurídico e por isso foram positivados os direitos de personalidade para assegurar dignidade a todos, além de proteção à sua integridade física e psíquica, imagem, vida, dados genéticos, honra, nome, intimidade, ou seja, vem garantir direitos de forma que a pessoa tenha uma vida digna, se autorrealize e exerça sua autonomia privada. Assim, os direitos de personalidade podem ser conceituados como “projeção de algum aspecto da personalidade em espaços de subjetividade e intersubjetividade, que deve ser tutelado pelo Estado na medida da necessidade individual, de acordo com os valores que a

própria pessoa estabeleceu como prioritários para o livre desenvolvimento da sua personalidade”.15 Francisco Amaral interpreta os direitos de personalidade como “direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual”.16 A cada dia, os direitos de personalidade vêm dando maior proteção à pessoa, vez que os mesmos não são numeros clausus no ordenamento jurídico, mas sim um rol aberto que se amplia e se transforma com cada vivência da sociedade, com cada anseio e escolha, de forma que o ser humano se autorrealize e principalmente viva com dignidade. Todo cidadão deve ter o seu livre desenvolvimento da personalidade que, mesmo não previsto na legislação brasileira, é encontrado inserido na Declaração Universal dos Direitos do Homem e, não menos importante, sempre buscando a efetivação da autonomia privada como meio de construir projetos de vida individuais.

3  M  elhoramento humano e a coisificação da pessoa

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corpo humano é um organismo biológico, formado por órgãos e tecidos que realizam diversas funções físicas e químicas. É por meio dele que nos identificamos e exercemos a nossa identidade e pessoalidade. Para Lara: “A partir de uma concepção secular, o corpo humano é um organismo biológico complexo, no qual se estabelecem relações físicas e químicas. Toda pessoa humana pressupõe uma base sensível, um elemento material, corpóreo, que lhe permita existir: o corpo é a forma de ser pessoa e de estar no mundo. É por meio do corpo que a pessoa situa-se no tempo e no espaço, é reconhecida pelos demais e exerce sua pessoalidade. Não há pessoa sem corpo, pois a existência humana é necessariamente corporal”17.

de. Coimbra Editora, 1995, p. 92

15 .  TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Rena de Lima. Aspectos gerais dos direitos da personalidade. In. TEIXEIRA, Ana Carolina; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (coor.) Manual de teoria geral do direito civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 232.

13 .  STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade: ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

16 .  AMARAL NETO, Francisco. Direito Civil: introdução. 6.ed. rev. Atual e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 82.

14 .  STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade: ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 109.

17 .  LARA, Mariana Alves; STANCIOLI, Brunello Souza. O direito à liberdade de uso e (auto) manipulação do corpo. 2012. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mi-

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Todavia, diante das inovações trazidas pela tecnologia, o corpo humano começa a se construir a partir de um desejo incansável da perfeição com o uso de recursos cada vez mais artificiais, o que se pode remeter a uma verdadeira coisificação da pessoa, instrumento e desejo de si própria para a materialização da felicidade, se assim pode-se dizer. De acordo com Silva e Moreno: “O número de novas técnicas e novas possibilidades científicas de intervenção no corpo nos revela um dogmatismo quanto a seus funda­mentos. Tais técnicas revelam um desejo de normalizar, suprimir aquilo que o homem desconhece e foge a seu controle. Revelam o desejo de remodelamento pelo artifício, substituição do orgânico imperfeito pela réplica melhorada. Revelam uma vontade que se impregna no homem a partir do momento de reconhecimento do corpo como matéria e enquanto matéria, tudo que existe. O rompimento com a transcendência o faz crer apenas no material, sendo assim em seu corpo de carne e osso, tornando-o dependente para sua realização e felicidade”18. Neste sentido, surgiram dois movimentos, os transumanistas e os bioconservadores. Acerca dos transumanistas, noticia Pessini que: “O movimento transumanista teve início nos anos 1980 com os escritos de um futurista conhecido como FM-2030. Foi definido como um movimento cultural e intelectual que afirma a possibilidade e o desejo de fundamentalmente aprimorar a condição humana através da razão aplicada, especialmente usando tecnologia para eliminar o envelhecimento e aprimorar as capacidades intelectuais, físicas e psicológicas”19. Assim entendem que a natureza humana não é estática, e que os avanços tecnológicos devem ser usados a favor do homem e, mesmo em si, o que não acarretaria a extinção da espécie, mas sim a sua evolução no pós-humano. São adeptos da clonagem, da robótica com a implantação de chips para se conectar a computadores, do melhoramento genético e mesmo na fusão homem e máquina. “Os pós-humanistas não acreditam que a biologia seja um destino, mas antes algo que deve ser superado, porque, segundo eles, não existe ‘lei natural’, nas Gerais, Faculdade de Direito. Disponível em : < http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/ dspace/bitstream/handle/1843/BUOS-8XTP7G/disserta__o_mariana_alves_lara.pdf?sequence=1 >. Acesso em : 03 abr. 2013.p.17. 18 .  SILVA, André Luiz; MORENO, Andréa. ob. cit, p.135-136. 19 .  PESSINI, Leocir. ob. cit, p.133. 142

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mas somente maleabilidade humana e liberdade morfológica”20. Por outro lado, os bioconservadores são contra o uso da tecnologia para o aperfeiçoamento humano, pois sustentam que o melhoramento é desumano, na medida em que coisifica o próprio homem e viola a sua dignidade. Aponta Bostrom: “Em oposição a essa visão transumanista, tem-se o campo bioconservador, que argumenta contra o uso da tecnologia para modificar a natureza humana. Autores bioconservadores proeminentes incluem Leon Kass, Francis Fukuyuama, George Annas, Wesley Smith, Jeremy Rifkin e Bill McKibben. Uma das preocupações centrais dos bioconservadores é a de que tecnologias de melhoramento humano poderiam ser “desumanizantes”. A preocupação, que já foi expressa de várias maneiras, é a de que essas tecnologias possam minar a nossa dignidade humana ou inadvertidamente erodir algo que é profundamente valioso a respeito de ser humano, mas que é difícil de ser colocado em palavras ou de se levar em conta em uma análise de custo e benefício. Em alguns casos (e.g. Leon Kass), esse desconforto parece derivar de sentimentos religiosos ou cripto-religiosos, enquanto em outros (e.g.Francis Fukuyama), parece estar assentado em bases seculares. A melhor forma de tratar a questão, argumentam esses bioconservadores, é implementarem-se proibições globais de categorias inteiras dessas promissoras tecnologias de melhoramento humano para prevenir um escorregão ladeira abaixo nesse “declive escorregadio”que cai em direção a um estado “pós-humano” que é, em última análise, rebaixado”21. Seja transumanista ou bioconservador, o que se verifica é a coisificação da pessoa no sentido último de podermos perder a nossa própria identidade, a ponto de não sabermos quem somos. Em que medida existirá vontade livre e consciente em um mundo onde crianças podem ser projetadas com o uso da engenharia genética, o uso de medicamentos, sobretudo os antidepressivos, prozac, rivotril, que apagam as nossas dores, mas retiram a nossa autonomia22. O recurso à nanotecnologia e 20 .  PESSINI, Leocir. ob. cit, p.133-134. 21 .  BOSTROM, Nick. Em defesa da dignidade pós-humana. Revista Bioethics, v. 19, n. 3. Tradução: Brunello Stancioli , Daniel Mendes Ribeiro, Anna Rettore e Nara Pereira Carvalho. Disponível em: http://www.nickbostrom.com/translations/Dignidade.pdf. Acesso em: 03 Abr. 2013. p.03. 22 .  Avanços médico-farmacêuticos foram realizados em proveito de nosso conforto psicofísico, mas não sem perigos. A ritalina, uma anfetamina fornecida a crianças sofrendo perturbações da atenção, está sendo usada também para melhorar funções cognitivas de jovens sadios; esse e outros produtos servem, por vezes, além de suas especificações normais, ou abusadas, como o prozac, o viagra, o DHEA. Como resistir ao uso off label de 143

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à robótica, áreas promissoras na conjugação corpo e máquina, pode trazer uma nova pessoalidade ou instrumentalidade do antes humano para o futuro “cyborg”. Relata Drumond: “No limite das alterações produzidas pelas novas tec­nologias há que se considerar a questão da cibernética, a ciência do controle e da comunicação entre o animal e a máquina. A cibernética consegue adicionar próteses a cor­pos humanos ou de animais, substituir funções perdidas ou aumentar atividades específicas. [...] A última centúria foi pródiga no desenvolvimento de conhecimentos sobre a interrelação entre a neurociência e a computação eletrônica, o que determinou a sua aplicação em experimentos de interface direta entre o sistema nervo­so de mamíferos e equipamentos eletromecânicos”. “São exemplos a criação de junções “neurosiliconiais” envolvendo transistores e neurônios para a preparação de circuitos neuronais, a recriação de imagens visuais de si­nais transmitidos por condutos óticos de gatos, o controle remoto de manipulador mecânico de braços por implan­tes inseridos no córtex motor cerebral de macacos-coruja e o controle remoto que pode fazer ratos caminharem por meio do implante de placa de eletrodos”. “Equipamentos são fabricados para, via miniaturização, serem acoplados ao corpo ou às vestes, ou como acessórios de aparelhos ópticos auditivos propiciando, por exemplo, visão retrógrada, visão noturna, audição amplificada, aces­so independente à Internet (“wireless”) e a outras bases de dados”23. Acrescenta-se ainda a cultura do ‘corpo sarado’, do homem a serviço da estética e da beleza, no recurso às cirurgias plásticas, botox, anabolizantes e esteróides, tornando-se objetos de si próprios. Neste entendimento, a utilização do ser humano como objeto dessas con­quistas, transgredindo os conceitos de normalidade anatô­mica e fisiológica, também suscita discussão sobre a manipulação deliberada do atleta, que se submete a práticas extenuantes ou pré-moldadas, no intuito de obter novas realidades so­ciais e econômicas24. Na estimulantes antes de exames? O provigil trata normalmente a narcolepsia, mas permite a qualquer um prolongar seu tempo de vigília, não sem inconveniente. LEPARGNEUR, Hubert. Promoção da humanidade futura: Enhancement.  Revista Bioethikos - Centro Universitário São Camilo - 2010; v,4, n.3. p.311. 23 .  DRUMOND, José Geraldo de Freitas. Tecnologia e esporte: perspectivas bioéticas. Revista Bioethikos - Centro Universitário São Camilo - 2011; v,5, n.4. p.413. 24 .  DRUMOND, José Geraldo de Freitas. ob. cit, p.416. 144

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seara esportiva, área propícia ao melhoramento humano, visualiza-se de forma clara este processo de coisificação da pessoa na busca dos melhores resultados. O corpo revela-se um objeto de experiências, em razão de interesses econômicos. São roupas especiais, próteses, e mesmo a possibilidade do doping genético são os meios a que os atletas visam melhorar seus desempenhos. Silva e Goelner apontam que: “Essa melhor equipagem da performance esportiva atesta a inutilidade do corpo humano “natural” e, ainda, o quanto podem ser ultrapassadas as suas limitadas performances. Reafirma-se, assim, a imagem do cibercorpo e do ciberatleta como produtos de minuciosas e constantes intervenções tecnológicas que, mais do que adaptá-los ao universo esportivo, buscam eugenizá-los – termo tomado por nós como a elevação, cada vez maior, de sua perfectibilidade. Coloca-se, aqui, o extermínio do caráter supostamente natural do corpo e do humano, pois, como afirma Virilio (1996), o natural hoje é ser artificial. E, para o novo eugenismo, intervenções como o doping genético, a ciborguização do treino esportivo e a recorrência à biotecnologia não passam de rotinas cotidianas de um campo em plena expansão”25. Diante deste panorama, não se pode entender que haverá um futuro para a dignidade humana, pois que autonomia existirá num futuro ‘prémoldado’? “A dignidade humana marca, antes, aquela “intangibilidade” que só pode ter um significado nas relações interpessoais de reconhecimento recíproco e no relacionamento igualitário entre as pessoas26”. Rodotà alerta que: “Muito diferentes desde o ponto de vista qualitativo são as novas possibilidades de programação integral dos seres humanos que oferece a genética. Aqui a ruptura com o passado adquire um caráter radical e a manutenção do acaso se converte na via forçada para no sucumbir a um cientificismo que acabará caindo por terra a dignidade humana e oferecendo uma visão inteiramente instrumental da pessoa”27.(tradução nossa). Deixa-se o psicocorpo, falível, sujeito às doenças, às emoções, para a criação do cibercorpo perfeito, indestrutível e inanimado. Isto porque 25 .  SILVA, André Luiz; GOELLNER, Silvana Vilodre. Universo biotecnológico e fronteiras partidas: Esporte, gênero e novo eugenismo. Revista Gênero, Niterói, v. 7, n. 2, 1. sem. 2007. Disponível em: http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/08112009-024307silvagoellner.pdf. Acesso em: 03 Abr. 2013.p.85. 26 .  HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.47. 27 .  RODOTÀ, Stefano. La vida y las reglas: entre el derecho y el no derecho. Trad. Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 2010.p.174. 145

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o psicocorpo não tem resistência nem é confiável. Seu código genético produz um corpo que muitas vezes funciona mal e se cansa rapidamente, possibilitando apenas parâmetros tênues de sobrevivência e limitando sua longevidade. A sua química carbônica gera emoções superadas. O psicocorpo é esquizofrênico. Já o cibercorpo não é um sujeito, mas um objeto, não um objeto de cobiça, mas um objeto para a engenharia. O cibercorpo é ligado a eletrodos e antenas, ampliando suas capacidades e projetando sua presença para locais remotos e para dentro de espaços virtuais. Torna-se um sistema estendido, não para meramente sustentar um eu, mas para intensificar operações e iniciar sistemas inteligentes alternados28. Sobretudo, pode-se entender que o melhoramento humano, diante do exposto, instrumentaliza a pessoa ao ponto de perder a sua personalidade, já que seus elementos constitutivos, estados e capacidade de discernimento deixarão de existir, o que implica também em perda da autonomia, pois conforme define Francisco Amaral: “A personalidade humana é um todo complexo, unitário, integrado e dinâmico, constituído de bens e elementos constitutivos (a vida, o corpo e o espírito), de funções (função circulatória, inteligência), de estados (saúde, prazer, tranquilidade) e por força, potencialidade e capacidade (instintos, sentimentos, vontade, capacidade criadora e de trabalho, poder de iniciativa etc.)”29. De outro modo, perquire-se que mesmo diante das exponenciais possibilidades advindas com o melhoramento humano, a personalidade humana poderia subsistir a partir da sua própria (des)construção pelo indivíduo, no tornar-se o que quiser pelo exercício de sua liberdade, proposta de discussão do capítulo seguinte.

28 .  SILVA, André Luiz; GOELLNER, Silvana Vilodre. ob. cit, p.84. 29 .  AMARAL, Francisco.  Direito civil:  introdução.  7. ed., rev., modificada e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p.300. 146

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4  CONSTRUÇÃO OU DESCONSTRUÇÃO DA PERSONALIDADE? O BIODIREITO E A CLÁUSULA GERAL DE TUTELA DA PESSOA HUMANA

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s direitos de personalidade, conforme vistos, são intransmissíveis por possuírem um único titular, não permitindo que haja qualquer mudança de sujeito. São oponíveis erga omnes que fazem com que haja “um dever de tolerar e respeitar as decisões alheias acerca da própria personalidade e de contribuir para realização dos aspectos existenciais do seu projeto de vida”.30 Outra característica é a de serem imprescritíveis, ou seja, não há extinção pelo não exercício da pretensão, além de extrapatrimoniais por não possuírem avaliação econômica, além de serem essenciais para a efetivação da dignidade humana. Motivo de várias críticas pelos doutrinadores modernos é o artigo 11 do Código Civil que prevê a irrenunciabilidade desses direitos de personalidade. Segundo Cupis, esses direitos são essenciais e “não podem ser eliminados por vontade de seu titular”31. Nesse sentido, os direitos de personalidade são irrenunciáveis por serem garantidos como o mínimo necessário para efetivação da personalidade. Todavia, por sermos pessoas livres, é necessário que cada um escolha exercer ou não os direitos de personalidade garantidos pelo Código Civil e pela Constituição da República. Tais direitos podem ser renunciáveis por serem atos de autonomia e não de imposição, por serem formas de construção de projetos de vida e não de restrição da liberdade. A Constituição Federal garante a todos, como direito fundamental, a liberdade, bem como a autonomia privada que podem ser interpretadas como livre exercício de escolhas, de formas de se viver, inclusive para determinar o não exercício dos seus direitos de personalidade para assim efetivar o artigo 1º, inciso III, da Constituição da República que dispõe sobre a dignidade da pessoa humana. Tal fato é questionado por Teixeira ao considerar os direitos de personalidade como irrenunciáveis 30 .  TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.209. 31 .  CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. São Paulo: Quorum, 2008, p.58. 147

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quando pontua que: “a priori, que o titular dos direitos de personalidade tem o dever de exercê-los, mesmo que isso contrarie o seu projeto de vida individual, a ser exercido num estado plural; estabelecer que tais direitos são indisponíveis, significa que sua essência transmuda-se de direito para a de dever. Será que é este o tipo de tutela que a Constituição pretende dar aos direitos de personalidade?”32 Dessa forma, questiona-se que o artigo 11 e o 13 do Código Civil de 2002 vedam o exercício da autonomia privada contrariando os princípios constitucionais e direitos fundamentais, até mesmo porque hoje o ser humano deve ser livre para buscar sua felicidade, exercendo direitos sobre si mesmo com atos de disposição do próprio corpo. Tomam-se como exemplos, fatos ocorridos na contemporaneidade como a possibilidade de mudança de sexo, com as cirurgias de transgenitalização, a prática da eutanásia e do suicídio assistido, tatuagens, uso de piercings e alargadores, cirurgias estéticas, amputação de membros (wannabes), os úteros de substituição e a participação em reality shows com a exibição irrestrita da intimidade da pessoa, caracterizando-se não como renúncia aos direitos de personalidade, mas na construção da pessoalidade e da identidade. O biodireito seja como um subsistema ou como microssistema jurídico vem para regular essas novas tecnologias dentro da medicina, da biotecnologia, da biologia que trata sobre aspectos da pessoa humana, buscando doutrinas, legislações e jurisprudências. Segundo os ensinamentos de Bruno Torquato de Oliveira Naves e Maria de Fátima Freire de Sá33 verificamos alguns princípios relacionados ao biodireito como o da precaução, responsabilidade, autonomia privada e da dignidade da pessoa humana que é o fundamento de todo o ordenamento jurídico. Tais princípios vêm para proteger e evitar danos, além de fazer com que os pesquisadores, manipuladores, geneticistas, hajam com ética e consciência, não extrapolando limites e descumprindo normas, sob pena de responderem penalmente. A noção do princípio da dignidade da pessoa humana é que o mesmo deve garantir iguais liberdades fundamentais para todos os indivíduos. Contudo, a dignidade deve, e só é construída, através da autonomia para 32 .  TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.221.

que a pessoa possa fazer suas próprias escolhas, construir seu plano de vida e sua personalidade, mas desde com responsabilidade. É importante observar, contudo, que o direito de liberdade ao próprio corpo para o seu uso e manipulação, sobretudo na genética, deve ser limitado a casos excepcionais e pontuais, de forma que não interfira nem prejudique os direitos alheios e coletivos. Isto porque com o desenvolvimento da biotecnologia, em especial na área de engenharia genética, com o intuito de projetar pessoas, de definir nascimentos e mortes, bem como na construção do corpo, coloca-se à tona a polêmica de estarmos tratando de uma construção ou desconstrução da personalidade. O corpo necessariamente não precisa ser mais o natural e nem intangível. Ele tem que ser construído de acordo com os desejos pessoais, com o consentimento livre e esclarecido e com o exercício da autonomia para a busca da felicidade. Assim coaduna-se ao posicionamento de Teixeira: “cada pessoa, dentro do seu projeto de vida, constrói-se de formas diversas, priorizando alguns valores e dispensando outros, o que pode implicar em renúncia de bens tidos como essenciais por alguns, mas dispensáveis por outros. Consequentemente, a essencialidade universal de direitos de personalidade, como imposição às pessoas, é imprópria no âmbito do Estado Democrático de Direito, construído sobre os pilares do pluralismo, da dignidade e de iguais liberdades para todos. Afirmar a possibilidade de a pessoa escolher o destino a ser dado aos seus direitos personalíssimos é confirmar a tutela positiva dos direitos de personalidade que, para o presente estudo, ultrapassa a relevância da tutela negativa, de mera abstenção. A tutela positiva, aqui, assume duas feições: de o ordenamento jurídico proteger a autonomia privada, mesmo que seja no sentido da disposição em situações jurídicas existenciais; e de terceiros e o Estado conviverem e tolerarem as escolhas feitas por uma pessoa, mesmo que sejam incomuns, irreverentes, diferenciadas, pois elas acabam por satisfazerem os valores pessoais”.34 Com as constantes transformações da sociedade, a bioética e o biodireito, através da ética e de normas jurídicas, surgem para proteger e garantir o respeito a direitos fundamentais às diversas situações que são criadas diariamente sobre a vida humana. É possível a construção da pessoalidade e da personalidade através

33 .  SÁ, Maria de Fatima Freire de.; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual de Biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

34 .  TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Saúde, corpo e autonomia privada. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.226-227.

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das técnicas de melhoramento humano desde que haja autonomia e não viole a liberdade de outrem. A cláusula geral de tutela dos direitos da pessoa se dá através de legítimas decisões autônomas individuais como forma de construção da dignidade da pessoa humana. Para que se tenha uma construção própria de vida boa, todas as decisões no âmbito do biodireito devem ser livres, desde que com responsabilidade e discernimento. Por vivermos numa sociedade complexa e plural, o direito é e deve ser dinâmico, sendo construído a partir do exercício de iguais liberdades fundamentais, de formas de se viver como meio de autorrealização e pelo exercício da autonomia. Na contemporaneidade, se fala de um novo conceito de personalidade, ou seja, aquela que é construída por cada um de acordo com o seu projeto de vida e com as situações jurídicas existenciais vividas, pois não se trata de um rol taxativo e sim de um ato de escolha para viver melhor.

para discussão dos caminhos que devem ser seguidos na construção da personalidade diante dos avanços biotecnológicos a partir de um debate dialógico dos limites que devem ser impostos ao melhoramento humano para o exercício de iguais liberdades fundamentais e a coexistência de individuais projetos de vida inseridos no Estado Democrático de Direito.

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

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evolução dos direitos de personalidade e sua tendência não são meros direitos taxativos, mas exemplificativos na medida em que o homem se relaciona consigo e com o mundo diante dos desdobramentos jurídicos advindos das novas tecnologias como direitos reprodutivos, dados genéticos, mudança de sexo, entre outros. Porém esses avanços podem degradar a personalidade humana e, sobretudo, a dignidade em um processo de coisificação da pessoa a partir da instrumentalização do corpo. O melhoramento humano traz promessas da proximidade da tão desejada perfeição, ao preço de tornarmos pós-humanos ou ‘cyborgs’, o homem máquina, desvinculados de emoções e consciência. Ainda assim, cabe a cada indivíduo escolher o que lhe convém como projeto de vida e ao Estado, promover o exercício de sua autonomia. Todavia, esta liberdade encontrará restrição se tolher a liberdade de outrem, ou seja, somente será legítima a partir do exercício de iguais liberdades fundamentais. Desta forma, o melhoramento humano, pode (re)construir a pessoalidade humana, desde que seja possível o exercício de autonomia, expresso na cláusula geral de tutela da pessoa humana, calcada na dignidade. Portanto entende-se que o Biodireito, fulcrado nos princípios da autonomia privada, da precaução e da responsabilidade, abre-nos a porta

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8 EUTANÁSIA NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO: A URGÊNCIA DE UMA NOVA ANÁLISE SOB O PRISMA DOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA AUTONOMIA PRIVADA César Fiuza Júlia Cristina Faleiro Urbano

1  INTRODUÇÃO

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as últimas décadas, a medicina evoluiu de forma extraordinária, proporcionando tratamentos cada vez mais eficazes contra diversas enfermidades e, consequentemente, propiciando o prolongamento da vida de inúmeros doentes. Entretanto, tais tratamentos podem ser considerados humilhantes pelo paciente a eles submetidos, ferindo o seu ser no que há de mais profundo – sua dignidade. Por esse motivo, existem inúmeros casos em que o enfermo julga ser a morte a melhor saída, em vez da vida martirizada pela doença. Diante desse contexto, a eutanásia é tema que se impõe ao debate. Alguns países já autorizam a prática, com o intuito de aliviar a agonia daqueles que se encontrem doentes, sem chances de cura. Tal ainda não ocorreu no Brasil. Temos, assim, que compreender a eutanásia, face ao direito à vida, constitucionalmente garantido, contrapondo a este os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada. Esta implica o direito de o individuo tomar as rédeas de sua vida como melhor lhe convier, podendo, pois, optar pela eutanásia, quando esta lhe parecer a alternativa mais digna. Para tanto, preliminarmente, é fundamental entendermos o que seja eutanásia, bem como os demais termos necessários ao seu estudo. Em seguida, procederemos a uma análise das influências sociológi153

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cas, culturais, e, principalmente, religiosas, que corroboram com a proibição da aludida prática no Brasil. Seria legítima esta influência num país, cujo Estado se declara laico? Posteriormente, devemos examinar o tratamento que já é dispensado ao tema pela legislação pátria. Por fim, faremos um estudo de da eutanásia no Direito comparado. Como o assunto é tratado em outros países?

2  EUTANÁSIA

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timologicamente analisada, a palavra “eutanásia” deriva da expressão grega euthanos, na qual “eu” pode significar bem ou bom, e thanos, morte. Assim, em sua origem, eutanásia traduz-se por “boa morte”, ou seja, uma morte tranquila e suave, sem dor. Essa definição do termo, contudo, não é suficiente para sua exata compreensão; é necessário estudar a concepção atual e sua evolução histórica. Conforme se pode deduzir da origem etimológica, a eutanásia consistiria em facilitar o processo de morte do indivíduo, sem, contudo, nele interferir. No entanto, o sentido do termo foi-se modificando ao longo dos anos, sendo, atualmente, empregado para definir a prática, motivada por compaixão, pela qual se abrevia a vida de um paciente incurável, de maneira controlada e assistida. Para se configurar a eutanásia, é necessário que a intenção do sujeito ativo, isto é, daquele que finda a vida do doente, seja, exclusivamente, acabar com a aflição e o sofrimento do enfermo, ministrando-lhe a “boa morte”. Desse modo, presume-se que a morte seja de fato boa, ou seja, quando nada rápida e, se possível, sem sofrimento. Não há que ser necessariamente suave ou doce, como querem alguns. Muitas vezes, isso é impossível. De todo modo, o objetivo da eutanásia será sempre o de abreviar sofrimento. Além disso, o procedimento deverá ter sido solicitado pelo próprio paciente ou por familiares que demonstrem que esta teria sido a vontade dele, caso estivesse consciente. Nesse sentido, Claus Roxin1 define eutanásia como a ajuda prestada a uma pessoa gravemente doente, a seu pedido ou em consideração a sua vontade presumida, no intuito de lhe possibilitar uma morte com1 .  ROXIN. A apreciação jurídico-penal da eutanásia, p. 18. 154

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patível com a sua concepção de dignidade humana. Segundo esse autor, pode-se distinguir eutanásia em sentido estrito daquela em sentido amplo. Tem-se eutanásia em sentido estrito, quando o auxílio é prestado após iniciado o processo de morte, isto é, nos casos, em que o encerramento da vida, com ou sem ajuda, é iminente. Em sentido amplo, podese falar em eutanásia, quando se contribui para a morte de outra pessoa que, apesar de dispor de mecanismos para viver mais tempo, pretenda, real ou presumidamente, pôr fim a sua vida, já tida como insuportável, devido ao sofrimento causado pela doença. A eutanásia pode-se classificar em duas categorias, que dizem respeito ao tipo de ação utilizada para sua prática e à vontade do paciente. Considerando-se a forma utilizada para sua prática, a eutanásia poderá ser ativa, quando a morte seja provocada, deliberadamente e com desígnios misericordiosos, por meio de ações; passiva ou por omissão, quando a morte do paciente ocorra dentro de um quadro terminal, seja pela inação médica, seja pela interrupção de algum tratamento para prolongar a vida. Será ainda por duplo efeito, quando a morte antecipada seja consequência indireta de ações médicas executadas, visando ao alívio do sofrimento de um paciente terminal. Quanto à vontade do doente, a eutanásia poderá ser voluntária, quando solicitada pelo próprio paciente; ou involuntária, quando presumível, nos casos em que o enfermo se encontre inconsciente. A eutanásia praticada contra a vontade do paciente é homicídio. De acordo com José Roque Junges (2006, p. 302),2 o termo eutanásia teria sido utilizado pela primeira vez por Suetônio, no século II d.C., em A vida dos doze Césares, obra em que é narrada a morte tenra do Imperador Augusto, propagando-se a ideia de que se possa ser autor da própria morte, do mesmo modo que se é autor da própria vida. Embora o registro mais antigo da nomenclatura seja datado do século II d.C., a prática da eutanásia em si é tão antiga quanto a civilização, havendo, inclusive, indícios na Antiguidade de procedimentos similares. Em determinadas tribos primitivas e grupos selvagens, por exemplo, era comum a prática que impunha ao filho a obrigação sagrada de ministrar a boa morte ao pai velho e enfermo. Na República, Platão posiciona-se contrariamente à criação de crianças que não fossem biologicamente perfeitas, bem como ao tratamento de enfermos graves, haja vista que tal prolongamento tornaria a vida 2 .  JUNGES. Metodologia da análise ética de casos clínicos, p. 38. 155

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mais penosa para o sujeito. Para ele, “quem não é capaz de viver desempenhando as funções que lhe são próprias não deve receber cuidados, por ser uma pessoa inútil tanto para si mesma como para a sociedade”.3 Nesse mesmo sentido, na obra Peri Technés, que compõe a compilação de escritos hipocráticos, em relação à prática médica, diz-se que “a medicina consiste em afastar por completo os padecimentos dos que estão enfermos e mitigar as dores de sua enfermidade, e não tratar os já dominados por enfermidades, conscientes de que em tais casos a medicina não tem poder”.4 Essa compreensão da medicina é característica da cultura grega, centrada no belo e no são. O método da eutanásia também não era estranho à Roma antiga, pois nela se permitia que um homem desse a morte a outro voluntariamente, como ocorria no caso do direito de vida e de morte exercido pelos ascendentes sobre os descendentes submetidos ao pátrio poder. Sobre essa hipótese, Gisele Mendes de Carvalho assevera que: “[...] não mais do que uma aplicação desse direito de vida e morte era o que correspondia ao pai – junto ao de dar a morte ao nascido disforme, o qual era obrigatório de acordo com os antigos costumes – de não conservar e nem alimentar os filhos que lhe nascessem, podendo lhes dar a morte ou expô-los a ela”.5 O referido direito encontrava-se, segundo Cícero, expressamente instituído na Lei das XII Tábuas.6 Já na Idade Média, Thomas More7 também se mostrou favorável à 3 .  PLATÃO. A república, p. 374. 4 .  PESSINI; BARCHIFONTAINE. Problemas atuais de bioética, p. 374. 5 .  CARVALHO. Alguns aspectos da disciplina jurídica da eutanásia no direito brasileiro, p. 484. 6 .  De acordo com Cícero (De legibus, 3, 8, 19), na Tábua IV instituía que seria permitido ao pai matar imediatamente o filho notoriamente disforme (cito necatus tamquam ex XII Tabulis insignis ad deformitatem puer). 7 .  MORUS. Utopia: de legibus utopiensium. (Aegrotantes, ut dixi, magno cum adfectu curant, nihilque prorsus omittunt quo sanitati eos, vel medicinae vel victus observatione, restituant. quin insanabili morbo laborantes assidendo, colloquendo, adhibendo demum quae possunt levamenta solantur. ceterum si non immedicabilis modo morbus sit verum etiam perpetuo vexet atque discrutiet; tum sacerdotes ac migistratus hortantur hominem, quandoquidem omnibus vitae muniis impar aliis molestus ac sibi gravis morti iam suae supervivat, ne secum statuat pestem diutius ac luem alere, neve cum tormentum ei vita sit mori dubitet, quin bona spe fretus acerba illa vita velut carcere atque aculeo vel ipse semet eximat; vel ab aliis eripi se sua voluntate patiatur; hoc illum cum non commoda, sed supplicium abrupturus morte sit prudenter facturum, quoniam vero sacerdotum in ea re consiliis, id est interpretum dei sit obsecuturus, etiam pie sancteque facturum. 156

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eutanásia, quando, em sua mais célebre obra, A Utopia, defendeu que, em uma comunidade ideal, seus membros, no final da vida, deveriam receber o auxílio adequado, mesmo que em casos extremos fosse recomendável pôr fim a sua existência. Com o advento da Renascença, a questão da eutanásia ganhou destaque na obra de Francis Bacon, o qual traçou os contornos do sentido atualmente dado à prática. Em Novum organum, escrito originalmente em 1620, o filósofo inglês defende que o compromisso do médico não se restringe ao restabelecimento da saúde do paciente, mas abrange, também, a mitigação do sofrimento proveniente da enfermidade que o acomete. E isso deve ser feito não somente quando tal mitigação da agonia auxilie e conduza à recuperação, mas também quando, dissipando-se toda a perspectiva de recuperação, sirva apenas para obter uma morte tranquila e fácil. “Além disso, julgo ser manifestamente do ofício de um médico, não apenas restaurar a saúde, mas mitigar as dores e o sofrimento das doenças, e não somente quando essa mitigação das dores, ou dos sintomas perigosos, possa levar, conduzir à convalescência, mas também, quando totalmente ausente toda esperança de saúde, sirva para conduzir a uma saída justa e fácil da vida. Pois não é pequena a haec quibus persuaserint; aut inedia sponte vitam finiunt, aut sopiti sine mortis sensu solvuntur. invitum vero neminem tollunt nec officii erga eum quicquam imminuunt persuasos hoc pacto defungi honorificum. alioqui qui mortem sibi consciverit causa non probata sacerdotibus et senatui; hunc neque terra neque igne dignantur; sed in paludem aliquam turpiter insepultus abiicitur – Em tradução livre: Os doentes, como disse, recebem cuidados afetuosos; nada é poupado que possa contribuir para sua cura, quer em remédios, quer em alimentos. Os afetados de um mal incurável recebem todos os consolos, todas as atenções, todos os alívios morais e físicos, capazes de lhes tornar a vida mais suportável. Mas quando a esse mal incurável se juntam sofrimentos atrozes, os sacerdotes e magistrados se apresentam ao paciente e o exortam a morrer, mostrando-lhe que está despojado dos bens e das funções da vida; que não faz senão sobreviver à própria morte. Persuadem-no, então, a não alimentar mais o mal que o devora, e a morrer com resolução, uma vez que a existência não é para ele senão uma horrenda tortura. Deve quebrar as cadeias que o amarram, e desprender-se, por suas próprias mãos, da masmorra da vida; ou pelo menos consentir que outros dela o libertem. A morte não é uma repulsa aos benesses da vida, mas o termo de um suplício. Nestes assuntos, obedecer os conselhos dos sacerdotes, intérpretes da vontade de deus, é agir de forma religiosa e santa. Os que se deixam persuadir põem fim a seus dias pela abstinência voluntária ou são adormecidos por meio de um narcótico mortal, e morrem sem se aperceber. Os que não querem a morte, nem por isso passam a receber menos atenções e cuidados; quando cessam de viver a opinião pública honra sua memória. Quem se matar sem motivo reconhecido pelos sacerdotes ou pelo senado, será indigno da terra e do fogo; será privado de sepultura e atirado torpemente nos pântanos). 157

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porção de felicidade, a eutanásia, que César Augusto desejou para si”.8 No século XIX, por fim, a expressão “eutanásia” passou a significar a procura da doce morte, acepção usada hodiernamente. Um dos primeiros casos documentados de consumação da eutanásia, no século XX, no Ocidente, é relatado em Luis Jiménez de Asúa.9 Juan Zinowsky, escritor polonês residente em Paris, padecia de câncer e tuberculose e, sofrendo dores e aflições as mais desumanas, rogou a sua namorada, Stanislawa Uminska, que colocasse fim a sua agonia. Em 15 de junho de 1924, diante dos insistentes pedidos de Juan, Stanislawa atirou no escritor com a arma que ele próprio não tivera coragem de usar para abreviar seu sofrimento. O Tribunal Francês, considerou caridosa a conduta da jovem, absolvendo-a. A partir da última metade do século XX, o desenvolvimento cada vez mais acelerado de inovações tecnológicas que propiciam a cura de doentes graves e o prolongamento da vida daqueles que já se encontram à beira da morte; o paternalismo médico extremado, frente ao qual as decisões do paciente são irrelevantes para a condução do tratamento; e a negação exacerbada da finitude da vida resultam no crescimento do clamor pelo método eutanásico. O país precursor dessa discussão foi a Holanda, na década de 1970, seguido por considerável parte do continente europeu e, ulteriormente, pela América do Norte, o que acarretou a despenalização da prática em certos locais. A atitude humanizada perante a morte acompanha as mudanças culturais, ideológicas e institucionais no que tange ao início e ao fim da vida. Além disso, há uma vertente histórica partidária do emprego da eutanásia em situações cuja finalidade seja dotar de dignidade o ato de morrer. Por outros termos, em certas circunstâncias e sob certas condições, a morte pode ser preferível à vida. Para uma melhor abordagem do tema proposto, é necessária uma breve apresentação de outros conceitos relacionados ao tempo certo de uma morte digna. 8 .  Tradução livre do seguinte trecho de Bacon: “Itam ut paulo ulterius isistam: etiam plane censeo ad officium medici pertinere, non tantum ut sanitatem restituat, verum etiam ut dolores et cruciatus morborum mitiget: neque id ipsum solummodo, cum illa mitigatio doloris, veluti symptomatis periculosi, ad convalescentiam faciat et conducat; immo verum cum abiecta prorsus omni sanitatis spe, excessum tantum praebeat e vita magis lenem et placidum. Siquidem non parva est felicitatis pars (quam sibi tantopere precari solebat Augustus Caesar) illa euthanasia. BACON. De augmentis scientiarum, p. 222-223. 9 .  ASÚA. Liberdade de amar e direito de morrer. p. 23. 158

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O primeiro deles é o suicídio assistido. O suicídio assistido em muito se assemelha à eutanásia, sendo considerado por alguns como um tipo de eutanásia voluntária. Contudo, para a maioria dos autores, tais práticas não se confundem. Maria de Fátima Freire de Sá leciona, em Direito de morrer - eutanásia, suicídio assistido, que: “[...] embora o suicídio assistido encontre-se, conceitualmente, muito próximo à eutanásia, os respectivos institutos não se equivaleriam, haja vista que enquanto na eutanásia o sujeito é submetido ao procedimento, no suicídio assistido ele é apenas auxiliado. A função do auxiliador se restringe ao fornecimento de meios para que o paciente alcance seu intento de por fim a própria vida”.10 Assim, pode-se concluir que o suicídio assistido ocorre quando uma pessoa, que não consiga concretizar, por si só, sua intenção de morrer, seja ajudada por outro indivíduo, por meio de ações, como prescrição de doses altas de medicamentos e indicação de uso, ou até mesmo por atitudes mais passivas, como a persuasão e o encorajamento. Seguramente, essa era uma das opções em Utopia. Outro conceito importante é o de distanásia. A distanásia representa o oposto da eutanásia, uma vez que consiste no prolongamento da vida do enfermo, por meio das mais variadas práticas médicas, ainda que em condições tidas como deploráveis. Na distanásia, a morte é iminente, mas a vida é prolongada por meio de aparelhagem. Por fim, a ortotanásia, que também é palavra oriunda do grego, e significa morte certa, no tempo certo, isto é, aquela que ocorre naturalmente. Logo, não é uma questão de antecipar a morte, mas de esperá-la, com a utilização dos meios regulares para os cuidados que se façam necessários. Ela seria o meio termo entre a eutanásia e a distanásia. Na ortotanásia, a vida do paciente não é prolongada com a ajuda de aparelhos.

3  EUTANÁSIA E RELIGIÃO

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egundo Ronald Dworkin, as questões referentes à vida e à morte, atualmente enfrentadas, são essencialmente religiosas, uma vez que “estamos nos limites de uma nova era religiosa, ainda que muito diversa

10 .  SÁ. Direito de morrer - eutanásia, suicídio assistido, p. 40. 159

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daquela que a história começou a deixar para trás no século XVIII”.11 O posicionamento da Igreja Católica quanto ao tema em debate está descrito na Declaração sobre a Eutanásia, proclamada em 1980, pela Congregação para a Doutrina da Fé.12 A declaração entende a eutanásia como uma ação ou omissão que, por sua natureza ou em suas intenções, provoca a morte de um sujeito, com o objetivo de eliminar toda a sua dor. O documento condena veementemente a eutanásia ao considerá-la “uma violação à Lei Divina”, “uma ofensa à dignidade humana”, “um crime contra a vida” e “um atentado contra a humanidade”. Isso porque a vida humana é nela considerada “o fundamento de todos os bens, a fonte e a condição necessária de toda a atividade humana e de toda a convivência social” e, sobretudo, “um dom do amor de Deus, que os crentes têm a responsabilidade de conservar e fazer frutificar”. Por outro lado, a Igreja Católica também é contrária ao prolongamento da vida a qualquer custo, conforme se apreende da Carta Enciclica Evangelium Vitae,13 escrita durante o papado de João Paulo II, no ano de 1995. Essa Encíclica rejeita expressamente a prática da distanásia, também chamada de obstinação terapêutica, ou futilidade médica, já que sua execução significaria renunciar ao chamado do Senhor. Assim, para o Catolicismo, as pessoas devem ser capazes de aceitar o momento da morte de acordo com os desígnios divinos, não podendo apressá-lo ou retardá-lo a qualquer custo. Para o Judaísmo, o homem não possui disponibilidade sobre a própria vida e o próprio corpo, visto que estes pertencem a Deus. A vida, na doutrina judaica, é considerada um dom de valor infinito e indivisível, inexistindo diferença moral entre sua abreviatura em longos anos ou em poucos minutos. Segundo Neuhaus,14 os judeus pregam a preservação da vida ainda que a um alto custo, pois, para eles, cada instante da vida humana é intrinsecamente sagrado. Preservá-la, pois, é algo que está muito além de levar uma vida boa. 11 .  DWORKIN. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais, p. VIII. 12 .  Declaração sobre a Eutanásia. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2013. 13 .  Carta Enciclica Evangelium Vitae. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2013. 14 .  NEUHAUS. Guaranteeing the good life: medicine and the return of eugenics, p. 35. 160

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A Halakah - tradição legal hebraica - é avessa à eutanásia. O médico é tido como um instrumento de Deus utilizado para resguardar a vida humana, sendo-lhe defeso apoderar-se do direito divino de escolha entre a vida e a morte de seus pacientes. Para os judeus, a definição de morte não deriva exclusivamente de fatos médicos e científicos, que apenas descrevem o aspecto fisiológico que observam, sendo, também, uma questão ética e legal, do mesmo modo que a fixação do tempo do óbito é uma questão moral e teológica. Contudo, a cultura hebraica faz uma distinção entre o prolongamento da vida do paciente, que é obrigatório, e o prolongamento da agonia, que não o é. Desse modo, embora o direito de morrer não seja reconhecido, existe sensibilidade ante o sofrimento do enfermo. Assim, se o médico estiver convencido de que o paciente em constante sofrimento possa falecer em poucos dias, ficará autorizado a suspender os métodos reanimatórios e o tratamento não analgésico. A prática da eutanásia é unanimemente condenada pelas quatro grandes escolas islâmicas, fundadas respectivamente por Abou Hassifa, Malek, Chaffei e Ahmed Ibn Handibal. Tal condenação é reafirmada na Declaração Islâmica de Direitos Humanos, de 1981.15 Segundo o documento, a vida humana é sagrada e inviolável, devendo ser resguardada mediante a utilização de todos os recursos possíveis. Para o Islamismo, a sacralização da vida humana conjugada à “limitação drástica da autonomia da ação humana” proíbem a eutanásia, bem como o suicídio. O médico é visto como um soldado da vida e, por isso, não pode utilizar-se de medidas positivas para abreviar a vida do paciente. No Budismo, a personalidade deriva da interação de cinco atividades: a corporal, a sensitiva, a perceptiva, a volitiva e a consciente. Entre elas, a volitiva ocupa papel preponderante, pois representa a capacidade de escolha, de orientação da consciência. Dessa forma, a morte de alguém se dá quando não se possa mais desempenhar uma vontade consciente, quando o encéfalo perca definitivamente a capacidade de viver. Para os budistas, a forma de morrer, o momento preciso da morte, é de fundamental importância. Em suas meditações, Buda declarou que a variável decisiva que conduz ao renascimento é a essência da consciência no instante da morte. 15 .  Disponível em . Acesso em 15 de jan. de 2013. 161

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Por isso, os budistas conferem grande importância ao fato de se ter pensamentos adequados no momento da morte. Assim, o Budismo reconheceu, há tempos, o direito de as pessoas decidirem quando devam passar desta existência para a próxima. O importante não é se o corpo viva ou morra, mas se a mente permaneça em placidez e harmonia consigo, isto é, valoriza-se mais a paz da mente e a honra da vida do que a longevidade. Dessa forma, o Budismo não se opõe intransigentemente à eutanásia em qualquer de suas formas, permitindo sua aplicação em determinadas situações, desde que o sujeito a ela submetido esteja em estado de dignidade e paz. A proibição legal da Eutanásia no território brasileiro possui indiscutível influência do Cristianismo, pois as normas legislativas de qualquer país derivam do processo cultural e histórico por ele vivido e, no processo brasileiro, assim como no da maioria dos Estados ocidentais, o Cristianismo ocupa papel fundamental. Embora o Estado brasileiro se declare laico, desde a edição do Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890, o caminho para que se alcance a laicização ideal, quando todos possam verdadeiramente tomar decisões pessoais sem se preocupar em respeitar a moral cristã, ainda será longo. Prova disso é que a legalização da eutanásia ocorre, sobretudo, em países de sociedades há muito tempo secularizadas. Ainda que os argumentos trazidos pelas religiões possuam incomensurável relevância no debate da eutanásia, em um Estado efetivamente laico, a influência deles deve restringir-se aos que compartilhem de seus preceitos, não podendo ser imposta pelo Estado àqueles que comunguem de outras crenças ou que não possuam crença alguma, já que, em uma sociedade comprometida com a liberdade e com o pluralismo, as questões de ordem espiritual devem ser deixadas a cargo da consciência individual.

4  O  PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

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or meio de uma abordagem contemporânea do Direito, não arraigada ao positivismo jurídico, é possível afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana é ponto central no debate das questões relativas à eutanásia. 162

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Os princípios jurídicos referem-se a uma compilação de padrões de conduta presentes de forma explícita ou implícita no ordenamento jurídico e, como as regras, possuem o status de norma. Disso, hoje, praticamente ninguém discorda. A dignidade da pessoa humana consiste na qualidade intrínseca ao indivíduo que o torna merecedor de respeito, não somente pelos outros indivíduos, mas também pelo Estado. Dworkin define-a como o direito de viver em condições, quaisquer que sejam, nas quais o amor-próprio seja viável ou admissível.16 Para ele, as pessoas possuem o direito de não serem vítimas da indignidade, de não serem tratadas de um modo que, em sua cultura ou comunidade, seja entendido como demonstração de desrespeito. O princípio da dignidade humana, consagrado no art. 1º, inciso III, da Constituição, deve, portanto, ser encarado como pedra angular de nosso sistema jurídico. Os estudiosos contrários à eutanásia afirmam que a disposição ou relativização do direito à vida constitui uma violação não somente ao direito do titular, mas de todas as outras pessoas, pois todos estariam sendo atingidos em sua dignidade. E esta não permite a menor margem de negociação em torno dos bens e valores fundamentais da pessoa humana. Entretanto, esse princípio não se limita a designar o ser da pessoa, mas a humanidade dela. A partir desse ponto, entende-se que é desse princípio que emana a qualidade de ser humano da qual decorre a subjetividade – compreendida como a racionalidade de cada um e a capacidade de fazer escolhas. É na dignidade que reside o valor próprio, de pessoa independente, dotada de capacidade para configurar sua vida sob sua própria responsabilidade. A dignidade da pessoa humana, logo, é o cerne basilar dos direitos fundamentais, sendo, nas palavras de Jorge Miranda a “fonte jurídico-positiva” desses direitos e a “fonte ética que lhes confere unidade de sentido, de valor e de concordância prática”.17 A dignidade da pessoa humana é o fundamento basilar de todos os demais valores humanos. Assim, ela assegura o direito à vida, e não o dever de viver a qualquer preço. O aparente conflito entre a dignidade da pessoa humana e o direito 16 .  DWORKIN. Domínio da vida, cit., p. 58. 17 .  MIRANDA. Manual de direito constitucional, p. 166. 163

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à vida perde o sentido quando se deixa de restringir o direito à vida ao mero direito de existir e se passa a considerá-lo como o direito de se ter uma existência digna. A indissociabilidade entre o direito à vida e a dignidade é reiterado por outros autores, como Alexandre de Moraes,18 o qual afirma que a Constituição proclama o direito à vida, competindo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção. A primeira se relaciona ao direito de continuar vivo e, a segunda, ao de se ter uma vida digna quanto à subsistência. O princípio da dignidade, portanto, permite a percepção de que a eutanásia não seja uma relativização do direito à vida, mas uma reafirmação da humanidade de cada um. Sendo assim, embora a vida seja considerada um direito inviolável, é preciso considerá-la em sua dupla acepção e questionar se sua manutenção encontre-se em consonância com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Deve-se lembrar, também, que a desconsideração das escolhas dos indivíduos fere os princípios da liberdade e da autonomia, correlatos ao princípio da dignidade.

5  DIREITO À AUTODETERMINAÇÃO

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efender a eutanásia não é defender a morte, mas respeitar a liberdade do indivíduo de realizar suas próprias escolhas. Autodeterminação significa determinar-se por si mesmo, ou seja, é a capacidade que o indivíduo tem de tomar decisões relativas a sua própria existência, suas relações sociais, sua integridade e outros aspectos, de acordo com valores, expectativas, necessidades, prioridades e crenças próprias. Tom Beauchamps e James Childress aplicaram à bioética o sistema de princípios morais que devem ser empregados nos problemas enfrentados pelos profissionais da saúde. A pesquisa desses estudiosos tem intensa utilização e aceitação na bioética, pois se afasta do velho enfoque dos códigos e juramentos.19 A aludida obra pondera que o paradigma básico na saúde, na política e em outros contextos é o consentimento informado e expresso.

O consentimento ocorre sob várias condições e formas. Ele pode ser maquinal ou relutante e, muitas vezes, ocorrer sob intensas pressões que podem invalidá-lo. Quanto às formas, além do modo expresso, há a modalidade tácita, que se dá passivamente, por omissão. Há, ainda, o consentimento presumido, que se assemelha muito ao consentimento subentendido, e ocorre nos casos em que a vontade do paciente seja presumida com base naquilo que se sabe sobre ele. O consentimento deve se referir às ações e inações próprias do indivíduo. Embora muitas vezes se pressuponha legitimamente que o silêncio de uma pessoa constitua consentimento ou que este esteja implícito em outras declarações ou ações, tais inferências podem não ser suficientemente garantidas. Igualmente, esses autores defendem que as crenças, as escolhas e os consentimentos das pessoas surjam e se modifiquem com o tempo. Quando as escolhas atuais de uma pessoa contradigam suas escolhas anteriores, que podem ter tido o propósito explícito de prevenir futuras mudanças de opinião, surgem problemas morais e interpretativos. Como exemplo, Beauchamp e Childress citam o caso de um homem, de 28 anos, que decidiu não se submeter mais à diálise renal, em razão da restrição de seu estilo de vida e dos encargos para sua família. Ele tinha diabetes, era legalmente cego e não podia andar, devido a uma neuropatia progressiva. Sua esposa e seu médico anuíram em fornecer medicação para aliviar a dor e em não colocá-lo de volta na diálise, mesmo que ele pedisse, sob a influência da dor ou de outras mudanças corporais que ocorressem por estar morrendo. Perto de morrer, no hospital, o paciente acordou queixando-se de dor e pediu que o pusessem novamente na diálise. A esposa e o médico decidiram agir de acordo com o pedido anterior do paciente de que não interviessem e ele morreu quatro horas depois. Na opinião de Beauchamp e Childress, a esposa e o médico deveriam ter posto o paciente na diálise para determinar se ele havia revogado autonomamente sua escolha anterior.20 Beauchamp e Childress defendem, ainda, que o médico deva estar atento à autonomia do paciente em querer revogar decisões anteriores, principalmente quando digam respeito a sua vida. Isso porque, muitas vezes, o doente, além da doença que o esteja vitimando, pode estar passando por um estágio psicológico conturbado, por uma depressão

18 .  MORAES. Direito constitucional, cit., p. 65. 19 .  BEAUCHAMP; CHILDRESS. Princípios de ética biomédica. 164

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20 .  BEAUCHAMP; CHILDRESS. Princípios de ética biomédica, cit., p. 149. 165

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profunda. E é nesse momento que o médico deve ter a capacidade de entender o real significado da autonomia do paciente e investigar o que o tenha levado a mudar seu consentimento, para, assim, ter segurança da real vontade do enfermo. Respeitar a autonomia do paciente implica deixá-lo decidir qual o melhor modo de viver sua vida, o que inclui a melhor forma e momento para abrir mão dela, quando já não seja mais possível vivê-la de modo digno, quando a própria existência se torne um processo insuportável. Contudo, para que o indivíduo exerça a autonomia, é preciso que, no momento de escolha, a vontade seja livre, destituída de qualquer tipo de coação, pois aquele que se encontre em situação de grave sofrimento, fato que deverá ser atestado por um médico competente, deve compreender todas as consequências da decisão tomada. Nos casos em que o paciente encontre-se inconsciente, a situação torna-se mais complexa, nesses episódios, Dworkin assevera que a decisão deva ficar a cargo de parentes ou pessoas próximas aos pacientes, por conhecerem seus interesses.21 A Constituição da República, nos termos do art. 5º, garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à igualdade. Entretanto, os referidos direitos não são absolutos e, em caso de conflitos entre eles, a autonomia do paciente deve ser avaliada prioritariamente. Nesse sentido, dispõem Batista e Schramm (2007) que em caso de conflito de interesses e de direitos, o direito à autodeterminação possui prioridade léxica sobre os demais direitos, no contexto de decisões referentes à vida e à morte de seu titular. Isso significa que a pessoa, em princípio, é mais qualificada para avaliar e decidir o rumo de sua vida.22 Desse modo, o art. 5º da Constituição pode ser interpretado como uma defesa de determinados direitos, não como uma imposição de deveres. O direito do paciente de não se submeter ao tratamento ou de interrompê-lo seria, então, uma consequência da garantia constitucional de sua liberdade de consciência e de sua autonomia jurídica. Assim, o indivíduo que goze de capacidade plena deve ter sua vontade respeitada em relação à eutanásia. Vista a eutanásia da perspectiva constitucional, vale estudá-la da perspectiva infraconstitucional. O Código Penal Brasileiro não tipifica a prática da eutanásia, mas, de

acordo com Mônica Vieira,23 sua consumação configura ilícito penal, na forma de homicídio privilegiado – a privilegiadora é o “relevante valor moral” que move a ação. O autor ressalta a necessidade de a vítima estar sofrendo gravemente, de a doença ser incurável e de o sujeito se encontrar em estado terminal para que haja a privilegiadora. Mônica Vieira admite que, simultaneamente, a eutanásia pode ser considerada homicídio qualificado, quando a circunstância qualificadora for objetiva – como o uso de veneno para dar fim à vida do doente. O consentimento do ofendido não possui relevância jurídica na prática da eutanásia.24 O Anteprojeto de Reforma da Parte Especial, de 1984, estabelecia, em seu art. 121, § 3º, que estaria isento de pena “o médico que, com o consentimento da vítima, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão, para eliminar-lhe o sofrimento, antecipa morte iminente e inevitável atestada por outro médico”. Tal proposta, porém, não foi aprovada. Também na proposta de reforma do Código Penal Brasileiro, de 1999, pretendia-se inserir dois parágrafos no art. 121, nos quais se pode notar a intenção de reduzir a pena no caso da prática de eutanásia – desde que o agente a tivesse feito por autêntica compaixão (§3º) e de deixar claro que a recusa da distanásia não constituísse ato ilícito (§4º). Sobre a recusa da prática da distanásia, Mônica Vieira sustenta que se inclui naturalmente no exercício permitido da medicina e não constitui fato punível.25 O Código Civil Brasileiro de 2002 não dispõe específica e expressamente sobre o direito à vida, mas o consagra em dispositivos como o art. 15, segundo o qual “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. Para Mônica Vieira, sem a menor dúvida, o legislador optou pela proteção incondicional da vida humana, inclusive em face das atitudes do próprio titular do direito. A autora reforça sua afirmação fazendo referência ao art. 11 do Código Civil, que estabelece serem irrenunciáveis os direitos da personalidade, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.26 A legislação estrangeira tem-se ocupado cada vez mais do tema da 23 .  VIEIRA. Eutanásia – humanizando a visão jurídica, p. 231. 24 .  VIEIRA. Eutanásia, cit., p. 231.

21 .  DWORKIN. Domínio da vida, cit., p. 301.

25 .  VIEIRA. Eutanásia, cit., p. 227.

22 .  BATISTA; SCHRAMM. A eutanásia e os paradoxos da autonomia.

26 .  VIEIRA. Eutanásia, cit., p. 225.

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eutanásia, abordando-o de diversas formas. Mas na grande maioria dos países ocidentais, o direito de morrer ainda padece de certa irracionalidade, uma vez que, enquanto os seus cidadãos podem optar por morrer lentamente, recusando-se a comer e a receber determinado tratamento ou pedindo para serem desligados de aparelhos, é-lhes proibido optar por uma morte rápida e indolor, que lhes poderia ser facilmente ministrada. Em outras palavras, morrer de fome, sob sofrimentos atrozes, pode; encurtar a vida docemente, não. Talvez a questão tenha que ver, quem sabe, com a paixão de Cristo, inculcada no inconsciente ocidental cristão. O sofrimento dignifica a morte e a própria vida. De todo modo, apesar disso, a Holanda tornou-se, em 10 de Abril de 2004, o primeiro país do mundo a legalizar a eutanásia. Apesar dos protestos ocorridos à época, pesquisas apontam que aproximadamente 90% dos holandeses são favoráveis à prática. A lei holandesa tornou a morte assistida (eutanásia ou suicídio assistido) um procedimento permitido nos Países Baixos, alterando os arts. 293 e 294 da lei criminal holandesa. Anteriormente à legalização, a Lei Funeral (Burial Act), de 1993, incorporou cinco critérios para a eutanásia e três elementos para a notificação de seu procedimento. Isso tornou a eutanásia um procedimento aceito, porém não legal. O preenchimento dessas condições eximia o médico da acusação de homicídio. Segundo José Roberto Goldim, em seu artigo Eutanásia – Holanda,27 a Lei de 2001 trouxe determinadas inovações, como a possibilidade de realizar este tipo de procedimento em menores de idade, a partir dos 12 anos, desde que a solicitação do paciente esteja acompanhada pela autorização dos pais. Para além dos critérios anteriormente instituídos pela entrada em vigor da Lei Funeral, também foi estabelecido que o término da vida deva ser feito de um modo medicamente apropriado. Sendo assim, os novos critérios legais determinam que a eutanásia só possa ser realizada quando o paciente tiver uma doença incurável e sofrer com dores insuportáveis; quando o paciente tiver pedido, voluntariamente, para morrer; e depois que um segundo médico tiver emitido sua opinião sobre o caso. De acordo com André Luis Adoni,28 a Bélgica admite a prática da eutanásia desde que a doença seja incurável e traga sofrimento físico e/ou mental permanente e insuportável ao paciente terminal. Entre a escolha

pela eutanásia e a sua prática, deverá transcorrer um prazo de 30 dias, de modo a evitar decisões precipitadas. Esse período, entretanto, poderá deixar de ser cumprido nos casos em que a doença seja crônica e o paciente tenha deixado escrito ou enviado uma declaração antecipada. Roxana Borges29 assevera que, na Espanha, a Lei Geral de Saúde (LGS – Ley General de Sanidad, de 25 de abril de 1986) estabelece, em relação ao consentimento prévio do paciente, que é direito de todos, pacientes e familiares, o fornecimento de informação completa, contínua, verbal e escrita sobre seu processo, incluindo diagnóstico, prognóstico e alternativas de tratamento. É direito também a livre escolha entre as opções apresentadas pelo médico do caso, sendo preciso o prévio consentimento escrito do usuário para a realização de qualquer intervenção, exceto quando a não intervenção suponha risco para a saúde pública; quando não haja capacidade para tomar decisões, situações em que o direito será exercido pelos familiares ou representantes; e quando a urgência não permita demora diante do risco de ocorrerem lesões irreversíveis ou existir perigo de falecimento. Nos Estados Unidos, a eutanásia não é permitida por lei, mas, de acordo com Goldim,30 a Justiça americana possibilita algumas outras situações que antecipam o final de vida, como a interrupção de tratamento que apenas prolongue o processo de morte de pacientes e o suicídio assistido. Exemplo disso é o caso Nancy Cruzan, ocorrido em 1990, no qual a Justiça do Estado de Missouri assegurou aos familiares o direito de solicitarem a interrupção de tratamentos que apenas prolongavam a vida da paciente que se encontrava em estado vegetativo persistente. O Estado norte-americano do Oregon aprovou, em 08 de Novembro de 1994, uma lei sobre Morte Digna (Measure 16), que foi a primeira a legalizar o suicídio assistido naquele país, embora seu próprio texto afirme que o procedimento nela permitido não constitua eutanásia, suicídio ou suicídio assistido. Essa lei estabelece critérios mínimos a serem cumpridos para que uma pessoa possa ter acesso à prescrição de medicamentos e de informações que lhe possibilitem morrer. O debate da eutanásia no Estado americano da Califórnia foi abordado por Roxana Borges, Segundo ela “no ano de 1991, foi feita uma proposição de alteração do Código Civil da Califórnia não aceita em um plebiscito, de que uma pessoa mentalmente competente, adulta, em estado

27 .  GOLDIM. Eutanásia – Holanda.

29 .  BORGES. Direito de morrer dignamente, cit., p. 299-300.

28 .  ADONI. Bioética e biodireito: aspectos gerais sobre a eutanásia e o direito a morte digna.

30 .  GOLDIM. Eutanásia – Estados Unidos.

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terminal, poderia solicitar e receber uma ajuda médica para morrer”.31 A alteração proposta declarava que “o direito de optar pela eliminação da dor e do sofrimento e de morrer com dignidade no tempo e no lugar de nossa própria escolha, quando nos tornamos doentes terminais, é uma parte integral de nosso direito a controlar nosso próprio destino”.32 Para encerrar a análise da eutanásia na jurisdição americana, cumpre ressaltar que, conforme lembrado por Goldim, em abril de 1996, o juiz Stephen Reinhardt, do 9º Tribunal de Apelação de Los Angeles, Califórnia, estabeleceu que a Constituição Americana garante o direito ao suicídio assistido a todo paciente terminal.33 No entendimento de André Luis Adoni,34 o Uruguai provavelmente tenha sido o primeiro país do mundo a legislar sobre a possibilidade de realização da eutanásia, precedendo até mesmo a Holanda. A aludida prática enquadrar-se-ia no art. 37, Capítulo III, do atual Código Penal Uruguaio, o qual entrou em vigor em 1º de agosto de 1934. Tal artigo aborda a questão de causas de impunidade e caracteriza o homicídio piedoso. Em maio de 2012, o Senado Argentino, por unanimidade, aprovou a lei da “morte digna”, que dá aos pacientes terminais o direito de rejeitar tratamento médico que prolongue suas vidas, quando as perspectivas de uma melhora são remotas. Se os doentes não estiverem em condições de manifestar a sua vontade, a decisão ficará a cargo de suas famílias. O debate sobre a “morte digna” foi reacendido naquele país a partir do caso de uma menina, Camilla. A garota faleceu durante seu parto e foi ressuscitada, nunca mais, porém, saindo do coma. Os médicos eram unânimes em dizer que seu estado era “irreversível”, motivo pelo qual sua mãe, Selva Herbon, queria desligar os aparelhos que a mantinham viva. Mas, até a aprovação da lei que permite a “morte digna”, não havia essa possibilidade. O caso, ocorrido em 27 de abril de 2009, tornou-se público, em agosto do ano passado, quando Selva começou a pressionar o legislativo para que aprovasse a lei. A nova legislação não legaliza a eutanásia ou o suicídio assistido, mas permite ao paciente que possua uma doença terminal ou se encontre em um estado irreversível rejeitar tratamentos, alimentos ou reanimação artificial, que só servirão para prolongar a agonia. 31 .  BORGES. Direito de morrer dignamente, cit., p. 304. 32 .  DWORKIN. Domínio da vida, cit., p. 253. 33 .  GOLDIM. Eutanásia –

Estados Unidos.

34 .  ADONI. Bioética e biodireito, cit., p. 415. 170

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CONCLUSÃO

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videntemente não se pretendeu esgotar o tema da eutanásia, pois, devido a sua complexidade, muitos aspectos ainda precisam ser debatidos. Essas discussões certamente provocarão posicionamentos diversos. Com os avanços tecnológicos da medicina ocorridos nas últimas décadas, o problema da eutanásia ganha cada vez mais destaque. Nesse contexto, tanto os médicos como os doentes são confrontados diariamente com as possibilidades de novas tecnologias que permitem manter a vida por longos períodos de tempo. O tema da eutanásia, então, é demasiadamente controverso, mas os argumentos favoráveis não devem ser ignorados. No Brasil, é necessária uma ampla discussão e também uma legislação específica sobre sua prática. É preciso compreender e admitir a finitude da vida humana nos dias atuais, pois a morte é algo inerente à vida humana, sendo a parte final desta. Assim, o direito à morte deve ser defendido tanto quanto o direito à vida. O esgotamento dos meios propiciadores da cura deve possibilitar ao paciente e à sua família a tomada de decisões que visem ao alívio da dor, à diminuição do desconforto, e, principalmente, à possibilidade de se posicionar frente ao momento final de sua existência. Isso porque a pessoa doente, vivendo uma situação de extremo sofrimento e dor, prisioneira de um estado irreversível, ainda é pessoa, dotada de dignidade e, muitas vezes, de discernimento, capaz de escolher entre a dor e a morte. Para que a decisão do paciente seja concretizada, este deve estar em pleno gozo de sua autonomia; isso lhe garantirá a liberdade de escolha sobre seu bem-estar. Além disso, o enfermo deve conhecer todos os dados que possam influenciar sua decisão, pois, só assim, ele será capaz de decidir sobre seu futuro de acordo com seus valores. O Estado, por sua vez, deve instituir meios para que a autonomia do enfermo prevaleça, protegendo, dessa forma, a própria dignidade da pessoa humana, porquanto levar um ser humano a morrer de um modo que para ele representa uma contradição de sua vida, nada mais é do que uma odiosa forma de tirania. A legislação deve estar em conformidade com a evolução da bioética, proporcionando diferentes caminhos para que a pessoa possa ter 171

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o direito de morrer com dignidade. Desse modo, a legislação pátria, sobretudo o Código Penal, deve ser atualizada, a fim de contemplar os novos valores sociais. Nesse contexto, é imperativa a instituição de uma legislação que considere as aspirações de uma sociedade em transformação e desenvolvimento e que deseja, acima de tudo, viver e morrer com dignidade.

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9 O DIREITO DAS GERAÇÕES FUTURAS ENTRE A LIVRE DISPOSIÇÃO DO PRÓPRIO CORPO E OS “AMPUTEES BY CHOICE” Julia Silva Carone Julio Pinheiro Faro

1  Introdução

A

s discussões sobre o futuro da natureza humana e sua ligação com o direito das futuras gerações têm se refletido em três vertentes interessantes. A primeira: a ética do melhoramento genético, tanto do ser humano quanto de outros organismos vivos. A segunda: a doação e o comércio de órgãos. A terceira: o bem-estar dos indivíduos que optam por abortarem fetos anencefálicos, modificarem o formato de seus corpos ou mesmo amputar membros saudáveis. Todas essas discussões são influenciadas pelo argumento moral, e, no caso de versarem sobre seres humanos, todas elas têm como pano de fundo o direito à livre disposição do corpo humano, de modo que, seja o tema o uso de material genético, o uso dos próprios órgãos ou o bem-estar individual, o argumento moral será colocado ao lado do jurídico. Em The case against perfection, Michael J. Sandel traz reflexões filosóficas sobre o bioeticismo e o melhoramento genético1. O seu argumento é contra o melhoramento genético e favorável à valorização da vida. No entanto, ele deixa bem claro, em seu livro que existe muita diferença entre curar e melhorar. A cura não tem como objetivo a perfeição, mas o bem-estar, enquanto o melhoramento almeja a perfeição, ficando o bem-estar, na melhor das hipóteses, apenas em segundo plano. As

1 .  Existe tradução para o português: SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Trad. Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 175

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ponderações feitas pelo filósofo estadunidense são valiosas e merecem ser observadas. Isso porque o dilema moral que envolve todas as questões relacionadas à engenharia genética surge quando o indivíduo resolve interferir na natureza humana, isto é, quando emprega os meios medicinais (voltados para a cura) para fins não medicinais (o melhoramento da espécie). Talvez com um receio plausível sobre as consequências que o uso da engenharia genética possa trazer para a espécie humana, Jürgen Habermas, em Die Zukunft der Menschlichen natur. Auf dem Weg zu einer Liberalen Eugenik?, seja contrário ao uso de exames com embriões e à manipulação genética para fins não medicinais2. Para o sociólogo alemão, tanto a seleção dos melhores seres humanos como os procedimentos de melhoramento da espécie resultam em uma eugenia censurável. Basta lembrar que durante a ditadura nazista na Alemanha foram feitas experiências com seres humanos, financiadas e apoiadas por várias empresas do mundo. Embora se possa discordar dos argumentos trazidos pelos dois filósofos acima referidos, o fato é que os dois revelam uma preocupação importante para o futuro da natureza humana e para o direito das gerações futuras: o embate entre o limite da autonomia das pessoas sobre as questões que envolvem sua própria natureza ou seu próprio corpo e a coisificação do ser humano. Essa preocupação é tema, inclusive, de reflexões do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, para quem a modernidade líquida tente a transformar os seres humanos em refugo, em objetos3. Diante desse quadro, este breve ensaio faz uma rápida análise sobre uma questão que ainda não tem atormentado os filósofos e os juristas, mas que já se tem feito presente na literatura médica: a possibilidade de que o ser humano, por ter liberdade de disposição sobre o seu próprio corpo, decida amputar membros saudáveis.

2 .  Existe tradução para o português: HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma eugenia liberal? 2. ed. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2010. 3 .  Diversos são os trabalhos do autor com esse tema, dentre eles: BAUMAN, Zygmunt. Subjetividades como objetos de consumo. Trad. Carolina Sanmiguel Barros, Victor Augusto Moura Castro, Lucca Cascelli Sodré e Maurício Seraphim Vaz. Panóptica, vol. 8, n. 1 (25), jan./jun. 2013; BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plinio Dentzen. Rio de Janeiro: Zahar, 2001; BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1999; BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007; BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. 176

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2  P  essoas que amputam os próprios membros saudáveis

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ssas pessoas que escolhem amputar membros saudáveis de seu próprio corpo têm sido denominadas amputees by choice. A literatura especializada trata essa situação como um transtorno ou distúrbio, embora não a classifique, atualmente, como patologia. O nome técnico utilizado é body identity integrity disorder ou, em português, transtorno de identidade de integridade corporal. Esse distúrbio assemelha-se aos casos de parafilia4, a qual é um padrão de comportamento sexual em que a fonte de prazer não é o ato copular. Dentre as condutas parafílicas, o desejo de se ver amputado é conhecido como apotemnofilia. E o seu reconhecimento como um desvio patológico é, atualmente, uma reivindicação dos próprios candidatos à amputação. Isso porque ao se reconhecer como patologia o transtorno, eles esperam que o tratamento seja a intervenção cirúrgica que promoverá a ablação do membro que incomoda. No entanto, o mais provável é que o reconhecimento transforme a cirurgia em ultima ratio, preferindo-se o tratamento clínico, ambulatorial. Em termos gerais, ser um amputee by choice revela um comportamento destoante daquele considerado normal, embora possa ser um estilo de vida no qual o bem-estar individual é alcançado mediante uma amputação. Sua relação com os direitos humanos é clara, pois lida com a autonomia das pessoas para disporem livremente de seu próprio corpo. Além disso, há a questão ligada à saúde do indivíduo. Como a cirurgia para esses fins não é considerada legítima, medicamente, as pessoas com esse transtorno fazem amputações caseiras ou induzem amputações, de maneira que, quando sobrevivem, a única saída que os médicos encontram para lhe salvar a vida é realizar a amputação. Trata-se, como se pode perceber, de um transtorno neurológico5. No entanto, nem antes nem após a ablação o indivíduo pode ser caracterizado como deficiente. Ainda que lhe falte, efetivamente, um membro de seu corpo, sua amputação é fruto de sua escolha, e não fruto da única 4 .  MOREIRA, Luiz Eduardo de Vasconcelos et al. Construções do corpo na razão diagnóstica do DSM e da psicanálise. A peste, São Paulo, vol. 2, n. 1, p. 79-88, jan./jun. 2010, p. 83. 5 .  BRANG, David; McGEOCH, Paul D.; RAMACHANDRAN, Vilayanur S. Apotemnophilia: a neurological disorder. Cognitive Neuroscience and Neuropsychology, vol. 19, n. 13, 2008. 177

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opção possível. Assim, por exemplo, em termos jurídicos, tais indivíduos não podem gozar de preferências conquistadas por pessoas deficientes. Não do ponto de vista biomédico da deficiência, já que a perspectiva muda a se adotar o modelo biopsicossocial de deficiência6. Para resumir, se os amputees by choice sofrem alguma exclusão social, serão considerados, da perspectiva do modelo biopsicossocial, como pessoas deficientes. As discussões sobre o distúrbio estão no contrafluxo da pauta de discussão sobre as questões atinentes ao futuro da natureza humana. Enquanto juristas e filósofos têm se preocupado às questões sobre o melhoramento da espécie (eugenia), as questões sobre o melhoramento do bem-estar têm sido relegadas ao segundo plano. Parece haver um esquecimento que os direitos das futuras gerações dependem primordialmente do bem-estar das gerações atuais, afinal há uma relação de ascendência-descendência entre elas. Assim, talvez essa seja a primeira reflexão, por mais incipiente que seja, na qual se faça uma análise relacionada com o Direito.

3  Relatos de casos

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distúrbio de identidade experimentado pelos amputados por escolha própria tem encontrado cada vez mais relatos. De acordo com a literatura especializada, essas pessoas se sentem “excessivamente completas7”, como se houvesse em seu corpo um membro estranho. Não se trata de uma simples modificação do corpo como tatuagens ou implantes de silicone. Uma pessoa com distúrbio sobre a integridade e a identidade corporal tem a sensação de ser deficiente quando, para os padrões normais, ele não é. O transtorno parece ser uma perturbação mental que interfere na vida social do indivíduo. Os que não conseguem uma cirurgia clandestina recorrem normalmente a alternativas perigosas para se livrarem do membro em excesso8. Há documentação sobre os mais diversos méto6 .  Para uma discussão sobre isso, ver, por exemplo: FARO, Julio Pinheiro. Nada sobre nós sem nós: uma análise sobre inclusão social pelo trabalho – a Convenção 159 da OIT e a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (no prelo). 7 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 36.

8 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of 178

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dos de autoablação, como o uso de correntes, armas, rodas de trem, guilhotinas fabricadas em casa e gelo seco9. Em indivíduos que não toleram mais o sofrimento, o distúrbio pode, inclusive, ser fatal, a exemplo de casos em que pacientes posicionaram uma perna em um trilho, no intuito de que o veículo em movimento cortasse o membro que, em tese, não fazia parte de seu corpo. O risco é muito alto, e o número de óbitos, caso houvesse uma estatística confiável, provavelmente também seria alto. O fato: não há estatísticas sobre o transtorno. Isso não se deve apenas ao fato de inexistir previsão legal, mas também porque poucos pacientes admitem a própria situação, por terem vergonha de falar do que sentem, ou porque acreditam que seu terapeuta não será capaz de entender10. Assim, é difícil mensurar a proporção de ocorrência do distúrbio. Pesquisas comprovam, sem resultados conclusivos, que pessoas com o distúrbio tendem a ser educadas, predominantemente brancas, do sexo masculino e, em maior proporção, homossexuais e transexuais11. A natureza do problema não goza de consenso entre psicólogos, psiquiatras e neurologistas12. O que há de fato é um desencontro entre a experiência corporal da pessoa e a real estrutura de seu corpo13. Também variam as explicações sobre o motivo pelo qual as pessoas desejam amputar um membro saudável. Talvez o consenso é de que no transtorno inexiste um esboço psicológico de um membro que, de fato, existe14, ou seja, a construção cerebral da imagem do corpo não registra o membro. No entanto, a descrição do transtorno não tem comprovação científica. Até onde se tem relatos, foi verificada a ausência de deficiência no controle dos movimentos corporais, o que seria esperado numa pessoa com o esboço corporal distorcido ou incompleto, um desencontro entre Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 36. 9 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol. 3, n. 8, 2004, p. 28. 10 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol. 3, n. 8, 2004, p. 27. 11 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol. 3, n. 8, 2004, p. 27. 12 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 36. 13 .  BAYNE, Tim. LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and the Ethics of Amputation. Journal of Applied Philosophy, vol. 22, n. 1, 2005, p. 76. 14 .  BAYNE, Tim. LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and the Ethics of Amputation. Journal of Applied Philosophy, vol. 22, n. 1, 2005, p. 76. 179

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o corpo e a imagem que o paciente tem do próprio corpo15. Diante das divergências que há a indicação de tratamento para o distúrbio não é unânime e está longe de contar com algum consenso. Talvez por isso a hesitação em caracterizá-la como patologia. Pelos relatos médicos16, a psicoterapia tem se mostrado pouco eficiente entre pacientes e o uso de medicamentos antidepressivos e terapia comportamental foram capazes de amenizar os pensamentos dirigidos a amputar o membro, sem, no entanto, os suprimir. Terapia com movimentos e música já foi utilizada em 1984, tentando-se reintegrar a parte estranha do corpo com sua representação cerebral, tendo o objetivo de reinstalar conexões neurais atrofiadas entre corpo e cérebro, mas não foram efetivos em casos em que o membro estranho havia sido excluído do mapa corporal no cérebro17. Outros métodos são estimulação magnética repetitiva e implantação de estimulação por eletrodos na área afetada do cérebro18. No entanto, na ausência de estatísticas, não é possível concluir que os tratamentos sejam eficientes, embora haja relatos sobre o alívio da angústia de portar um corpo estranho, ou seja, apesar de casos bem-sucedidos19, normalmente as pessoas com distúrbio inventam histórias sobre a amputação e sentem medo de que a verdade venha à tona20. Assim, mesmo os relatos de sucesso das intervenções cirúrgicas para o tratamento do transtorno, eles não podem ser computados como favoráveis ao reconhecimento da apotemnofilia como patologia.

15 .  BAYNE, Tim. LEVY, Neil. Amputees By Choice: Body Integrity Identity Disorder and the Ethics of Amputation. Journal of Applied Philosophy, vol. 22, n. 1, 2005, p. 76. 16 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 39. 17 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 39.

4  A  utonomia e amputação de membros saudáveis

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iante disso tudo, a amputação não parece ser a opção de tratamento mais plausível. Muitos cirurgiões optam por não fazer a cirurgia. Especialistas em ética médica afirmam que se o desejo de amputação é permanente e duradouro, o paciente não é psicótico e está ciente dos riscos e consequências, a cirurgia é eticamente autorizável21. A discussão é basicamente sobre a autonomia do paciente, perquirindo se ele tem autonomia para discernir, sozinho, sobre a decisão que pretende tomar. A avaliação a respeito disso é uma avaliação da situação mental do paciente. E por isso deve ser feita por psiquiatras, já que há diferença entre decisões livres e desejos obsessivos (manias)22. Como no distúrbio da integridade de identidade corporal o entendimento é de que inexiste autonomia do paciente, a opção pela amputação deve ser feita após um quadro clínico completo. Assim, embora o corpo humano pertença à pessoa, não há um direito absoluto de dispor dele como bem entender, de maneira que a ablação não é uma opção de tratamento para um distúrbio cuja finalidade é se amputar. Do contrário, casos de distúrbio obsessivo-compulsivo seriam resolvidos com a prática da vontade do paciente, ou mesmo na hipótese de pacientes com depressão suicida, o suicídio seria o tratamento. Portanto, a amputação não é aceita como tratamento. Essa conclusão se revela ainda mais sensata pelo fato de a amputação ser experimental e não poder certificar que a cirurgia promove a cura do distúrbio. Ademais, estudos levam à necessidade de se fazerem presente três requisitos para ocorrer a cirurgia: a efetividade da medida, a sustentabilidade dos efeitos e a inexistência de um tratamento menos nocivo23. A intervenção cirúrgica deve ser apenas ultima ratio. A preferência deve ser o tratamento psicológico-psiquiátrico, para, só diante de sua ineficácia, optar-se pela cirurgia. As discordâncias são, portanto, muitas. E não dizem respeito apenas

18 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 39.

21 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 40.

19 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol. 3, n. 8, 2004, p. 29.

22 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 40.

20 .  SMITH, Robert C. Amputee identity disorder and related paraphilias. Psychiatry, vol. 3, n. 8, 2004, p. 29.

23 .  MÜLLER, Sabine. Body Integrity Identity Disorder (BIID) – Is the Amputation of Healthy Limbs Ethically Justified? The American Journal of Bioethics, vol. 9, n. 1, 2009, p. 41.

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a questões médicas e psicológicas. Também há divergências sobre a ética da amputação enquanto tratamento e sobre a autonomia dos indivíduos. Em suma, questões médicas, éticas e jurídicas estão fortemente imbricadas nesse interessante tema, que demanda uma reflexão maior, tanto filosófica quanto jurídica. Isso porque, além das questões morais envolvidas, também existem diversas questões jurídicas que demandam regulamentação, como, dentre outras, o processo de reabilitação, a responsabilidade médica, a aposentadoria, a readaptação aos postos de trabalho, a saúde, dentre outros temas que merecem atenção. Embora os relatos sejam relativamente poucos, o assunto não é irrelevante, merecendo estudos mais aprofundados.

5  Conclusão

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m síntese, essa pequena reflexão tem como objetivo destacar a necessidade de uma reflexão jurídica e filosófica, já que qualquer conclusão nesses dois campos não pode ser senão muito provisória. A importância do assunto decorre do fato de que é imprescindível para o melhor desenvolvimento do direito e dos direitos das futuras gerações. Prestar atenção aos comportamentos do presente é fundamental para a construção do futuro. Estudos mais sistematizados e aprofundados certamente contribuirão com o desenvolvimento do tema, tanto no campo jurídico quanto no filosófico, bem como diante das ponderações e das decisões médicas sobre como tratar o distúrbio.

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Sustentabilidade e Meio Ambiente

10 Dos cata-ventos ao desenvolvimento: o papel da energia eólica na concretização da sustentabilidade energética nacional Ingrid Zanella Andrade Campos Karoline Lins Câmara Marinho de Souza Mariana de Siqueira

1  Introdução

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om Quixote, personagem da obra de Cervantes, inspirado nas estórias da cavalaria, pôs-se sobre o seu cavalo Rocinante, tornou-se cavaleiro andante, vivendo “aventuras” plurais, mais imaginárias do que reais. Em suas ilusórias peripécias, deparou-se com “castelos”, “princesas” e “gigantes”, havendo quem passasse a denominá-lo, ao invés de “cavaleiro andante”, de “cavaleiro errante”. Em uma de suas mais emblemáticas aventuras, Quixote enxerga em moinhos de vento verdadeiros gigantes, inicia luta direta contra eles, sendo derrubado por uma de suas pás. Sancho Pança, fiel escudeiro de Quixote em suas andanças, o socorre, tentando lhe mostrar a concretude e veracidade que habitava o espaço diante deles posto. A narrativa da luta de Quixote contra os moinhos de vento sai da estória literária e adentra na história da linguagem como signo ensejador da ideia de luta romântica. Desde então, lutas sonhadoras são convencionalmente denominadas de “lutas quixotescas”. Os moinhos de vento, marcantes na estória de origem espanhola, vencedores de uma luta imaginária, reaparecem hoje na história energética internacional como combatentes que buscam espaço concreto e inserção ampla na matriz energética mundial. A presença dos cata-ventos eólicos nas matrizes de energia dos mais variados países, realidade já existente, persiste hoje tímida e um tanto quanto incipiente. 185

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A matriz energética mundial, ainda dominada pelos hidrocarbonetos e carvão, necessita de diversificação, não apenas pela dificuldade de acesso às tradicionais fontes de energia como também por seu elevado potencial poluidor. É exatamente ai que nasce o espaço para a chegada de energias limpas, alternativas e renováveis, dentre elas a energia eólica. A energia eólica, oriunda do movimento que nasce a partir do encontro entre ventos e aerogeradores, é energia alternativa ao modelo convencional de geração de eletricidade, é também renovável por renascer cotidianamente e em curto espaço de tempo, e fonte de energia limpa diante dos pequenos impactos ambientais que gera e da pouca emissão de resíduos dela provenientes. Por suas vantagens, em especial aquelas atinentes ao meio ambiente, a energia eólica tem recebido atenções especiais, aparentando ser verdadeiro caminho apto à concretização do desenvolvimento sustentável. A ideia de desenvolvimento sustentável, de um desenvolvimento conciliador dos interesses econômico, social e ambiental, tem ocupado espaço notório nos debates e práticas energéticas dos mais variados países desde a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, ocorrida em 1992, na cidade do Rio de Janeiro. Hoje, são inúmeros os documentos que abordam o tema da sustentabilidade em perspectiva global, a exemplo do Protocolo de Kyoto e do Protocolo de Madri. As fontes alternativas e renováveis de energia, como é o caso da eólica, se destacam nesse âmbito. Promover o desenvolvimento econômico atinente à energia com a presença indissociável da sustentabilidade é meta internacional passível de ser concretizada com o fomento aos parques eólicos. Apesar de ser notória a necessidade de diversificação da matriz energética mundial via incremento das fontes alternativas e renováveis, como é o caso da eólica, tem se mostrado difícil a sua espontânea concretização. Custos elevados, fatores tecnológicos, insegurança jurídica e ausência de leis disciplinadoras do tema são alguns dos motivos ensejadores dessa dificuldade. Aos países parece caber a atuação com o objetivo de compensar as dificuldades hoje constatadas, conciliando interesses públicos e privados, em busca da concretização da sustentabilidade energética. Diante dos óbices à espontânea instalação e execução dos parques eólicos, disseminam-se no globo políticas públicas de fomento à energia dos ventos com vistas a permitir a sua inserção nas matrizes energéti-

cas de forma mais significativa. Normativas sobre o tema também têm sido desenvolvidas, assim como a criação de órgãos ou pessoas jurídicas públicas destinadas a cuidar especificamente do assunto. O Brasil, por exemplo, atento a essa realidade, tratou de instituir o Programa Nacional de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia – Proinfa – através da Lei Federal nº 10. 438, de 26 de abril de 2002, regulamentada pelo Decreto n.º 5.025, de 30 de março de 2004. O Proinfa objetiva diversificar a matriz energética brasileira, hoje majoritariamente concentrada na hidroeletricidade, viabilizando o acesso universal e sustentável à energia, com foco especial nas potencialidades e vocação natural de cada região geográfica brasileira. Os ventos, vocação natural de determinadas regiões do Brasil, como é o caso do Nordeste, levam a crer que o fomento a energia eólica é rumo viável a ser buscado pelo poder público. O fomento à sustentabilidade no setor energético brasileiro é caminho viabilizador da concretização da ideia de desenvolvimento constitucionalmente consagrada, de um desenvolvimento que não se limita ao crescimento econômico e que também abarca o desenvolvimento social e a preservação ambiental. Ao se considerar que parques eólicos podem ser instalados especialmente no Nordeste brasileiro, região marcada por fortes índices de pobreza e desigualdade, outro viés do desenvolvimento constitucionalmente previsto também restará concretizado via fomento à energia eólica: o desenvolvimento regional. O presente trabalho, diante da realidade energética atual e das perspectivas de mudança que a circundam, se debruça sobre o estudo do fomento à energia eólica como caminho para a estruturação da ideia constitucional de desenvolvimento (social, ambiental, econômico e regional). Para tal, faz uso de metodologia teórico descritiva, com análise de dados empíricos e da normativa pertinente ao tema. Inicialmente, discorre sobre o acesso à energia elétrica como direito fundamental social. Caracterizado esse acesso como direito fundamental dos indivíduos, versa o trabalho sobre o dever de o Estado provê-lo através de prestações positivas. O estudo, a partir dai, expõe a necessidade de implementação do dever estatal de fornecer acesso à energia de forma sustentável e universal. Analisa, como não poderia deixar de ser, a regulação eólica hoje existente em sede nacional. Apontando, em conclusão, como caminho para concretização do acesso universal e sustentável à energia elétrica e efetivação do desenvolvimento, o fomento à geração de energia na via eólica.

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2  O  acesso universal e sustentável à energia elétrica como direito fundamental e o papel da energia eólica em sua concretização

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s direitos fundamentais podem ser hoje definidos como elementos indispensáveis à dignidade humana, responsáveis por limitarem a atuação estatal em prol da defesa de uma esfera mínima de liberdade para os sujeitos. Correspondem a bens juridicamente tutelados por um Estado que, a partir de tal tutela diferenciada, os reconhece como indispensáveis à dignidade de seus cidadãos. O reconhecimento desses elementos como direitos fundamentais, variável conforme o desenrolar da história, surge atualmente no âmbito do texto constitucional e pode ocorrer através de dispositivo linguístico expresso ou de forma implícita. Do conceito de direitos fundamentais aqui exposto é possível extrair algumas de suas característica; são elas: a) os direitos fundamentais tem assento no texto constitucional1, b) quando expressos na Constituição, são identificados a partir de signo linguístico nela escrito; c) quando implícitos, dependem do aspecto formal como ponto de partida identificador de sua existência, a ele sendo acrescida a necessidade de preenchimento da materialidade dos direitos fundamentais; d) os direitos fundamentais se conectam à ideia de dignidade e possuem a marca da modificação oriunda dos avanços da história. As características aqui destacadas são aquelas que se revelam importantes à identificação do acesso à energia elétrica como direito social fundamental. Identificado esse direito, reconhecida a sua existência, nasce o dever estatal de concretizá-lo. Passemos à análise mais detalhada do assunto. Do assento constitucional dos direitos fundamentais: o caso do acesso à energia. Para que um elemento seja identificado como direito fundamental, é preciso que resida em essência no texto constitucional. Essa morada pode acontecer através de dispositivo expresso que o mencione, como é o caso da saúde, educação e alimentação, todos direitos sociais expressos no texto do artigo 6º da Constituição de 1988, ou de forma implícita. Nesse

1 .  DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Editora Atlas, 2012. p. 40-41. 188

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último caso, não haverá texto narrando a existência de uma espécie de direito fundamental, mas sim textos variados que, interpretados em conjunto, com sistematicidade e unidade, permitirão identificar direito fundamental em espécie não escrito, ou seja, direito fundamental implícito. É o caso do direito fundamental de acesso à energia elétrica. Não expresso especificamente no texto constitucional, nele reside de forma implícita, sendo extraído a partir da leitura de outros dispositivos da Constituição. É possível concluir, a partir do exposto, sempre haver a existência de ponto de partida formal, escrito no texto constitucional, para a identificação de direito fundamental. Se o direito fundamental vem expresso, é o texto que o exterioriza, se o direito fundamental vem implícito, é do texto que se extrai o seu ser. A formalidade, portanto, é marca identificadora, direta ou indireta, dos direitos fundamentais, e a Constituição é a sua genitora. O direito de acesso à energia, não escrito expressamente na Constituição, nela possui assento, ponto de partida formal, por ser compatível com outros dispositivos consubstanciados em seu texto. Da materialidade dos direitos fundamentais: construindo o acesso à energia como direito fundamental. Além da formalidade, a materialidade aponta como característica dos direitos da dignidade, permitindo a identificação de direitos fundamentais a partir de sua essência, de seu conteúdo, de sua matéria, e não apenas a partir de sua previsão expressa e específica em documento jurídico formal, no caso, a Constituição. Assim, a materialidade faz possível o reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, compreendidos a partir de interpretação sistemática do ordenamento e pautada na unidade do texto constitucional. A forma escrita será ponto de partida para a construção da ideia de existência de um determinado direito fundamental implícito no texto constitucional; será ponto de partida ao qual se acresce a nota da materialidade. Corroborando com essa ideia aponta o conteúdo do §2º, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988, responsável por expor que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados e dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte. Direitos fundamentais implícitos, decorrentes, derivados de princípios, do regime constitucional e de documentos internacionais, podem se reconhecidos a partir de interpretação sistemática, desde que conectados à ideia de dignidade, e que aptos a passar pela filtragem do texto constitucional de 1988. Não escrito expressamente no texto constitucional como direito fundamental, o acesso à energia elétrica pode ser dessa forma caracte189

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rizado a partir de sua essência, por ser elemento diretamente conectado à ideia de dignidade. Inúmeros dos direitos fundamentais atualmente expressos na Constituição dependem do acesso à energia para a sua concretização e máxima eficácia. É o caso do direito à educação, da vida digna, e da saúde, por exemplo. Com o acesso à energia elétrica os cidadãos conquistam melhor qualidade de vida, adquirem a liberdade de escolher o modo de uso da energia disponibilizada, concretizam a ideia de dignidade e de desenvolvimento. Não apenas o desenvolvimento humano e social se conecta ao acesso à energia, mas também o desenvolvimento econômico no viés quantitativo do crescimento. As receitas vindas da geração e distribuição de energia são elevadas. Por ser caminho para a concretização de direitos fundamentais plurais, por se configurar como instrumento de tutela da dignidade, o acesso à energia elétrica pode ser definido como direito fundamental implicitamente tutelado pelo Estado brasileiro, retirado a partir de interpretação sistemática do texto constitucional hoje vigente. Das modificações compatíveis com o avançar histórico: o acesso à energia hoje. Aquilo que é considerado fundamental e indispensável à dignidade dos sujeitos varia conforme o transformar da história e da sociedade. O direito é fenômeno social e se modifica a partir das modificações sociais. Nem tudo aquilo que é visto como direito fundamental hoje o foi também no passado. As transformações sociais, os avanços tecnológicos e modificações históricas viabilizam a ampliação no rol de direitos fundamentais reconhecidos com o passar dos tempos. O acesso à energia elétrica se insere nesse contexto. A energia elétrica, antes de difícil acesso, geração e distribuição, não costumava ser qualificada como direito fundamental dos sujeitos e consequente dever do Estado. Com a evolução tecnológica, simplificação e diversificação em suas formas de geração, tornou-se possível construir a ideia de que o acesso à energia elétrica é direito fundamental coerente com o momento histórico atual. A vida contemporânea, para que seja dotada de dignidade, passa necessariamente pelo acesso à eletricidade. Do acesso à energia como direito fundamental social. A doutrina, observando o longo histórico de conquista de direitos fundamentais pelos homens e atentando para as características de cada um deles, costuma catalogá-los em dimensões. Por serem construções doutrinárias, são variadas as dimensões de direitos fundamentais apresentadas pelos estudiosos do tema, havendo uniformidade quanto à enumeração de quatro dimensões.

A primeira dimensão de direitos fundamentais tradicionalmente apresentada no universo doutrinário engloba os direitos individuais típicos do Estado Liberal, os chamados direitos de liberdade. O Estado, em se tratando desses direitos, deveria se abster, em regra, de interferir na vida dos sujeitos. A segunda dimensão, por sua vez, abarca os direitos sociais, econômicos e culturais do Estado Intervencionista, os denominados direitos de igualdade. Nesse contexto, ao Estado não apenas caberia se abster de intervir na vida dos indivíduos, mas também atuar através de prestações positivas, fazeres, com vistas a reduzir desigualdade e a concretizar a ideia de isonomia. A terceira das dimensões se refere aos direitos de ordem transindividual, os direitos de fraternidade. A quarta dimensão, por fim, envolve os direitos típicos da globalização. Dentre as categorias catalogadas de direitos fundamentais, o acesso à energia se insere na modalidade de direito social a ser oferecido pelo Estado através de prestações positivas. O Estado poderá prestar direta ou indiretamente as atividades do setor, devendo, em qualquer uma das duas hipóteses mencionadas, acompanhar, regular e fiscalizar o seu desenvolvimento, e estruturar políticas públicas que viabilizem o acesso dos sujeitos à energia. Na medida em que o acesso à energia é reconhecido como direito fundamental social dos cidadãos brasileiros nasce o dever estatal de sua concretização via ações positivas. São inúmeras as formas de concretização do dever de prover acesso à eletricidade, sendo a energia eólica uma delas. Diante de tão plurais formas de prestação do dever em questão, o que poderia justificar a escolha estatal do caminho da eletricidade eólica? A escolha pelo fomento à energia eólica como caminho para a concretização do acesso à energia é dever ou escolha discricionária estatal? Quais os fundamentos que a embasam? Em uma interpretação sistemática do ordenamento, é possível concluir que o direito fundamental de acesso à energia dos sujeitos e o dever estatal em provê-lo devem trazer junto de si as marcas da universalidade e da sustentabilidade. O acesso à energia a ser provido pelo Estado aos cidadãos deve ser universal e sustentável, é exatamente ai que reside o fundamento para o fomento à geração de energia na via eólica. Passemos a análise mais detalhada do assunto nos pontos seguintes. Do dever de prover acesso universal à energia elétrica: o papel da

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energia eólica. No mundo, cerca de 1,3 bilhão de pessoas ainda vive carente do acesso à eletricidade. Tornar esse acesso universal passar a ser, nesse contexto, meta internacional2. Universalizar o acesso à energia significa torná-lo possível a todos os sujeitos e regiões existentes em determinada localização geográfica. Universalizar a energia em sede nacional, por exemplo, significa levar energia elétrica às regiões e cidadãos do Brasil que ainda não a possuem. O presente estudo enxerga a universalização aqui descrita como qualificadora do dever estatal de prover acesso à energia. O Estado, ao cumprir com o seu dever se prover acesso à energia aos indivíduos, não deve se limitar às regiões que já o possuem, sendo impreterível que atente para as localidades dele carentes. O Estado brasileiro, atentando para o dever de prover acesso universal dos sujeitos à energia, instituiu programas destinados a esse fim, são exemplos específicos o “Programa Luz para Todos” (Decreto 4.873, de 11 de novembro de 2003), a tarifa social do consumidor de baixa renda (Lei 12.212, de 20 de janeiro de 2010) e o Proinfa, esse último diretamente conectado à sustentabilidade do acesso e ao papel da energia eólica na universalização do acesso à eletricidade. A tarifa social do consumidor de baixa renda, cujas regras foram modificadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica em agosto de 2013, permite redução no valor da conta de luz através de desconto na tarifa de energia. Em regra, a tarifa social apenas poderá ser aplicada a famílias com renda menor ou igual a meio salário mínimo e previamente cadastradas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. Os descontos na conta de energia provenientes da tarifa social variam entre 10% e 65%.3 O “Programa Luz para Todos”, instituído em 2003 para que durasse até o ano de 2008, hoje se encontra prorrogado, com fim de vida previsto para o ano de 2014. Enxergando o acesso à energia como indispensável ao desenvolvimento social e econômico das regiões que não o possuíam, o Programa foi criado para levar luz elétrica para o número aproximado de 10 milhões de brasileiros dela carentes, em especial os que vivam no meio rural. Com a constatação de falta de acesso à luz em localidades diversas, o programa sofreu ampliações 2 .  Disponível em: http://www.onu.org.br/rio20/temas-energia/ Acesso em 15 de setembro de 2013. 3 .  Disponível em: www.aneel.gov.br Acesso em 15 de setembro de 2013. 192

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e modificações, hoje se focando em novas realidades, a exemplo das áreas indígenas, de reforma agrária e quilombolas. O Proinfa, programa focado no incremento às fontes alternativas e renováveis de energia, igualmente se insere no contexto da universalização do acesso à eletricidade, sendo o espaço ideal à vinculação entre essa universalização e o fomento à energia eólica. Regiões distantes das fontes geradoras de hidroeletricidade podem ter acesso à energia viabilizado pelo uso de fontes alternativas, compatíveis com as características naturais da localidade. No que tange à energia eólica, o incremento ao seu desenvolvimento veio expressamente previsto na normativa do Proinfa, como meta a ser implementada pelo poder público. Da sustentabilidade na geração de energia elétrica. Roberto Giansanti, discorrendo sobre a sustentabilidade, expõe que o termo sustentável remete-nos à ideia daquilo que se pode sustentar. Advindo das ciências naturais, diz respeito ao ponto de vista ecológico, refere-se à tendência dos ecossistemas à estabilidade, ao equilíbrio dinâmico. Sugere, assim, estabilidade, equilíbrio, e transmite a ideia de algo durável por longos períodos de tempo.4 Clóvis Cavalcanti, por sua vez, conceitua sustentabilidade da seguinte forma: “O conceito de sustentabilidade equivale à ideia de manutenção de nosso sistema de suporte da vida”.5 O autor ensina que sustentabilidade é a possibilidade de se obter continuamente condições iguais ou superiores de vida para um grupo de pessoas e seus sucessores em dado ecossistema. Ao ser associada ao desenvolvimento das atividades econômicas a ideia de sustentabilidade se destaca. As atividades econômicas são efetuadas a partir do uso de recursos naturais, muitos deles escassos e não renováveis. Viabilizar a satisfação das necessidades das comunidades atuais sem prejudicar o acesso das futuras gerações aos recursos naturais utilizados pelas atividades econômicas é corolário da ideia de sustentabilidade no setor econômico. Reconhecida por ecólogos, biólogos e ambientalistas como necessária à manutenção da vida, compreendida jurídico-economicamente 4 .  GIANSANTI, Roberto. O desafio do desenvolvimento sustentável. 2º Ed. São Paulo: Atual, 1998. p. 13. 5 .  CAVALCANTI, Clóvis (org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. 4º Ed. São Paulo: Cortez, 1995. p. 165. 193

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como uma questão de justiça intergeracional e vista como forma de concretização da dignidade, hoje a sustentabilidade ocupa espaço nos mais variados documentos jurídicos. Atualmente, a sustentabilidade opera como determinação ético-jurídica que implica o dever de respeitar os direitos daqueles que ainda não nasceram, é verdadeiro caminho viabilizador da tutela dos direitos das futuras gerações. A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, datada de 1981, anterior à atual Constituição e por ela recepcionada, já tratava do uso racional e sustentável dos recursos naturais como dever dos agentes econômicos. A Constituição Federal de 1988, atentando para a relevância do bem ambiental e para a necessidade de sua proteção, dedicou, de forma pioneira, um Capítulo inteiro à disciplina dessas temáticas. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é constitucionalmente qualificado como bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, sendo dever de todos e do Poder Público tutelá-lo, não só em benefício das presentes gerações, mas também em prol das que virão. A tutela ambiental explicitamente constante no art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, também aponta como princípio da Ordem Econômica Constitucional (vide art. 170). A consagração da tutela ambiental no âmbito da ordem econômica constitucional gera espaço para o reconhecimento de um elemento normativo implícito: o desenvolvimento sustentável. Como o meio ambiente possui recursos limitados e escassos, reconhece o constituinte que ao desenvolvimento econômico devem ser acrescidas a preservação dos recursos naturais e a busca do bem estar social. É exatamente ai que nasce constitucionalmente o princípio do desenvolvimento sustentável. Se o desenvolvimento sustentável é rumo para todas as atividades econômicas efetuadas em âmbito nacional, também o será para as atividades energéticas. Ao Estado, desse modo, não basta prover acesso à energia elétrica com universalidade, é preciso também fazê-lo na perspectiva da sustentabilidade. A energia eólica, por sua versatilidade, pelo potencial ambiental que possui, pela complementaridade que oferece à matriz energética nacional é caminho apto a colaborar com o acesso universal e sustentável à energia elétrica. Por serem o desenvolvimento sustentável e a energia eólica elementos centrais do presente estudo, o tópico a seguir os abordará especificamente. 194

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3  O  desenvolvimento sustentável como diretriz energética nacional e a sua concretização via parques eólicos

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ambiente, elemento indispensável à vida humana na terra, tem recebido atenções frequentes nos dias atuais, especialmente no que diz respeito à necessidade de sua tutela diante do exercício das atividades econômicas, como é o caso da geração de energia elétrica em suas mais variadas formas6. O princípio do desenvolvimento sustentável, nesse sentido, foi agregado ao ordenamento jurídico brasileiro como elemento norteador do exercício das atividades econômicas. Inicialmente consubstanciado na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, foi adotado pela Constituição Federal de 1988 (caput do art. 225 e art. 170, IV), sendo reproduzido em normativas infraconstitucionais específicas, a exemplo da Lei Federal n.º 9.478, de 1997, instituidora dos objetivos e princípios da Política Energética Nacional. Do exposto, depreende-se que a sustentabilidade foi reconhecida como dever fundamental pela Constituição Federal de 1988 através do princípio do desenvolvimento sustentável. O princípio do desenvolvimento sustentável impõe o dever solidário ao Poder Público e à sociedade em promover o desenvolvimento limpo, abrangendo os valores sociais, ambientais, jurídicos e econômicos. Para Guido Soares, desenvolvimento sustentável nada mais significa do que inserir nos processos decisórios de ordem política e econômica, como condição necessária, as considerações de ordem ambiental.7 O Estado, assim, ao prover aos indivíduos o direito de acesso universal à eletricidade não poderá desconsiderar a diretriz da sustentabilidade. Seja como executor direto das atividades de eletricidade ou como agente normativo e regulador, o Estado deverá considerar em suas atuações e decisões a meta da sustentabilidade. O princípio do desenvolvimento sustentável deve estar presente no 6 .  CANOTILHO, J. J. Gomes. LEITE, José Rubens Morato. (Organizadores). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva. 2007. p. 286. 7 .  SOARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. Emergência, Obrigações e Responsabilidades. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2001. p. 81. 195

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desenvolvimento econômico que, por sua vez, deverá ter a questão ambiental como limite, em prol da manutenção da vida digna para as presentes e futuras gerações. Juarez Freitas ensina que o desenvolvimento sustentável introduz, intencionalmente, na sociedade e na cultura, o paradigma axiológico e existencial da sustentabilidade homeostática, que precisa reunir os seguintes aspectos nucleares: a) é determinação ética e jurídico-institucional, oriunda diretamente da Constituição, de responsabilização de todos pelos direitos presentes e futuros ao ambiente qualificadamente sadio e favorável ao bem-estar, monitorado por metas e indicadores viáveis; b) é determinação ética e jurídico-institucional de responsabilidade objetiva pela prevenção e pela precaução, de maneira que se chegue antes dos eventos danosos, à semelhança do que sucede nos dispositivos antecipatórios biológicos; c) é determinação ética e jurídico-institucional de sindicabilidade e aprofundada das escolhas públicas e privadas, de sorte a evitar cautelarmente mitos comuns, armadilhas falaciosas e políticas inconsistentes, com o dever de promoção segura e concomitante do desenvolvimento material e imaterial (valorativo e sutil); d) é determinação ética e jurídico-institucional de responsabilidade pela educação ambiental voltada ao desenvolvimento de baixo carbono, compatível com os valores supremos da Carta, que não confundem com os do crescimento material, considerado como o fim em si mesmo. Ou seja, uma reeducação valorativa “esverdeada” é ponto de destaque em qualquer programa constitucional, digna de nome.8 Assim, para que qualquer empreendimento, como é o caso daqueles atinentes à matriz energética, seja reconhecido como sustentável ambientalmente, necessariamente precisa restar comprovado que é atividade devidamente autorizada, em consonância com a legislação ambiental pertinente, bem como em conformidade material com o sentimento constitucional de sustentabilidade. Ou seja, os empreendimentos energéticos devem ser promotores do bem-estar social, viabilizadores da geração de emprego, com cautela ambiental, nos limites de capacidade do meio ambiente. A política energética brasileira, responsável por conformar todas as atividades energéticas nacionais, inclusive as atividades de energia eólica, é disciplinada em sua mais basilar essência pela Lei Federal nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, mais conhecida como “Lei do Petróleo”. 8 .  FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro. 1 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 32/33. 196

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Apesar do apelido, a lei em questão não se limita aos temas do petróleo, também dispondo sobre biocombustíveis, gás natural e sobre energia em sua generalidade. A Lei Federal nº 9.478/1997 apresenta a essência da Política Energética Nacional em seus dispositivos iniciais, na medida em que enumera os seus princípios regentes e objetivos fins. Inúmeros dos objetivos e princípios da política energética nacional apresentados expressamente na Lei do Petróleo possuem o enfoque ambiental; são exemplos: a) proteção do meio ambiente; b) conservação de energia; c) uso de fontes alternativas de energia mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponíveis e das tecnologias aplicáveis; c) o incremento, em bases econômicas, sociais e ambientais, da participação dos biocombustíveis na matriz energética nacional; d) a mitigação das emissões de gases causadores de efeito estufa e de poluentes nos setores de energia e de transportes, inclusive com o uso de biocombustíveis. Diante do exposto, é possível concluir pelo dever de respeito ao desenvolvimento sustentável no desenvolvimento de políticas energéticas nacionais. Dividindo esforços rumo ao desenvolvimento sustentável, em paralelo a lei que expõe os princípios e objetivos da PEN, encontra-se a Lei da Política Nacional de Conservação de Energia, nº 10.925, de 17 de outubro de 2001, que dispõe sobre a Política Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia e dá outras providências. A mencionada norma estabelece que a Política Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia objetiva a alocação eficiente de recursos energéticos e a preservação do meio ambiente. Segundo Paulo de Bessa Antunes, esse é um reconhecimento formal de que o desperdício de energia é um fator de degradação ambiental9. Acresça-se à normativa exposta, igualmente na busca pelo desenvolvimento sustentável energético, a Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002, aqui já mencionada e responsável por criar o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa). A citada Lei institui o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica PROINFA, com o objetivo de aumentar a participação da energia elétrica produzida por empreendimentos de Produtores Independentes Autônomos, concebidos com base em fontes eólica, pequenas centrais hidrelétricas e biomassa, no Sistema Elétrico Interligado Nacional. De 9 .  ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 1023. 197

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acordo com os dizeres da lei em questão, há dever de incremento específico à energia eólica. O complexo normativo constitucional e infraconstitucional aqui brevemente exposto revela quão lícito, necessário e apropriado é o fomento às fontes alternativas de energias na busca pelo desenvolvimento sustentável. Nesse interim, como fonte alternativa de energia, destaca-se e energia eólica. Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), denomina-se energia eólica a energia cinética contida nas massas de ar em movimento (vento). Seu aproveitamento ocorre por meio da conversão da energia cinética de translação em energia cinética de rotação, com o emprego de turbinas eólicas, também denominadas aerogeradores, para a geração de eletricidade, ou cataventos (e moinhos), para trabalhos mecânicos como bombeamento d’água10. A ANEEL aponta que estudos realizados e em andamento demonstram que, no Brasil, a participação da energia eólica na geração de energia elétrica ainda é pequena. Em setembro de 2003 havia apenas seis centrais eólicas em operação no País, perfazendo uma capacidade instalada de 22.075 kW11. O Relatório Wind Force 10 demonstra que é plenamente possível complementar, em pelo menos 10% (dez por cento), a geração de energia elétrica mundial utilizando energia eólica, reconhecendo a energia eólica como uma fonte vantajosa economicamente e antenada com as questões ambientais 12. No Brasil, o potencial da energia eólica já foi comprovado por diversos levantamentos e estudos realizados e em andamento, os primeiros estudos foram feitos na região Nordeste, principalmente no Ceará e em Pernambuco13. Ressalta-se que o Ceará atualmente reúne o maior parque eólico do país, com 267,90 MW (megawatts) de energia sendo geradas pelo vento em 11 usinas já instaladas. De acordo com o Atlas do Potencial Eó10 .  ANEEL. Energia eólica. Disponível em: . Acesso em 21 de set. 2013. 11 .  ANEEL. Energia eólica. Disponível em: . Acesso em 21 de set. 2013. 12 .  REENPEACE International, European Wind Energy Association (EWEA) and Forum For Energy And Development - Fed. Wind Force 10 – A Blueprint To Achive 10% Of The World’s Electricity From Wind Power By 2020. London, 1999.

lico Brasileiro, publicado pelo Centro de Pesquisas de Energia Elétrica da Eletrobrás, o território brasileiro tem capacidade para gerar até 140 GW14. A doutrina aponta vários benefícios na utilização da energia eólica, pois reduzem os impactos ambientais e não emitem gases de efeito estufa, além de fomentar os avanços tecnológicos do setor, o que finda por gerar implicações positivas socioeconômicas15. Entre outros fatores positivos destacam-se a preservação de recursos hidráulicos, o fato de a energia eólica não produzir emissões perigosas e de ser completamente renovável. Entre os aspectos negativos suscitados, encontram-se os possíveis impactos com a fauna, em especial com os pássaros; os impactos com os possíveis ruídos gerados pelas estruturas de hélices; o uso da terra, uma vez em que as fundações das turbinas, ficam normalmente enterradas; e o impacto visual, pois as fazendas eólicas devem ser instaladas em áreas livres (sem obstáculos naturais) para que sejam comercialmente viáveis, sendo, desta forma, visíveis16. Mesmo com a enumeração de variados aspectos negativos, os aspectos positivos se sobressaem nessa atividade. A necessidade de licenciamento e monitoramento ambiental de todo o empreendimento reforçam o apoio à produção de energia na via eólica no país. O licenciamento ambiental é elemento de prevenção de danos ambientais disciplinado pela Lei Federal nº 6.938/1981, responsável por instituir a Política Nacional de Meio Ambiente; Lei Complementar nº 140, de 08 de dezembro de 2011; e nas Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente – CONAMA. Em face dos princípios ambientas, com ênfase na precaução e prevenção, os parques eólicos devem ser previamente licenciados, sendo notória a necessidade e importância da obtenção de licenças ambientais a possibilitar a operação dessas atividades. Os empreendedores ainda devem elaborar e apresentar ao órgão ambiental licenciador o Estudo de Impacto Ambiental, demonstrando os impactos negativos e positivos do empreendimento, no aspecto ecológico, econômico e social. A realização de Estudo de Impacto Ambiental, além de previsão constitucional (art. 225, § 14 .  BRASIL. Atlas do Potencial Eólico Brasileiro . Acesso em 21 de set. 2013. 15 .  MARTINS, F. R.; GUARNIERI, R. A.; PEREIRA, E. B. O aproveitamento da energia eólica. Revista Brasileira de Ensino de Física. v. 30, n. 1, p.1304-1 a 1304-13, 2008.

13 .  ANEEL. Energia eólica. Disponível em: . Acesso em 21 de set. 2013.

16 .  TERCIOTE, Ricardo. A energia eólica e o meio ambiente. . Acesso em 21 de set. 2013.

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1º), está regulamentada na Resolução nº 001/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, e é exigível a atividade efetiva ou potencialmente poluidora ou degradadora do meio ambiente. Dessa forma a atividade será sempre previamente conhecida e possível de ser monitorada e fiscalizada pelos órgãos ambientais, através da competência comum constitucional. Os impactos positivos da atividade, que já são inúmeros, se reforçam nesse contexto. Nesse sentido, assinalam-se os significativos ganhos da sociedade na utilização dessa fonte alternativa, como, por exemplo, a redução na emissão de poluentes atmosféricos; a diminuição da necessidade de construção de grandes reservatórios para hidroeletricidade; e a redução do risco gerado pela sazonalidade hidrológica. A energia eólica é fonte alternativa renovável que agrega diversas vantagens na geração de energia elétrica. Se a geração de energia elétrica através de fontes alterativas deve ser fomentada por ser um dos objetivos da Política Energética Nacional, da Política Nacional de Conservação de Energia e do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica, igualmente deve ser fomentada a geração de energia em parques eólicos. Diante do grande potencial brasileiro, a energia eólica se coaduna como uma saída sustentável para a matriz energética brasileira, contribuindo para a estabilização energética e para a universalização da energia. Igualmente, o desenvolvimento da energia eólica, como fonte alternativa, está em consonância com os ditames do desenvolvimento sustentável, ou seja, com o tripé: fomento econômico, bem-estar social e respeito ao meio ambiente.

4  Regulação da energia eólica no Brasil

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endo em vista o fracasso da adoção da doutrina liberal, que concebia o mercado como autossuficiente no que tange à sua própria regulação, o Estado, dadas as circunstâncias gravosas17 que levaram a crer que a “mão invisível”18 não seria suficiente para conferir igualdade 17 .  Refere-se, aqui, às circunstâncias que levaram ao declínio da difusão dos ideiais liberais, no início do século XX, com as Grandes Guerras e a Crise da Bolsa de Nova Iorque, que teve seu estopim em 1929, consoante historia Eric Hobsbawm, no capítulo “A Era da Catástrofe” de sua obra: Era dos Extremos: O breve século XX : 1914-1991. Tradução Marcos Santarrita; revisão técnica Maria Célia Paoli. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 18 .  SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p.53. 200

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material a todos os entes da sociedade, transmudou-se em sua função, passando da “ausência” perante as forças econômicas a uma função sobremaneira interventora19. No Brasil, a Constituição de 1988 inaugurou um novo modelo de Estado pautado na ideia de que somente se justificaria a atuação direta como agente de mercado por imperativo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conferindo-lhe, em contrapartida, uma importante função pautada em seu poder extroverso. Assim, o novo Estado passaria a ter uma função reguladora, devendo se utilizar dos diversos instrumentos normativos e fiscalizatórios que estão à sua disposição para alcançar o equilíbrio das forças econômicas. Nesse contexto, foi adotado o modelo de agências reguladoras, já utilizadas no direito americano, bem como no direito europeu, sob a denominação de autoridades independentes, no fito de implementar o seu poder regulador, descentralizando o poder com relação às funções desempenhadas pelo Poder Executivo. Assim, a regulação pode se dar através de um conjunto de atividades estatais que, somadas, buscam equilibrar as forças de mercado, do que resulta ser aquela termo complexo, que pode ser compreendido como a ação estatal para frear a tendência natural de sobreposição dos grandes agentes econômicos sobre os pequenos e sobre a sociedade como um todo; isto é, seria uma mão visível, que concede ao mercado uma liberdade assistida. No que tange ao tema do trabalho, o bem energia elétrica, conforme visto, constitui-se como resultado de conversões energéticas a partir de fontes primárias de origens diversas (hidráulica, nuclear, solar, eólica, combustíveis fósseis, etc), de modo que, feita a conversão de geradores e transportada até os centros de consumo, a energia é consumida, e, face à distância entre o ponto de geração e o de consumo, classifica-se tal bem como móvel20, sendo objeto de diversas relações, jurídicas e econômicas, as quais são regidas tanto pelo direito privado quanto público, tendo em vista que, além da relação consumerista, a Constituição, no art. 21, XII, b, alçou a sua prestação à categoria de serviço público de titularidade da União, em articulação com os Estados onde se localizam os 19 .  SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. São Paulo: Forense Jurídica, 2009. p. 1. 20 .  CAMPOS, Clever. Curso Básico de Direito de Energia Elétrica. Rio de Janeiro: Synergia, 2010. p. 10. 201

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potenciais hidroenergéticos, que pode prestá-lo através de concessões, permissões ou autorizações, demonstrando o influxo de normas oriundas dos diversos ramos do Direito. Assim, para regular a prestação de tal serviço público foi criada, através da Lei n.º 9.427/1996, a ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, que a exerce por meio da fiscalização das atividades, bem como promove o fomento, diante das crescentes demandas por fontes de energia sustentáveis, da exploração de meios de geração de energia renováveis ou não poluentes. A energia elétrica oriunda do potencial eólico enquadra-se, portanto, nas novas perspectivas de geração de energia, visando, sobretudo, a concretização do direito ao meio ambiente equilibrado, bem como ter em conta que as fontes não renováveis colocam o país sempre em situação de dependência com relação aos demais Estados exportadores de energia. Por isso, deveras importante debruçar-se sobre as regras que regem a exploração de tal atividade por meio de recurso natural presente em nosso território, que comporta um potencial energético eólico mapeado de aproximadamente 140 GW, correspondente a mais de 10 usinas de Itaipu, conforme dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE)21, sendo imprescindível a geração de um ambiente institucional seguro e simplificado para atrair investimentos no setor. Conforme dados da ANEEL22, em setembro de 2003 havia apenas 6 centrais eólicas em operação no País, perfazendo uma capacidade instalada de 22.075 kW, destacando-se Taíba e Prainha, no Estado do Ceará, que representavam 68% do parque eólico nacional. Hoje este cenário se alterou, pois a referida fonte renovável vem atraindo cada vez mais investimentos, o que implica, portanto, numa maior preocupação com a regulação específica da referida atividade, pois, apesar de se tratar da prestação de serviço de energia elétrica, tem peculiares características atinentes à própria conformação física dos aerogeradores. No que diz respeito a incentivo do setor, o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), que previa o início 21 .  Entretanto, segundo estima o presidente da mesma, Maurício Tolmasquim, o Brasil teria capacidade para gerar até 300 mil MW, valor muito superior ao que se encontra mapeado. Notícia publicada sob o título “Potencial eólico no País equivale a até 30 usinas de Itaipu”, de autoria de Daniela Amorim e Alexandre Rodrigues, no sítio eletrônico da Agência Estado. Disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia,potencial-eolicono-pais-equivale-a-ate-30-usinas-de-itaipu,64801,0.htm. Acesso em 20 de setembro de 2013. 22 .  Disponível em: www.aneel.gov.br/aplicacoes/atlas/pdf/06-energia_eolica(3).pdf 202

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de funcionamento de atividades até o ano de 2010, conforme descrito no Decreto nº 5.025, de 2004, foi instituído com o objetivo de aumentar a participação da energia elétrica produzida por empreendimentos concebidos com base em fontes eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas (PCH) no Sistema Elétrico Interligado Nacional (SIN)23, tendo sido importante meio de estímulo à captação de investimentos para o setor eólico nacional. Nesse mister, ficou estabelecido que o Ministério de Minas e Energia (MME) seria o responsável por gerir o programa, definindo suas diretrizes, planejamento e valor econômico de cada fonte e que a Eletrobrás executaria o mesmo através da celebração de contratos de compra e venda de energia (CCVE)24. Importante ressaltar que, com relação à fonte eólica, em si, não existe uma legislação específica que trate do assunto, cingindo-se a normas infralegais, como resoluções, portarias e editais específicos para a concessão de parques eólicos, aplicando-se as leis atinentes ao setor elétrico como um todo. Registre-se, por oportuno, que as distribuidoras de serviço público de energia elétrica, ligadas ao Sistema Interligado Nacional (SIN), devem garantir o fornecimento integral de seu mercado consumidor, nos termos da Lei n.º 10.848/2004, o que será efetivado por meio de compras de energia das empresas geradoras, das mais diversas fontes, o que pode ser realizado mediante a firmação de contratos de concessão firmados após a devida licitação, mas também se admite, no direito brasileiro, a geração de energia elétrica por produtores independentes. Esclareça-se, assim, que as empresas geradoras de energia elétrica através da fonte eólica, recebem uma outorga de concessão do Poder Público para assim funcionarem, mas podem realizar suas atividades, também, independentemente de concessão ou vínculo obtido por meio de licitação, atuando como produtoras independentes, devendo haver, entretanto, autorização do Ministério de Minas e Energia nesse sentido, como no caso da empresa Gestamp Eólica Jardins S/A, que, através da Portaria n.º 309, de 23 de maio de 2012, do referido Ministério, passou a se estabelecer como Produtora Independente de Energia Elétrica, mediante a implantação e exploração da Central Geradora Eólica denominada EOL Parque Eólico Cabeço Preo V, devendo cumprir com os requisitos 23 .  http://www.mme.gov.br/programas/proinfa/ 24 .  http://www.mme.gov.br/programas/proinfa/ 203

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estabelecidos na legislação pertinente, bem como a Resolução n.º 389 ANEEL, vindo, posteriormente, a comercializar a energia obtida de seus geradores com as concessionárias de distribuição de energia elétrica. Além disso, podem gerar energia elétrica os chamados autoprodutores, que são agentes que produzem energia elétrica destinada a seu uso exclusivo, mediante autorização, podendo comercializar eventual excedente de energia, desde que autorizado pela ANEEL. Dessume-se, portanto, que no âmbito da geração de energia elétrica obtida da fonte eólica, existem dois ambientes distintos, quais sejam, o do livre mercado, denominado Ambiente de Contratação Livre (ACL) e o Ambiente de Contratação Regulado (ACR). A coexistência de ambos os ambientes gera, no mínimo, controvérsias no que diz respeito à concretização do direito fundamental à energia elétrica, pois enquanto a Constituição Federal, em seu art. 21, XII, b, prevê que é a União a titular da prestação do serviço público de energia elétrica, vem se consolidando, no direito brasileiro, a possibilidade de exploração da atividade de geração de energia sem que haja uma seleção pública, com igualdade de condições, o que leva a crer que tal costume administrativo (porque o produtor independente deve ser autorizado pelo Poder Público) viola o princípio da livre concorrência e o princípio da competitividade, que rege a licitação. Todavia, percebe-se que tal situação passou a ser admitida como legítima, nos últimos anos, em virtude da crise energética instaurada no início da década dos anos 2000, numa tentativa de difundir as possibilidades de investimento no setor, bem assim através da interpretação de que o art. 21, XII, b, da Constituição prevê que o serviço seja prestado mediante autorização. Tal situação, porém, ocasiona uma verdadeira insegurança jurídica, pois, ainda que se aponte a necessidade de autorização da União, através do Ministério de Minas e Energia, como uma ingerência regulatória do Estado, essa não é suficiente para estabelecer a segurança das relações jurídicas oriundas da geração de energia, e atinge frontalmente o princípio da isonomia. Com relação, de seu turno, à comercialização da energia elétrica produzida, conforme previsão do art. 12 da Lei n.º 9.648/98, poder-se-ia comercializar tal bem perante o Mercado Atacadista de Energia Elétrica, que tinha funcionamento semelhante a uma bolsa de valores, com as regras de seu exercício previstas na Resolução ANEEL n.º 265/98 e passou a ser gerido pela Administradora de Serviços do Mercado Atacadista de

Energia Elétrica (ASMAE), que iniciou suas atividades em 01/01/2000. Contudo, com a prefalada crise energética instaurada em 2001, ficou exposta a fragilidade do sistema de livre mercado de energia elétrica, tornando-se imperiosa, na esteira da finalidade regulatória do Estado brasileiro, que este tornasse a se imiscuir em tal mercado, no fito de ver atendido o direito de acesso à energia elétrica por todos, de modo que a Medida Provisória n.º 29, convertida na Lei n.º 10.433/02, promoveu alterações jurídicas no Mercado Atacadista, convertendo-o em pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos e submetendo-o à autorização, regulamentação e fiscalização da ANEEL25. Após isso, fora criada a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), com Lei n.º 10.848/04, que tem natureza de pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos e é responsável pela comercialização de energia elétrica entre as empresas geradoras desse bem às concessionárias distribuidoras, sob o manto da regulação da ANEEL. Esse instrumento fora criado no fito de ver concretizado o direito fundamental à energia elétrica, e com o escopo de garantir que todos possam ter acesso a esse bem, principalmente quando se denota que são os grandes consumidores de energia elétrica, os que mais têm interesse na permanência do livre mercado, sendo que, em conformidade com as diretrizes firmadas pelo governo atual (2011-2014), novas fontes de energia devem ser buscadas, privilegiando-se as fontes renováveis. Portanto, nas linhas a seguir, serão delineadas algumas regras básicas a serem seguidas pelo Estado e por aquelas empresas que pretendem explorar a atividade de geração de energia elétrica através da fonte eólica no Ambiente de Contratação Regulada (ACR). É cediço que, para prestar atividade com natureza de serviço público, mister que a Administração Pública promova o necessário processo licitatório, nos termos do art. 37, XXI, Lei n.º 8.666/93, Lei n.º 8.987/95, a qual, nos termos do §4º, do art. 2º, da Lei n.º 9.491/97, que criou o Programa Nacional de Desestatização – PND, deverá se dar pela modalidade Leilão, a despeito da obrigatoriedade de concorrência para demais concessões de serviços públicos, o qual será promovido pela ANEEL, consoante se denota do art. 3º, II, da Lei n.º 9.427/96. Entretanto, tal leilão, nos termos do art. 18-A, da Lei nº. 8.987/1995, será realizado com inversão da ordem de fases, contrariando o procedi-

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25 .  CAMPOS, Clever. Curso Básico de Direito de Energia Elétrica. Rio de Janeiro: Synergia, 2010. p. 58. 205

mento comum previsto na Lei n.º 8.666/93, visando, outrossim, dar maior efetividade ao mesmo, de maneira que, após a fase de oferecimento de lances, serão analisados os documentos de habilitação das empresas denominadas vendedoras de energia, para verificação do atendimento das condições fixadas no correspondente Edital. Segundo editais publicados pela ANEEL para outorga de concessão da geração de energia de fonte eólica, é objeto do leilão a contratação de Energia de Reserva proveniente de empreendimentos de geração, a partir da fonte eólica, destinada ao Sistema Interligado Nacional (SIN), no Ambiente de Contratação Regulada (ACR), o que será firmado através de Contrato de Energia de Reserva (CER), na modalidade “quantidade de energia”, implicando dizer que o serviço será remunerado única e exclusivamente em razão do quantitativo produzido e comercializado, devendo a empresa exploradora da atividade arcar com os riscos da dissipação de energia. Não significa dizer, outrossim, que estes riscos não serão pagos pelo consumidor final, porquanto estarão embutidos no preço de comercialização pelas empresas eólicas. Ademais, para que possa vir a ser vencedora do certame, a empresa vendedora de energia deverá, necessariamente, constituir uma Sociedade de Propósitos Específicos, isto é, uma empresa destinada tão somente à exploração daquela atividade e com o intuito de gerir tão somente aquela concessão estatal, registrada, preferencialmente sob a forma de Sociedade Anônima, para receber a outorga de Autorização. No caso de pessoas jurídicas de direito privado estrangeiras, quando concorrerem isoladamente, deverão criar uma Sociedade de Propósito Específico (SPE), constituída sob as leis brasileiras, para fins de outorga de Autorização, e quando concorrerem consorciadas com Pessoa Jurídica de Direito Privado brasileira, a liderança do consórcio caberá, sempre, à Pessoa Jurídica de Direito Privado brasileira, sendo também obrigatória a constituição de SPE para fins de outorga de Autorização. Registre-se, ainda, a necessidade de terem um representante legal no Brasil, com poderes expressos, mediante procuração por instrumento público ou particular, com firma reconhecida em cartório, para receber citação e responder administrativa e judicialmente no País, bem como representá-la em todas as fases do processo, condições essas que deverão estar expressamente indicadas em seus documentos de Qualificação Jurídica. Em se tratando, de seu turno, de consórcio de empresas, brasileiras ou estrangeiras com pelo menos uma brasileira, as obrigações pe-

cuniárias perante a ANEEL são proporcionais à participação de cada consorciada, sem prejuízo da responsabilidade solidária, sendo a líder do consórcio a responsável por todas as informações de interesse da Autorização para o cumprimento das responsabilidades do consórcio perante a ANEEL, sendo que a composição do consórcio não poderá ser alterada até a outorga de Autorização. Posteriormente, caso haja mudança de participação, o consórcio deverá solicitar prévia anuência da ANEEL para transferência de parte ou de toda a outorga, conforme inciso VIII do art. 3º, da Lei nº. 9.427/1996, e inciso XII do art. 4° do Decreto 2.335/1997, mantidas as condições do Edital até a operação do empreendimento, se for o caso. Também importante ressaltar que a ANEEL fixa um cronograma a ser seguido pela empresa, após ser declarada vencedora do leilão, indicando, também, a data para início do funcionamento, prevendo, entretanto, que algumas fases podem demorar mais em razão da natureza do ato a ser executado. Conforme os diversos editais da ANEEL, a empresa de energia eólica deverá, antes da licitação, obter a Licença Prévia de instalação – LP, após vencer a licitação, providenciar a obtenção da Licença Ambiental de Instalação – LI e iniciar a implantação do canteiro de obras para realizar as obras civis das estruturas, concretar as bases das unidades geradoras, montar as torres das unidades aerogeradoras, iniciar as obras da subestação e/ou da linha de transmissão e concluir, assim, a montagem das torres das unidades geradoras. Posteriormente, deve buscar a obtenção da licença Ambiental de Operação – LO, para iniciar a operação em teste (inserir uma linha para cada unidade geradora ou grupo de unidades geradoras), e, só então começar as atividades de operação comercial. Por fim, insta asseverar, que, uma vez fixado o prazo para a empresa vendedora de energia iniciar as operações comerciais pela ANEEL, não sendo este cumprido, sujeitarão aquela às penalidades estabelecidas na Resolução Normativa nº. 63/2004, sem prejuízo do disposto no parágrafo único do art. 7º do Decreto nº. 6.353/2008 e nos respectivos Contratos. Por sua vez, o descumprimento do cronograma físico apresentado à ANEEL implicará, além das penalidades previstas na regulamentação específica, a execução da Garantia de Fiel Cumprimento recolhida pelas vendedoras, conforme processo administrativo instaurado especialmente para este fim, assegurados o contraditório e a ampla defesa, ressalvando-se, entretanto, os casos de atraso comprovadamente pro-

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vocados por atos do Poder Público e/ou os decorrentes de caso fortuito ou de força maior. Pelo que se denota, ainda, dos referidos editais, é possível que seja antecipada a entrada em operação comercial dos empreendimentos de geração, desde que os sistemas de transmissão ou de distribuição associados estejam disponíveis para operação comercial, na data antecipada de entrada em operação comercial do empreendimento, sendo a energia de reserva produzida remunerada pelo preço contratual que for vigente no ano em que ocorrer o início do suprimento, atualizado pelo IPCA. As regras acima delineadas resultam da análise dos diversos editais publicados pela ANEEL para a outorga de autorização de geração de energia elétrica através da fonte eólica, sendo certo se dizer que, como foram instituídas através do poder regulatório da agência em apreço, podem vir a ser alteradas por lei. Desta forma, dessume-se que, a despeito da inexistência de leis específicas para regulamentar a geração de energia por meio da fonte eólica, não há óbice à regulação implementada pela ANEEL, que, com base nas especificidades técnicas do setor, busca atender à sua finalidade precípua. Outrossim, caso alguma regra infralegal estabelecida pela agência reguladora venha a ferir direitos legalmente instituídos, deve-se primar pela interpretação judicial, a despeito de ser possível o estabelecimento da cláusula arbitral em tais contratos, sempre atentando para o fato de que, somente alcançaremos o desenvolvimento com a fixação de regras firmes que garantam, para a alocação de investimentos em tal área, a segurança jurídica o que, para tal setor, significa, segurança econômica.

5  Conclusões

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iante de todo o conteúdo relatado, indubitável se revela a caracterização do acesso à energia como direito fundamental social. A ligação que esse acesso possui com as ideias de desenvolvimento e dignidade humana reforça essa tese. As liberdades e caminhos que nascem diante dos sujeitos a partir do acesso à eletricidade lhes permite viver com dignidade. O Estado, atento ao dever que possui de viabilizar dignidade de vida aos sujeitos, é prestador necessário do acesso universal e sustentável à energia elétrica no país. Do referido estudo, pode-se concluir que a

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fonte eólica mostra-se um eficiente meio de concretização do direito fundamental à energia elétrica, porquanto amplia o espectro de fontes a serem buscadas pelas distribuidoras que possuem o dever de garantir o suprimento integral das necessidades energéticas de seu mercado consumidor. Ademais, coaduna-se com o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, encartado no art. 225, da Constituição Federal, pois, a despeito dos impactos ambientais gerados, como poluição sonora e visual, configura-se como energia renovável, bem como a proporção dos impactos supera a eficiência econômico-ambiental comparada com outras fontes energéticas. Também ficou demonstrado que, a despeito de inexistir legislação específica e pormenorizada relativa à fonte eólica, a legislação atinente à energia elétrica, como um todo, aliada ao poder normativo e fiscalizador da ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, são suficientes para dar respostas satisfatórias ao setor, haja vista a regulação específica delineada nos editais licitatórios e em resoluções normativas. De toda forma, indispensável se faz reconhecer a existência de obstáculos a serem superados para a implantação de um ambiente seguro, do ponto de vista institucional, hábil a fornecer subsídio à alocação de investimentos, nacionais ou estrangeiros e conseguir, com isto, implementar o direito ao desenvolvimento. O desenvolvimento a ser buscado na perspectiva energética não deve ser encarado apenas no viés do crescimento, também devendo englobar o perfil social e ambiental hoje indissociáveis. A política energética nacional, política pública extremamente relevante, deve objetivar suprir as demandas atuais, sem prejuízo das gerações futuras, concretizando o desenvolvimento de forma sustentável. Para que dos ventos nasça a concretização da ideia constitucional de desenvolvimento não se deve abandonar a diretriz da justiça intergeracional.

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11 A EXCLUSÃO AMBIENTAL NO BRASIL: UMA DISCUSSÃO DO RACISMO AMBIENTAL E DA BIOPOLÍTICA Ivy de Souza Abreu

1  INTRODUÇÃO

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vida humana e suas necessidades e implicações adquiriram status de fator decisório na política desde a modernidade. A gestão da vida se tornou fundamental na política: a decisão de fazer viver e deixar morrer compete ao soberano. É neste contexto de viver e morrer, excluir e incluir, que a biopolítica se apresenta. No cenário contemporâneo de biopoder e de biopolítica o racismo adquire novas feições e assume papel de destaque, em especial com sua faceta ambiental. O racismo ambiental extrapola as questões meramente raciais e étnicas, abarcando as injustiças, os preconceitos e a desigualdade que afligem populações e grupos ambientalmente vulneráveis, sobre os quais recai um passivo ambiental exorbitante. Exteriorizam-se as relações entre estabelecidos e outsiders, entre vida política e vida nua (homo sacer), entre cidadãos e subcidadãos, entre opressores e oprimidos, entre incluídos e excluídos. A tensão entre esses grupos pode ser maximizada ou mitigada de acordo com as decisões biopolíticas do soberano. A dignidade humana e a igualdade se equilibram na corda bamba das relações de poder frente ao estado de exceção que se naturaliza. É este panorama de injustiça e exclusão que se configura na realidade ambiental brasileira com a formação de vários grupos de excluídos ambientais, aqui denominados outsiders ambientais. Um dos casos mais emblemáticos da caracterização do outsider ambiental é a exclusão dos brasileiros sedentos, em especial na região Nordeste do país. Estes grupos enfrentam dois problemas que aqui merecem destaque: 211

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um problema ambiental – a seca – e um problema político – o descaso do poder soberano. Assim, indaga-se diante do contexto biopolítico brasileiro: Como as decisões biopolíticas, em especial em relação à questão da seca no Brasil, interferem na formação de grupos outsiders ambientais e no racismo ambiental? Eis a problemática que será trabalhada neste artigo.

2  A  BIOPOLÍTICA E O RACISMO AMBIENTAL: PRIMEIROS CONCEITOS

A

primeira referência ao termo biopolítica foi feita por Michel Foucault, “em sua conferência proferida no Rio de Janeiro em 1974 e intitulada ‘O nascimento da medicina social’”1. A temática continuou sendo trabalhada pelo autor, em especial, relacionando-a a questão da sexualidade, da medicina social e do biopoder. Giorgio Agamben trabalha a biopolítica relacionando os conceitos de soberania, homo sacer (via nua), campo de concentração2 e estado de exceção3. O poder soberano decide, em estado de exceção, quem caracteriza o homo sacer e, por isso, será excluído do convívio social e ignorado em suas necessidades mais básicas, sendo passível, inclusive, de exclusão territorial e banimento para os campos de concentração. Assim, as decisões políticas dos Estados perpassam pelas necessidades e implicações da vida humana. “A vida entrou na história, isto é, fenômenos da espécie humana entraram na ordem do saber e do poder, no campo das técnicas políticas”4. A gestão da vida se tornou imprescindível nos sistemas políticos contemporâneos. E é exatamente desta gestão política da vida que a biopolítica se incumbe. Assevera Pelbart que “a vida e seus mecanismos entram nos cálculos explícitos do poder e saber, enquanto estes se tornam agentes de

1 .  PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 55. 2 .  “Lógica da Soberania”, “Homo sacer” e “O campo como paradigma biopolítico do moderno” são as três partes nas quais a obra “Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I” se divide. (AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010). 3 .  O tema estado de exceção é abordado na obra “Estado de Exceção: homo sacer II”. (AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer II. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004). 4 .  PELBART, Peter Pál, Obra citada, 2003, p. 58. 212

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transformação da vida. A espécie torna-se a grande variável nas próprias estratégias políticas”5. A biopolítica se dirige “ao homem vivo, ao homem-espécie. [...] à multiplicidade dos homens enquanto massa global, afetada por processos próprios da vida, como a morte, a produção, a doença”6. Mortalidade, natalidade, doenças, epidemias, fome, saúde pública, imigração, emigração, habitação, xenofobia, racismo são problemas biopolíticos enfrentados pelos governos nacionais e que pesam muito na tomada de decisões. No atual contexto biopolítico a vida natural dos seres humanos se tornou um fator decisório nas intrincadas e complexas teias do poder soberano. Neste panorama de biopoder e de biopolítica é que o racismo toma novos contornos, inclusive com o racismo ambiental. O racismo deixa de ter apenas impacto racial estendendo-se a preconceitos e injustiças ocorridos com grupos vulneráveis, sejam histórica, econômica, social ou ambientalmente desprotegidos. Um triste cenário se descortina: a naturalização do preconceito, da desigualdade e do racismo, em todos os seus aspectos, na sociedade brasileira. Como traz a lume Herculano: “Racismo é a forma pela qual desqualificamos o outro e o anulamos como não-semelhante. [...] Assim, nosso racismo nos faz aceitar a pobreza e a vulnerabilidade de enorme parcela da população brasileira, com pouca escolaridade, sem renda, sem políticas sociais de amparo e de resgate, simplesmente porque naturalizamos tais diferenças, imputando-as a ‘raças’”7. E ainda Pacheco, “[...] é fundamental assumir que racismo e preconceito não se restringem a negros, afrodescendentes, pardos ou mulatos. Está presente na forma como tratamos nossos povos indígenas. Está presente na maneira como ‘descartamos’ populações tradicionais – ribeirinhos, quebradeiras de coco, geraiszeiros, marisqueiros, extrativistas, caiçaras e, em alguns casos, até mesmo pequenos agricultores familiares. Está presente no tratamento que damos, no Sul/Sudeste, principalmente, aos brancos pobres cearenses, paraibanos, maranhenses... Aos ‘cabeças-chatas’ em geral, no dizer preconceituoso de muitos, que deixam suas terras em busca de trabalho e encontram ainda mais miséria, tratados como 5 .  PELBART, Peter Pál, Obra citada, 2003, p. 58. 6 .  PELBART, Peter Pál, Obra citada, 2003, p. 57. 7 .  HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de gestão integrada em saúde do trabalho e meio ambiente. São Paulo, v. 3, n. 1, p. 1-20, jan./abr. 2008. Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2012, p. 17. 213

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mão-de-obra facilmente substituível que, se cair da construção, corre ainda o risco de ‘morrer na contramão atrapalhando o tráfego’”8. O problema do preconceito e do racismo no Brasil já extrapolou as questões raciais e étnicas e se alastrou não apenas no convívio social, mas também na vida política no país e nas decisões governamentais. A motivação para exclusão de brasileiros tem as mais variadas nuances, seja cor da pele, local de nascimento, tipo de trabalho ou ausência deste, local de residência, escolaridade, conta bancária, e, o que se destaca, a questão ambiental. Dentro deste contexto se inserem as discussões sobre justiça/injustiça ambiental e racismo ambiental. Tais conceitos foram trazidos pela Declaração de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, fruto do Colóquio Internacional sobre Justiça ambiental, Trabalho e Cidadania, realizado na cidade de Niterói-RJ em 2001. Assim: “Entendemos por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis. Por justiça ambiental, ao contrário, designamos o conjunto de princípios e práticas que: ŠŠ

a. asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas;

ŠŠ

b. asseguram acesso justo e equitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país;

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c. asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito;

8 .  PACHECO, Tania. Desigualdade, injustiça ambiental e racismo: uma luta que transcende a cor. Jan. 2007. Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2012, pp. 7-8. 214

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ŠŠ

d. favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso”.9 A exclusão adquire novas feições com a formação de grupos ambientalmente segregados. O racismo ambiental se configura de várias formas e com diferentes prejuízos às suas vítimas, que suportam de algum modo, um impacto ambiental negativo muito maior que as outras pessoas. O tratamento desigual em relação aos grupos ambientalmente excluídos é vergonhoso. Seja pela atitude permissiva do poder público ao não impedir que estes grupos sejam diretamente afetados por empreendimentos poluidores, seja pela omissão com a ausência de políticas públicas eficazes no combate a injustiça ambiental, seja pelo descumprimento do princípio da informação, seja com a inexistência de efetiva participação dos interessados – afetados – nos atos decisórios, seja pela falta de acesso aos recursos naturais, como é o caso dos nordestinos e a falta de água.

3  OS OUTSIDERS AMBIENTAIS NO BRASIL

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a apresentação da obra “Os estabelecidos e os outsiders” de Elias e Scotson10, Federico Neiburg traz a conceituação básica de estabelecidos e outsiders. As terminologias establishment ou established (os estabelecidos) designam grupos e indivíduos que ocupam posições de poder e prestígio, se consideram um modelo moral para os demais, assim, se autopercebem como socialmente melhores. E sua contraposição, os outsiders, são os não membros da “boa sociedade” dos estabelecidos, os que estão fora dela, associados à anomia, violência, delinquência e desintegração. Esta relação entre estabelecidos e outsiders de Elias e Scotson se coaduna diretamente com os conceitos de subcidadania de Jessé Souza e de homo sacer de Giorgio Agamben, outrossim, se aplicando à formação de grupos excluídos ambientais e ao racismo ambiental no Brasil.

9 .  DECLARAÇÃO de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Niterói, 2001. Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2012, pp. 1-2. 10 .  ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 7. 215

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No caso do homo sacer, para Agamben, “uma pessoa é simplesmente posta para fora da jurisdição humana sem ultrapassar para a divina”, sendo assim, matável, mas não sacrificável. “Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera”11. Assim, o homo sacer é uma figura intermediária entre os seres humanos, que não podem ser sacrificados, e os seres não humanos (animais)12, que são passíveis de sacrifícios. A relação entre vida natural e política se estabelece com a inclusão da vida nua (vida matável e insacrificável do homo sacer) como motivadora das tomadas de decisões dos Estados modernos, mesmo que no sentido da exclusão e do menosprezo, como foi no nazismo e ainda o é hodiernamente, com o racismo, por exemplo. Como Agamben afirma, “no homo sacer, enfim, nos encontramos diante de uma vida nua residual e irredutível, que deve ser excluída e exposta à morte como tal, sem que nenhum rito ou nenhum sacrifício possam resgatá-la”13. O homo sacer não faz jus a qualquer esforço da sociedade para ser resgatado de sua condição de matável, para ser salvo de seu contexto excludente, assim como são os outsiders. No estudo de Elias e Scotson, “constata-se que outsiders são vistos pelo grupo estabelecido como indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros”14. Sendo assim, inferiorizados e estigmatizados pelos estabelecidos, o que pode enfraquecer e desestruturar o grupo excluído. O “estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na autoimagem deste último e, com isso, enfraquecê-lo e desarmá-lo”15. Além do que esta estigmatização serve como um mecanismo de exclusão dos não estabelecidos e formação de uma massa de subcidadãos. Os subcidadãos, segundo Jessé Souza, detêm um habitus precário, ou seja, “seria um tipo de personalidade e de disposições de comportamento que não atendem às demandas objetivas para que, seja um indi11 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2010, pp. 83 e 85. 12 .  Considerando-se aqui o senso comum de que os seres humanos não são animais e estariam acima destes. Em termos biológicos de classificação das espécies (taxonomia), a espécie Homo sapiens é do Reino Animalia (portanto, um animal), Filo Chordata, Classe Mammalia, Ordem Primata, Família Homininae, Gênero Homo. 13 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, p. 100. 14 .  ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L, Obra citada, p. 27. 15 .  ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L, Obra citada, p. 24. 216

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víduo, seja um grupo social, possa ser considerado produtivo e útil [...] podendo gozar de reconhecimento”16. Assim, os subcidadãos situam-se abaixo dos considerados cidadãos (detentores de habitus primário) e muito abaixo dos sobrecidadãos (detentores de habitus secundário). O racismo ambiental em sua faceta excludente e preconceituosa tem como consequência a formação destes grupos excluídos, seja na forma de outsiders ambientais, seja na forma de homo sacer ambiental. A exclusão pressupõe, no mínimo, a mitigação da cidadania destes indivíduos, quiçá a extirpação completa desta cidadania, de um modo ou de outro, estes grupos ou indivíduos acabam se caracterizando pela subcidadania.

4  A  BIOPOLÍTICA E O RACISMO AMBIENTAL NO BRASIL COMO FORMA DE EXCLUSÃO DE CIDADÃOS

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o se tratar de exclusão e racismo, se faz necessário compreender o contexto atual de estado de exceção em que as decisões biopolíticas são tomadas. Walter Benjamin em seu texto “Sobre o conceito de história”, alerta: “VIII - A tradição dos oprimidos ensina-nos que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a essa ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de exceção; e assim a nossa posição na luta contra o fascismo melho­rará. A hipótese de ele se afirmar reside em grande parte no fato de os seus opositores o verem como uma norma histórica, em nome do progresso. O espanto por as coisas a que assistimos “ainda” poderem ser assim no século vinte não é um espanto filosófico. Ele não está no início de um processo de conhecimento, a não ser o de que a ideia de história de onde provém não é sustentável”.17 No atual contexto biopolítico de exclusão, em especial com a formação de grupos segregados por motivação ambiental, como é o caso 16 .  SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia

política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 167. 17 .  BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. v.1. 8. ed. rev. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 245. 217

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dos nordestinos brasileiros sedentos, fica evidente que se instaurou um estado de exceção permanente. O estado de exceção não é mais excepcional, se tornou a regra. E pior: o progresso acaba legitimando sua existência e sua perpetuação. A decisão biopolítica de retirar a humanidade de alguém ou de um grupo de indivíduos e de, portanto, torná-lo matável, excluído, outsider é do poder soberano. O limite entre vida e morte, entre inclusão e exclusão, entre cidadãos e subcidadãos é uma expressão da soberania. Entretanto, o poder soberano está fora do ordenamento jurídico, destarte, acima da lei, em se tratando de estado de exceção. O soberano “tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei”18, possibilitando o progressivo alargamento dos limites do estado de exceção e consequentemente, a permissividade ao regime totalitário. “O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”.19 Em consonância com Benjamin, alertam Agamben que “o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea”20 e Pelbart que “o soberano é aquele que decide do valor ou da falta de valor da vida enquanto tal [...]”21. Com a naturalização do estado de exceção quaisquer categorias de cidadãos podem perder seu valor e se tornarem matáveis. Qualquer um pode perder sua humanidade e se tornar o homo sacer. Quaisquer grupos podem ser inferiorizados e estigmatizados, transformando-se em outsiders. Os milhares, quiçá milhões, de brasileiros que morrem pela falta de água no Nordeste são um exemplo claro da inferiorização da vida humana de alguns com a formação dos aqui denominados outsiders ambientais. A utilização da biopolítica para perpetuação do estado de exceção no Brasil é evidente com o racismo ambiental. Intencionalmente, grupos vulneráveis arcam com as consequências gravosas dos danos ambientais, seja porque não têm voz – ou ninguém

quer ouvi-los –, seja porque não têm vez – ou ninguém os deixa falar –, seja porque, em termos de governabilidade, estes grupos excluídos constituam apenas uma grande massa para manobras políticas, nos dizeres de Sloterdijk, um “pretume de gente”22. Convivem ao mesmo tempo, paradoxalmente, dentro do Estado Democrático de Direito, a defesa e a garantia os direitos fundamentais e a possibilidade de suspensão de todos esses direitos pelo estado de exceção. A dignidade humana e a igualdade como direitos fundamentais frente ao significado biopolítico do estado de exceção: a exclusão de cidadãos, em especial, a exclusão ambiental e o consequente racismo ambiental. E pior: como estes grupos de outsiders são oprimidos, renegados e ignorados, inclusive e principalmente pelo poder público, apesar de constituírem um número enorme de indivíduos, a consciência de sua força política acaba se dissipando. As “massas que não se reúnem mais efetivamente tendem com o tempo a perder a consciência de sua potência política”23. “A exclusão de enorme quantidade de setores populacionais da participação e inserção [...], leva aqui, [...] a uma ‘reação em cadeia de exclusões’ e, por igual, também à pobreza política”24. Como afirma Agamben: “A dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoé-bíos, exclusão-inclusão”25. E é exatamente nesta zona limítrofe que a força política e a luta dos – e pelos – grupos desprivilegiados pode fazer a diferença. A defesa dos direitos fundamentais dos outsiders ambientais por diferentes setores sociais, inclusive pela academia, pode acarretar mudanças positivas e pesar na tomada de decisões biopolíticas pelo governo. A exteriorização da insatisfação da sociedade brasileira com a situação dos outsiders ambientais do nordeste se transmuta em um fator decisório. A partir do momento em que os cidadãos brasileiros demonstrarem sua repudia às promessas eleitoreiras de acabar com o problema da sede e de levar água ao sertão e apoiarem os grupos

18 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2010, p. 22.

23 .  SLOTERDIJK, Peter, Obra citada, 2002, p. 22.

19 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2004, p. 13. 20 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2004, p. 13.

24 .  MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma teoria da constituição dirigente. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 124.

21 .  PELBART, Peter Pál, Obra citada, 2003, p. 64.

25 .  AGAMBEN, Giorgio, Obra citada, 2004, p. 15.

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22 .  SLOTERDIJK, Peter. O desprezo das massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 11.

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ambientalmente excluídos, rejeitando o racismo ambiental e inserindo tais grupos no contexto das discussões políticas, a posição das decisões biopolíticas não será mais excludente. Assevera Carvalho: “O mundo contra o qual a crítica ecológica se levanta é aquele organizado sobre a acumulação de bens materiais, no qual vale mais ter do que ser, no qual a crença na aceleração, na velocidade e na competitividade sem limites tem sido o preço da infelicidade humana, da desqualificação e do abandono de milhões de pessoas, grupos e sociedades que não satisfazem esse modelo de eficácia”.26 O que se pretende, segundo Abreu, é permitir que as atividades humanas se desenvolvam “da forma menos impactante possível, evitando a alteração do equilíbrio ambiental e o esgotamento dos recursos naturais e tomando medidas cabíveis para minimizar o impacto gerado por essas atividades antrópicas”27. A distribuição do passivo ambiental não pode recair apenas sobre determinada categoria de indivíduos, socialmente excluídos. A faceta trágica da biopolítica com o racismo ambiental, a desconsideração de grupos vulneráveis e a formação de outsiders ambientais, pode ser redimensionada positivamente. É possível que os grupos excluídos, vistos apenas como massa votante (número de votos) e não como cidadãos que merecem respeito e cujos direitos fundamentais devam ser assegurados, deixem sua posição de outsider e retomem sua cidadania furtivamente esquecida pela máquina estatal. A situação precária dos brasileiros sedentos – um exemplo gritante de injustiça ambiental – que outrora foi plataforma eleitoral de muitos políticos – e ainda o é, pode ser mitigada com a efetivação participação dos cidadãos nas decisões biopolíticas, com a cobrança das promessas feitas nas eleições e com a luta pela defesa dos direitos fundamentais destes sertanejos que não têm força política e econômica, que não têm voz, que não têm visibilidade, mas que têm dignidade. Estes brasileiros são cidadãos dignos e esta condição de outsiders ambientais não lhes é justa. A subcidadania destes excluídos ambientais não pode ser aceita como natural.

26 .  CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico. São Paulo: Cortez, 2004, p. 68. 27 .  ABREU, Ivy de Souza. Holismo e proteção do meio ambiente com vistas a manutenção do equilíbrio ecológico: uma análise a partir do conceito de justiça em Aristóteles. Derecho y Cambio Social. Lima - Peru, ano X, n. 31, p.1-11, 01 jan. 2013. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 201, p. 5. 220

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5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

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biopolítica se manifesta nas relações de poder contemporâneas com a gestão da vida pelo soberano. As tomadas de decisões políticas perpassam, inevitavelmente, pelos binômios vida – morte, estabelecidos – outsiders, inclusão – exclusão e cidadania – subcidadania. A decisão biopolítica de fazer viver ou deixar morrer, valorando a vida humana com a exclusão de quem tem menos ou nenhum valor é uma dimensão injusta e trágica do biopoder e da soberania. Com a formação de grupos excluídos, os outsiders, o racismo fica em evidência. A vida nua, matável, descartável, irrelevante se espalha por diferentes grupos vulneráveis, inclusive, na esfera ambiental. Assim, o racismo transcende o preconceito racial e étnico e se materializa nas diferentes relações sociais, com a exclusão de pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade. Um caso grave de racismo ambiental no Brasil que se destaca é o da exclusão dos brasileiros sedentos, no sentido literal, de seres humanos com sede, que não têm água sequer para satisfação de suas necessidades mais básicas e mínimas. Os direitos fundamentais exsurgem na defesa destes grupos ambientalmente vulnerabilizados e se posicionam contra a correnteza excludente da biopolítica. Os grupos outsiders ambientais são encarados pelos políticos brasileiros não como cidadãos que precisam de apoio para garantia de seus direitos, mas como votos em potencial. O título de eleitor vale mais do que a identidade ou o cadastro de pessoa física. Esse mar de subcidadãos que têm sede e fome configura um número incrivelmente alto de votos para os candidatos que prometem acabar com a seca no sertão. A retomada da cidadania, injustamente furtada destas pessoas, serve apenas como vã promessa eleitoreira e como garantia de votos. Não há interesse político em resolver o problema da seca no Nordeste brasileiro. O joguete biopolítico dos mecanismos de poder com a vida destas pessoas é ultrajante. A memória dos horrores dos regimes totalitários está viva no mundo inteiro, mas quem se preocupa com os perigos que o progresso trouxe para os outsiders ambientais? Quem se lembra dos milhões de pessoas que morrem no mundo por causa da pobreza? Quem discute o problema da falta de água que rouba a dignidade dos irmãos brasileiros? O estado de exceção, a exclusão, o preconceito, o racismo ambiental, a

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desigualdade, a subcidadania, as injustiças socioambientais, a pobreza, a fome, a miséria são questões biopolíticas que não podem renegadas a um segundo plano de discussão. Cabe a toda sociedade, em especial a academia, lutar pelos direitos dos outsiders, relembrar os horrores dos regimes de exceção para evitar que novamente se instaurem. Defender e buscar uma sociedade justa para todos é dever das presentes gerações. As gerações futuras dependem das atitudes dos cidadãos do presente para que os problemas da exclusão e do racismo ambiental sejam minimizados e um panorama biopolítico de justiça ambiental seja fortalecido.

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12 A SUSTENTABILIDADE COMO PARADIGMA NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO CONTEMPORÂNEO E DA SOCIEDADE CIVIL NA CONTEMPORANEIDADE Elizabeth de Mello Rezende Colnago

1  Introdução

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Meio Ambiente natural é o objeto maior a ser protegido, de acordo com a Constituição Federal de 1988. Isto é feito em seu artigo 225 1 e, ao interpreta-lo, encontramos as diretrizes que determinam, em primeiro momento, a titularidade do direito de “todos” ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. E, como norma jurídica impositiva, a Constituição Federal visa proporcionar, para presentes e futuras gerações, as garantias de preservação da qualidade de vida, em qualquer forma que esta se apresente, procurando conciliar, elementos econômicos, sociais e ecológicos, evoluindo de acordo com a ideia de desenvolvimento sustentável. A noção de desenvolvimento sustentável não evidencia a possibilidade ecológica de generalização dos padrões de consumo das sociedades atuais. Deve reforçar uma mudança dos valores éticos, pautados na solidariedade como forma de preservar os níveis de bem estar material, que consequentemente passará por uma mudança nesses padrões de consumo, reforçando a ideia de bem estar social. Em seu caráter fundamental dos direitos humanos, tem-se por escopo a realização da sustentabilidade e de uma ordem social justa, inseridos como elemento fundante da ordem econômica ao Poder Público e não só a coletividade.

1 .  ART. 225. Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 223

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Desta forma, deve-se exigir ao Poder Público, o dever jurídico-constitucional de proteção do meio ambiente, inclusive, no projeto de construção do ‘Estado Contemporâneo/Sustentável’ para que se configure a ordem constitucional ambiental para maior efetividade em suas atividades.

2  A mudança do paradigma dominante

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Sustentabilidade é um termo usado para definir ações e atividades humanas que visam harmonizar duas lógicas: a econômica à natural. E desde que surgiram, as atividades econômicas sempre foram indissociáveis dos ecossistemas. A humanidade ‘[...] depende da capacidade dos ecossistemas de prover recursos e serviços e ainda absorver os resíduos. Por isso, discutir o prazo de validade da espécie humana na Terra requer atenção ao caráter metabólico de seu processo de desenvolvimento” 2. No processo de desenvolvimento sustentável, as atenções devem estar sempre voltadas à ‘precaução’, como forma de proteção ao meio ambiente e aos seres humanos. Deve estar voltada para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental, posto que “[...] em vez de o desenvolvimento depender de crescimento econômico - como nos últimos dez mil anos - ele passará a requerer o inverso, o decrescimento”3. O decrescimento é baseado nas teses do economista Nicholas Georgescu-Roegen, em que os recursos naturais são limitados e, portanto, não existe crescimento infinito. A melhoria das condições de vida deve ser obtida sem aumento do consumo superfluo para suprir as necessidades atuais dos seres humanos, mudando-se o paradigma dominante, para não comprometer as proximas gerações. É o princípio da solidariedade que se destaca, em relação a mudança do paradigma dominante à diminuição da exploração da natureza, para “[...] suprir as necessidades atuais dos seres humanos, sem comprometer o futuro das próximas gerações, ou seja, a ética da solidariedade, ou ainda da equidade intergeracional”4. 2 .  CECHIN, Andrei e VEIGA, José Eli da. O fundamento central da Economia Ecológica.2009, p.19.

Segundo Da Silva Rosa, a noção de ética respeitosa em relação aos limites da natureza e ao direito à vida dos seres vivos, partindo de uma perspectiva transitória rumo a uma sociedade ecologicamente sustentável, “ Se efetivará através da reinvindicação de meios alternativos capazes de nos por em ralação com a natureza de uma maneira bem mais justa. Essa ética nos convoca a assumirmos valores, tais como a responsabilidade, a solidariedade, a precaução e a participação”5. Este termo está ainda diretamente relacionado ao desenvolvimento econômico e material em respeito à capacidade do meio ambiente em se regenerar. Daí ser necessário o uso de recursos naturais de forma inteligente para que eles se mantenham no futuro. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o desenvolvimento sustentável é conceituado como um modelo que visa suprir as necessidades atuais da humanidade, sem colocar em risco a capacidade das gerações futuras também o fazerem. Este conceito foi oficializado pela ONU no Relatório Brundtland, a partir da ideia de “ecodesenvolvimento” na primeira Conferencia das Nações Unidas, de Estocolmo em 1972. E como forma de reafirmar a Declaração da Conferência das Nações Unidas, adotada em Estocolmo em 1972, a Conferencia das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, na Declaração do Rio de Janeiro em 1992, proclamada em princípios, procurou dar prosseguimento à discussão iniciada, com o claro objetivo de estabelecer uma nova e equitativa parceria mundial por meio da criação de novos níveis de cooperação entre os Estados, os setores-chave das sociedades e dos povos. A referida declaração procurou ratificar acordos internacionais em respeito aos interesses de todos, com a proteção e a integridade do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento, ainda reconhecendo a natureza integral e interdependente da Terra. Somente assim seria alcançado o desenvolvimento sustentável, como determinado pelo Principio 4 desta declaração, dentre os demais princípios proclamados na denominada ECO-92, em que “a proteção ambiental deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada separadamente”6. biental. In: Marques, José Roberto (Org.). Sustentabilidade e Temas fundamentais de Direito Ambiental. Campinas: Millennium, 2009. cap. 1. p. 29-30.

3 .  Idem, p. 19.

5 .  DA SILVA ROSA, Teresa . VEIGA, José Eli da. (organizador) Economia socioambiental. São Paulo: SENAC, 2009, p.34 e 35.

4 .  CRUZ, Branca Martins da. Desenvolvimento Sustentável e Responsabilidade Am-

6 .  AGENDA 21. www.ecolnews.com.br/agenda 21. Acesso em 04 de junho de 2012.

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E não é outra a determinação do Princípio 21, em que “[...] a criatividade, os ideais e a coragem da juventude de todo o mundo deverão ser mobilizados para criar uma parceria global com o fim de se alcançar um desenvolvimento sustentável e assegurar um futuro melhor para todos”. A Declaração do Rio/92 deu um passo significativo ao dizer que “[...] o melhor modo de tratar as questões ambientais é com a participação de todos os cidadãos interessados, em vários níveis” 7. Inclusive o Poder Público como um ator de ‘governança ambiental’ 8, e neste passo significativo, quanto às mudanças de padrões de consumo, relacionou uma série de atividades, entre as quais o exercício da liderança por meio das aquisições pelos Governos, de modo a aperfeiçoar o aspecto ecológico de suas políticas de aquisição. E assim, dando continuidade as declarações onusianas, a “Rio + 20” teve como objetivo maior - para o futuro que queremos e sem esquecer o presente que se quer - a intenção de definir novos desafios emergentes. Foram “[...] levantados uma série de problemas relacionados ao desenvolvimento sustentável e aponta caminhos para solucioná-los, mas carece de medidas práticas de implementação. A maioria das decisões efetivas foram postergadas para 2015” 9. Mas a sustentabilidade não está determinada somente nas conferencias das Nações Unidas e a nível constitucional como acima citado. Ela está determinada também a nível infraconstitucional, em leis esparsas como modo de melhor tratar as questões ambientais. Sendo assim, cabe analisar brevemente algumas leis ambientais, dando destaque a Política Nacional do Meio Ambiente, a Lei nº 6.938/81 “[...] que deu novo direcionamento institucional e administrativo à proteção ambiental no Brasil” 10. Ela já se preocupava em efetivar o desenvolvimento sustentável através da preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida. Visou assegurar no País, condições ao desenvolvimento 7 .  MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 107. 8 .  A governança tornou-se uma das palavras ou temas-chave em política global ambiental, sendo que muito da força do conceito vem da capacidade de convergência dos interesses transnacionais sobre as especificidades dos interesses individuais. 9 .  ESTADÃO. com.br. Publicação: Acesso em 23/06/2012. 10 .  DANTAS, Marcelo Buzaglo; SÉGUIN, Elida; AHMED, Flávio (coord.). O direito ambiental na atualidade: Estudos em homenagem a Guilherme José Purvin de Figueiredo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.484. 226

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socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, antes mesmo da promulgação da Constituição Federal em 1988 e da Conferência da ONU de 1992. “A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente foi importante marco da sistematização da tutela ambiental. Ainda que anterior a própria Constituição, sua recepção proporcionou o nascimento do Direito Ambiental Brasileiro como ciência autônoma”11. E não é diferente com a Lei 8.666/93 que regulamenta o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal e institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providencias no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. A contínua preocupação em nosso País com o meio ambiente saudável, pode ser observada também no conteúdo da Instrução Normativa nº 1 de janeiro de 2010, da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, que estabelece critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens, contratação de serviços ou obras pela Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional. A referida instrução normativa inseriu no artigo 3º da Lei nº 8.666/93 mais um princípio em que a administração pública deve observar/garantir e nortear as contratações públicas, que é o princípio da promoção do desenvolvimento nacional sustentável. E, a Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei nº 12.305/10, também estabelece, dentre os seus objetivos, a prioridade, nas aquisições e contratações governamentais, para produtos reciclados e recicláveis, e bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis. Desta forma, a política de resíduos sólidos, indica critérios e estes estão pautados no desafio de se avaliar a real necessidade de aquisição do produto pretendido, levando-se em conta as circunstancias sob as quais o produto foi gerado, considerando as matérias empregadas na sua produção, as condições de transporte, se podem ser reciclados, bem como avaliação em relação ao comportamento durante sua fase útil e após sua disposição final. Ou seja, verificar o produto do berço ao túmulo. Esse ainda é um tema novo e complexo que merece ser aprofundado. Em novembro de 2011, foi editado o Plano de Ação para Produção 11 .  GUIMARÃES, Vanessa de Azevedo. ARAÚJO, Marinella Machado. Licitação Sustentável. In www.fmd.pucminas.br, 2010, p. 6. 227

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e Consumo Sustentáveis – PPCS, que visa à promoção e ao apoio a padrões sustentáveis de produção e consumo. Em seu primeiro ciclo de implementação, com inicio em 2011, que se estenderá até 2014, identificou como temas prioritários, entre outros, as compras e construções públicas sustentáveis. Neste plano de ações, por meio do Decreto Normativo n. 107/2010, o Tribunal de Contas da União decidiu e determinou a inclusão nas prestações de contas de órgãos públicos, informações quanto à adoção de critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens e na contratação de serviços ou obras. Ele tem como referência o Decreto nº 5.940/2006 que institui a separação dos resíduos recicláveis descartados pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta, na fonte geradora, e a sua destinação às associações e cooperativas dos catadores de materiais recicláveis, e ainda dá outras providências. Mas, o que se verifica, é que nenhuma destas leis acima citadas, quais sejam, a Lei nº 6.938/81, a Instrução Normativa nº 1 de janeiro de 2010, a Lei 8.666/93, o Decreto nº 5.940/2006, o Decreto Normativo nº 107/2010 e a Lei nº 12.305/10, deixam claro o que vem a ser sustentabilidade. Elas apenas estabelecem critérios normativos a serem observados, ou seja, nenhuma delas dispõe o que é padrão sustentável de produção e consumo. Destarte, padrão sustentável de produção e consumo não é simplesmente aumento de consumo, como sinônimo de progresso como pensado há décadas. Há contraponto desta questão. Está intrínseca e extrinsecamente relacionado com a reeducação de diversos atores sociais, tais como sociedade, governo, indústria, comércio. Cada ator social deve voltar-se para padrões de consumo éticos em relação aos bens produzidos, e que no caso dos bens ambientais, a estes, não se atribui um preço de utilização, nem a compensação de custos. E cada ator social deve buscar a relação rica e complexa, em que podem se ajudar, se desenvolver, se regular e controlarem-se mutuamente. Deve-se repensar na implantação de politicas com estímulo a consumo de transformação, atrelando elementos da natureza no processo econômico, isto é, incluindo todos os atores, tais como governo, indústria, comércio e os próprios consumidores. Partindo do conceito de sustentabilidade, que é o de suprir as necessidades atuais dos seres humanos, sem comprometer o futuro das próximas gerações, e, para alcançar a sua plenitude, sabemos

que “a participação cívica na conservação do meio ambiente não é um processo político já terminado. Os fundamentos foram bem-lançados em todo o mundo, mas o edifício da participação tem muitos setores para serem concluídos” 12. O Estado, como um dos atores de governança ambiental e indutor de Políticas Públicas, deve integrar em todas as suas atividades, critérios econômicos, sociais e ambientais, como exemplo a ser seguido, na construção do edifício da participação, para garantir o melhor benefício possível ao meio ambiente, como requisito obrigatório da “supremacia do interesse público em face do particular”, que nada mais é do que benefício em prol da sociedade, já que este é o comando constitucional para todas as atividades exercidas na Administração Pública. É como afirma Luiz Eduardo Wanderley em que a nova visão de desenvolvimento sustentável está fincada “[...] nas lutas contra hegemônicas e, entre as oscilações e tendências, mostra a urgência de mobilização das sociedades mundiais, face ao desastre ecológico planetário em comportamentos e práticas de uma cultura ecológica” 13. Ele afirma em sua tese que tal mobilização deve ser manifestada na ecotecnologia, na ecopolítica, na ecologia social dentre outras. É o objetivo que se pretende, qual seja, o encontro do Estado com a Sociedade Civil, constituído pelo processo de democratização, com a revitalização da sociedade civil na postura de negociação, que aposta na possibilidade de uma atuação conjunta, formalizada pela diversidade de atores. É nessa crescente participação democrática, que surge a partir de ações, “[...] no sentido de pressionar as administrações públicas, para fortalecer processos de cooperação e cogestão no público. Neste sentido, criou-se uma tendência de atuação sociopolítica denominada em geral pela expressão governabilidade participativa”. 14 Os tipos de atores envolvidos são variados em relação ao Estado e a Sociedade Civil. Quanto ao Estado, formalizados pelo Executivo nas três esferas estatais (federal, estadual e municipal) e o Legislativo, com normas mais objetivas, funções e procedimentos razoavelmente definidos, como os Conselhos Gestores de Políticas Públicas, Orçamentos Par-

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12 .  MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 109. 13 .  WANDERLEY, Luiz Eduardo W. Educação popular: metamorfoses e veredas. São Paulo: Cortez, 2010, p.73. 14 .  WANDERLEY, Luiz Eduardo. A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão pública. Luiz Eduardo Wanderley e Raquel Raichelis (orgs.). São Paulo: EDUC, 2009, p. 153, 154. 229

ticipativos, Audiências Públicas e ainda agencias estatais específicas. O segundo, a sociedade civil, com ênfases diferenciadas, em vários tipos de movimentos sociais e associações, dentre os quais, os movimentos ambientalistas, de negros, de jovens, mulheres, moradia, partidos políticos, universidades, Igreja e ONGs. Segundo Raquel Raichelis e Ana Carolina Evangelista foi a Carta Política de 1988 que imprimiu novos rumos e conteúdos ao debate sobre a democratização do Estado e a definição de mecanismos inovadores de articulação com a sociedade civil, alargando os espaços de participação social, vejamos: “A Carta Constitucional, ao reafirmar a legalidade dos condutos clássicos da ordem democrática, abriu novas possibilidades de exercício da cidadania ativa por meio de instrumentos como plebiscito, o referendo popular, as audiências públicas, a iniciativa popular de lei, entre outros”.15 E segundo orientação imperativa de Luiz Eduardo Wanderley, é a de que “[...] sem uma efetiva da democracia – política, econômica, social, cultural e como modo de vida -, a gestão pública fica enfraquecida e inerte 16. Desta forma, o Estado, assim como os cidadãos brasileiros estão submetidos a um regime político, ou seja, a democracia, que comporta a autolimitação do poder Estatal pela separação dos poderes, a garantia dos direitos individuais e a proteção da vida privada, que segundo Edgar Morin, é “ [...] mais que um regime político; é a regeneração contínua de uma cadeia complexa e retroativa: os cidadãos produzem a democracia que produz cidadãos” 17. Portanto, os indivíduos atuando em conjunto, formam a sociedade, e, essa coletividade, retroage sobre os mesmos, que são nada menos que produtos de um processo reprodutor da espécie humana, produzindo-se a cada geração, inseparáveis e ao mesmo tempo meio e fim de cada um. Nessa compreensão de Edgar Morin, para guiar a vida com respeito à diferença e identidade quanto a si mesmo, é que devemos atentar para o fato de que somos livres e não podemos somente acreditar que as nossas vidas foram predestinadas pela vontade divina ou destino. Ha diferença entre o ser e o dever-ser. Quando compreendermos essa

importante diferença, a coletividade irá vislumbrar que emerge a consciência de si mesmo, de suas ações e que somos responsáveis também pelas consequências destas ações. O que não é diferente no enfrentamento da sustentabilidade do desenvolvimento. É quando Abdruschin fala da ‘ética do cuidado’, ainda como precursora da sustentabilidade, em relação à consciência de si, em que: “Cada pessoa se insere num determinado contexto e se constrói a partir da interação com o ambiente que lhe é peculiar. É esse éthos sua morada, sua habitação. É a partir daí que a pessoa se faz como tal, e, portanto, é a partir daí que precisa ser compreendida. Nesse sentido, cuidar significa ler nas entrelinhas do contexto sociocultural. A partir desse olhar o que está pronto no mundo presta-se a transformação, e transformando o mundo o homem se transforma e se cuida também”.18 E ao retornar a Edgar Morin, apostar no incerto, é consciência individual além da individualidade, é um ‘circuito indivíduo/sociedade’ em que a democracia favorece a relação rica e complexa, em que os dois podem se ajudar, se desenvolver, se regular e controlarem-se mutuamente. É a auto organização como dito por Morin, ou seja, é ordem, desordem, tolerando e nutrindo endemicamente, às vezes explosivamente, de conflitos que lhe conferem vitalidade, posto que “[...] vive da pluralidade, até mesmo na cúpula do Estado (divisão dos poderes executivo, legislativo, judiciário), e deve conservar a pluralidade para conservar-se a si própria. 19. Nesta mesma linha, sobre esses encontros, e transpondo ao pensamento de Luiz Eduardo Wanderely, que primam pela diminuição da desigualdade, ensinando que é preciso combinar os horizontes utópicos de uma construção de uma sociedade, que é pautada nos termos e objetivos da Republica Federativa do Brasil, e que está contida no artigo 3° da Constituição Federal de 1988, tais como, construir uma sociedade livre, mais humana, justa, solidária, democrática, sustentável, ética, “[...] com passos concretos de uma publicização crescente; algo em desenvolvimento em distintas regiões do globo, em busca de uma gestão pública democrática, apesar dos limites e obstáculos encontrados. 20

15 .  RAICHELIS , Raquel. EVANGELISTA, Ana Carolina. A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão pública. Luiz Eduardo Wanderley e Raquel Raichelis (orgs.). Parte II. São Paulo: EDUC, 2009, p. 205.

18 .  ROCHA, Abdruschi Schaeffer. Hermenêutica do cuidado pastoral: lendo textos e pessoas num mundo paradoxal. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2012, p. 197.

16 .  WANDERLEY, Luiz Eduardo. A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão pública. Luiz Eduardo Wanderley e Raquel Raichelis (orgs.). Parte I. São Paulo: EDUC, 2009, p 157. 17 .  MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 6. ed. São Paulo: Cortez, Brasília, DF: UNESCO, 2002, p. 107. 230

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19 .  MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 6. ed. São Paulo: Cortez, Brasília, DF: UNESCO, 2002, p. 109. 20 .  WANDERLEY, Luiz Eduardo. Gestão pública das cidades. A cidade de São Paulo: relações internacionais e gestão pública. Luiz Eduardo Wanderley e Raquel Raichelis (orgs.). São Paulo: EDUC, 2009, pag 157. 231

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Essa nova visão, deve estar pautada na educação ambiental, de forma a educar a humanidade para uma nova realidade, em que se considere a Terra, e os recursos naturais como finitos, como bens essenciais à manutenção de vida. E sempre que existirem no mercado opções de produtos e tecnologias, estes devem integrar os aspectos econômicos, ambientais e os sociais, já que as agressões contra a pessoa humana atingem toda a natureza. Essa é a visão de decrescimento citada acima, de Nicholas Georgescu Roegem. É longo discurso pela frente, até que o processo multidimensional consiga traçar as possibilidades do desenvolvimento das complexidades ou dimensões políticas, econômicas, sociais, ambientais e jurídicas que nutre os avanços da individualidade que se afirma nos direitos do homem e do cidadão. Adquire liberdades existenciais, no sentido da realização da Humanidade, ou seja, a permanência integrada “[...] dos indivíduos no desenvolvimento mútuo dos termos da tríade indivíduo/ sociedade/espécie”21 para a tão almejada comunidade planetária organizada, sustentável, com a finalidade precípua da busca da hominização na humanização, pelo acesso à cidadania terrena. E nesta linha de interpretações, podemos nos apropriar de um conceito de Giorgio Agamben de que “[...] ser contemporâneo é fixar o olhar no seu tempo para dele perceber não as luzes, mas o escuro” 22. E perceber o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne, “é não cessar de interpretá-lo”. 23 Portanto, há limites da natureza, e, ao direito à vida dos seres vivos, rumo a uma sociedade ecologicamente sustentável. A sustentabilidade como paradigma na construção do Estado contemporâneo e da sociedade civil na contemporaneidade deve ser efetivada por meio da reinvindicação de meios alternativos e éticos, capazes de nos por em ralação com a natureza de uma maneira bem mais justa. É dever do Estado e da sociedade civil, observar o princípio da precaução, que tem relação direta com o impedimento de uma ação que visa causar um impacto indesejável, e tem a ver com a ideia de antecipação, pois está inserida na tomada de decisão, motivada, após um 21 .  MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 6. ed. São Paulo: Cortez, Brasília, DF: UNESCO, 2002, p. 115 22 .  AGAMBEN, Giorgio. O que é ser contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinicius Nicastro Honesko. SC: ARGOS, Chapecó, 2009, p. 63 e 64. 23 .  Idem, p.63 e 64. 232

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instrumento legal. É uma tendência de atuação sociopolítica a que chama de governabilidade participativa. É acesso à cidadania fundada na constituição do Estado Democrático de Direito.

3  Conclusão

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insustentabilidade do desenvolvimento surge quando a racionalidade econômica deixou de considerar a natureza como elemento na esfera da produção, gerando uma crise ambiental. Em outras palavras, nesse momento foram assinalados os limites da racionalidade econômica e os desafios da degradação ambiental ao projeto civilizatório da modernidade. A partir de então, a conscientização e a percepção da crise ecológica se estabelecem mundialmente ainda nos anos 60, expandindo-se nos anos 70 até os dias de hoje. A conservação do meio ambiente vem demandando alterações significativas nos usos dos recursos naturais, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-la face à complexidade dos conflitos surgidos. A popularização e a universalização do conceito de desenvolvimento sustentável foram oficializadas no relatório “Nosso futuro comum” da Comissão Brundtland, efetivando-o como sendo “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades”24. Em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – ECO 92 – Rio de Janeiro – Brasil - aprovou um programa global, denominado de Agenda 21, que passou a regulamentar o processo de desenvolvimento com base em princípios sustentáveis. Essa Conferência das Nações Unidas deu prosseguimento à discussão iniciada anteriormente, estabelecendo uma nova e equitativa parceria mundial por meio da criação de novos níveis de cooperação entre os Estados, os setores-chave das sociedades e os povos. Ela ratificou acordos internacionais em respeito aos interesses de todos, com a proteção e a integridade do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento. Ainda, reconheceu a natureza integral e interdependente da Terra e que somente assim seria alcançado um desenvolvimento capaz de dar conta da sustentabilidade ecológica das atividades humanas.

24 .   MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 58. 233

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Dessa forma, a proteção ao meio ambiente é reconhecida como uma evolução dos direitos humanos, resultado da conscientização ocorrida desde a metade do século XX quando passa a demandar uma nova maneira de se relacionar com a natureza. Em seu caráter fundamental, os direitos humanos têm por escopo a realização da sustentabilidade e de uma ordem social justa, inseridos como elemento fundante da ordem econômica ao Poder Público e não só à coletividade. Portanto, o meio ambiente natural sendo objeto maior a ser protegido vai surgir no artigo 225 da Constituição Federal de 1988, como norma jurídica impositiva, que visa proporcionar, para presentes e futuras gerações, as garantias de preservação da qualidade de vida, em qualquer forma que esta se apresente. Ao conciliar elementos econômicos, sociais e ecológicos, a legislação brasileira evolui de acordo com a ideia da sustentabilidade do desenvolvimento, cuja concretização vai proporcionar uma mudança dos valores éticos, pautados na solidariedade, responsabilidade, participação e precaução, o que particulariza os padrões de consumo às características das sociedades. Destarte, para se compreender um Estado contemporâneo e uma sociedade civil na contemporaneidade, tem-se por meta novas estratégias para a sustentabilidade do desenvolvimento que requer o enfrentamento de desafios novos e emergentes a fim de alcançar um justo equilíbrio entre as necessidades econômicas, sociais e meio ambiente das gerações presentes e futuras.

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13 Por mares nunca de antes navegados: gestão do risco e investigação científica no meio marinho Carla Amado Gomes

1  Gestão do risco para o ambiente marinho e precaução: um mar de incerteza

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ssociar Camões a este texto não tem apenas a conotação óbvia com a epopeia marítima portuguesa imortalizada n’Os Lusíadas. O destino, sócio-económico e geográfico, desde muito cedo uniu Portugal ao mar, aliança que de certa forma ganhou uma especial memória com a designação pela ONU, por sugestão portuguesa, do ano de 1998 como Ano Internacional dos Oceanos, com a inerente organização da Expo ‘98 sob a égide desse tema1. Na verdade, com a referência aos navegadores portugueses quisemos também ressaltar a origem do termo “risco”, que terá sido introduzido por aqueles, para expressar a incerteza que envolvia as viagens de descobrimento de novas terras2. Mar, incerteza e risco:

1 .  Esta efeméride marcou uma renovada atitude para com a temática do mar, traduzida num conjunto de iniciativas desde a elaboração do relatório O oceano, nosso futuro (Fundação Mário Soares, Lisboa, 1998, da autoria da Comissão Mundial Independente para os oceanos), passando pela criação da Comissão Estratégica dos Oceanos, em 2003, que teve por missão produzir uma estratégia nacional para o mar (a qual veio a tomar corpo no relatório Oceano: Um desígnio nacional para o século XXI, após a entrega do qual, em 2004, aquela se extinguiu), até à criação de uma Estrutura de Missão para os assuntos do mar, através da Resolução do Conselho de Ministros 163/2006, de 12 de Dezembro, que apresentou em 2006, a Estratégia nacional para o mar, para vigorar por um período de cinco anos, e que se encontra actualmente em curso de revisão pelo Governo (http://ecosfera.publico. pt/noticia.aspx?id=1543956). 2 .  Cfr. Anthony GIDDENS, Runaway world, 2ª ed., Londres, 2002, p. 21. 235

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três conceitos ligados desde há séculos, que encontram na lógica da precaução, em finais do século XX, um novo entrelaçamento. Na verdade, o “princípio da precaução” ganhou visibilidade através do Direito do Mar, em finais da década de 1980, na Declaração resultante da Segunda Conferência Ministerial do Mar do Norte, sobre poluição marítima3. Desta Declaração de Londres (1987) consta uma tomada de posição quanto à vinculação dos signatários a uma atitude de precaução que, sem embargo de anteriores referências esparsas a esta noção4, tem sido identificada como a primeira formulação do princípio. Assim, nos termos do artigo XVI/1: “[The ministers] accept the principle of safeguarding the marine ecosystem of the North Sea by reducing pollution emissions of substances that are persistent, toxic and liable to bio accumulate at source by the use of the best available technology and other appropriate measures. This applies especially when there is reason to assume that certain damage or harmful effects on the living resources of the sea are likely to be caused by such substances, even where there is no scientific evidence to prove a causal link between emissions and effects («the principle of precautionary action»)”. Esta atitude antecipativa de gestão do risco prende-se com a evolução, promovida pela atenção emergente dos anos ‘1970 às questões ambientais, no tratamento das questões relativas à preservação do meio marinho5: de uma abordagem baseada num pressuposto de que a ca3 .  Sobre a abordagem ao princípio da precaução nas Declarações das Conferências do Mar do Norte, L. GÜNDLING, The status in International Law of the principle of precautionary action, in IJECL, 1990/1, 2, 3, pp. 23 segs; E. HEY, The precautionary approach. Implications of the revision of the Oslo and Paris Conventions, in MP, 1991/7, pp. 244 segs; J. M. MACDONALD, Appreciating the precautionary principle as an ethical evolution in ocean management, in OD&IL, Vol. 26, 1995, pp. 255 segs, 267 segs; D. FREESTONE e E. HEY, Origins and development of the precautionary principle, in The precautionary principle and International Law, org. de D. Freestone e E. Hey, The Hague/London/Boston, 1996, pp. 3 segs, 5 segs.

pacidade de assimilação/aproveitamento era tendencialmente ilimitada (cfr. Convenções de Londres, de 1972 e 1973) — a qual justificava a adopção de medidas preventivas apenas quando o risco para o ambiente fosse iminente —, passou-se para um modelo de capacidade de assimilação/aproveitamento tendencialmente limitada (cfr. a Convenção de Montego Bay, Parte XII), com a implementação de uma atitude permanentemente preventiva por parte dos Estados6, e ter-se-á transitado, no final dos anos ‘1980 (cfr. a Declaração de Londres de 1987, supra mencionada), para um quadro de tendencial incapacidade de assimilação/aproveitamento, que obriga à abstenção de intervenções potencialmente lesivas do meio marinho, mesmo que os dados científicos não permitam estabelecer, com segurança, o nexo de causalidade entre a intervenção projectada e o dano pressentido7. O percurso da lógica de precaução, tanto no âmbito do Direito Internacional Ambiental geral como no especial — para o que aqui releva, no Direito do Mar —, tem sido tudo menos linear, apesar de algumas declarações entusiásticas de alguma doutrina no sentido da sua ascensão a princípio de Direito Internacional (Ambiental) geral8. A deriva terminológica é grande, as reticências dos tribunais internacionais são conhecidas e a prática dos Estados não ajuda à consistência do princípio. Com efeito, desde a fórmula forte da Carta Mundial da Natureza, de 1982 [cfr. o princípio 11/b)] até à fórmula fraca da Declaração do Rio de Janeiro, de 1992 (cfr. o princípio 15), há quem tenha contabilizado, logo em 1993, doze diferentes definições9; o Tribunal Internacional de Justiça (=TIJ) negoulhe a natureza de princípio, no Acórdão Gabcikovo-Nagymaros (1997), 6 .  Sobre a protecção do meio marinho na Convenção da ONU para o Direito do Mar, veja-se Carla AMADO GOMES, A protecção internacional do ambiente na Convenção de Montego Bay, in Direito Ambiental: O Ambiente como objecto e os objectos do Direito do Ambiente, Curitiba, 2010, pp. 143 segs. 7 .  Na formulação de Malgosia FITZMAURICE (Contemporary issues in International Environmental Law, Cheltenham/Northampton, 2009, p. 3), tal evolução parte de um modelo curativo, passando para um modelo preventivo e configura hoje (pelo menos teoricamente), um modelo antecipativo (curative; preventive; antecipatory).

4 .  É verdade que o baptismo de uma determinada fórmula linguística como “princípio da precaução” ocorreu pela primeira vez na 2ª Conferência do Mar do Norte. Porém, indícios de uma lógica de antecipação de riscos podem encontrar-se na moratória de 1970 contra a pesca da baleia e na Carta Mundial da Natureza (1982), concretamente no Princípio II/11, b) — cfr. G. FULLEM, The precautionary principle: environmental protection in the face of scientific uncertainty, in Willamette LR, 1995/2, pp. 495 segs, 502 —, bem como na Convenção-quadro para a protecção da camada de ozono, adoptada em Viena, em 1985, a que seguiu, em 1987, o Protocolo de Montreal, que estabelece um calendário para a eliminação ou redução das emissões nocivas — cfr. P. MARTIN-BIDOU, Le principe de précaution en Droit International de l’Environnement, in RGDIP, 1999/3, pp. 631 segs, 634, 635.

8 .  Neste sentido, entre muitos, E. HEY, The precautionary concept in Environmental policy and law: institutionalizing caution, in The GIELR, 1992, pp. 303 segs, 307; O. McINTYRE e T. MOSEDALE, The precautionary principle as a norm of customary international law, in JEL, 1997, nº 2, pp. 221 segs, 224 segs, 235; J. CAMERON, The precautionary principle in International Law, in Reinterpreting the precautionary principle, org. de T. O’Riordan, J. Cameron e A. Jordan, Londres, 2001, pp. 113 segs, 133.

5 .  Sobre esta evolução, veja-se Stuart M. KAYE, International fisheries management, The Hague/London/Boston, 2001, pp. 43 segs.

9 .  D. VANDERZWAAG, The concept and principles of sustainable development: “Rio-formulating” common law doctrines and environmental laws, in WYAJ, 1993, pp. 39 segs, 46.

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preferindo a prevenção como base de medidas antecipativas de riscos, e o Tribunal Internacional para o Direito do Mar (=TIDM) furtou-se a utilizar a noção, antes falando em “prudence and caution” na decisão sobre medidas provisórias Southern Bluefin Tuna (1999); a França negou à precaução a natureza de princípio, perante o TIJ, no âmbito do caso dos ensaios nucleares II (1995) contra Austrália e Nova Zelândia, mas alegou-o como fundamento do embargo à carne de vaca inglesa perante o Tribunal de Justiça da União Europeia (=TJ), num caso que a opôs à Comissão Europeia, em 200010. A verdade é que da noção que ganhou amplificação mundial com a Declaração do Rio de Janeiro — enquanto approach, não enquanto principle… — é tarefa árdua extrair um sentido unívoco de aplicação, tantas são as “reservas” (muito diferentes “capabilities”; dificuldade de preenchimento dos conceitos “threat”, “serious” e “lack of full scientific certainty”; avaliação do que é “cost-effective”): “In order to protect the environment, the precautionary approach shall be widely applied by States according to their capabilities. Where there are threats of serious or irreversible damage, lack of full scientific certainty shall not be used as a reason for postponing cost-effective measures to prevent environmental degradation”. A ambiguidade do conceito é tal que Malgosia FITZMAURICE defende que, mais que perseguir a definição da sua natureza (de princípio; de máxima de orientação jurídica ou política; de duplicação da prevenção ou de aliud em face desta), mais útil parece ser analisar a sua configuração em cada instrumento internacional, numa tentativa de apreender se daí resultam soluções originais, ou seja, diferentes — porque mais exigentes — daquelas a que se chegaria se se adoptasse uma pura lógica de prevenção, de reacção apenas perante um risco iminente11. A verdade é que a precaução, na sua versão forte, só em escassos e determinados domínios será operativa, porque a directriz na dúvida, abstém-te, em raros casos se justificará (diminutas serão as hipóteses em que um risco sobre bens jurídicos fundamentais se traduz numa total incerteza quanto à eclosão e efeitos, e numa ínfima estimativa de benefícios para a saúde e para o ambiente). Em contrapartida, a sua versão fraca — na 10 .  Acórdão de 13 de Dezembro de 2001, Caso C-1/00. 11 .  Malgosia FITZMAURICE, Contemporary issues…, cit., pp. 6-7. A autora chega a afirmar que “The endless analysing of the legal character of the norms of international environmental law is a somewhat fruitless exercise, which in fact has very little practical significance”. 238

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dúvida, age de modo a minimizar eventuais riscos, sopesando o custo das medidas de minimização e o benefício em prevenção de riscos para a saúde e ambiente, utilizando a melhor técnica disponível —, equivale a um alargamento da noção de prevenção, dos tradicionais perigos aos novos riscos, temperada pela concordância entre os valores em jogo. Como na sociedade de risco “a única certeza é a incerteza”12, o objecto da prevenção, actualmente, alarga-se a domínios de intensa incerteza, ou seja, o seu objecto é sobretudo a antecipação de riscos — numa lógica de equilíbrio entre a protecção de valores contextualmente antagónicos num cenário de ausência de consensos científicos e com recursos escassos. O “interface ciência-política” (science-policy interface) na construção do desenvolvimento sustentável a que a Declaração da cimeira Rio + 20 (The future we want) por várias vezes alude mais não é do que a concretização desta ideia.

2  Due diligence e precaução

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ão podendo, a partir dos dados disponíveis, caracterizar-se um princípio (por ausência de conteúdo “normativo”) há, todavia, traços inovatórios que a lógica de precaução introduziu — essencialmente, apontando para uma diferença de grau, mas não de espécie, relativamente à prevenção tradicional. Tais inovações prendem-se, justamente, com a gestão da incerteza e materializam-se em deveres procedimentais que ganham uma noção de síntese no procedimento de avaliação de impacto ambiental13, a que a Declaração do Rio de Janeiro deu destaque, no princípio 17 e que foi recentemente alçado a princípio geral de Direito Internacional do Ambiente pelo TIJ (Caso das celulosas do rio Uruguai, 2010) e pelo TIDM (Caso 17 – Parecer sobre a responsabilidade do Estado por concessão de operações desenvolvidas na Área — 2011). Deve sublinhar-se, contudo, o relativismo desta “ascensão”: estas decisões consagram um instrumento, mas não identificam um padrão de avaliação. Por outras palavras, ambos os tribunais internacionais men-

12 .  Nicolas DE SADELEER, Environmental principles – From political slogans to legal rules, Oxford, 2002, pp. 17-18. 13 .  Cfr. Malgosia FITZMAURICE, Contemporary issues…, cit., p. 30 (“It appears that the role of the precautionary principle is primarily in risk management and that it is one of its few uncontested features”). 239

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cionados apontam para a necessidade de uma metodologia mas não estabelecem critérios universais subjacentes a esta — o que fragiliza tal consagração mas constitui uma inevitabilidade, em face das múltiplas abordagens que a Ciência veicula aos problemas que analisa. Na verdade, mesmo a Convenção de Espoo, de 1991 (em vigor desde 1997)14, sobre avaliação de impacto ambiental, nada avança sobre critérios de avaliação, incidindo apenas sobre o procedimento e o conteúdo mínimo da documentação a ter em consideração. Terá sido no sentido de aumentar a fiabilidade desta metodologia que a Conferência de Partes aprovou, em 2004, um segundo aditamento a esta Convenção que modifica a alínea c) do artigo 11, que versa sobre a actualização permanente dos métodos de implementação da avaliação de impacto ambiental. Na nova redacção (ainda não em vigor), as Partes substituíram a consulta a organizações internacionais e a comités científicos pela consulta de quaisquer órgãos competentes com experiência científica relevante na matéria sob avaliação15. Reforça-se a credibilidade dos resultados, mas continuam a não se fixar nem um conjunto de critérios de análise padronizado. Nesta sede e sobre a questão da controvérsia potencialmente emergente de um procedimento (de avaliação de impacto ambiental) à partida científico e passível de minimizar impactos adversos significativos para o ambiente marinho, deixam-se aqui duas notas: a primeira, para dar notícia do estudo realizado no contexto da protecção do ambiente marinho do Mar Báltico, no quadro da Convenção de Helsínquia (1974), no sentido de estabelecer um padrão científico tendencialmente homogéneo para a avaliação de riscos naquela região16. Este estudo, coordenado por Bertil Hägerhäll e publicitado em 2001, destaca a necessidade de assessoria científica independente e assente no mais actualizado e credível conhecimento no âmbito do procedimento de avaliação de impacto ambiental e de gestão dinâmica de riscos, e apela à partilha de informação e contínua divulgação de relatórios sobre o estado do meio marinho pelos Estados signatários da Convenção. A segunda nota prende-se com as dúvidas suscitadas pela adequa-

ção e suficiência dos critérios utilizados no estudo de impacto ambiental que esteve na base, em 2009, da primeira concessão de mineração marinha a grande profundidade à empresa canadiana Nautilus, na plataforma continental da Papua Nova Guiné17. O estudo apresentado pela Coffee Natural Systems foi agora revisto por John Luick, do South Australian Research and Development Institute (SARDI), tendo sido detectados por este oceanógrafo graves erros e omissões, que terão alegadamente desconsiderado os efeitos colaterais da extracção do minério para a qualidade da água e para a integridade da fauna piscícola. O facto de a peer review que a Coffee Natural Systems proclama ter promovido não ter sido tornada pública está a dividir a comunidade científica, que considera que um projecto de impactos tão desconhecidos deveria ter sido sujeito a uma avaliação de riscos mais criteriosa. Estes exemplos atestam a importância que a avaliação de riscos revela actualmente — bem assim como a sua complexidade. Com efeito, o avolumar de riscos para o ambiente, induzidos pela técnica e que se traduzem em alterações irreversíveis nos processos naturais, deve corresponder a uma avaliação e gestão desses mesmos riscos de forma cada vez mais cientificamente antecipativa. Deveres como elaboração de estudos de impacto ambiental, fornecimento de informação, promoção de consultas, criação de estruturas de participação pública, notificação de acidentes, elaboração de planos de emergência, foram emergindo paulatinamente, da jurisprudência para declarações e convenções, do âmbito específico para o âmbito geral. Vejam-se os princípios 10, 17, 18, 19 da Declaração do Rio de Janeiro18, que trouxeram para o âmbito geral vários deveres associados à prevenção, alguns transitados da Convenção de Montego Bay — cfr. os artigos 198, 199, 200, 204 e 20619. Esta metodologia de cooperação preventiva espelha a due diligence a que os Estados e entidades sob sua jurisdição estão vinculados no âmbito da realização de actividades que possam causar impactos significativos para o ambiente. Trata-se fundamentalmente de um conjunto de obrigações de meios e não tanto de resultado, em razão da densa incer-

14 .  Cfr. http://www.unece.org/env/eia/eia.html

17 .  Cfr. A notíciahttp://www.scidev.net/en/agriculture-and-environment/land-water-pollution/news/review-claims-poor-science-in-deep-sea-mining-report-.html

15 .  Na nova redacção, a alínea c) do artigo 11 passará a ser a seguinte: “(c) Seek, where appropriate, the services and cooperation of competent bodies having expertise pertinent to the achievement of the purposes of this Convention”. 16 .  Scientific information and knowledge for decision-making in international marine conventions, particularly in the Baltic Sea Area, Bertil Hägerhäll (coord.), Ardea Miljö AB, 2001 (disponivel em www.mare.su.se/dokument/convention_report.pdf). 240

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18 .  Respectivamente: participação pública em procedimentos de tomada de decisão ambiental e acesso à justiça ambiental; avaliação de impacto ambiental; dever de notificação de eventos e factos lesivos do ambiente; dever de consulta. 19 .  Respectivamente: notificação de acidentes; elaboração e plano e emergência; troca de informação; monitorização de riscos; avaliação de impacto ambiental. 241

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teza que envolve as questões da protecção ambiental (e sanitária). Também por isso é essa a metodologia enunciada pela CDI nos Draft articles on prevention of transboundary harm from hazardous activities (2001), porventura o mais completo padrão de cooperação preventiva com vista à protecção ambiental no Direito Internacional actual. A redução da incerteza só através da pesquisa científica e da experimentação técnica pode ser prosseguida. Não podendo garantir-se os resultados num amplo conjunto de situações, em razão da dinâmica dos fenómenos e da inconclusividade das avaliações, a obrigação de recolha, tratamento, divulgação e actualização de dados constitui procedimento incindível da observância dos deveres assinalados. A due diligence que traduz a atitude de cooperação preventiva para a antecipação e redução de riscos ambientais e sanitários materializa-se num devido procedimento avaliativo de tratamento da informação a partir da melhor base científica disponível, no âmbito da qual o incentivo à criação científica, o apoio à investigação, a formação de especialistas e o financiamento de novas tecnologias, assumem um papel decisivo.

3  Gestão antecipativa do risco e ciência no Direito do Mar

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pesar de a questão ambiental ter ganho eco mundial com a Conferência de Estocolmo, em 1972, o século XX regista algumas tomadas de posição anteriores, concretizadas em pontuais instrumentos internacionais — alguns deles, justamente, com incidência no ambiente marinho. A ligação entre a ciência e o Direito Internacional do Ambiente terá despontado na Convenção sobre a caça de focas no Mar de Bering, de 1911, baseada na decisão do tribunal arbitral constituído em 1889, a qual, por seu turno, se fundou num extenso estudo sobre o habitat de espécies migratórias. Um segundo momento pode ser identificado na investigação iniciada em 1926 sobre poluição marinha, que culminou com a assinatura da Convenção de Londres sobre prevenção da poluição por hidrocarbonetos, de 1954, com soluções fortemente filiadas em descobertas científicas. Em terceiro lugar, refiram-se as pesquisas levadas a cabo pelo Conselho Internacional para a exploração do mar, constituído em 1902, por cientistas de Estados costeiros dos Mares do Norte e Atlântico norte, cujas conclusões fo-

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ram acolhidas na primeira conferência sobre Direito do Mar promovida pela Liga das Nações em 1930 — não tendo sido, infelizmente, devidamente incorporadas na regulação da pesca do arenque, hoje espécie sobre-explorada20. A dinâmica do ambiente marinho e as contínuas descobertas de recursos, minerais e energéticos, nos fundos marinhos, pontuaram a segunda metade do século XX e desembocaram numa intensa mediação entre a ciência e a regulação das actividades no mar, desde a prevenção e controlo da poluição, à gestão da biodiversidade marinha, até ao aproveitamento dos potenciais mineral e energético marinhos. Pode mesmo afirmar-se que a determinação da adopção de medidas provisórias pelo TIJ, no sentido da ordem de suspensão dos ensaios nucleares franceses à superfície nos mares do Pacífico, solicitada pela Austrália e Nova Zelândia e um conjunto de Estados austrais (caso Ensaios nucleares I, 1973), constitui um afloramento precoce da lógica de antecipação de riscos, uma vez que ocorrendo a deflagração dos engenhos em alto mar, não havia certezas sobre a contaminação radioactiva extensível a espaços marinhos sob jurisdição daqueles Estados21 — mas na dúvida e perante a urgência de evitar danos irreversíveis ao ambiente e à saúde, o Tribunal decretou a suspensão. Esta sensibilidade crescente à contribuição da ciência e da tecnologia para a protecção do ambiente foi registada na Declaração de Estocolmo. Conforme se lê no princípio 18: “Science and technology, as part of their contribution to economic and social development, must be applied to the identification, avoidance and control of environmental risks and to the solution of environmental problems and for the good of mankind”. Vinte anos mais tarde, a Declaração do Rio retoma o elogio da ciência na promoção da qualidade ambiental, mas acentua também o impera20 .  Cfr. Patricia BIRNIE, Law of the Sea and ocean resources: implications for marine scientific research, in IJM&CL, 1995/2, pp. 229 segs, 231-232. 21 .  Esta decisão gerou intensa controvérsia no Tribunal, tendo sido fruto de uma votação de 8 juízes contra 6. A questão principal prendeu-se com a existência de jurisdição do TIJ sobre uma zona de alto mar (e também de espaço atmosférico), ao cabo e ao resto, aquela onde a actividade de experimentação francesa teria lugar. Os votos dissidentes dos juízes vencidos focam extensamente este ponto, que está estreitamente ligado à caracterização da legitimidade dos Estados austrais para defender (ainda que devido a uma relação funcional) bens situados em espaços fora de jurisdição. O Tribunal “atirou” a decisão sobre este pressuposto para a causa principal, em nome da urgência na prevenção de danos ao meio marinho e às pessoas, mas como a providência veio a caducar em virtude da alteração da forma de realização dos ensaios pela França (de à superfície para subterrâneos), o Tribunal nunca chegou a pronunciar-se sobre tal magno problema. 243

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tivo de partilha do conhecimento, numa lógica de cooperação internacional. O princípio 9 estabelece isso mesmo: “States should cooperate to strengthen endogenous capacity-building for sustainable development by improving scientific understanding through exchanges of scientific and technological knowledge, and by enhancing the development, adaptation, diffusion and transfer of technologies, including new and innovative technologies”. Muito recentemente, a Declaração final da cimeira Rio + 20 ilumina a contribuição decisiva da comunidade epistemológica para a gestão racional dos recursos, acentuando a tónica das responsabilidades comuns mas diferenciadas: “48. We recognize the important contribution of the scientific and technological community to sustainable development. We are committed to working with and fostering collaboration among academic, scientific and technological community, in particular in developing countries, to close the technological gap between developing and developed countries, strengthen the science-policy interface as well as to foster international research collaboration on sustainable development”. Também o TIJ, já na década de 1990, deixou bem clara a importância que reconhece à componente científica no âmbito da protecção do ambiente. Conforme obtemperou no Acórdão Gabcikovo-Nagymaros (consid. 140), “The Court is mindful that, in the field of environmental protection, vigilance and prevention are required on account of the often irreversible character of damage to the environment and of the limitations inherent in the very mechanism of reparation of this type of damage. Throughout the ages, mankind has, for economic and other reasons, constantly interfered with nature. In the past, this was often done without consideration of the effects upon the environment. Owing to new scientific insights and to a growing awareness of the risks for mankind for present and future generations - of pursuit of such interventions at an unconsidered and unabated pace, new norms and standards have been developed, set forth in a great number of instruments during the last two decades. Such new norms have to be taken into consideration, and such new standards given proper weight, not only when States contemplate new activities but also when continuing with activities begun in the past”. No Direito do Mar, porventura a mais paradigmática jurisprudência sobre a articulação entre conhecimento científico e protecção do meio marinho é o Acórdão Southern Bluefin Tuna, do TIDM, prolatado em

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199922. Estava em causa rebater a prática de sobrepesca do atum azul por parte do Japão, contestada pela Nova Zelândia e Austrália em virtude de provocar exaurimento de stocks, mas defendida pelos nipónicos com base na alegação de que se trataria de um programa de pesca experimental a levar a cabo entre 1998 e 2000. O atum azul é espécie protegida por uma Convenção para a Conservação do atum azul, celebrada entre os três Estados em 1993, à qual acresceriam as normas da CMB (ratificada pelos três Estados) sobre gestão racional da pesca em alto mar — nomeadamente, os artigos 64 e 116 a 119, que apontam para a necessidade de salvaguarda do melhor nível de sustentabilidade ou regenerabilidade da espécie piscícola em causa (maximum sustainable yield, rendimento máximo sustentável). A controvérsia científica sobre o estado dos stocks levou o Japão a sustentar que se estaria perante uma controvérsia científica e não jurídica (§42). No entanto, o TIDM considerou que, estando ambas as partes de acordo quanto à severa depleção da espécie, que teria atingido mínimos históricos e constituia razão de preocupação séria em termos biológicos (§72), qualquer tipo de actividade de captura, ainda que alegadamente a título puramente experimental, poderia causar dano irreversível e apelando à prudência e precaução (prudence and caution), preventivamente, deveria ser sustada — mesmo que os dados científicos apresentados quanto às causas da depleção fossem contraditórios: “77. Considering that, in the view of the Tribunal, the parties should in the circumstances act with prudence and caution to ensure that effective conservation measures are taken to prevent serious harm to the stock of southern bluefin tuna; 78. Considering that the parties should intensify their efforts to cooperate with other participants in the fishery for southern bluefin tuna with a view to ensuring conservation and promoting the objective of optimum utilization of the stock; 79. Considering that there is scientific uncertainty regarding measures to be taken to conserve the stock of southern bluefin tuna and that 22 .  Veja-se também o caso nº 7, decidido pelo TIDM em 2009, que opôs o Chile à União Europeia devido à alegada pesca ilegal de peixe-espada no sudeste do Pacífico. Deste caso, ressalte-se a injunção do Tribunal no sentido da constituição de Comité TécnicoCientífico Bilateral com as seguintes tarefas: promover a troca de informação e de dados sobre capturas e esforço de pesca, bem como do estado dos stocks; fornecer assessoria de base científica sobre gestão dos stocks do modo a assegurar a sustentabilidade destes; fornecer assessoria sobre medidas adicionais de conservação — cfr. o ponto 4 do despacho de 16 de Dezembro de 2009. 245

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there is no agreement among the parties as to whether the conservation measures taken so far have led to the improvement in the stock of southern bluefin tuna; 80. Considering that, although the Tribunal cannot conclusively assess the scientific evidence presented by the parties, it finds that measures should be taken as a matter of urgency to preserve the rights of the parties and to avert further deterioration of the southern bluefin tuna stock”. A sustentação científica ganha, portanto, cada vez maior relevo nos litígios ambientais23, ainda que por recurso às conclusões mais plausíveis e não às verdades incontestáveis. De realçar nesta sede é, identicamente, a representação da Comissão Oceanográfica Intergovernamental junto do TIDM na fase oral do processo de consulta que lhe foi submetido no caso 1724, a propósito da responsabilidade dos Estados por actividades desenvolvidas por entidades por si patrocinadas na Área. Este parecer — o primeiro a ser solicitado ao Tribunal de Hamburgo e a primeira vez que uma pronúncia reuniu a unanimidade — envolve matérias altamente complexas do ponto de vista técnico e científico, para além de jurídico, na medida em que se prende com a fixação de standards de gestão preventiva do risco para o ambiente marinho em razão do desenvolvimento de actividades na Área25. Com efeito, no ambiente marinho — como no ambiente em geral —, a dinâmica física e biológica recomenda uma atenção constante, um estudo atento, uma avaliação criteriosa. O conceito de “abordagem ecossistémica” (ecosystem approach), que encontramos, por exemplo, na definição do Comité da Biodiversidade da Convenção OSPAR de 1992, reflecte 23 .  Refira-se que a Austrália propôs uma acção contra o Japão junto do TIJ, em 1 de Junho de 2010, por alegada violação das normas relativas à proibição da pesca da baleia, genericamente vedada desde 1985/86 por uma moratória emanada da Comissão baleeira internacional, com base na Convenção Internacional sobre a pesca da baleia — que ambos os Estados ratificaram —, e que se baseia na grande incerteza científica sobre o estado dos stocks. O Japão justifica o programa de pesca que desenvolve na zona da Antártida (JARPA II) por apelo à excepção de autorização da pesca para fins de investigação científica (cfr. o artigo VIII da Convenção), e a Austrália contrapõe que um tão amplo programa foge totalmente ao intuito restritivo da autorização excepcional previsto na Convenção, e que gera um sério risco de depleção da espécie. Em 18 de Maio de 2012 encerrou-se o período de apresentação das memória e contra-memória, estando o caso a aguardar julgamento no TIJ. 24 .  Bem como a União Internacional para a Conservação da Natureza. 25 .  A participação de peritos nos litígios sobre questões de Direito do Mar que envolvam componente técnica e científica é, de resto, expressamente prevista no artigo 289 da CMB, quer a pedido das partes, quer por iniciativa do tribunal que se ocupe da demanda, em número não inferior a dois e escolhidos preferencialmente a partir de uma lista previamente elaborada, e sem direito de voto. 246

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particularmente a perspectiva abrangente e entrecruzada dos ecossistemas entre si, e entre estes e a actividade humana: “The comprehensive integrated management of human activities based on the best available scientific knowledge about the ecosystem and its dynamics, in order to identify and take action on influences which are critical to the health of marine ecosystems, thereby achieving sustainable use and ecosystem goods and services and maintenance of ecosystem integrity”. Conforme realça TANAKA26, a abordagem científica dos ecossistemas é especialmente relevante nos chamados grandes ecossistemas marinhos (“large marine ecossystems”), massas de água extensíveis por áreas de cerca de 200,000 metros quadrados desde a linha de costa e que albergam em torno de 95% das espécies piscícolas27, atravessando e entrecruzando áreas marinhas sob jurisdição de diferentes Estados, cuja cooperação na investigação das suas características é decisiva. O Conselho Internacional para exploração do mar tem vindo, desde 2001, a assessorar os Estados no levantamento e partilha de informação sobre estes ecossistemas. Não se estranha, portanto, que a CMB esteja polvilhada de referências à investigação científica, apoio indispensável de procedimentos credíveis de avaliação de riscos, como veremos de seguida.

4  Investigação científica e protecção do meio marinho na CMB

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investigação científica marinha é uma componente ineliminável do objectivo de protecção do ambiente marinho. Pense-se desde logo na controvérsia Bluefin tuna e nos métodos de avaliação do máximo rendimento sustentável, pressuposto do exercício lícito da pesca de determinada espécie piscícola; ou no estudo de aproveitamentos energéti-

26 .  Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate in marine scientific research and the conservation of marine living resources, in ZaöRV, 2005, vol, 65, pp. 937 segs, 952 segs. 27 .  Foram já identificados 64 grandes ecossistemas marinhos no mundo, “regions of ocean and coastal space that encompass river basins and estuaries and extend out to the seaward boundary of continental shelves and the seaward margins of coastal current systems” — cfr. The UNEP Large Marine Ecosystem Report: A perspective on changing conditions in LMEs of the world’s Regional Seas, UNEP Regional Seas, Report and Studies nº 182, Sherman, K. and Hempel, G. (Editors), United Nations Environment Programme, Nairobi, Kenya, 2008, disponível em http://www.lme.noaa.gov/ 247

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cos do potencial marinho, fundamentais para a reconversão energética decorrente da luta contra o aquecimento global e através da substituição dos combustíveis fósseis por fontes de energia renovável (energia das ondas, das correntes, geotérmica); ou na análise geográfica e geofísica dos fundos marinhos e das placas tectónicas em que assentam, com relevo na preservação da fauna de grande profundidade e na prevenção de maremotos; ou ainda na investigação meteorológica e climatológica dos oceanos, que traz dados importantes para a compreensão dos meios marinho e atmosférico e suas interacções. A investigação científica marinha tem antecedentes nas viagens do Challenger, em finais do século XIX, sendo então encarada como uma das liberdades dos mares — e assim permanecendo na Convenção de Genebra de 1958 sobre o alto mar28. O marco determinante do início de pesquisas sistemáticas residirá, porventura, no estudo de métodos sonoros para detecção de submarinos, durante a II Guerra Mundial, tendo vindo a desenvolver-se contínua e proficuamente desde então, e relevando hoje nos mais variados domínios, do puramente científico ao assumidamente comercial, do da alimentação ao energético, do turístico ao geológico. Com a criação da Comissão Oceanográfica Intergovernamental, em 1960, no âmbito da UNESCO, a investigação científica marinha institucionalizou-se. Como objectivo genérico, a Comissão promove a cooperação internacional no âmbito da investigação científica marinha, desenvolvendo neste vasto campo de acção diversos programas de espectro mundial — como o Global Ocean Observing System (=GOOS), um observatório mundial do estado dos oceanos —, bem como, a título regional e sectorial, vários programas dedicados aos sistemas de gestão do meio marinho e da orla costeira, à prevenção de riscos tecnológicos e naturais (como o incremento de sistemas de alerta precoce contra maremotos), à observação e tratamento de dados sobre os efeitos das alterações climáticas nos oceanos e seus ecossistemas29. Uma das áreas que mais atenção recente tem merecido é, preci-

samente, a da contribuição dos oceanos para a luta contra o aquecimento global, domínio onde o GOOS tem actuado em estreita colaboração com o Painel Internacional para as Alterações Climáticas, procedendo à monitorização da absorção de carbono pelos oceanos no âmbito do International Ocean Carbon Coordination Project (IOCCP). De resto, a investigação científica marinha é também objecto de atenção por parte de outras entidades na órbita da ONU, como a Food and Agriculture Organization (FAO)30, a World Meteorological Organization (WMO), a International Hydrographic Organization (IHO) ou o Joint Group of Experts on the scientific aspects of marine environmental protection (GESAMP)31. Em Portugal, merece destaque o papel da Universidade do Algarve e dos seus dois centros de investigação no domínio da investigação científica marinha, um dos quais (CCMAR) com o estatuto de Laboratório Associado (à unidade de I&D CIIMAR, da Universidade do Porto). A pesquisa desenvolvida incide especialmente sobre recursos biológicos (pesca e aquacultura), tecnologias alimentares, geociências marinhas e ambiente marinho e costeiro32.

4.1 A indefinição do conceito de “investigação científica marinha” A doutrina do Direito do Mar converge em que não resulta da CMB nenhuma definição de investigação científica marinha33, apesar de a Parte XIII da Convenção a ter por objecto. TANAKA refere que a expressão tem um sentido amplo que se traduz em qualquer estudo ou investiga30 .  De relevar é a aprovação, pela FAO, de um Código de Conduta sobre pesca responsável, em 1995, no qual se apela tanto à investigação científica dos Estados (costeiros), como à cooperação internacional nesta sede — cfr. Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., p. 946 —, documento que veio, aliás, a constituir uma das bases de inspiração do regime do 1995 Straddling and highly migratory fish stocks agreement, mais conhecido por Acordo de Nova Iorque. 31 .  Cfr. R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law…, cit., pp. 415-416.

28 .  Conforme explicam R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law of the Sea, 3ª ed., Manchester, 1999, p. 401, embora o artigo 2 da Convenção não mencione a liberdade de investigação científica marinha entre as liberdades do alto mar, o seu carácter de cláusula exemplificativa permitia considerá-la como tal, e a prática dos Estados confirmava-o. Já no caso da investigação conduzida na plataforma continental, bem assim como nas águas territoriais, o consentimento do Estado costeiro era necessário (pp. 402-403). 29 .  Todos os programas estão descritos no sítio da Comissão: http://www.ioc-unesco.org/ 248

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32 .  Cfr. João PINTO GUERREIRO, Investigação cientíifica marinha: um contributo para o país, in Novas fronteiras, nº 20, 2006, pp. 61 segs, 66. 33 .  Cfr. Patricia BIRNIE, Law of the Sea…, cit., p. 241; M. STOLKER, Marine scientific research and customary law – legal regime within the exclusive economic zone, in Thesaurus Acroasium, 1998, pp. 437 segs, 437; R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE (The Law…, cit., p. 405; Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit., pp. 938-940; Marko PAVLIHA e Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ, Marine scientific research and the 1982 United Nations Convention on the Law of the Sea, in O&CLLJ, 2010/1, pp. 115 segs, 117-118. 249

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ção que tenha por objecto o meio marinho (aí se compreendendo fundos marinhos e subsolo marinho, coluna de água e camada atmosférica sobre o mar). Para o Direito Internacional, contudo, a investigação científica divide-se em “pura” e “aplicada”, consoante a sua finalidade seja o aprofundamento do conhecimento de um determinado meio, no primeiro caso, ou tenha por objectivo a análise desse meio funcionalmente a um aproveitamento lucrativo, no segundo34. Dir-se-ia que parece resultar da interpretação sistemática da Parte XIII que as actividades de investigação aqui visadas são actividades, se não imediatamente lucrativas, pelo menos com potencial económico35. No entanto, tal não significa, segundo BIRNIE, que o regime se não aplique também a actividades de pesquisa pura36. O ponto principal a ter em conta no que tange à aplicação ou não da Parte XIII prende-se com a necessidade de consentimento do Estado costeiro relativamente a actividades de investigação realizadas em áreas marinhas sob sua soberania ou jurisdição — ou seja, até ao limite da sua zona económica exclusiva. Se se aceita que, no mar territorial, qualquer actuação que se não traduza no mero atravessamento possa ser considerada passagem não inofensiva e, portanto, deva ser expressamente autorizada (cfr. o artigo 19/2/j) da CMB)37, diferentemente se perspectiva a questão no que concerne a outros espaços de mar quanto a actividades de pesquisa pura. A CMB foi sensível a 34 .  Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., p. 939 (falando em “fundamental/pure research” e em “applied/resource oriented research”). Segundo Marko PAVLIHA e Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ (Marine scientific research…, cit., p. 122), os projectos de investigação com “direct significance for resource exploration and exploitation” são aqueles dos quais se possa esperar resultados quanto à localização, avaliação e monitorização de recursos com vista à análise do seu estatuto e viabilidade de exploração económica. 35 .  Neste sentido, Patricia BIRNIE, Law of the Sea…, cit., p. 242. (M. STOLKER, Marine scientific research…, cit., p. 441) considera que, comparando o regime da CMB com o regime anterior, vertido na Convenção de Genebra sobre a plataforma continental, de 1958, o primeiro é mais voltado para os interesses económicos e menos para os objectivos de pesquisa pura. 36 .  A autora, citando A. Soons, admite que a investigação científica pura possa ainda ser submetida aos cânones regulatórios da parte XIII, tendo em mente a sua instrumentalidade — Patricia BIRNIE, Law of the Sea…, cit., p. 242. 37 .  Conforme sublinha Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit., p. 942, o Estado costeiro goza de poderes decisivos sobre a actividade de investigação científica em zonas marinhas sujeitas a soberania territorial, facto que se reflecte quer no mar territorial, quer em águas arquipelágicas, (cfr. o artigo 49) quer ainda nos mares fechados ou semi-fechados — aqui com a particularidade de coordenação necessária das políticas de investigação científica marinha entre os Estados costeiros que partilhem poderes de jurisdição sobre tal espaço (cfr. o artigo 123/c) da CMB). 250

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essa questão — que pressupõe a assimilação da estreita ligação entre investigação e protecção do ambiente marinho —, determinando a redução da amplitude de fundamentos de não oposição dos Estados costeiros em face de pedidos de Estados ou Organizações Internacionais relativos a projectos de investigação na zona económica exclusiva ou na plataforma continental “exclusivamente com fins pacíficos e com o propósito de aumentar o conhecimento científico em benefício de toda a Humanidade” (artigo 246/3)38. Ou seja, para todas as actividades de investigação científica na zona económica exclusiva ou na plataforma continental do Estado costeiro vale a regra de solicitação da sua realização (ao Estado costeiro) com seis meses de antecedência relativamente ao início do projecto (artigo 248) e da possibilidade de manifestação de oposição até quatro meses após o recebimento do pedido (artigo 252), sob pena de consentimento implícito. Todavia, a discricionaridade dos Estados é prima facie limitada relativamente às actividades de pesquisa pura, desde logo porque o artigo 246/3 apela ao consentimento expresso e rápido (“…os Estados costeiros devem estabelecer regras e procedimentos para garantir que tal consentimento não seja retardado nem denegado sem justificação razoável”), e depois porque lhes é vedado, em circunstâncias normais39, oporem-se a estas pesquisas, ao contrário do que sucede face a pedidos de investigação aplicada, nos termos do artigo 246/240. Em contrapartida, mesmo nos casos de investigação científica pura, os Estados costeiros poderão recusar o seu consenti-

38 .  Esta formulação, desde logo presente no artigo 240/a) e reafirmada no artigo 301, poderia levar a crer que a investigação científica para fins militares é interdita pela CMB. Conforme explicam R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE (The Law…, cit., p. 411), trata-se apenas de proibir o uso do alto mar para realização de acções agressivas, em violação do Direito Internacional. 39 .  Para Marko PAVLIHA e Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ (Marine scientific research…, cit., pp. 121-122), circunstâncias não normais serão casos de conflito armado, mas também, porventura, de pendência de uma questão de delimitação do espaço marinho entre o Estado costeiro e o Estado solicitante, sendo que será a este que cumpre fazer a prova da anormalidade. R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE (The Law…, cit., p. 407), por seu turno, falam em situações de “hostilidade ou tensão séria” entre o Estado costeiro e o Estado dono/promotor do projecto. 40 .  M. STOLKER, Marine scientific research…, cit., p. 444, louvando-se em Attard, afirma que a diferença entre os regimes em razão do tipo de investigação se resume, quanto a projectos de investigação pura, a que cabe ao Estado costeiro justificar a não concessão de autorização, enquanto que relativamente a projectos de investigação aplicada, cabe ao dono do projecto caracterizar a desadequação dos fundamentos de recusa avançados pelo Estado costeiro. 251

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mento nas situações descritas no artigo 246/541, porquanto envolvem metodologias altamente intrusivas42. Além disso, existem (pelo menos) mais três obstáculos ao favorecimento dos projectos de investigação científica pura: por um lado, o facto de o artigo 246/3 não estabelecer desde logo um prazo de consentimento implícito mais curto do que o previsto no artigo 252 (quase implicando, ao invés, um entendimento mais estrito, no sentido da necessidade de um consentimento explícito); por outro lado, a utilização do conceito indeterminado “circunstâncias normais”, propício a aproveitamentos indevidos (ainda assim, cfr. o nº 4 do artigo 264); por fim e identicamente para projectos de pesquisa aplicada, as actividades não podem contundir com a utilização dos espaços de mar em causa pelo Estado costeiro (artigo 246/8). O Estado costeiro, mesmo que consinta implícita ou explicitamente na realização da actividade solicitada, pode ordenar a suspensão desta, nos termos do artigo 253, em razão de incumprimento de condições previamente estabelecidas entre o Estado costeiro e a entidade pesquisadora ou de alteração unilateral das mesmas pela última. Ainda uma nota relativamente à investigação científica na Área, sob jurisdição da Autoridade Internacional para os Fundos marinhos. O artigo 143 dispõe que tal investigação deve pautar-se pela exclusiva prossecução de fins pacíficos, estando submetida ao regime da Parte XIII43 — o que não veda à Autoridade a possibilidade de, por si ou através de 41 .  Ou seja, o Estado tem um mínimo incomprimível de discricionaridade, mesmo perante pedidos de investigação científica pura, caso o projecto: possa ter uma influência directa na exploração e aproveitamento de recursos naturais, vivos e não vivos; implique perfurações na plataforma continental, utilização de explosivos ou introdução de substâncias nocivas no meio marinho; pressupuser a construção de estruturas ou ilhas artificiais; se basear em informação inexacta ou se o proponente tiver obrigações pendentes para com o Estado costeiro decorrentes de um projecto anterior. 42 .  Cfr. R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law…, cit., p. 405. 43 .  A ampla actividade de promoção da investigação marinha pela Autoridade pode ser compulsada no Report of the Secretary-general of the International Seabed Authority under article 166, paragraph 4, of the United Nations Convention on the Law of the Sea, ISBA/10/A/3, 31 de Março de 2004, compilado em Selected decisions and documents of the 10th session, Jamaica, 2004, pp. 10 segs — ponto 2 (“International collaboration in marine scientific research”), pp. 47 segs, onde se enunciam os quatro aspectos sujeitos a debate num workshop realizado em 2002 sob os seus auspícios: “(a) Levels of biodiversity, species range and gene flow in abyssal nodule provinces; (b) Disturbance and recolonization processes at the seafloor following mining track creation and plume resedimentation; (c) Mining plume impacts on the water column ecosystems (nutrient enrichment, enhanced turbidity, heavy-metal toxicity, enhanced oxygen demand); (d) Natural variability in nodule province ecosystems”. 252

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entidades concessionárias, levar por diante investigação aplicada44. O regime de gestão internacional, particularmente tributário da lógica de equidade intra e intergeracional, delineia intensos deveres de cooperação internacional, partilha de informação e transferência de tecnologias entre Estados mais e menos desenvolvidos (cfr. os artigos 143 e 144). Não podemos deixar de formular uma derradeira observação, na linha de CHURCHILL e LOWE: as disposições que vimos assinalando correm sério risco de obsolescência — se é que muitas o não sofreram já — em virtude do crescente recurso a satélites para a realização de actividades de pesquisa científica marinha45.

4.2 Os princípios que regem a investigação científica marinha Existe, como vimos, uma presunção de consentimento do Estado costeiro em face de pedidos de investigação científica marinha, acentuado quanto a investigação pura na medida em que a discricionaridade do Estado se vê reduzida em razão da relevância colectiva que a actividade reveste. Tal não significa, porém, que a investigação científica marinha em prol do melhor conhecimento e protecção do mar se faça à margem da prevenção de riscos para o meio marinho. Tal preocupação decorre, desde logo, da previsão ampla do artigo 192, concretizando-se relativamente à Área (no artigo 145) e encontrando a sua pauta no artigo 240, sede do lote de princípios gerais aplicáveis a quaisquer actividades de investigação marinha (que depois, algo tautologicamente e decerto em virtude da opção de não definição da noção, se vão repetindo nas disposições seguintes): “Na realização da investigação científica marinha devem ser aplicados os seguintes princípios: a) A investigação científica marinha deve ser realizada exclusivamente com fins pacíficos; b) A investigação científica marinha deve ser realizada mediante métodos e 44 .  Desde que, sublinha-se, na sequência do texto e segundo a lição de Tullio SCOVAZZI, tal investigação seja sempre norteada por fins pacíficos e que o seu resultado seja equitativamente repartido pela Humanidade. Nas palavras do Autor, “Yet the reading of Art. 143 in combination with Art. 246 contradicts the assumption that there is an absolute freedom to carry out bioprospecting in the Area. States which are active in bioprospecting in this space are already bound to contribute to the benefit of mankind as a whole” — The conservation and sustainable use of marine biodiversity, including genetic resources, in areas beyond national jurisdiction: a legal perspective, p. 13, disponível online, acesso em 30 de Setembro de 2012. 45 .  R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law…, cit., p. 412. 253

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meios científicos apropriados compatíveis com a presente Convenção; c) A investigação científica marinha não deve interferir injustificadamente com outras utilizações legítimas do mar compatíveis com a presente Convenção e será devidamente tomada em consideração no exercício de tais utilizações; d) A investigação científica marinha deve ser realizada nos termos de todos os regulamentos pertinentes adoptados de conformidade com a presente Convenção, incluindo os relativos à protecção e preservação do meio marinho”. A importância da ciência para a protecção do meio marinho leva-nos a acrescentar aos princípios mencionados — e na lógica do princípio da cooperação preventiva em sede de investigação científica que se retira dos artigos 197 e 200 da CMB46 —, a pauta da Secção II da Parte XIII, relativa à Cooperação Internacional, nomeadamente o disposto no artigo 242/247, que apela à disponibilização, entre Estados e Organizações Internacionais, de dados resultantes das actividades de investigação científica marinha que permitam evitar ou minimizar danos para a saúde e para o meio ambiente48. O artigo 249/1/e) confirma que existe um dever de cooperação de boa fé na troca de informações científicas entre Estados e Organizações internacionais, mesmo que tais informações resultem de projectos de investigação científica marinha com propósito lucrativo, desde que a sua transmissão salvaguarde os direitos comerciais do Estado que a promove. A consistência e efectividade deste dever de cooperação tem sido, no entanto, bastante contestada, em virtude de se tratar essencialmente de uma obrigação de meios e não de resultado49. Sublinhe-se que a cooperação internacional se realiza, antes de mais, através da colaboração entre Estado costeiro e entidades que levam a 46 .  A propósito do caso Southern Bluefin Tuna, Yoshifumi TANAKA (Obligation to co-operate.., cit., p. 956) realça a fundamentalidade da cooperação, desde logo no estabelecimento de uma metodologia de avaliação baseada em critérios consensualmente obtidos, sob pena de se abrir constante espaço à litigiosidade. 47 .  Reza a disposição: “Neste contexto [investigação científica para fins pacíficos], e sem prejuízo dos direitos e deveres dos Estados em virtude da presente Convenção, um Estado, ao aplicar a presente parte, deve dar a outros Estados, quando apropriado, oportunidade razoável para obter do mesmo, ou mediante a sua cooperação, a informação necessária para prevenir e controlar os danos à saúde e à segurança das pessoas e ao meio marinho”. 48 .  Sobre a cooperação entre Estados através de organizações internacionais, Fernando LOUREIRO BASTOS, A internacionalização dos recursos naturais marinhos, Lisboa, 2005, pp. 667 segs; Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., pp. 958 segs. 49 .  Cfr. Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., p. 956, colocando a ênfase na necessidade de assegurar a qualidade da informação bem como a credibilidade dos métodos de tratamento da mesma. 254

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cabo as pesquisas científicas50. Como vimos, no plano da pesquisa aplicada, o Estado costeiro deve autorizar ou pelo menos não se opor à realização destas, o que subentende uma atitude cooperante e sintonizada com o objectivo proposto. Por seu turno, a entidade que se propõe realizar a investigação deve fornecer toda a informação relevante ao Estado costeiro, detalhando as condições de execução do projecto — nos termos do artigo 248 (natureza e objectivos; metodologia e meios de execução; delimitação das áreas geográficas de incidência; datas de chegada e abandono dos locais; nome dos responsáveis pelo projecto; indicação da possibilidade de apoio, participação ou representação do Estado costeiro no projecto de investigação)51. Enfim, o Estado ou Organização internacional responsável pelo projecto deve cumprir as condições estabelecidos pelo Estado costeiro, conforme enunciadas no artigo 249, tanto no que toca a obrigações de abstenção de perturbação do exercício dos poderes de jurisdição do Estado costeiro sobre a zona, como no que concerne a não obstrução de possibilidades de uso do mar por outros Estados (na medida do possível), como ainda no que tange a obrigações de prestação de informação sobre a evolução da investigação, seus resultados e conclusões — disponibilizando-a ao Estado costeiro e a instâncias internacionais com competências nos domínios em jogo —, como, enfim, no que respeita a obrigações de retirada de equipamentos quando a investigação estiver finalizada (ou caso o Estado costeiro tenha imposto a suspensão ou cessação da actividade, nos termos do artigo 253).

4.3 Gestão do risco e investigação científica marinha na CMB: alguns exemplos A sustentação científica das medidas de preservação do meio marinho e de gestão racional dos seus recursos tem na CMB duas grandes linhas de força no âmbito da gestão do risco. Por um lado, no plano da gestão preventiva do risco de esgotamento de stocks promovida pelos artigos 61 e 62 da CMB, relativos à pesca na zona económica exclusiva e 50 .  Neste sentido, Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., p. 942. 51 .  DE acordo com Marko PAVLIHA e Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ (Marine scientific research…, cit., p. 125), a diferença entre participação e representação não é sempre evidente, avançando os autores como critério distintivo da participação a integração de cientistas do Estado costeiro no projecto de investigação, enquanto que a observação se restringiria à designação de (meros) observadores. 255

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ao limite do “máximo rendimento sustentável” que aí se indica como referencial económico-ambiental. Esta metodologia de avaliação de risco viria a ser sensivelmente alterada, para as espécies transzonais e altamente migratórias, com o Acordo de Nova Iorque, de 1995. Com efeito, o artigo 6 deste Acordo, numa abordagem alegadamente precaucionista, admite a adopção de medidas cautelares com vista à salvaguarda dos stocks perante dúvidas razoáveis sobre a sua sustentabilidade, enquanto que o artigo 61/2 da CMB aponta apenas para a fixação de quotas de pesca que não ameace perigosamente os níveis de reprodução das espécies (aplicável por remissão do artigo 64 da CMB)52. Os critérios em que se baseia a fixação dos limites devem atender à melhor informação disponível e utilizar as melhores técnicas, conforme dispõem os artigos 61, 62 e também o artigo 119 (para a pesca em alto mar). Como expressamente decorre do nº 2 do artigo 119, “Periodicamente devem ser comunicadas ou trocadas informações científicas disponíveis, estatísticas de captura e de esforço de pesca e outros dados pertinentes para a conservação das populações de peixes, por intermédio das organizações internacionais competentes, sejam elas sub-regionais, regionais ou mundiais, quando apropriado, e com a participação de todos os Estados interessados.” Questionável é que nesta avaliação os critérios ecológicos não sejam suficientes para fundamentar os limites, entrando também em linha de conta os aspectos económicos… TANAKA sublinha a importância da cooperação neste âmbito, em razão da dinâmica do meio e do intenso trânsito de espécies de zona para zona, entre alto mar e zonas económicas exclusivas múltiplas. O nº 5 do artigo 61 estabelece a necessidade de entrecruzamento de informação, promovendo a protecção alargada e prevenindo manipulação unilateral de dados53. De resto, o artigo 5/k) do Acordo de Nova Iorque faz eco desta preocupação, estabelecendo a necessidade de promoção de investigação científica marinha e de desenvolvimento de tecnologias de conservação e gestão. Esta disposição é complementada com as referências dos arti52 .  Vejam-se também as Guidelines em anexo ao Acordo de Nova Iorque, que aditam dois pontos de referência típicos de uma antecipação de riscos em quadros de incerteza: por um lado, o limite de conservação, que impõe a adopção de um padrão de um risco muito baixo como base de fixação de quotas de pesca e, por outro lado, um objectivo de gestão racional que proíbe, em regra, a sobreexploração e apenas a admite num plano transitório. Sobre o Acordo de Nova Iorque, entre outros, Moritaka HAYASHI, The 1995 Agreement on the conservation and management of straddling and highly migratory fish stocks: significance for the law of the Sea Convention, in O&CM, 1995/1-3, pp. 51 segs. 53 .  Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., pp. 943 e 947. 256

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gos 10 e 14 do mesmo Acordo aos imperativos de tratamento e actualização de dados, tanto das espécies directamente visadas no seu objecto, quanto das espécies que entram em interacção com as transzonais e altamente migratórias. Acresce ainda a exortação, no Anexo I ao Acordo de Nova Iorque, à colaboração entre Estados e organizações regionais e sub-regionais54 no que toca à partilha de informação relativa a avaliação e gestão de risco de depauperamento de stocks (cfr. o artigo 3/2)55. Por outro lado, a CMB aponta também as baterias da investigação científica para o combate e controlo da poluição no meio marinho (“prevenir, reduzir e controlar”), como ficou bem expresso nos artigos 200 e 201, no âmbito da lógica de prevenção alargada que a caracteriza. O papel da ciência é aqui decisivo enquanto conformadora das regras, internacionais e nacionais, sobre prevenção da poluição marinha, quer no estabelecimento de padrões de prevenção baseados na melhor informação disponível, quer na especialização e actualização destes. Vale a pena iluminar o disposto no artigo 211/6/a), que admite que o Estado costeiro imponha limites mais apertados à navegação do que aqueles que constam das normas internacionais em vigor, caso particulares circunstâncias (oceanográficas ou ecológicas) o imponham e desde que apoiado em provas científicas e técnicas bastantes. Ilustrativo da estreita ligação entre a ciência e a CMB é também o artigo 234, relativo a áreas cobertas de gelo, especialmente perigosas para a navegação, que remete os Estados costeiros para a melhor informação científica disponível no tocante à preservação do ambiente marinho nos limites da sua zona económica exclusiva. Estes exemplos de metodologia de gestão antecipativa e cooperativa de riscos identificam aquilo a que poderíamos chamar obrigações principais. No entanto, no elenco da Parte XII encontram-se também deveres acessórios, de que constitui exemplo o dever de publicitação dos dados obtidos através da monitorização, plasmado do artigo 205. Se é verdade que a actividade de gestão do risco se pauta pela tentativa de redução da incerteza, certo é também que a investigação científica, alimentada pela observação constante da dinâmica dos fenómenos natu54 .  Sobre a cooperação no âmbito dos acordos regionais em sede de pesca, veja-se Yoshifumi TANAKA, Obligation to co-operate…, cit.., pp. 948 segs. 55 .  A informação sujeita a partilha inclui: a) composição dos lotes capturados, tendo em conta o tamanho, peso e sexo; b) outra informação biológica relativa às avaliações de stocks; e c) outras pesquisas relevantes, incluindo análises de abundância, de biomassa, hidro-acústicos e outros estudos oceanográficos e ecológicos relevantes. 257

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rais, lhe vai servir de apoio decisivo, tanto no plano da criação de condições de inteligibilidade na avaliação de riscos como no plano de criação de condições de operacionalidade na gestão/minimização do risco. Temos, portanto, uma associação necessária entre as obrigações de meios que compõem a metodologia de avaliação e gestão de risco: de uma banda, obrigações principais — de elaboração de estudos de impacto, de troca de informação e consulta entre o Estado responsável pelo incremento do risco e outros sujeitos potencialmente afectados, promoção da participação pública, elaboração de planos de emergência; e incorporação desses resultados nas regras e princípios convencional e legislativamente aplicáveis — e, de outra banda, obrigações acessórias — de monitorização de dados, publicitação dos mesmos e tratamento científico com vista à melhoria contínua das técnicas de minimização de danos. Constituindo o mar uma grandeza universal e cujas fragilidades não são estanques, a avaliação científica de riscos deve ser uma tarefa partilhada — o que implica custos consideráveis. Ineliminável é, pois, a assistência de Estados desenvolvidos a Estados menos desenvolvidos no financiamento de programas de investigação, na transferência de tecnologia, na formação de peritos56. O artigo 202 da CMB57 é particularmente ilustrativo dos desdobramentos desta concretização, avant Rio, do princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas — do qual, afinal, a Declaração de 1992 não é pioneira, uma vez que este imperativo já está presente na Declaração de Estocolmo (princípios 12, 5 e 9). O apoio à investigação científica nos Estados menos desenvolvidos não só assenta numa lógica de solidariedade intrageracional58 como decorre identicamente da constatação de que os problemas ambientais não reconhecem as fronteiras políticas, devendo ser atacados em todas as frentes. A CMB dedica a Parte XIV à indicação de formas de concretização deste objectivo. A promoção de condições de igualdade de investigação científica marinha entre Estados é tão sensível que o Acto final da CMB afirma, no seu Anexo VI (consid. 4º), que “unless urgent measures are taken, the marine scientific and technological gap between the developed and the developing countries will hidden further and thus endanger the very

foundations of the new régime”. É, afinal, o eco (utópico?59) das palavras do Preâmbulo da Convenção de Montego Bay, quando convoca a cooperação internacional no âmbito do Direito do Mar com vista à consecução de uma “uma ordem económica internacional justa e equitativa que tenha em conta os interesses e as necessidades da humanidade, em geral, e, em particular, os interesses e as necessidades especiais dos países em desenvolvimento, quer costeiros quer sem litoral”.

56 .  Sobre este ponto, veja-se R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, The Law…, cit., pp. 416-419. 57 .  Complementado pelo Anexo VI à CMB. 58 .  Cfr. também o artigo 8 da Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados, de 1974 (Resolução da AG 3281, XXIX). 258

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59 .  Para Marko PAVLIHA e Norman MARTÍNEZ GUTIÉRREZ (Marine scientific research…, cit., p. 129), as normas do Cap. XIV mais não são do que um pacto de contrahendo, que a vaguidade condena à ineficácia. 259

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Alteridade e Ética com Responsabilidade

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14 A ÉTICA DA ALTERIDADE E DA RESPONSABILIDADE E A HERMENÊUTICA DIATÓPICA: Um diálogo entre Lévinas e Panikkar e a busca pelo Reconhecimento do Outro na Construção Intercultural dos Direitos Humanos. Heleno Florindo da Silva

INTRODUÇÃO

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m momentos onde a economia mundial se encontra fragilizada pelas recentes crises financeiras, falar em ética, alteridade, hermenêutica e reconhecimento do outro, é extremamente difícil. Nestes contextos, referidas discussões são remetidas para o futuro, pois no agora, antes de vermos o outro, pretendemos resolver o problema da escassez de recursos financeiros. Desse modo, a criação de uma relação entre os diferentes, buscando um reconhecimento recíproco, embasada na ética da alteridade e da responsabilidade, bem como através da construção dos Direitos Humanos por meio de uma hermenêutica diatópica, faz do diálogo entre Lévinas e Pannikar um caminho para se evitar uma mitigação nos, já frágeis, Direitos Humanos, em nome da salvaguarda econômica. Assim, no presente artigo serão discutidos além das contribuições citadas, a realidade multicultural em que estamos inseridos e a necessidade de reconhecimento dessa diversidade na busca de dias melhores, adotando para tanto, as teorias de Emmanuel Lévinas e Raimon Pannikar, bem como a visão do múltiplo dialético para corroborar tal empreendimento. Portanto, a busca pelo reconhecimento daquele que nos é diferente tratada aqui, contribuirá para as discussões na medida em que abordará duas visões recentes acerca da problemática do reconhecimento do outro, a fim de realizar um diálogo entre os diferentes, aproximando, assim, as várias culturas de um mesmo país ou de diferentes países.

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1  A ÉTICA DA ALTERIDADE E DA RESPONSABILIDADE EM EMMANUEL LÉVINAS E O OUTRO: Um Caminho para o Reconhecimento entre os Diferentes.

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mmanuel Lévinas1 é autor de diversos livros acerca da problemática das teorias que descrevem conceitos e bases de discussão sobre alteridade e, principalmente, sobre a ética, de modo que sua contribuição na busca pelo reconhecimento do outro é valiosíssima, a um, pela claridade de suas ideias, a dois, pela atualidade de seu discurso. Segundo Souza (2009), sua obra pode ser dividida em três períodos distintos, quais sejam: o primeiro, entre 1929 e 1951, quando se interessou pelo estudo da fenomenologia em Edmund Husserl e Martin Heidegger, se doutorando em filosofia com tese voltada para a teoria da intuição na fenomenologia de Husserl; o segundo, entre 1952 a 1964, quando deu início, de forma expressiva em sua produção filosófica e, ao fim, o terceiro, de 1966 a 1979, onde se destacou a publicação do livro Humanismo do outro homem. Nestes termos, antes de adentrarmos na contribuição de Lévinas para o presente trabalho, ressalta-se que a proposta que será trabalhada aqui, longe de configurar uma utopia no sentido que lhe deu Thomas Morus, trata-se de uma descrição, através de um diálogo, da realidade multicultural atual, bem como na necessidade de proteção dessa realidade a fim de salvaguardar os Homens e seus Direitos Humanos. Assim, a fim de marcar um primeiro ponto para a discussão acerca da ética da alteridade tratada por Lévinas, cabe-nos determinar o que seja ética em nossa visão. Desse modo, ética no contexto trabalhado aqui, deve ser entendida como a filosofia da moral, ou seja, a origem, o primado em que se embasa a moral – produto das regras e normas culturais de um povo (KROHLING, 2011, p. 19 e 37). Vista sob tais aspectos, a consciência advinda desta ética, atua como um verdadeiro caminho de interligação entre todas as esferas

1 .  Emmanuel Lévinas nasceu em Kaunas, na Lituânia, em 1906. Faleceu em Paris em 1995. Conforme acentua Carrara (2011), sua filosofia situa-se dentro do contexto da guerra fria, ou seja, a figura do outro, trazida por ele em suas discussões é, a priori, ignorado pelos filósofos, haja vista estarem preocupados com a questão da totalidade, na qual o indivíduo, o eu e o outro, encontravam-se em um lugar secundário. 264

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humanas, constituindo-se, assim, como ética da responsabilidade. A ética, nesse ponto, é a reflexão crítica entre as possibilidades do fazer ou não fazer (KROHLING, 2011, p. 29). Acerca dessa noção de ética da responsabilidade, se vê uma responsabilidade pelo outro, ou seja, uma responsabilidade nossa, por aquilo que o outro fez, que a princípio não me diz respeito, mas que possui um laço subjetivo comigo, na medida em que participo, com aquele agente, de um corpo social maior que nós. Neste sentido, Lévinas aponta que a relação intersubjetiva é uma relação não-simétrica, ou seja, serei responsável pelo outro sem esperar que a recíproca, ainda que isso venha me custar a própria vida (LÉVINAS, 2007, p. 82). Vista sob estas premissas, a construção teórica abordada acerca da ética, sob a ótica atual, não passaria de elucubrações ou divagações, tendo em vista o fato de que o pensamento dominante nas diferentes culturas se coloca no sentido de que, antes de proteger o outro, estranho a mim, eu devo proteger o eu, ou os meus. Desta feita, a alteridade, ou seja, essa interação com o outro, o reconhecimento de si, no diferente, e a ética, caminham lado a lado, tendo em vista que o eu só poderá se configurar na medida em que estabeleça um diálogo com os outros, pois sem eles não poderá definir-se como eu. Essa necessidade do outro é explicada por Lévinas a partir da construção da ideia de Rosto ou Olhar, vindas de uma reflexão judaico-cristã e das leis do Talmude, de onde se extrai “o corpo é o fato de que o pensamento mergulha no mundo que pensa e que, por consequência, exprime este mundo ao mesmo tempo que o pensa. (...) ele une a subjetividade do perceber, e a objetividade do exprimir” (Lévinas, 2009, p. 30), ou seja, nós somos sujeitos e partes, ao mesmo tempo, do mundo em que vivemos. Ademais, a figura do rosto para Lévinas é importante no sentido de que, em suas palavras: “Não sei se podemos falar de fenomenologia do rosto, já que fenomenologia descreve o que aparece. Assim, perguntome se podemos falar de um olhar voltado para o rosto, porque o olhar é conhecimento, percepção. Penso antes que o acesso ao rosto é, num primeiro momento, ético. Quando se vê um nariz, os olhos, uma testa, um queixo e se o pode descrever, é que nos voltamos para outrem como para um objeto. A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer atentar na cor dos olhos! Quando se observa a cor dos olhos, não se está em relação social com outrem. A relação com o rosto pode, sem dúvida,

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ser dominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a ele” (Lévinas, 2007, p. 69). Assim, necessitamos da figura do rosto, ou seja, do outro, para nos libertarmos da solidão do individualismo em que nos encontramos e que nos impede de efetivarmos os direitos criados para nossa própria proteção. É com o diálogo entre os rostos do eu e do outro que surgirá a ética da alteridade e da responsabilidade, contribuindo para a efetivação do primado da justiça. Há que se ressaltar que esse rosto proposto por Lévinas não induz a formação anatômica do Homem, e sim, algo intransponível, ligado à ideia, construída por ele, de infinito. Portanto, a relação com o outro servirá para nos questionar, esvaziar-nos de nós mesmos, possibilitando-nos descobrir novas possibilidades e visões. Ser eu, nestes termos, significa para Lévinas (2009, p. 49 e 53), não poder me furtar da responsabilidade pelos outros, pois essa responsabilidade é que me tirará o individualismo, o egoísmo e o imperialismo em que o meu eu está inserido. Nestes termos, Lévinas (2007, p. 87), em seu projeto ético alteral prioriza a ética, fundamentando-a metafisicamente, sendo que, para tanto, adota a ideia do infinito, da intersubjetividade e da exterioridade do ser. Para ele a ideia do outro como rosto significa o infinito, a constatação de uma exigência ética insaciável, haja vista que quanto mais justo se for, mais responsável se é, de modo que nunca seremos livres dos outros. Diante dessas premissas, podemos tirar uma primeira conclusão no sentido de que Lévinas cria e aprofunda as categorias da ética como primeira filosofia e como filosofia do outro, desenvolvendo, para tanto, o princípio matriz da ética da alteridade e da responsabilidade, que estão relacionados com os Direitos Humanos Fundamentais (KROHLING, 2011, p. 91 e 92). Passando para a análise mais precisa acerca da ética da alteridade e da responsabilidade em Lévinas, e a sua relação com a justiça, percebemos que para ele a justiça se traduz na concretização e realização da ética, ou seja, como a ética em sua construção teórica encarna a fonte de todos os demais princípios, a realização da justiça e, via de consequência, a realização da ética. Com relação à construção do eu fundada no Uno, Lévinas critica tal apontamento, haja vista o Uno se tornar uma espécie de monólogo filosófico, preferindo, assim, a ideia do Múltiplo, tendo em vista corresponder a verificação da existência de um multiculturalismo, ou seja, de vários eu. Assim, a alteridade para Lévinas, segundo Krohling (2011, p. 106) está re-

lacionada com a cultura e a linguagem, sendo sua vivência uma construção histórica. Desses termos podemos retirar a noção levantada por Lévinas do Homem como Ser de Desejo, ou seja, a figura do outro é algo que serve para completar o que falta no eu desejante. Por ser incompleto, o eu deseja o outro. É esse desejo que impulsiona o eu, incompleto, buscar do outro. Neste sentido, o encontro com o outro, o seu reconhecimento, possibilita o eu, egocêntrico, se completar, se reconhecer como eu. Elsa Brander, em texto acerca da ética levinasiana como fonte de responsabilidade com o outro2, aponta que: “Segundo Lévinas, a porta não se abre para o Outro como quando se abre a porta a um convidado. O Outro não é nenhum convidado. É o Eu que o é. O Eu é o convidado do Outro, porque o Outro está na própria origem da identidade do Mesmo. O Eu é convidado pelo Outro para um possível encontro. Um encontro onde o outro não chega primeiro, mas já está lá há muito tempo.” Portanto, em Lévinas, essa relação que ocorre, entre o eu e o outro, é uma relação de responsabilidade, haja vista que, no momento que estou frente a frente com o outro, eu sou responsável por ele. Essa relação é totalmente desinteressada, pois não me relaciono com o outro almejando algo em troca, mas sim pelo simples fim de estar com ele. É esse desinteresse que permite a presença do outro ser na vida do eu, ou seja, o eu passa a ser um Ser para o outro. Ademais, essa responsabilidade pelo outro que Lévinas aponta como um atributo ético “não é a privação do saber da compreensão e da captação, mas a excelência da proximidade ética na sua socialidade, no seu amor sem concupiscência” (Lévinas, 2004, p. 196). Diante de tais apontamentos, podemos perceber que a construção da ética como princípio fonte de todos os demais princípios criada por Lévinas nos possibilita ver que a relação intersubjetiva entre o Eu e o Outro é essencial para a construção de uma sociedade plural, que respeita seus iguais, na medida de suas igualdades, e os desiguais, naquilo em que se desigualam (CRUZ, 2005, p. 210). A Ética da Alteridade e da Responsabilidade de Lévinas é um caminho para o eu reconhecer o outro que habita em cada um de nós, ou seja, é a possibilidade de uma sociedade, heterogênea, construir suas bases culturais no reconhecimento da diferença. O outro passa de inimigo, àquilo que me completa como ser.

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2 .  Texto disponível em: . 267

Portanto, podemos perceber a partir de toda essa discussão, que Lévinas trouxe um novo modo de vermos o pensamento filosófico, ou seja, um novo modelo de pensamento, evidenciando a ética em detrimento à filosofia. A partir de então, a responsabilidade pelo outro deve sempre permear o pensamento filosófico (PEREIRA, 2010, p. 89). Ao fim, devemos destacar que a ética para o reconhecimento do outro, nos termos propostos por Lévinas, não somente é capaz de preservar a individualidade do eu, mas, também, ela mantém a alteridade de outro, ajudando, assim, a preservar a pluralidade cultural, e os diferentes modos de vida presentes dentro de uma mesma sociedade, ou entre diferentes nichos sociais. Desse modo, o caminho de reconhecimento do outro proposto por Lévinas é um passo na construção de uma sociedade multicultural global, por onde teremos a possibilidade de sermos diferentes, sempre que a igualdade nos descaracterizar, mas, em contrapartida, também teremos a possibilidade de sermos iguais, sempre que a desigualdade nos minimizar.

2  A HERMENÊUTICA DIATÓPICA DE RAIMON PANIKKAR E A CONSTRUÇÃO INTERCULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS: um passo para o Diálogo Entre os Diferentes.

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ivemos em uma época singular na história da humanidade. Há quem denomine, conforme Bittar (2008, p. 131 e 132) a nossa atualidade de pós-modernidade, outros de supermodernidade (Georges Balandier), ou ainda, de modernidade reflexiva (Ulrich Beck) ou de hipermodernidade (Gilles Lipovetsky). É nesse emaranhado de conceituações, onde prenomina o “não” consenso, que temos uma única certeza: a falta de diálogo entre os povos na conformação de uma cultura unívoca dos Direitos Humanos. É partindo desse contexto histórico cultural, que a reflexão de Raimon Panikkar nos ajuda a criar caminhos seguros para alcançarmos a concretização de uma cultura dos Direitos Humanos voltada ao diálogo intercultural, a partir daquilo que ele denomina de Hermenêuti-

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ca Diatópica, possibilitando, assim, o reconhecimento do outro como sujeito de direitos e deveres. Desta feita, uma das primeiras constatações feitas por Panikkar é a de que povo algum possui o poder de dizer a verdade. Essa conclusão nos permite perceber outro ponto por ele abordado, qual seja o fato de que nenhuma cultura é completa em si. Assim, a inter-relação entre as diferentes culturas, os diferentes indivíduos é o caminho para se alcançar uma construção justa e equânime de Direitos Humanos. Neste sentido, Panikkar abre os olhos para o fato de que hoje os Direitos Humanos vem sendo pisoteados em todos os Continentes do Globo. Diante disso, ele pretende compreender o motivo pelo qual tal fenômeno acontece, ou seja, o que leva diferentes culturas a descumprirem, do mesmo modo, aquilo que conhecemos como Direitos Humanos Universais3. A resposta para essa imbricada questão está no fato de que tais Diretos Humanos não representarem um símbolo universal (PANIKKAR, 2004, p. 206). A partir dessas perspectivas a proposta de Panikkar perpassa o caminho das análises multiculturais e interculturais dos Direitos Humanos, ou seja, para a compreensão de seus apontamentos teóricos, cabe desvendar alguns aspectos acerca de tais fenômenos sociais que hoje, principalmente na América Latina, vem ganhando relevo, como se percebe pelas novas Constituições Plurais da Bolívia e do Equador. Neste sentido, Krohling aponta um ponto de partida que nos permitirá repensar os Direitos Humanos, ou seja, a luz das contribuições de Panikkar, como também de Christoph Eberhard, Boaventura de Sousa Santos e outros, determina o papel do que ele chama de antropologia cultural, dispondo que: “O ponto de partida epistemológico para se repensar os Direitos Humanos é a antropologia cultural e a aproximação metodológica da hipótese de que só será possível uma filosofia jurídica não etnocêntrica e em diálogo com todas as outras culturas, se tivermos como premissa o pluralismo cultural. O pluralismo e a multipolaridade provocados pela mundialização cultural hodierna estão abertos à nova visão de aproximação e de teorizações interculturais do direito”. (KROHLING, 2009, p. 67). Desta feita, vê-se que a base dessa antropologia cultural é o outro, ou seja, o reconhecimento no outro, de atributos que lhe permitem ser 3 .  Entende-se como sendo os Direitos Humanos conhecidos a construção elaborada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos. 269

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interlocutor na configuração de Direitos e Deveres. É a alteridade quem embasa essa antropologia cultural. Como exemplo de grupo de estudos voltados para essa antropologia cultural, temos o Laboratório de Antropologia Jurídica de Paris que, segundo Krohling, é um “grupo de pesquisa sobre Direitos Humanos e diálogo intercultural que tem criado um espaço de reencontro, de diálogo e de pesquisas sobre as problemáticas relativas aos Direitos do Homem e ao diálogo intercultural” (2009, p. 74). Desse modo, atento a essa conjectura multicultural da atualidade, Panikkar, com sua teorização diatópica das equivalências homeomórficas4, propõe uma visão cosmoteândrica da realidade, ou seja, uma realidade formada a partir da visão do cósmico, do divido e do humano, que interligados formariam a base de uma busca pelos Direitos Humanos através de um diálogo intercultural. Dessas primeiras premissas, Panikkar percebe que os ditos Direitos Humanos Universais descritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, na verdade não são universais, haja vista terem sido criados sob a visão ocidental, euro-norte americana, cristã e do homem branco. Dentro dessa perspectiva, Krohling ressalta que “a atual concepção de Direitos Humanos está inserida em um contexto de domínio cultural pelo fato de nem todas as tradições culturais terem atuado na formação dos instrumentos internacionais de Direitos Humanos” (2009, p. 91), ou seja, a atual visão que temos dos Direitos Humanos possui matiz ocidental. Desta feita, essa multiculturalidade ou policulturalidade5, demarca a necessidade de realização de um diálogo intercultural, ou seja, um diálogo entre o Eu e o Outro, diferente de mim culturalmente, mas igual no tocante aos Direitos Humanos. Portanto, conforme trabalhado por Del’Olmo (2006, p. 51), a atual visão multicultural dos Direitos Humanos, reconhecida na pós modernidade, implica uma não-homogeneidade cultural e étnica, bem como uma não imposição cultural, de modo a se preservar um visão diversificada das várias formas de vida na sociedade contemporânea. 4 .  Essas equivalências homeomórficas tratadas por Panikkar tem o sentido de formas semelhantes, ou seja, são conceitos e símbolos que, tratados por diferentes culturas, de forma igual ou não, podem servir para criar um campo de diálogo entre elas. Um exemplo trazido por Panikkar é o da Dignidade da Pessoa Humana, que é tratada por todas as culturas, mas não como sendo Direito Humano Fundamental, haja vista algumas não a reconhecerem como tal.

Ainda nesta conjetura da necessidade de perceber a multiculturalidade dos Direitos Humanos, e a necessidade de salvaguarda dessas várias culturas de direito a fim de construir um conceito pleno de Direitos Humanos, ou seja, diferente do atual imbuído de universalidade, mas, ao contrário, de matiz ocidental, euro-norte americana e cristã, há que ressaltar a contribuição de Joaquim Herrera Flores e aquilo que ele denomina de racionalidade da resistência: “(...) nossa visão complexa dos direitos, aposta em uma racionalidade de resistência. Uma racionalidade que não nega que é possível chegar a uma síntese universal das diferentes opções relativas aos direitos. E tampouco descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferenças étnicas ou de gênero. O que negamos é considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há que se chegar – universalismo de chegada ou confluência – depois (não antes) de um processo conflitivo, discursivo de diálogo ou de confrontação no qual cheguem a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas” (HERRERA FLORES, 2003, p. 299). Assim, a busca pelo universal deve partir de um diálogo com o outro, com aquele que é diferente de mim, de modo a possibilitar um universalismo de confluência de ideias de conceitos, o que em Panikkar, como visto, tem o nome de equivalências homeomórficas. Nesta esteira, podemos perceber que esse multiculturalismo reconhecido na atualidade atua como uma forma de reconhecimento de um pluralismo emancipatório, ou seja, um pluralismo que, fundado em uma democracia, expressa o reconhecimento dos valores coletivos corporificados pela dimensão cultural de cada grupo e de cada comunidade. Diante de tais fatos, Wolkmer (2006, p. 125) aponta que é nesta perspectiva de reconhecimento de um pluralismo cultural, e consequentemente, jurídico, de tipo comunitário-participativo, fundado num diálogo intercultural, que deveremos definir e interpretar os limites de uma nova concepção de direitos humanos, que englobe não só o eu, de natureza cristã, ocidental, euro-norte americano, mas, também, o outro. Ademais, a necessidade de realizar uma construção, ou reconstrução, dos Direitos Humanos à luz de diálogos interculturais, embasados no reconhecimento multicultural do outro, é premente.

5 .  Essa expressão é tratada por BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Política. trad. por PENCHEL, Marcus. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 270

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Casos como o “uso da burca” na França6 surgem em demasiado, principalmente quando a economia do país não vai bem. Na tentativa de barrar a entrada de estrangeiros, muito mais, do que proteger direitos humanos dos diferentes, países como a França, atuam no sentido de criar legislações que desestimulem a migração ilegal, ou seja, quando as taxas de desemprego aumentam entre os comuns, restringe-se a entrada de diferentes, a fim de recuperar a ânimo econômico financeiro daqueles. Com o objetivo de trazer uma solução para casos como esse vivenciado pelas mulçumanas em França referente ao uso da burca, Baez e Mezzaroba (2011, p. 255) ressaltam que “a solução para esse impasse não está, portanto, na tentativa de criação de uma moral universal”, como querido pela França, “mas na utilização de um instrumento teórico que permita o diálogo entre diferentes morais, para, a partir daí se extrair os pontos de contato que podem ser utilizados como fundamentos dos direitos humanos”. Desse modo, ao também criticar essa visão etnocêntrica, euro-norte americana, cristã, do homem branco, que embasa a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 Martins (2009, p. 184) demonstra que tal visão impede o direito à diversidade cultural, ou seja, impossibilita a compreensão do outro, bem como nos retira a possibilidade de mudarmos de ideia. Assim, vistos todas essas discussões acerca da multiculturalidade que permeia a noção de Direitos Humanos, ou que ao menos deveria permear, Panikkar (2004, p. 210) aponta que os Direitos Humanos funcionam como uma janela através da qual determinada cultura jurídica constrói uma ordem humana justa para seus semelhantes, sendo que essas pessoas que vivem sob esta construção, não veem tal janela, necessitando do outro, de outra cultura, para auxiliar sua percepção da realidade. É o que Krohling chama de teoria das janelas (KROHLING, 2009, p. 117). É dessa concepção que Panikkar elaborará a noção daquilo que ele denomina de Hermenêutica Diatópica7, sendo que, para ele, tal fenô-

6 .  A França criou um legislação para proibir o uso da burca pelas mulheres islâmicas no argumento de que a obrigatoriedade desse uso seria uma afronta aos Direitos Humanos dessas mulheres – Lei 524, de 13 de Julho de 2010 – sendo que as infratoras correm o risco de serem punidas com multa de 15º Euros e obrigação de frequentarem aulas de cidadania. Essa imposição francesa causou alvoroço entre as mulçumanas, que protestaram requerendo o direito de usar tal vestimenta, haja vista ser parte de sua cultura. 7 .  Hermenêutica Diatópica (dia = através + topos = lugar). 272

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meno nada mais é do que “uma reflexão temática sobre o fato de que os loci (topoi8) de culturas historicamente não-relacionadas tornam problemáticas a compreensão de uma tradição com as ferramentas de outras e as tentativas hermenêuticas de preencher essas lacunas” (PANIKKAR, 2004, p. 208). Disso, podemos retirar a conclusão de que essa hermenêutica diatópica se fundamenta na ideia de incompletude cultural, ou seja, por mais forte que determinado topoi de uma cultura seja forte, não será completo, sendo que, tal sintoma poderá ser solucionado com os topoi de outras culturas. Um diálogo entre o eu e o outro, para a formação do Nós. Sob tais aspectos, Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 447) aponta para a necessidade de realização desse diálogo, tendo em vista que “compreender uma determinada cultura a partir dos topoi de outra cultura é uma tarefa muito difícil”, de modo que para ele o caminho, assim como Panikkar, é a construção e realização de um diálogo intercultural através da hermenêutica diatópica. Neste desiderato, o diálogo diatópico ocorrerá na medida em que os diferentes, reconhecendo-se como tal, reconheçam a incompletude de sua cultura, bem como de seus topoi, de modo que esse reconhecimento proporcione um diálogo onde se queira, não impor uma cultura sob a outra, pois ambas são incompletas, mas sim, construir a partir das equivalências homeomórficas, um conceito dual de Direitos Humanos, pois como aponta Krohling (2009, p. 118) “é impossível querer reduzir tudo ao uno”. Exemplo de aplicação dessa hermenêutica diatópica pode ser construído a partir do topoi dos Direitos Humanos na cultura ocidental, do topoi no Dharma da cultura hindu e do topoi do Umma da cultura islâmica, ou seja, ambas as construções apontam para o fato de suas construções acerca dos “Direitos Humanos” serem incompletas. Neste sentido, Santos aponta que “vistos a partir do topos do dharma, os direitos humanos são incompletos na medida em que não estabelecem a ligação entre a parte (indivíduo) e o todo (o cosmos)”, ou seja, a visão ocidental, estabelecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, sob a perspectiva do dharma e da umma, “está contaminada por uma simetria muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres, pois apenas garante direitos àqueles de quem pode exigir deveres” (SANTOS, 2010, p. 449). 8 .  Topoi segundo a construção teórica de Panikkar são conceitos fortes, lugares comuns retóricos, ou seja, locais dentro da cultura de cada sociedade que em que o contato com o outro fica restrito, sob pena de se descaracterizar culturalmente. 273

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Por outro lado, as visões da umma e do dharma acerca do que entendemos como Direitos Humanos, a partir da noção visão ocidental, também são incompletas, haja vista a primeira, sublinhar mais deveres do que direitos, o que justificaria desigualdades, tais como a existente entre homens e mulheres no islamismo, e a segunda, preponderar, demasiadamente, o coletivo em face do individual. Desta feita, como salientado por Boaventura de Sousa santos, ambas as culturas, acerca dos direitos humanos, são incompletas, sendo que: “A hermenêutica diatópica mostra-nos que a fraqueza fundamental da cultura ocidental consiste em estabelecer dicotomias demasiado rígidas entre o indivíduo e a sociedade, tornando-se assim vulnerável ao individualismo possessivo, ao narcisismo, á alienação e à anomia. De igual modo, a fraqueza fundamental das culturas hindu e islâmica deve-se ao fato de nenhuma delas reconhecer que o sofrimento humano tem uma dimensão individual irredutível, a qual só pode ser adequadamente considerada numa sociedade não hierarquicamente organizada”. (SANTOS, 2010, p. 450). Portanto, o presente exemplo, de visões incompletas acerca dos Direitos Humanos, possibilita a realização de um diálogo intercultural, onde, através da disposição em sair do seu topoi, ir ao topoi do outro, e depois retornar ao seu – diálogo diatópico – possibilitará que o Eu visualize sua cultura sob o olhar do outro, percebendo as diferenças e as similitudes entre as culturas. Partindo disso, Pannikar aponta que em todas as culturas existe a ideia de Dignidade Humana, seja ela tratada como sendo um direito humano ou não. Tal ponto possibilitaria a realização de um daquilo que ele chama de dialógico, ou seja, não simplesmente troca de argumentos como um diálogo normal, mas uma troca de saberes, onde as partes atravessam a fronteira para o lado oposto, veem seus fundamentos, e retornam ao lugar de origem. Ademais, sob esse aspecto de vetor comum, entre os diferentes, da dignidade da pessoa humana, conforme salienta Melo Júnior (2011, p. 139), “entre os direitos humanos, a dignidade da pessoa humana é talvez o mais abrangente de todos, á medida que permite uma repercussão de maiores dimensões na vida da sociedade, pois tutela as condições mínimas de existência (...)”. Desta feita, podemos perceber que a hermenêutica diatópica em Panikkar requer não apenas um tipo de conhecimento diferente, mas também um diferente processo de criação desse conhecimento, ou seja,

“exige uma produção de conhecimento coletiva, participativa, interativa, intersubjetiva e reticular” (SANTOS, 2010, p. 454). Contudo, cabe-nos ainda ressaltar que esse resgate intercultural do outro, através de seu reconhecimento como sujeito de direitos e deveres pode, e deve, ocorrer tanto entre sociedades inteiras (por ex.: países), bem como dentro de um mesmo país. Exemplo dessa construção interna de um diálogo intercultural para a proteção dos Direitos Humanos é o que se constitucionalizou pelas novas Constituições Latino Americanas, do Equador e da Bolívia, por onde, na primeira, o meio ambiente é tido como sujeito de direitos9, e na segunda, as línguas indígenas são consideradas como sendo línguas oficiais10. Essas Constituições são exemplos do novo constitucionalismo plurinacional latino-americano. Segundo Magalhães (2010, p. 204 e 205), esse novo Estado plurinacional demonstra uma ruptura com o antigo Estado Nacional Moderno, o que possibilita a existência e o reconhecimento de uma pluralidade de identidades no seio social. Desse modo, tais exemplos de Constituições Plurinacionais refletem a necessidade de uma reformulação do conceito dos Direitos Humanos, que perdura desde o surgimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, ou seja, hoje temos a necessidade de reconhecer o outro, de abrir espaço para o diálogo com a diferença a fim de conseguirmos direitos e deveres que abarquem as várias concepções cultuais, sendo que, um dos caminhos para árdua tarefa, é pelo viés da hermenêutica diatópica de Panikkar.

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9 .  CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA DEL ECUADOR de 2008, art. 71 – La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cumplimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observaran los principios establecidos en la Constitución, en lo que proceda. El Estado incentivará a las personas naturales y jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que forman un ecosistema. Disponível em . Acessado em 14, de Junho de 2012. 10 .  CONSTITUCIÓN POLÍTICA DEL ESTADO BOLIVIANO. Artículo 5.I. Son idiomas oficiales del Estado el castellano y todos los idiomas de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, que son el aymara, araona, baure, bésiro, canichana, cavineño, cayubaba, chácobo, chimán, ese ejja, guaraní, guarasu?we, guarayu, itonama, leco, machajuyaikallawaya, machineri, maropa, mojeño-trinitario, mojeño-ignaciano, moré, mosetén, movima, pacawara, puquina, quechua, sirionó, tacana, tapiete, toromona, uru-chipaya, weenhayek, yaminawa, yuki, yuracaré y zamuco. Disponível em . Acessado em 14, de Junho de 2012.. 275

Por fim, reconhecer a Hermenêutica Diatópica como sendo um dos meios necessários para o reconhecimento do outro, é extremamente importante na busca pelo fortalecimento mundial de atitudes sociais aceitáveis, ou seja, tais atitudes devem passar não pela imposição cultural, mas sim na busca dos topois de cada uma das culturas, possibilitando cada uma delas completar as lacunas existentes em sua estrutura através do diálogo com o diferente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Visto todas as ponderações de Lévinas e outros, acerca da teorização de uma Ética da Alteridade e da Responsabilidade, bem como a contribuição da Hermenêutica Diatópica proposta por Panikkar e do diálogo intercultural nela subjacente, o reconhecimento do outro é tarefa árdua, mas necessária no contexto multicultural em que vivemos. Assim, à guisa de conclusão, percebemos que os conceitos de ética da alteridade e da responsabilidade trazidos por Lévinas corresponde a um caminho necessário a percorrermos na busca pelo reconhecimento do outro, tendo em vista ser a ética a filosofia primeira, ou seja, aquilo que servirá de embasamento para a moral e, consequentemente, para os atos dos indivíduos. Neste sentido, também se coloca a contribuição de Panikkar através da hermenêutica diatópica, haja vista sê-la a realização de um diálogo em que ambos interlocutores se abrem ao outro, reconhecendo-o como sujeito de direitos, o que os possibilita enxergar sua cultura pela visão do outro, ou seja, reconhecer sua incompletude no tocante àquilo que define como Direitos Humanos. Desta feita, tais contribuições acima são mecanismos de reconhecimento do outro, de melhoria da relação com os diferentes, meios de interação entre culturas. Tanto Lévinas, quanto Panikkar, cada um a seu modo e tempo, construíram um caminho para o encontro de dois Eu’s, a fim de que desse contexto surja um Nós, não uno, mas múltiplo.

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15 O JULGAMENTO DA ADPF N. 132 PELO STF COMO UM CASO MODELO DO USO DE UMA INTERPRETAÇÃO CONSTRUTIVA DO DIREITO1¨ Flávio Quinaud Pedron

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ADPF n. 132 / RJ foi julgada em maio de 2011, tendo como ministro relator Carlos Ayres de Britto. A petição inicial foi proposta pelo Governador do Rio de Janeiro, sujeito processual legítimo, conforme o art. 103, V, da Constituição de 1988, bem como o art. 2º, da Lei n. 9.882/99. A pretensão, então, buscava uma definição sobre se haveria (ou não) proteção constitucional para as uniões homoafetivas, sob a premissa que as decisões judiciais lhes negam direitos constitucionais, como igualdade, liberdade e dignidade humana.2 Dessa forma, pleiteava-se uma interpretação ao art. 1.723, do Código Civil,3 que incluísse a união homoafetiva dentro do conceito de entidade familiar união estável. Pedia-se, ainda, que, em sede de medida liminar, fosse declarada a validade das decisões administrativas que equiparam as uniões homoafetivas às uniões estáveis, bem como a suspensão dos processos e decisões judiciais em sentido oposto, até o julgamento final da ação. Fez-se, ainda, um pedido subsidiário para que, caso não recebida a ADPF, esta seja convertida em ADI, a ser processada com pedido de proferimento de interpre-

1 .  ¨ O presente texto é uma versão resumida de discussão que fora melhor e de modo mais completa explorada em minha tese de Doutorado junto a UFMG e publicada sob a forma do livro: QUINAUD PEDRON, Flávio. Mutação Constitucional na Crise do Positivismo Jurídico. Belo Horizonte: Arraes, 2012. 2 .  Em razão dessa problemática, por exemplo, pairava a dúvida sobre a aplicabilidade dos art. 19, incisos II e V, que versa sobre os casos de concessão de licença, e do art. 33, incisos de I a X, sobre benefícios previdenciários e assistenciais, do Estatuto dos Servidores Civis do Estado do Rio de Janeiro (Decreto-Lei n. 220/1975). 3 .  “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. 281

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tação, conforme a Constituição aos artigos 194 e 33,5 do Decreto-Lei n. 220/75, do Estado do Rio de Janeiro, e ao art. 1.723, do Código Civil. Dando continuidade ao processo, foram solicitadas informações ao Governador do Rio de Janeiro, bem como a Assembleia Legislativa daquele Estado e aos Tribunais de Justiça dos Estados. Os últimos manifestaram-se, majoritariamente, a favor da equiparação.6 A Assembleia Legislativa fluminense informou que está em vigor no Estado a Lei n. 5.034/2007, que permite a averbação de companheiros do mesmo sexo como dependentes de servidores públicos estaduais. Em parecer da Advocacia-Geral da União, o órgão também se posicionou pelo cabimento das uniões homoafetivas dentro do conceito de família, o que também foi consonante com o parecer da Procuradoria-Geral da República. O ministro relator identificou, ainda, coincidência de objeto com a ADI n. 4.277, proposta pela Procuradoria-Geral da República, também em curso, razão pela qual passou a processá-las conjuntamente. Iniciando a votação, o Min. Carlos Ayres de Britto abriu sua decisão esclarecendo que conheceria da ADPF n. 132, convertendo-a em ADI e julgando-a em par à ADI n. 4.277. Dessa forma, a questão central estaria na fixação de uma interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723, do Código Civil brasileiro, sem restringir a discussão às normas referentes ao Estatuto do Servidor Público civil fluminense (que seria questão prejudicada em virtude da Lei Estadual n. 5.034/2007 (AYRES DE BRITTO, voto na ADPF n. 132, p.20). O ministro lembra, então, que o art. 3º, IV, da Constituição de 1988,7 4 .  “Art. 19 Conceder-se-á licença: [...] II - por motivo de doença em pessoa da família, com vencimento e vantagens integrais nos primeiros 12 (doze) meses; e, com dois terços, por outros 12 (doze) meses, no máximo; [...] V - sem vencimento, para acompanhar o cônjuge eleito para o Congresso Nacional ou mandado servir em outras localidades se militar, servidor público ou com vínculo empregatício em empresa estadual ou particular”. 5 .  “Art. 33 - O Poder Executivo disciplinará a previdência e a assistência ao funcionário e à sua família, compreendendo: I - salário-família; II - auxílio-doença; III - assistência médica, farmacêutica, dentária e hospitalar; IV - financiamento imobiliário; V - auxíliomoradia; VI - auxílio para a educação dos dependentes; VII - tratamento por acidente em serviço, doença profissional ou internação compulsória para tratamento psiquiátrico; VIII - auxílio-funeral, com base no vencimento, remuneração ou provento; IX - pensão em caso de morte por acidente em serviço ou doença profissional; X - plano de seguro compulsório para complementação de proventos e pensões. Parágrafo único - A família do funcionário constitui-se dos dependentes que, necessária e comprovadamente, vivam a suas expensas”. 6 .  Foram discordantes os Tribunais de Justiça do Distrito Federal, de Santa Catarina e da Bahia. 7 .  “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer 282

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define que a promoção do bem-estar de todos, sem discriminação, inclusive, de natureza sexual, é um dos objetivos da República brasileira; e que por sexo não se estaria apenas sinalizando para a diferença (fisiológica) entre o gênero masculino e o gênero feminino, mas mais que isso: a Constituição, ao consagrar a proteção ao pluralismo sócio-político-cultural, afirma um direito fundamental de igualdade “civil-moral” (AYRES DE BRITTO, voto na ADPF n. 132, p.25) e, por tal elemento normativo, determina a necessidade de efetivação de políticas públicas afirmativas para a plena e respeitosa convivência entre os cidadãos. Além disso, invoca aqui uma fala que atribui – sem indicar sua fonte precisa – a Kelsen (1999, p.273-274), quando diz que “tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido” (AYRES DE BRITTO, voto na ADPF n. 132, p.27), o que corresponderia à norma presente no art. 5º, II, da Constituição de 1988.8 Logo, se não há nenhuma norma constitucional tornando ilícita a homossexualidade, o ministro entende que a conclusão deve assentar-se na sua permissão pela Carta Magna. Em uma segunda parte de seu raciocínio, o Min. Ayres de Britto (voto na ADPF n. 132, p.31) afirma que o direito de respeito à preferência sexual é fundamentado também no princípio da dignidade humana, entendido aqui como o direito à auto-realização e à felicidade. Sendo assim, qualquer interpretação em sentido contrário ao reconhecimento de direito às uniões homoafetivas se fundaria em um preconceito, o que a própria Constituição busca reprimir. Como se está diante de direitos fundamentais, o ministro conclui pela auto-aplicabilidade, sendo de plano entendido dentro do conceito de família as uniões homoafetivas; o que dispensa a necessidade do Legislativo de regulamentar o caso por meio de edição de leis (AYRES DE BRITTO, voto na ADPF n. 132, p.32). É importante destacar que o min. Relator fecha seu voto identificando o conceito de família como um conceito cultural, de modo que a linguagem jurídica não pode tecer nenhuma espécie de controle, nem pode ser reduzido para fomentar leituras preconceituosas e homofóbicas (AYRES DE BRITTO, voto na ADPF n. 132, p.42). O segundo a votar foi o Min. Luiz Fux, que acompanhou o min. Relator ao receber a ADPF n. 132 como ADI e reconhecer a identidade de oboutras formas de discriminação”. 8 .  “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. 283

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jeto com a ADI n. 4.227. Preparando a discussão de seu voto, ele estabelece algumas premissas: (1) a homossexualidade é fato social no Brasil, já senso constatada no Censo de 2010 pelo IBGE (FUX, voto na ADPF n. 132, p.60); (2) não há qualquer normas jurídica – constitucional ou infraconstitucional – que defina expressamente tal união como ilícita, inexistindo vedações para suas constituições. Além disso, o Min. Fux, no mesmo sentido que o julgador anterior, entenderá que o Estado não pode ser promotor – mas sim, opositor – de preconceitos, em qualquer das suas formas (FUX, voto na ADPF n. 132, p.62). Sob esse aspecto, ele argumenta que não há nenhuma distinção ontológica entre a união homoafetiva, o casamento e a união estável como espécies do conceito família (FUX, voto na ADPF n. 132, p.64). Citando Dworkin (2006), o Min. Fux lembra que a Constituição exige de seu intérprete a assunção de uma leitura que consagre a todos iguais direitos de respeito e de consideração (FUX, voto na ADPF n. 132, p.65). E, explicando melhor, o ministro defende a igualdade de oportunidades, trazida também por Dworkin (2005, p.xvii). Além disso, o desrespeito comprometeria, ainda, a proteção da dignidade humana dos homossexuais. Logo, uma política de reconhecimento – o que envolve um programa de políticas públicas – deve ser estabelecida para materializar tal igualdade. O Min. Fux cita, então, como exemplo, a Portaria MPS n. 513, do Ministério da Previdência Social, de 09 de dezembro de 2010, que prevê que o conceito de dependentes para fins previdenciários deve abranger a união de pessoas do mesmo sexo. Voltando-se para o pensamento de Hesse (1991), o Min. Fux (voto na ADPF n. 132, p.73) afirma que as mudanças sociais – como fatos concretos – não podem ser ignoradas pelo mundo jurídico, mas, o que a princípio poderia embasar um argumento favorável à afirmação de uma mutação constitucional, logo é abandonado, pois, na finalização de seu voto, o Min. Fux deixa claro que a questão aqui é de reconhecimento do que já estava na própria lógica da Constituição, sem mencionar qualquer necessidade de alteração normativa. Ou seja, o art. 226 da Constituição, ao proteger a família, já autoriza a declaração do direito à união homoafetiva. A Min. Carmen Lúcia segue na votação do processo. Seu argumento toma como ponto central a noção de que a Constituição é um conjunto sistêmico de normas, que devem ser interpretadas de modo a produzir uma harmonia dos seus comandos. Assim, a largueza que a ministra atribui como própria das normas constitucionais, permite a ela (voto na ADPF n. 132, p.93) afirmar que os termos homem e mulher, presentes no

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art. 226, § 3º, da Constituição de 1988, não podem ser tomados em sua literalidade, sob pena de aniquilar a liberdade sexual dos homossexuais. O Min. Ricardo Lewandowski abre seu voto apresentando um registro do tratamento constitucionalmente dado pelas Constituições anteriores à família. Nas Cartas de 1937, 1946 e 1967, pode-se perceber que o conceito de família se compunha como desdobramento da relação de casamento; o que é distinto da disciplina dada pela Constituição de 1988, que busca desgarrar os dois conceitos, explicitando a existência de outros modelos de família que não se constituem apenas pelo casamento (daí decorrendo a união estável e a família monoparental). Dentro da própria história institucional inaugurada pela Constituição vigente, outro debate foi importante para alargar a compreensão da proteção constitucional à entidade familiar: se a possibilidade de conversão da união estável em casamento constituiria – ou não – condição sine qua non para o reconhecimento de tal como entidade familiar (LEWANDOWSKI, voto na ADPF n. 132, p.103).9 Voltando ao debate constituinte, o ministro busca justificar que o sentido do texto constitucional da norma do art. 226, §3º, seria exclusivamente para definição de uma união entre homem e mulher, no sentido próprio. Ou seja, argumenta que o Constituinte intencionalmente haveria vedado o reconhecimento de união estável às uniões homoafetivas. Assim, logo de plano o ministro descarta falar na aplicação de uma mutação constitucional ou na utilização de uma interpretação extensiva do dispositivo (LEWANDOWSKI, voto na ADPF n. 132, p.105) para modificar o sentido do conceito de união estável, e propõe como solução a declaração de uma nova espécie – um quarto gênero – de entidade familiar, a se designar por “relação homoafetiva”. A proteção constitucional a essa espécie derivaria de uma leitura sistêmica do texto constitucional – e não apenas do art. 226 – alinhando os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da intimidade e da não-discriminação por orientação sexual (LEWANDOWSKI, voto na ADPF n. 132, p.106). Ele alega, portanto, fazer uso de uma metodologia de integração normativa, justamente por haver um vácuo normativo que deve incorporar a realidade.10 Desse modo, ele sustenta 9 .  Ver julgamento pelo STF do RE 397.762 / BA, Rel. Min. Marco Aurélio. 10 .  “Quer dizer, desvela-se, por esse método, outra espécie de entidade familiar, que se coloca ao lado daquelas formadas pelo casamento, pela união estável entre um homem e uma mulher e por qualquer dos pais e seus descendentes, explicitadas no texto constitucional” (LEWANDOWSKI, voto na ADPF n. 132, p.112). 285

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que não está indo de encontro com a intenção original do Constituinte de 1988, mas construindo entendimento a partir da lacuna que se forma pela realidade social. Dando continuidade ao julgamento, o Min. Joaquim Barbosa afirma que a discussão toca exatamente em um descompasso entre o mundo dos fatos e o mundo jurídico. Igual a outros ministros, irá reconhecer que há um “silêncio constitucional” sobre a matéria, mas entende que, de modo algum, tal silêncio pode ser interpretado como negação (BARBOSA, voto na ADPF n. 132, p.117). Então, para a superação do problema, lança mão da ideia de que uma ordem democrática tem de assegurar a todos respeito e consideração iguais – citando, inclusive, Dworkin –, e compreendendo que há, sob o pano de fundo da questão, todo um processo histórico que não pode ser negligenciado. Logo, ele também vota favoravelmente ao reconhecimento das uniões homoafetivas. O próximo voto é de autoria do Min. Gilmar Mendes. Sua primeira observação é a de que a utilização da técnica de interpretação conforme a Constituição seria equivocada, pois não haveria múltiplos sentidos na norma, dos quais o STF necessita assentar um e excluir os demais da validade jurídica (MENDES, voto na ADPF n. 132, p.147). O §3º do art. 2226, em sua visão, prestaria exclusivamente à disciplina da figura da união estável, e influenciaria para permitir ou para proibir as uniões homoafetivas, pois seria conceito distinto. Logo, ele explicita que a manutenção da linha de raciocínio que defende a aplicação da técnica de interpretação, conforme querem os Ministros Ayres de Britto,11 Cármen Lúcia e Fux, acabaria por produzir uma alteração da normatividade constitucional, o que ele entende não ser necessário – e nem legítimo12 –, já que tal proteção não precisaria ser criada, mas poderia ser declarada 11 .  O Min. Ayres de Britto (voto na ADPF n. 132, p.126) interrompendo a leitura do voto no Min. Gilmar Mendes, irá explicitar que era exatamente a sua intenção dar ao texto do art. 226, § 3º da Constituição um sentido ampliado, para além da sua literalidade, e, com isso, incluir dentro do conceito de união estável a união homoafetiva. Sob tal linha de raciocínio parece ficar evidenciado – sem que, contudo, o mesmo ministro tenha explicitado – a tentativa de criação de uma mutação constitucional, já que os mesmos buscaram alterar a norma jurídica para incluir a união homoafetiva no conceito de união estável, mas preservando o texto original da Constituição. Mas esta não seria uma interpretação correta da situação, pois na sequencia de seu voto o próprio Min. Ayres de Britto acaba reconhecendo que a decisão tem que levar em consideração uma interpretação construtiva do Direito, citando inclusive, o pensamento de Dworkin. 12 .  Importante, então, registrar essa preocupação com o limite da interpretação e da decisão sobre a Constituição assumida pelo Min. Mendes, bem diferente do voto proferido na Rcl. 4.335 / AC, anteriormente analisado (MENDES, voto na ADPF n. 132, p.154). 286

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a partir das mesmas normas que formam a Constituição vigente, isto é, a partir dos princípios da liberdade e da igualdade (MENDES, voto na ADPF n. 132, p.125). Mas, em uma nova assentada, o Min. Mendes registra que na prática a leitura que se faz da norma generaliza o entendimento da proibição das uniões homoafetivas, o que é equivocado, e que sobre tal quadro é que se caberia falar em interpretação conforme (MENDES, voto na ADPF n. 132, p.160). Logo, para o Min. Mendes, a questão deve ser recolocada sob o prisma de proteção dos direitos fundamentais de uma minoria em cumprimento àquilo que estaria na própria essência da jurisdição constitucional (voto na ADPF n. 132, p.172). O Min. Gilmar Mendes destaca também que as tentativas de proteção dessa minoria pelo Estado tem sido insuficientes, pois não basta apenas uma ação no sentido de coibir o preconceito, mas um conjunto de políticas públicas voltadas para a promoção da dignidade desse grupo.13 Assim, ele entende que a decisão que o STF deve tomar não pode representar uma solução definitiva, mas servir para estimular o debate e permitir que a atuação legislativa cuide de definir melhor a questão (MENDES, voto na ADPF n. 132, p.182). O voto conduzido pelo Min. Marco Aurélio, por sua vez, toma o rumo de uma reconstrução das transformações pelas quais o conceito de família sofreu ao longo da história da humanidade, com incursões pelo direito brasileiro no século passado. Sob a leitura da dignidade humana, o ministro passa a defender que a finalidade do Estado é permitir a cada cidadão a definição dos seus projetos pessoais de vida, o que inclui o desenvolvimento de sua personalidade de forma livre. Logo, decorre uma obrigação constitucional de não discriminação e de respeito às diferenças na forma de um tratamento equânime, razão segundo a qual ele julga procedente o pedido, aplicando o regime da união estável às uniões homoafetivas. Na abertura de seu voto, o Min. Celso de Mello registra a pluralização que o debate constitucional ganhou em razão justamente da participa13 .  “Nesse sentido, diferentemente do que expôs o Ministro Relator Ayres Britto – ao assentar que não haveria lacuna e que se trataria apenas de um tipo de interpretação que supera a literalidade do disposto no art. 226, § 3º, da Constituição e conclui pela paridade de situações jurídicas –, evidenciei o problema da constatação de uma lacuna valorativa ou axiológica quanto a um sistema de proteção da união homoafetiva, que, de certa forma, demanda uma solução provisória desta Corte, a partir da aplicação, por exemplo, do dispositivo que trata da união estável entre homem e mulher, naquilo que for cabível, ou seja, em conformidade com a ideia da aplicação do pensamento do possível” (MENDES, voto na ADPF n. 132, p.194-195). 287

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ção da sociedade na forma do amicus curiae. Em um segundo momento, ele tece observações sobre o tratamento discriminatório que a história brasileira regista contra os homossexuais, e conclui no sentido de que tais práticas apoiadas exclusivamente em preconceitos injustificados tem de acabar. No seu entender, a decisão a ser tomada pelo STF, então, tem a função de "tornar efetivo o princípio da igualdade, que assegura respeito à liberdade pessoal e à autonomia individual, que confere primazia à dignidade da pessoa humana e que, rompendo paradigmas históricos e culturais, remove obstáculos que, até agora, inviabilizavam a busca da felicidade por parte de homossexuais vítimas de tratamento discriminatório (Min. Celso de Mello, no voto da ADPF n. 132, p.228)." Sendo assim, sua posição é a defesa da aplicação da figura da união estável também para as uniões homoafetivas, na esteira do voto do ministro relator, pois, somente assim, poder-se-á efetivar o direito à busca pela felicidade desses indivíduos. Um traço importante em seu voto é a constatação de que não se trata de ativismo judicial ou de criação por parte da jurisprudência do STF, mas da efetivação de um direito que já se encontrava na ordem constitucional vigente, e que era negligenciado pelos poderes públicos (Min. Celso de Mello, voto na ADPF n. 132, p.261). O último a votar é o Min. Cezar Peluso. Seu argumento é no sentido de compreender que a norma do art. 226, § 3º, da Constituição, não pode ser lida como numerus clausus, razão pela qual as uniões homoafetivas devem ser equiparas às uniões estáveis. Mas entende que o Legislativo deve se mobilizar para regulamentar melhor tal equiparação. Sob as luzes de tal julgamento, portanto, a justificativa de uma tese da mutação constitucional parece ter passado distante. Nenhum dos ministros procurou justificar seu argumento afirmando que os homossexuais devem ser constitucionalmente protegidos a partir de um novo arranjo da realidade social. Pelo contrário, a preocupação foi inteira em demonstrar que não se tratava de uma inovação, mas que a ordem constitucional brasileira, em sua estrutura mais básica, já se mostrava contrária ao tratamento discriminatório. Isso pode indicar um importante caminho: o STF pode ter desenvolvido um processo de aprendizado histórico que conduziu à percepção de que a alternativa teórica da mutação constitucional simboliza uma prática que se adéqua bem a uma teoria dos erros institucionais, deven-

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do ser abandonada. Ao voltar-se para a história institucional, como feito no Capítulo 1 da presente pesquisa, pode-se perceber que, na tradição brasileira, o recurso do STF a uma mutação constitucional não passou de um modismo, no qual o conceito simplesmente foi transportado com um uso meramente retórico. Por isso mesmo, a assunção de uma postura comprometida com a legitimidade decisória democrática passa pela via da incorporação da tese do direito como integridade e da defesa de uma interpretação construtiva. Ora, no caso em discussão, deve ser entendido que o art. 5º, caput, da Constituição de 1988, já traz, explicitamente, um princípio mais geral e abrangente de igual proteção, quando determina que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Trata-se de norma constitucional veiculada por texto com redação original.14 Assim, não é que forças lassalleanas provocaram um primado do fato sobre a norma, mas sim, que a própria comunidade brasileira, assumindo-se sob a forma de uma comunidade de princípio, dentro de um processo histórico de aprendizado, é capaz de reconhecer o dever de respeito e de igual tratamento aos homossexuais. As exigências aqui são morais no sentido dworkiano de igual respeito e consideração para com todos os membros da comunidade, e decorrem da compreensão 14 .  A crítica que Streck (2011, p.265) faz à decisão da ADPF n. 132 parece desarrazoada. Para o jurista, tal decisão cria uma “Constituição paralela”, forjada pela subjetividade dos ministros do STF. Em seu entender, a solução do caso passaria pela improcedência do pedido, cabendo, exclusivamente, ao Congresso Nacional solucionar a atividade legiferante à questão. O argumento da permissibilidade pela ausência de proibição explícita deveria ser afastado, no entender de Streck, pois, segundo o mesmo, se “[f]osse assim inúmeras não proibições poderiam ser transformadas em permissões (STRECK, 2011, p.265, grifos no original). Ele afirma que a Constituição de 1988 também seria omissa quanto à possibilidade de propositura de ADI sobre lei municipal perante o STF – o que poderia gerar um suposto argumento de algum município no sentido de que o princípio da isonomia haveria sido violado. Entretanto, isso deve ser analisado com mais cuidado: (1) o exemplo e a analogia trazida por Streck parece olvidar do fato de que a ADPF cuida de matéria concernente à proteção de direitos fundamentais, ao passo que a situação de cabimento da ADI para lei municipal é uma discussão acerca da competência, e objeto do controle concentrado de constitucionalidade; (2) ao defender uma interpretação literal da Constituição, Streck parece justamente esquecer a importância da interpretação construtiva do direito e os ganhos da teoria hermenêutica, que tanto defende. Ora, ele ignora que há um processo de aprendizado social subjacente, além do fato de que a defesa da união homoafetiva é uma interpretação jurídica que melhor coaduna com um esquema de direitos fundamentais, voltados a garantir a todos iguais respeito e consideração; (3) sua análise centra-se apenas no texto do art. 226, § 3º, da Constituição, nem ao menos se esforçando para lançar uma interpretação sistêmica das normas constitucionais. Por isso, seu argumento acaba caindo na redução da norma ao seu texto, que tanto critica, deixando de lado a dimensão (histórica) subjacente a uma compreensão principiológica do direito. 289

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hermenêutica de que o julgado trazido pela ADPF n. 132 busca ler à sua melhor luz. A conclusão a que chegou o STF não pode ser compreendida como um ato de criação ou de inovação dentro da ordem jurídica. A tese da interpretação construtiva, explica Dworkin (2007, p.24), afirma que, muitas vezes, o dever de colocar à sua melhor luz um direito deve envolver um ato de aperfeiçoamento deste,15 apenas deixando explicitar uma compreensão que poderia se justificar em uma melhor leitura de um princípio que já estaria assentado na ordem jurídica. Por isso, deve-se voltar ao esquema trazido pelo romance em cadeia de Dworkin. A nova decisão não é – nem pode ser – uma repetição da decisão anterior, mas antes um novo capítulo para a história daquele direito. Com isso, o conceito de uma mutação constitucional deve ser afastado, por não representar a melhor leitura que o próprio direito pode fazer de si. Aliás, é na proposta de adoção de uma interpretação construtiva, fazendo uso dos princípios jurídicos, que o direito pode cumprir suas próprias ambições. Aqui, ao invés de tratar os fatos como elementos externos e estranhos ao universo jurídico, Dworkin ensina que os fatos também são objeto de interpretação, e mais, as mudanças interpretativas na aplicação do direito aos moldes de um romance em cadeia, na verdade, nada tem de novo. Como ficou claro no caso da discussão da inconstitucionalidade de discriminação aos homossexuais, a nova interpretação apenas marca o desenvolvimento histórico de um princípio mais geral e mais abstrato que já estava, desde a origem, previsto na própria Constituição.

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15 .  “Uma vez que uma interpretação é melhor se possibilita uma melhor justificação em moralidade política, então uma mudança guiada por uma melhor interpretação será apenas, por aquela razão, um aperfeiçoamento” (DWORKIN, 2007, p.24). 290

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16 BULLYING E HOMOAFETIVIDADE: necessidade de mudança de paradigmas para a construção do “cidadão do futuro” Jackelline Fraga Pessanha Marcelo Sant’anna Vieira Gomes

INTRODUÇÃO

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romover o bem estar de todos, sem preconceito de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação: isso é o que estabelece o art. 3º, de nossa atual Carta Constitucional. Esse dispositivo foi inserido pelo legislador constituinte, entre o rol de objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, com o escopo de enunciar que as ações praticadas em sociedade, devem visar o respeito à individualidade e à condição pessoal de cada cidadão. Ocorre que, muito embora na literalidade o dispositivo pareça demonstrar um avanço em termos de civilidade, na prática, não é isso que vem sendo vislumbrado. Agressões físicas e psicológicas acabaram se tornando ações comuns, de modo que o Estado passa, então, a perder o controle sobre a sociedade, e a conviver com algo similar ao estado da natureza1 descrito por Thomas Hobbes, em que se vive em constante guerra de todos contra todos, eis que o poder da violência é tido como ilimitado. É aqui que se torna preocupante o foco do presente estudo, a análise do bullying praticado em sociedade e os transtornos que pode ele trazer à formação do futuro cidadão. Como corte metodológico, se busca analisar o fenômeno sob a perspectiva da discriminação decorrente das orientações sexuais das próprias crianças e adolescentes, bem como de um panorama em que elas sofrem discriminação por não estarem inse1 .  HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 293

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ridas no “padrão familiar” que a sociedade espera. Em outras palavras, trata-se de analisar como a discriminação decorrente da homossexualidade seja da própria criança ou adolescente, assim como de seus pais, vem trazendo problemas que merecem uma maior preocupação por parte dos operadores do Direito e da sociedade como um todo – devendo os educadores estar inseridos na condição de personagens essenciais. A inclusão social de todas as entidades familiares, alicerçadas em laços de afeto, independentemente, de matrimônio ou união estável, como a família homoafetiva, que é formada por duas pessoas do mesmo sexo, com o intuito de formar uma entidade familiar, que vise à comunhão plena de vida e de interesses, de forma pública, contínua e duradoura, refletem o perfil da Constituição em proteger a família de maneira ampla. Por livre exercício da homoafetividade entenda-se o direito de casais homoafetivos de se apresentarem à sociedade como casal, da mesma forma que os casais heteroafetivos o fazem, sem discriminações de qualquer natureza. Dessa forma, se é uma faculdade do ser humano a orientação da sua sexualidade, então, o exercício da homoafetividade é decorrência de direitos fundamentais, consagrados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, principalmente o da dignidade da pessoa humana, ao livre exercício da afetividade, liberdade de orientação sexual, igualdade e respeito às diferenças, para a plena busca por felicidade idealizada por todos da sociedade, livre de qualquer preconceito ou discriminação. Com o passar dos séculos, foi aumentando a consciência coletiva de que se deve ter um modelo familiar equilibrado, com o objetivo de alcançar a felicidade, tendo, ainda, o pensamento preconceituoso de que a família homoafetiva não é merecedora de ostentar tal felicidade, totalmente equivocado e preconceituoso. Afeto, portanto, significa sentimento de afeição ou inclinação para alguém, amizade, paixão ou simpatia, e é o elemento essencial para a constituição de uma família nos tempos atuais, pois somente com laços de afeto consegue-se manter a estabilidade de uma família. Portanto, com a família homoafetiva baseada nos laços afetivos, temos que o amor e o afeto são capazes de sustentar laços familiares, modificando os conceitos de uma família, que somente poderia ser formada por homem e mulher ligados pelo vínculo do casamento ou pela união estável, sendo que o mais importante hoje nas famílias é o princípio da afetividade. As famílias homoafetivas, com a sua aceitação e possibilidade de

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consagra-se pela união estável2 ou pelo casamento3, começaram a aparecer em sociedade cada dia mais, o que vem crescendo a possibilidade de filiação e, por consequência, a inserção dessas crianças e adolescentes nas escolas. Por isso, estabeleça-se que é dentro das escolas que as crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo durante sua formação, razão pela qual é necessário que existam medidas efetivas e eficazes para evitar a difusão de atos discriminatórios. Nesta abordagem, utiliza-se do método hipotético-dedutivo, tendo em vista que se está a particularizar as questões do bullying dentro do cenário da família homoafetiva, a partir de dados colhidos na generalidade, ou seja, dados já amplamente difundidos em nosso contexto social. Nesse sentido, é que o presente artigo está dividido em dois tópicos. O primeiro tópico faz uma análise da violência que vem sendo vislumbrada atualmente, fazendo alusão a uma completa barbárie decorrente da não-reação social às ações violentas que se tornam cada dia mais comuns. Ademais, tem por escopo analisar o bullying de maneira a elucidar seu conceito, as formas como ele é praticado, como caracterizá-lo, assim como fazer uma análise de dados estatísticos recentes que demonstrem como tem esse fenômeno se difundido no ambiente escolar. O segundo tópico, busca demonstrar a necessidade de atuação dos vários setores da sociedade civil, com o objetivo de incutir na cabeça das crianças e adolescentes uma mudança comportamental em relação a atos preconceituosos e, assim, evitar a difusão do bullying, quando se estiver a trabalhar com essa nova concepção de entidade familiar.

1  BULLYING: UM PANORAMA GERAL SOBRE ESSA PRÁTICA RECORRENTE NA SOCIEDADE

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violência já não é algo tão incomum em nossa sociedade. A todo o momento somos bombardeados pelos meios de comunicação com notícias e imagens que descrevem a força com que esse fenômeno tem

2 .  A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF, do Supremo Tribunal Federal, por intermédio da interpretação constitucional entende ser cabível a união estável entre pessoas do mesmo sexo, de forma igualitária aos pares heteroafetivos. 3 .  Após a ADI nº 4.277/DF, o Conselho Nacional de Justiça editou Resolução nº 175/2013, impedindo que os Cartórios de Registro Civil, recusem ou não aceitem habilitações e celebrações de casamento civis ou conversão de união estável em casamento de pessoas do mesmo sexo. 295

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sido difundido e a ênfase que tem sido atribuída à publicidade de casos ligados a homicídios, roubos, sequestros e estupros, por exemplo. Diante desse cenário nada satisfatório, percebe-se que a educação das crianças e adolescentes vem sendo cada vez mais prejudicada pela banalização da violência. Isso se dá em decorrência de elas estarem, constante e cotidianamente expostas a toda essa barbárie social, internalizando esses fatos como se fossem absolutamente normais. E não são! É nesse contexto que se observa a prática reiterada de violência dentro das instituições de ensino, entre crianças e adolescentes. Aquilo que inicialmente poderia ser considerado como uma simples brincadeira, chacota ou zombaria, adquire, então, uma conotação de proporções maiores, trazendo transtornos de ordem física e/ou psicológica. A toda essa violência observada, dá-se o nome de bullying, que de acordo com psicanalista Sônia Makaron4, se refere à prática de atos por um indivíduo, em que o agressor porta-se como um “valentão” perante seu semelhante, o agredindo física e/ou moralmente. Assim afirma a autora “O termo anglo saxônico bullying é utilizado para descrever atos de agressão física ou psicológica de caráter intencional, repetitivo e sem motivação aparente, provocados por uma ou mais pessoas contra um colega em desvantagem de poder, com o objetivo de causar dor e humilhação. Insultos, exposição ao ridículo, difamação e agressões mais veladas como rejeição e isolamento são exemplos dessa prática”. Desse excerto, constata-se que o tema é espinhoso e merece uma maior preocupação por parte dos operadores do Direito, assim como dos profissionais diretamente ligados ao processo educacional (diretores, professores, educadores, pedagogos). É necessário ter em mente que o problema é grave e que há necessidade de compreendê-lo em sua essência, com o escopo de buscar uma mudança efetiva e evitar que casos desse tipo não voltem a ocorrer e entrem para a estatística de um cenário desastroso. Não há como se admitir que crianças e adolescentes continuem se agredindo mutuamente e não haja um movimento contrário à perpetuação dessas práticas seja na sociedade civil, seja dentro das próprias escolas: mudanças precisam ser realizadas urgentemente. Extraindo dados da literatura estrangeira, tem-se que práticas de violência no ambiente escolar não datam de período tão recente. Ana-

4 .  MAKARON, Sandra. Bullying: como enfrentá-lo? Disponível em: www.bullying.pro.br. Acesso em: 22. maio. 2013. 296

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lisando as constatações de Dan Olweus5, percebe-se que o fenômeno bullying foi adquirindo espaço em várias partes do globo, ao longo de algumas décadas, sendo que apenas, recentemente, os estudiosos passaram a observá-lo sob uma nova perspectiva, dando relevância ao tema, haja vista a popularização dos casos, de acordo com o autor “O fato de que algumas crianças serem frequentemente e sistematicamente perseguidas e atacadas por outras crianças têm sido descrita em obras literárias, e vários adultos têm experiências pessoais de seus próprios tempos de escola. Embora muitos tenham se familiarizado com o problema agressor / vítima, somente no início de 1970 que foram feitos esforços para estudá-lo sistematicamente (Olweus, 1973. 1978). Por um tempo considerável, essas tentativas foram realizadas, em grande parte, na Escandinávia. Na década de 1980 e início dos anos de 1990, no entanto, o bullying entre os estudantes tem recebido alguma atenção do público no Japão, Inglaterra, Austrália, Estados Unidos, e outros países. Na atualidade, há indicações claras de um movimento crescente da sociedade, para investigar sobre os problemas do agressor / vítima em várias partes do mundo6 (tradução livre)”. No Brasil, assim como nos demais países do globo, o fenômeno do bullying não foge a essa regra. Várias são as práticas vislumbradas no âmbito escolar – e mesmo fora dele - que levam a crer que grande quantitativo de crianças brasileiras tem estado propensas a praticar atos contra seus colegas, pelo simples prazer de zombar e humilhar. A Associação Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência7, descreve o bullying como sendo qualquer ato inserido na relação abaixo, da seguinte forma “colocar apelidos, ofender, zoar, gozar, escarnar, sacanear, 5 .  OLWEUS, Dan. Bullying at school: long-term outcomes for the victims an effective school-based intervention program. In: HUESMANN, L. Rowell. Aggressive behavior: current perspectives. New York: Plenum Press, 1994. p. 97. 6 .  “The fact that some children are frequently and systematically harassed and attacked by other children has been described in literary works, and many adults have personal experience of it from their own school days. Though many acquainted with the bully/ victim problem, it was not until fairly recently, in the early 1970s that efforts were made to study it systematically (Olweus, 1973. 1978). For a considerable time, these attempts were largely confined to Scandinavia. In the 1980s and early 1990s, however, bullying among schoolchildren has received some public attention in Japan, England, Australia, the United States, and other countries. There are now clear indications of an increasing societal as well as research interest into bully/ victim problems in several parts of the world”. 7 .  ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA 2006. Programa de redução do comportamento agressivo entre estudantes. Disponível em: . Acesso em: 22. Maio. 2013. 297

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humilhar, fazer sofrer, discriminar, excluir, isolar, ignorar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, tiranizar, dominar, agredir, bater, chutar, empurrar, ferir, roubar, quebrar pertences”. Logicamente, não há como sobrelevar qualquer brincadeira à condição de bullying, ou seja, não há como estabelecer que qualquer atitude praticada entre jovens e adolescentes possa ser enquadrada nesse fenômeno pelo simples fato de se tratar de brincadeira de umas com as outras. Por outro lado, perceba-se que na medida em que a brincadeira passa a não mais “ter graça”, a prática reiterada dos atos de violência física ou moral passa a trazer transtornos àquela criança ou adolescente, que, fatalmente, inferirão na formação do cidadão que a sociedade espera. É por esse motivo que se deve considerar, para efeitos deste trabalho, que crianças e adolescentes sejam denominadas de socialmente hipossuficientes, terminologia que, ao que parece, melhor se adéqua aos padrões que aqui se pretende defender. Diga-se socialmente hipossuficientes, tendo em vista que não possuem, pelo menos ainda, o pleno exercício de seus direitos e deveres, o que inviabiliza sua autodefesa contra quaisquer ingerências estatais e/ou de particulares. Por esse motivo é que o Estado deve a eles sua total proteção de forma que “no exercício da função administrativa o agente público não pode se esquivar de fazer prevalecer os interesses socialmente hipossuficientes”8. Ao estabelecer essa premissa, tem-se que a proteção das crianças e adolescentes deve ser integral, ou seja, crianças e adolescentes são sujeitos ativos na jurisdição, uma vez que são apresentados como titulares de direitos perante a sociedade, pois “A proteção integral é considerada uma expressão que demonstra um sistema na qual crianças e adolescentes são titulares de direitos e deveres frente à sociedade, a família e ao Estado, podendo ser entendido como conjunto de normas jurídicas que dá direitos à criança e ao adolescente de serem sujeitos ativos de direitos em sua totalidade”9. Por isso, a junção do princípio da proteção integral dada à criança e ao adolescente está concretizado na própria Carta Constitucional estabelece em seu art. 227, afirmando que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta 8 .  MARQUES NETO, Floriano Peixoto de Azevedo. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 165.

prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Veja, o próprio dispositivo constitucional é claro no sentido de que é dever de todos a salvaguarda de crianças, jovens e adolescentes de qualquer discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Se o próprio legislador constituinte consignou a necessidade de resguardá-los desse tipo de prática, como podem existir tantos casos de bullying que chegam às vias de gerar, o “revanchismo” no oprimido de forma a que ele pratique verdadeiras carnificinas com a finalidade de, assim, poder amenizar seu sofrimento e dor?– veja o exemplo do homicídio de crianças em Realengo no Rio de Janeiro10. É por esse motivo que importantes instrumentos legislativos são criados com o escopo de regulamentar a proteção que tanto se almeja. Nesse contexto, promulgado apenas dois anos após a Carta Constitucional de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990) descreve, de maneira minuciosa, quais os direitos devidamente garantidos a essa parcela da população e o dever de todos em zelar por sua garantia e manutenção. Em um primeiro momento, frise-se que crianças e adolescentes, para efeitos legais (art. 2º da referida lei), são divididos da seguinte forma: a) crianças: até doze anos de idade incompletos; b) adolescentes: entre doze e dezoito anos de idade. Portanto, essa proteção se torna necessária, haja vista que são cidadãos em desenvolvimento, necessitando apreender parâmetros de ética, moral e bons costumes, para terem como conviver bem em sociedade. Com o intuito de estabelecer um desenvolvimento físico e mental adequado, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece nos artigos 3º e 4º, os direitos fundamentais desses indivíduos e os deveres da coletividade para com eles, a fim de que se tornem “cidadãos do futuro” mais preparados “Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

9 .  PESSANHA, Jackelline Fraga. AS MÃOS QUE AGASALHAM: uma análise da família homoafetiva e o princípio da proteção integral. Vitória: Revista Científica do curso de Direito da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo, v. 5, nº 8, 2013, p. 08.

10 .  Matéria jornalística disponível em: http://g1.globo.com/Tragedia-em-Realengo/noticia/2011/04/pare ntes-se-desesperam-ao-saber-da-morte-de-criancas-em-ataque-no-rj. html. Acesso em 02 de junho de 2013.

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Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Pois bem. Talvez todos os direitos e deveres acima discriminados não estejam sendo observados e garantidos de maneira adequada. A falta de preparo dos envolvidos no processo de educação de crianças e adolescentes tem trazido consequências nada satisfatórias para as estatísticas levantadas pelos órgãos de pesquisa. De acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE11, no que se refere à Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar (Pense) constata-se o grande quantitativo de crianças e adolescentes que sofrem esse tipo de agressão, informando que “Os resultados da PENSE mostraram que 69,2% não sofreram bullying. O percentual dos que foram vítimas deste tipo de violência, raramente ou às vezes, foi de 25,4% e a proporção dos que disseram ter sofrido bullying na maior parte das vezes ou sempre foi de 5,4%. O Distrito Federal com (35,6%) seguido por Belo Horizonte com (35,3%) e Curitiba com (35,2 %) foram as capitais com maiores frequências de escolares que declararam ter sofrido esse tipo de violência alguma vez nos últimos 30 dias. Foram observadas diferenças por sexo, sendo mais frequente entre os escolares do sexo masculino (32,6%) do que entre os escolares do sexo feminino (28,3%). Quando comparada a dependência administrativa das escolas, a ocorrência de bullying foi verificada em maior proporção entre os escolares de escolas privadas (35,9%) do que entre os de escolas públicas (29,5%)”. Analisando os dados acima, percebe-se que, muito embora haja a afirmação de que 69,2% dos escolares não tenham sofrido bullying, os referidos dados devem ser observados com ponderação. Isso porque, o corte da pesquisa se restringiu a alunos do ensino fundamental das escolas brasileiras localizadas nas capitais e no Distrito Federal, o que não demonstra a totalidade do fenômeno, em todo o ambiente escolar (fora que algumas crianças, de acordo com informação da própria pesquisa, negaram-se a realizar o questionário). Ainda assim, em uma perspectiva global, observar que os 30,8% escolares inseridos nesse nível de ensino possam ter sofrido, ainda que

apenas uma vez na vida, algum ato relacionado ao bullying, é preocupante. Tendo em vista que a amostragem utilizada pelo IBGE trabalhou com um quantitativo de 60.973 (sessenta mil, novecentos e setenta e três) escolares, esses 30,8% que já sofreram bullying, totalizam um quantitativo, em média, de 18.779 (dezoito mil, setecentos e setenta e nove) escolares nas capitais brasileiras, o que deve ser interpretado como uma falha da sociedade civil na busca de coibir que essa violência continue a ser difundida. Da mesma forma, importante mencionar que o grande problema atual que gera preocupação diz respeito aos casais homossexuais e seus filhos. Em um contexto histórico em que as relações interpessoais passam por transformações, e que se torna cada dia mais comum o relacionamento ancorado no afeto entre pessoas do mesmo sexo, vários são os problemas relacionados à discriminação para com esse tipo de composição familiar. Esse problema gerado decorre, principalmente, daquilo que se denomina de homofobia. De acordo com a definição do termo, homofobia se caracteriza por ser “uma manifestação arbitrária que consiste em designar o outro como contrário, inferior ou anormal; por sua diferença irredutível, ele é posicionado a distância, fora do universo comum dos humanos. Crime abominável, amor vergonhoso, gosto depravado, costume infame, paixão ignominiosa, pecado contra a natureza, vício de Sodoma – outras tantas designações que, durante vários séculos serviram para qualificar o desejo e as relações sexuais ou afetivas entre pessoas do mesmo sexo”12. A homofobia, portanto, surge a partir de uma concepção de intolerância por parte da sociedade em aceitar às diferenças. Não há como se conceber que o simples fato de uma pessoa não seguir os padrões impostos pela sociedade, com relação aos relacionamentos heterossexuais, que poderia ela ser considerada uma espécie de “alienígena em meio a terráqueos”. Ocorre que, infelizmente, o que se tem percebido é uma dificuldade por parte dos pais e educadores em tratar com crianças e adolescentes sobre essas novas entidades famílias que estão sendo constituídas. Até certo ponto, não se podem culpar os pais ao terem dificuldade em tratar do tema, pois até para eles próprios essa situação é nova. Até anos atrás, sabia-se da existência de pessoas que tinham desejos por manter relações com pessoas do mesmo sexo. Contudo, em uma sociedade ab-

11 .  INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA 2009. Pesquisa Nacional de Saúde do escolar. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. p. 41. Disponível em: . Acesso em: 01. jun. 2013.

12 .  BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 13.

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solutamente machista como é a brasileira, esses sentimentos acabavam ficando contidos. Ainda assim, em uma sociedade que prima pela igualdade de todos, não há como manter-se inerte diante dessa situação. Assim é que, possivelmente, a escola seja um ambiente apropriado para esse tipo de debate. A intolerância já não pode ser deixada de lado, entendendo-se como algo absolutamente normal. Ocorre que, estudos constatam que a homofobia pode não ser algo tão anormal do ponto de vista do agressor. De acordo com alguns dados pesquisados, “As reações homofóbicas mais violentas provêm, em geral, de pessoas que lutam contra seus próprios desejos homossexuais. Nesse sentido, chegou a ser proposta uma explicação sobre a dinâmica psicológica segundo a qual a violência irracional contra gays é o resultado da projeção de um sentimento insuportável de identificação inconsciente com a homossexualidade, de tal modo que o homossexual colocaria o homofóbico diante de sua própria homossexualidade experimentada como intolerável. A violência contra os homossexuais é apenas a manifestação do ódio de si mesmo ou, melhor dizendo, da parte homossexual de si que o indivíduo teria vontade de eliminar”13. Assim sendo, esse sentimento contido por parte de quem pratica e/ ou demonstra atos contrários à homossexualidade, pode ter íntima reação com seus próprios desejos de estar inserido naquele contexto. Contudo, da mesma forma que possui o desejo, há um conflito interno em que o indivíduo tenta extirpá-lo de sua personalidade, e não conseguindo, utiliza-se de violência com seus pares, como se aquilo solucionasse seu problema interno. É diante disso que se percebe que o tema merece uma atenção e cuidado por parte da família e da sociedade, a fim de que seja possível tratar das diferenças de maneira saudável, a fim de evitar a difusão de violência, sem que se estude as causas do problema. Tudo deve girar em torno de se entender o problema e até que ponto cada setor da sociedade pode influenciar para a alteração desse grave problema. Importante, para tanto, compreender esses novos relacionamentos, a partir de uma análise da família homoafetiva e seus novos paradigmas, uma análise acerca da legislação atual sobre o tema e perceber como a sua participação pode ser fundamental para a mudança de preconceitos até hoje existentes em nossa conservadora sociedade civil.

Ainda assim, deve-se deixar claro que a homofobia, em breve síntese, deve ser considerada como “disfunção psicológica, resultado de um conflito mal resolvido durante a infância e que provocaria uma projeção inconsciente contra pessoas, supostamente, homossexuais14”. Esse, portanto, é o ponto de partida do leitor para entender o que se pretende analisar acerca da participação da família homoafetiva e da escola, na busca de alteração da realidade social e, assim, se evitando que casos decorrentes de bullying, continuem a ser praticados de maneira descontrolada.

2  A MELHOR FORMA DE GARANTIR A FORMAÇÃO DO “CIDADÃO DO FUTURO”.

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ara a construção, promoção e defesa do cidadão do futuro são necessárias a adequação por parte do Estado e da sociedade, das condições de mínimas de respeito às diferenças e mitigação de preconceitos. Desta feita, a cidadania tem como conceito “que compreende a indivisibilidade e a interdependência entre os direitos humanos, caminha em constante tensão com as ideias de liberdade, de justiça política, social e econômica, de igualdade de chances e de resultados, e de solidariedade, a que se vinculam”15. O cidadão encontra diversos obstáculos para a prática da cidadania real e participativa, pois são tratados como coisas (objetos) e não entendidos como participantes ativos do Estado, sendo necessária para isso uma educação pautada na cidadania e na democracia. A educação é elemento indispensável à consolidação do cidadão do futuro, entendida como o desenvolvimento das potencialidades de cada indivíduo para o conhecimento, julgamento e escolha das maneiras conscientes de viver em sociedade, bem como para a conservação de valores, costumes, práticas e mentalidades. É nesse ponto que os “valores do liberalismo e da democracia moderna, quais sejam, as liberdades civis, a igualdade e a solidariedade, a alternância e a transparência no poder, o respeito à diversidade e a tolerância”16, são indispensáveis a educa14 .  BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 97. 15 .  GUERRA, Sidney. Direitos humanos & cidadania. São Paulo: Atlas, 2012, p. 17.

13 .  BORRILLO, Daniel. Homofobia: história e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 97.

16 .  BENEVIDES, Maria Victória. Educação para a democracia. Conferência proferida no âmbito do concurso para professor titular em sociologia da educação na FEUSP, 1996, p. 02.

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ção para o futuro e para a democracia. O cidadão pautado na formação e consolidação de valores indispensáveis, como liberdade, solidariedade e respeito às diferenças, estará consciente da sua dignidade com os seus semelhantes, o que para o futuro é necessário. Aqui, se observa uma necessidade importantíssima: a preocupação com o semelhante. Por esse motivo é que a menção ao pensamento de Emanuel Levinás se torna de importante nesse contexto. O autor transparece a preocupação com o outro (com o semelhante), na medida em que ações devem ser praticadas com uma preocupação ética de como elas irão interferir na esfera do outro, haja vista que “mostra como dependência do eu com respeito ao outro é uma dependência existencial, mas também metafísica. O outro não pode ser reduzido a qualquer outro tipo de categoria ou conhecimento. Na tradição do pensamento ocidental a realidade que existe pode ser conhecida e o conhecimento dita a verdade sobre o real. Se aceita como verdadeiro aquilo que pode ser plenamente conhecido. [...] Mas o outro se nega a ser reduzido a conhecimento, não podemos reduzir o ser do outro num saber. Conhecemos o outro sempre de forma parcial e fragmentária porque o outro sempre tem a potencialidade de ser diferente. Nunca se consegue conhecer plenamente o outro. O outro, por exigência da sua alteridade, é irredutível a qualquer forma de conhecimento. Isso não significa que não possamos conhecer aspectos do outro: sua personalidade, caráter, hábitos, modo de ser, etc., porém todos os conhecimentos que possamos ter sobre o outro sempre serão insuficientes para reduzi-lo a uma categoria ou a um sistema de pensamento”17. Em suma, o que se pretende inferir do trecho esposado é que, na medida se está a tratar do antigo tabu dos novos arranjos familiares, hoje esses já são uma realidade. E, por serem uma realidade, necessitam que haja um respeito por parte de todos, sem qualquer tipo de preconceito e/ou discriminação. Analisando as premissas, vislumbram-se grandes entraves nas escolas quando se fala de filhos de famílias homoafetivas, bem como os dados anteriormente avaliados, percebe-se que uma falha grave tem permeado a formação de nossas crianças e adolescentes. Em pleno século XXI, já não se pode mais admitir que haja tanto preconceito arraigado 17 .  RUIZ, Castro B. Emmanuel Levinás, Alteridade & Alteridades – Questões da modernidade e a modernidade em questão. In: SOUZA, Ricardo Timm de; FARIAS, André Brayner; FABRI, Marcelo. Alteridade e ética: obra comemorativa aos 100 anos de nascimento de Emmanuel Levinás. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 137. 304

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na mentalidade das crianças brasileiras, a ponto de humilhares seus colegas de sala de aula, pelo simples fato de zombar. Esse sentimento homofóbico já parte do núcleo familiar dessas crianças e adolescentes. Infelizmente, o cenário vislumbrado na atualidade é muito sério, na medida em que “Com os jovens gays, lésbicas e transgêneros a realidade “e tragicamente oposta: pais e mães repetem o refrão popular – “prefiro um filho morto do que viado!” ou “antes uma filha puta do que sapatão”. Muitos são os registros de jovens homossexuais que sofreram graves constrangimentos e violência psíquica dentro do próprio lar quando foram descobertos: insultos, agressões, tratamentos compulsórios destinados à “cura” da sua orientação sexual, expulsão de casa e até casos extremos de execução. Recentemente, num bairro periférico de Salvador, um avô espancou seu neto negro até à morte quando descobriu que era gay, e um pai baiano de classe média ao ser informado que seu filho era homossexual, deu-lhe um revólver determinando “Se mate! Pois na nossa família nunca teve viado”18”. O trecho acima demonstra o claro pensamento da grande maioria da população brasileira. Há que se ter bem delimitado em nossa mente que a população brasileira mantém arraigado há bastante tempo a característica de ser machista. Tempos estes em que a mulher é submissa ao seu marido e que, sequer, possuía CPF- Cadastro de Pessoas Físicas próprio – necessitava utilizar de seu marido. Agora pense: se os homossexuais podem sofrer esse tipo de discriminação dentro de sua própria residência, é correto que a sociedade faça questão de rebaixá-los ainda mais? A resposta mais correta é a de que, obviamente, não. A criação das gerações passadas resultou nesse quadro desastroso que merece ser superado. Paradigmas merecem ser alterados. Não é porque um pai criou seu filho com um pensamento machista que, necessariamente, precisará ele se utilizar deste pensamento para humilhar seus semelhantes. Trata-se de uma questão de educação e respeito às diferenças. Verifica-se que a desigualdade é fundamentada pela igualdade, pois as partes são livres e iguais em direitos e obrigações. Entretanto, é pela diferença que o sistema de exclusão se manifesta o que gera a discriminação e preconceito, pois “É que, no Estado nacional moderno, o que passa por universalismo é, de facto, na sua génese, uma especificidade,

18 .  MOTT, Luiz. Raízes persistentes da homofobia no Brasil. In: Minorias Sexuais: direitos e preconceitos. Brasília: Consulex, 2012. p. 177. 305

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um particularismo, a diferença de um grupo social, de classe ou étnico, que consegue impor-se, muitas vezes pela violência, a outras diferenças de outros grupos sociais e, com isso, universaliza-se. Na maior parte dos casos, a identidade nacional se assenta na identidade da etnia ou grupo social dominante. As políticas culturais, educativas, de saúde e outras do Estado visam naturalizar essas diferenças enquanto universalismo e consequentemente transmutar o acto de violência impositiva em princípio de legitimidade e de consenso social. [...] Quanto mais vincado é esse processo, mais distintamente estamos perante um nacionalismo racionalizado ou, melhor, perante um racismo nacionalizado. [...] as sociedades nacionais foram tomando consciência das suas crescentes características multinacionais e multiculturais, o que colocou novas dificuldades à política de homogeneidade cultural, tanto mais que muitos dos grupos sociais ‘diferentes’, minorias étnicas e outros, começaram a ter recursos organizativos suficientemente importantes para colocar na agenda política as suas necessidades e aspira mies especificas19”. (destacamos) Por isso, as práticas sociais devem a todo tempo evitar a discriminação, preconceito, exclusão ou desigualdade entre qualquer membro da sociedade, independentemente de sua orientação sexual, normalizando as diferenças e entendendo cada um e seu individual. As políticas sociais aplicadas não estão sendo suficiente para coibir a discriminação e preconceito existente na família homoafetiva, o que desrespeita os princípios constitucionais da igualdade e do respeito às diferenças, pois cada cidadão tem direito de ser o que deseja, sem a interferência de qualquer ente estatal. Logo, a existência de um princípio constitucional da igualdade, que veda qualquer discriminação, bem como pleiteia o respeito à diferença, proclama uma ampla visão da homossexualidade enquanto orientação sexual específica, do qual não há qualquer fundamento para a sua discriminação. E o mais importante, o Estado Brasileiro estabeleceu como objetivo fundamental o de não estabelecer qualquer tipo de diferença decorrente de discriminação, como se percebe do dispositivo que, a seguir, se transcreve “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discri-

19 .  SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 284. 306

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minação”. Ora, se o Estado traz esse compromisso constitucional, deve ele cumprir à risca com seu mandamento, sob pena de estar violando frontalmente dispositivo constitucional. E não é bem o que vem sendo feito. Não se está a vislumbrar políticas afirmativas capazes de surtir o efeito de fazer cessar esse movimento homofóbico, que se espalha pelo país. Inclusive, a omissão é cada vez mais gritante que “Chega a ser criminoso o descaso e omissão dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em reconhecer a urgência de propor medidas afirmativas que reduzam a violência homofóbica no país, viabilizando uma inadiável revolução nas mentalidades dos formadores de opinião, a fim de superar o preconceito e discriminação presentes em todas as esferas públicas de nossa sociedade. Do mesmo modo como existe FUNAI, Fundação Palmares, Secretaria Nacional das Mulheres, urge que seja criada uma Secretaria da Cidadania Homossexual, com vistas a erradicar a homofobia em nosso meio”20. É nesse contexto que as Instituições de Ensino têm o poder/dever para/de modificar essa realidade: sejam elas públicas ou particulares. A necessidade de se formar um cidadão desprovido de preconceitos é função de todos os setores da sociedade. Contudo, a escola é o ambiente em que as crianças passam a maior parte do tempo de sua formação. Assim, importante que esse tipo de assunto seja tratado e preconceitos consigam ser desatados. E nada mais consistente que esse tipo de assunto seja tratado dentro do ambiente escolar. Na medida em que a escola tem como papel fundamental a formação do cidadão, é difundindo pensamentos desprovidos de qualquer preconceito que será possível perceber como a sociedade passará a ter uma nova mentalidade acerca da realidade que é colocada à sua vista. Valdeciliana da Silva Ramos Andrade21 defende que “A escola é, portanto, o espaço ideal para que se desenvolva a cidadania, que é um processo de construção gradativo e contínuo e deve ser iniciado no período escolar, especialmente no ensino fundamental, para que, à medida que a criança e o adolescente obtenham conhecimentos gerais nas mais diversas disciplinas, eles possam ter condições de ir assimilando as noções básicas de cidadania e, a partir daí, construam valores e 20 .  MOTT, Luiz. Raízes persistentes da homofobia no Brasil. In: Minorias Sexuais: direitos e preconceitos. Brasília: Consulex, 2012. p. 180. 21 .  ANDRADE, Valdeciliana da Silva Ramos Andrade. O direito vai à escola: a construção da cidadania. In: ANDHEP - Associação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa e PósGraduação. Anais do IV encontro anual da ANDHEP. Brasília: ANDHEP, 2008. p. 08. 307

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princípios que nortearão suas condutas como cidadãos comprometidos e responsáveis com a sociedade”. Só que de nada adianta educar as crianças se os pais não tiverem uma parcela de influência nessa mudança almejada. Por esse motivo, é importante que as Instituições de Ensino consigam estabelecer dinâmicas com pais e alunos, a fim de que ambos compreendam a verdadeira essência do não ter preconceito. Há que se ter em mente a relevância da Escola dentro desse contexto, com o objetivo de difundir a não discriminação “A escola, juntamente com a educação realizada pela família, sociedade e estado são de fundamental importância para a mudança de rumos da sociedade, pois somente com cidadãos educados passa-se a ter novos valores sociais e pluralidade de pensamentos para o debate e crescimento intelectual de todos. Além disso, a escola acompanha as crianças e adolescentes durante horas diárias e anos da sua vida, o que precisa ser um ambiente acolhedor, sem qualquer preconceito, para todos debaterem e famílias, educadores e alunos conviverem em harmonia”22. Como tratado desde o início, a criação dos pais desses jovens e adolescentes foi regada por profundos sentimentos preconceituosos: é hora de mudar essa sistemática social. Para que isso seja possível, a família deve estar ainda mais integrada no seio escolar, com o intuito de contribuir para o debate, apreender conhecimento e dialogar com professores e seus filhos, em conjunto. Pondere-se que o sistema normativo brasileiro já vinha admitindo a união estável entre pessoas do mesmo sexo e a adoção por casais homossexuais. Após o julgamento da ADI 4.277/DF e da ADPF 132/RJ, já não pairaram mais dúvidas quanto à possibilidade de uniões estáveis homoafetivas, exatamente, em decorrência do estabelecido no art. 3º, inciso IV, da Carta Constitucional de 1988. Importante consignar que as mudanças não se estagnaram no reconhecimento da união estável homossexual. A Resolução n.º 175, de 14 de maio de 2013, disciplina, a partir do julgamento das duas ações acima mencionadas que os cartórios passam a ser proibidos de recusar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, assim como não podem proibir que haja a conversão das uniões homoafetivas em casamento. Então, ainda que o Brasil ainda possa ser considerado como machista no seio familiar, o sistema normativo tem buscado se ade-

quar às novas realidades colocadas à sua apreciação. Essas mudanças ocorrem, seja por intermédio da atividade judicial, para evitar que as omissões estatais prejudiquem o exercício de direitos fundamentais, ou então, criando instrumentos normativos com foco na máxima efetividade dos direitos da sociedade. No que diz respeito à adoção, também não se vislumbra qualquer óbice à sua efetivação, nos termos da legislação vigente. Apesar disso, o ordenamento é omisso quanto ao tema, o que gera os inúmeros problemas decorrentes, pois sempre são buscados motivos para evitar que casais do mesmo sexo possam adotar crianças e adolescentes. De acordo com Fabiana Marton Spengler23, “A vedação, ou melhor, a omissão legal sobre o tema da adoção por casais do mesmo sexo talvez ocorra pela preocupação com o bem-estar da criança ou adolescente que vai ser colocado na família substituta, mas acontece muitas vezes por puro preconceito quanto á orientação sexual divergente dos padrões considerados “normais” pela sociedade. Assim, a possibilidade de que o adotando venha a sofrer má influência de seus pais ou mães adotivos, quanto ao seu desenvolvimento psicoemocional, é a deixa para que este tipo de situação jurídica não seja admitida. Veicula-se também a possibilidade de o adotando sofrer discriminação, abalo moral e psicológico ao ser conhecido na escola ou no clube que frequenta como filho de duas pessoas cuja sexualidade não se enquadra dentro dos padrões socialmente considerados “normais””. Percebendo que há omissão legislativa, o Judiciário tem estabelecido meios com base na principiologia para efetivar esse tipo de adoção e assim garantir que haja um desenvolvimento adequado à criança e a esse adolescente, alicerçado no princípio da proteção integral, disciplinado no Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, para garantir a máxima proteção dessas crianças, é possível inseri-las em lares de pessoas do mesmo sexo, para que possam se desenvolver humanisticamente e com toda a dignidade que deve ser inerente ao ser humano. Ante essa constatação, se o próprio Estado possibilita a adoção por casais homossexuais, o próprio tem o dever de estabelecer medidas para que o ambiente geral que essa criança irá se desenvolver seja adequado e totalmente afastado de discriminações e preconceitos. Infelizmente, não é isso que acontece.

22 .  PESSANHA, Jackelline Fraga. A educação inclusiva e as relações homoafetivas. In: GERALDO, Pedro Heitor Barros; FONTAINHA, Fernando de Castro; MEZZAROBA, Orides. Direito, Educação, Ensino e Metodologia Jurídico. Florianópolis, FUNJAB, 2012. p. 260.

23 .  SPENGLER, Fabiana Marion. Homoparentalidade e filiação. In: DIAS, Maria Berenice. Diversidade sexual e direito homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 359.

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A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996), estabelece que “Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Ora, se a formação do cidadão depende da integração dos vários setores da sociedade civil, é isso que vem faltando para que o quadro do bullying seja revertido, pois “A responsabilidade solidária, como um fato, requer a devida compreensão dos poderes públicos de que somos todos responsáveis pela construção histórica de violações, exclusões e discriminações humanas que reproduzem numa constante a anticidadania, fenômeno extremamente redutor da dimensão humana e foco de atos violentos num ciclo interminável e injusto. A participação social é necessidade fundamental do ser humano e sua ausência cria e recria antagonismos espaciais, degenerando-se em violência tanto na esfera pública quanto privada, pois são esferas absolutamente imbricadas e que se retroalimentam constantemente mantendo um status quo aparentemente imutável”24. Campanhas governamentais mais antigas, planos de ensino mais adaptados, discussão sobre temas polêmicos dentro das Instituições de Ensino acabam sendo as maiores promessas para que seja possível a criação de uma sociedade mais justa e igualitária e desprovida de preconceitos. Nada mais atual, portanto, que a música de Gabriel O Pensador, Até quando, na medida em que o cantor afirma: “Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!), até quando vai ficar sem fazer nada?, Até quando você vai levando? (Porrada! Porrada!!), até quando vai ser saco de pancada?”. Urge, claramente, a necessidade de mudança do paradigma social atual, a fim de que se tenha a plena ciência de que a opção sexual de determinado indivíduo não pode ser determinante para torná-lo diferente dos demais. Da mesma forma que a orientação sexual, qualquer discriminação que deturpe os preceitos estatuídos pela Carta Constitucional vigente devem ser extirpados. E mais, cabe à sociedade civil, aos Entes Governamentais e às Instituições de Ensino - essa última com papel extremamente sobrelevado em relação aos demais – que identifiquem possíveis problemas que ocorram em seu ambiente e incentivem, a partir do diálogo, a quebra de qualquer preconceito. 24 .  GUERRA, Sidney. Direitos humanos & cidadania. São Paulo: Atlas, 2012, p. 14-15. 310

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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bullying é um problema real e latente. Da mesma forma que o bullying vem trazendo muitos transtornos à formação psíquicosocial das crianças e adolescentes, o preconceito tem sido a “pedra no sapato” da sociedade atual. Inseridos em uma sociedade machista, a dificuldade em se aceitar as diferenças tem sido algo não muito aceito. Como vislumbrado no transcorrer deste trabalho, dados dão conta de que pais chegam ao ponto de espancar seus filhos quando descobrem que possuem orientação sexual diversa da heterossexual. Se o preconceito já se inicia dentro de casa, o problema toma proporções muito mais vultosas quando se está a tratar de relações interpessoais. Crianças e adolescentes que já tem o costume de caçoar de colegas por serem gordos, magros, altos, baixos, muito inteligentes, cheios de espinha, agora passam a assumir uma nova forma de assediar moralmente: o filho do casal gay. Logicamente que não se afasta a razão disso tudo, a criação de pais e avós sempre esteve direcionada para o relacionamento afetivo heterossexual. Diante disso, ainda é muito difícil perceber que as relações se alteraram e que cada um pode assumir a orientação sexual que melhor lhe aprouver. Por esse motivo é que se entende que o cidadão do futuro deve ser um cidadão sem preconceitos. Sem preconceitos, exatamente, porque entende que as diferenças existem e que eles devem respeitá-las, sob pena de agredir moralmente seu semelhante e ser sancionado por essa conduta. Ainda assim, a sanção não é a solução. O papel da escola se torna essencial, na medida que é naquele ambiente que jovens e adolescentes passam a maior parte da sua vida infantil e juvenil, até se tornarem adultos. É ali que esses temas merecem ser levantados e debatidos. Não que os outros setores da sociedade não tenham responsabilidade por essa situação: tem e precisam agir. O Estado tem se mostrado muito omisso em relação ao tema. A partir disso, releva mencionar que para que haja uma mudança efetiva, é necessário que os paradigmas sociais acerca do que é família, se alterem. É importante que se tenha em mente que família já não é somente a união entre homem e mulher com o objetivo de constitui prole. Família, conforme demonstrado, se une através de laços afetivos e são esses laços que garantem que um casal homossexual possa adotar crianças, constituir família e levarem uma vida normal aos padrões atuais. Por esse motivo é que o Estado, que permite essas adoções por en311

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tender que elas são plenamente possíveis em busca da melhor proteção da criança, também deve agir em prol da efetivação e garantia dos direitos inerentes a essa família: principalmente que não sofram abusos preconceituosos por parte de qualquer indivíduo. Afinal de contas, a integração entre os setores, fará com que o indivíduo advindo de uma família homoafetiva, possa crescer e se desenvolver sem que tenha passado por nenhum transtorno psíquico decorrente de sua condição. E à sociedade em geral, o paradigma deve ser alterado para fazer constar que “Homossexualidade nunca foi e nunca será doença”.

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17 Infância e a erotização precoce Maria Beatriz Nader Thaisa Nunes

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té o século XIX não havia a idade da vida que hoje conhecemos como infância, muito menos a adolescência. Considerada como um sentimento de compreensão que distingue essencialmente a criança do adulto, a infância não existia como consciência e o tratamento destinado a ela era o mesmo que aos adultos, o que permitia a todos na comunidade considerá-las como iguais. Não se deve estimar com o sentimento de hoje que tenha havido qualquer descaso ou indiferença em relação às crianças. O que ocorria era um entendimento diferente do que era ser criança, uma vez que diversos contextos culturais foram capazes de criar noções próprias a esse respeito. Na verdade, a concepção dessa idade teve seu entendimento variadonão só ao longo da História, mas em pontos imprecisos do tempo. Na Europa Ocidental, durante a Antiguidade e por todo o medievo, as crianças participavam do convívio social dos adultos e não havia distinção entre sua atuação e a do adulto na contribuição com o trabalho, doméstico ou agrícola, para a sobrevivência da comunidade. Philippe Ariès, autor da obra História Social da Criança e da Família1, foi pioneiro no estudo que mostrou como o sentimento de infância foi inserido na História da Humanidade. Para ele, as idades da vida ocupam um lugar importante nos estudos sobre a família na História, e suas pesquisas, que tem como base a Demografia Histórica, mostram que a cada época uma idade específica correspondia à idade privilegiada, ou seja, tinha uma periodização mais vantajosa, pautada na reação social diante da duração da vida. No século XVII, a idade que predominava nos trabalhos demográficos era a idade da juventude que, dependendo da temporalidade e do local, poderia chegar até aos vinte e quatro anos; no século XIX, predominava a infância, que até hoje tem uma idade que

1 .  ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2.ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. 313

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varia dos três aos doze anos de idade; e, no século XX, sobressaia a adolescência, que muitas vezes começa dos doze e termina aos vinte e um anos. As outras idades, a fase adulta, a velhice e a senilidade, surgem em outros momentos e também sofrem variações entre as sociedades e a temporalidade histórica. As variações das idades e dos sentimentos que se relacionam com a infância se iniciam muito lentamente entre nos séculos XVI e XVII com a percepção da criança como um ser diverso do adulto, como uma fase particular de vida. Se na Idade Média, o aprendizado das crianças era através do convívio com os mais velhos, na Idade Moderna começa a existir uma separação de ambientes, o que proporciona espaços específicos para a criança dentro da sociedade. Surgem lugares para guarda e abrigo dos pequenos e de entrega de sua educação às escolas, processo que foi acentuado pela Revolução Industrial haja vista a necessidade da força de trabalho das mulheres nas fábricas. No século XVIII, a concepção da criança como indivíduo já é mais sólida, mas somente no século XIX, especificamente na França, ela recebe uma valorização como ser singular, tornando-se o centro da família2. A criança passou a ser objeto de investimentos econômicos, educacionais e afetivos. Tudo o que se referia às crianças e a família se tornara assunto sério e digno de atenção. A representação da criança nos calendários e nas pinturas, embora escassas, mas importantes como fontes de pesquisa, nos séculos anteriores praticamente não existiam e a partir do dezenove passou a “invadir” as pinturas, as tapeçarias e as artes religiosas que representavam crianças como anjos. Ao mesmo tempo, a nova visão sobre as crianças privilegiava às inovações sociais incentivadas pelo liberalismo e pelo capitalismo, fazendo com que lentamente ela assumisse um lugar efetivo na sociedade, mormente, como consumidora. Nesta conjuntura, surge um mercado de produtos para infância, dentre outros, de alimentos, de brinquedos, de jogos, de roupas e de desenhos animados. A partir dessa época definitivamente a infância distingue-se da fase adulta. As vestimentas são as características mais marcantes dessa dessemelhança. As crianças com menos de cinco anos, independente do sexo, eram vestidas com saias, costume esse que perdurou por muito tempo. Após essa idade, os meninos e as meninas eram vestidos de acor2 .  BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. Waltensir Dutra.9.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 288-289. 314

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do com sua posição social e seu sexo. Os meninos usavam calça como os homens adultos e foram os mais beneficiados com essas diferenças que definiram claramente a infância da fase adulta. As meninas foram motivadas a se manterem mais tempo sem essa indiferenciação e eram vestidas como mulheres adultas, além de serem treinadas para se comportarem desde muito cedo como donas de casa. O sentimento de infância foi assim assimilado ou aprendido por várias sociedades, chegando ao Brasil, provavelmente em fins do século XIX, momento em que a sociedade ainda estava refém de interesses patriarcais, nos quais esposa e filhos dependiam totalmente do pai. Apesar de as grandes transformações econômicas e políticas estarem transcorrendo a todo vapor, somente no início do século XX, a sociedade brasileira inicia mudanças em seu comportamento no tocante ao se pensar infância. Nas regiões citadinas, as populações que ficaram à mercê do grande surto da industrialização pouco a pouco foram perdendo os velhos valores nas relações entre pais e filhos. O modelo familiar, até então padrão de prescrição de comportamento de toda a sociedade, agora sujeito ao fenômeno da desorganização pessoal e social, sofre consequências das condições sob as quais vivem seus familiares. Na cidade, a urbanização incentiva o consumo e as famílias, cada vez mais reduzidas, adotam traços culturais característicos da convivência mais estreita. As escolas, as igrejas, os clubes, as agremiações aproximam as pessoas e desperta nelas uma visão de sociabilidade até então pouco vista nos pais. A rua, o comércio e a animação desperta o interesse de homens e mulheres pela forma de se trajar, motivando abertura de novos espaços e publicidades que colaboram com a nova dinâmica de consumo. Nos grandes centros do Brasil, abriram-se lojas de departamentos e nesses a mulher citadina moderna era seu público-alvo. Em um pais político e economicamente voltado para o futuro, no período após a Segunda Guerra, os anúncios de moda, que sempre foram direcionados para as classes mais prósperas, mostram a moda da próxima estação, incentivando cada vez mais o consumo, notadamente da mulher. E, na dinâmica das relações entre os membros da família e as mensagens de progresso, as mulheres adquiriram um verniz de modernidade, emancipando-se econômica e sexualmente. Novos hábitos e moda renovaram a valorização da juventude e muitas meninas, que sempre foram incentivadas a se parecerem com as mães, continuaram a usar trajes semelhantes aos delas.

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Após os anos de 1980, as meninas foram compelidas a usar maquiagem, salto e penteados no cabelo para as fazerem se sentirem arrumadas como as mães, e quando não ficavam arrumadas eram tomadas como ‘relaxadas’ e ‘desleixadas’ por outras meninas. E a produção das indústrias de vestimentas e de cosméticos passou a fazer parte do universo das meninas que buscavam se espelhar nas mães. Bilhares de dólares foram gastos na publicidade de produtos que expandem o mercado consumidor infantil, levando as meninas cada vez mais cedo para a vida adulta na qual, além de consumidoras, elas próprias tornar-se-ão objetos de consumo. São essas práticas que nortearão a discussão central deste artigo, que de início envolve o paradoxo da infância que distingue a criança do adulto, do ponto de vista econômico, desafia e condiciona a menina, na fase de vida da infância, a portar-se em condições sociais com a mesma imagem de sua mãe, mulher.

A infância feminina e a indústria

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nhas pintadas, cílios alongados com cosmético para colorir e/ou acentuar a curvatura dos cílios, lábios coloridos, pele amaciada com creme hidratante, cabelos alisados por chapinha, salto alto e vestido tomara que caia. Esta descrição seria natural se nos indicasse a forma de uma mulher se arrumar para ficar bonita. No entanto, não é mais surpresa que uma criança possua tal aparência. A historiadora Mary Del Priore (2000), no livro Corpo a corpo com a mulher: pequena das transformações do corpo feminino no Brasil3, ao escrever sobre as transformações ocorridas no corpo das mulheres brasileiras ao longo da história, destaca que a identidade do corpo feminino se baseia, nos dias de hoje, na tríade beleza-saúde-juventude. Este é o paradigma estético contemporâneo veiculado na atualidade, o que dá a oportunidade de as meninas cada vez mais se parecerem com as suas mães. Não seria forçoso afirmar que a histórica associação entre beleza e feminilidade, tão intensamente cobrada das mulheres, está sendo transmitida às meninas, chegando quase que impondo às pequenas a obrigação de imitar suas mães. Na realidade, as meninas estão vivendo a tira-

3 .  DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo, SENAC, 2000, p.12-13. 316

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nia moderna da perfeição física e, desde muito cedo as pequenas usam inúmeros produtos destinados elas, como se fosse mulheres adultas. Na história do século XX, encontramos várias meninas que receberam influência de suas mães para se parecerem como uma mulher em fase adulta. Principalmente na primeira metade desse século, período em que as mulheres sofreram forte influência das películas hollywodianas que alcançaram todo o mundo. Cita-se como exemplo Shirley Temple, atriz mirim que, na década de 1930, foi considerada a mais famosa menina atriz de todos os tempos. Começou atuar com três anos de idade e sua mãe, uma dona de casa, foi a grande estimuladora de sua carreira, matriculando-a em classes de dança superior à sua idade. Arrumava sua filha semelhantemente às estrelas de cinema mudo, das quais copiava os cachos que arrumava nos cabelos da menina. Aos três anos de idade Shirley já estava trabalhando no cinema e também fazendo propaganda para cereais matinais e outros produtos. Outras meninas, que desde muito jovens também foram estimuladas por suas mães a atuar no cinema foram Rita Hayworth e Brooke Christa Camille Shields, sendo esta última, nos anos de 1980, musa de fotógrafos famosos que chegaram a vender uma foto dela por cerca de um milhão de dólares, na qual ela aparecia em cenas de nudez explícita e maquiagem pesada quando tinha dez anos de idade. Com pouco mais idade, Brooke Shields protagonizou um filme no qual interpretava uma criança que vivia em um bordel. Tal filme a levou a fama, chegando a fazer comerciais caríssimos das calças jeans da marca Calvin Klein, quando ela tinha quinze anos. No século XXI, a indústria têxtil e de cosméticos, aliadas ao mercado consumidor, ainda continuam a serem as maiores responsáveis por motivar meninas a se parecerem com as mães, uma vez que para vender não distinguem idade e tratam todos como consumidores. Por seu turno, a mídia propaga ideias de que as meninas devem adquirir produtos produzidos por apresentadoras de programas de TV e por mulheres que desfilam sua beleza juvenil em passarelas que irradiam riqueza e inveja. Marcas de roupas, de calçados e de cosméticos também promovem concursos de beleza infantil com o intuito de estimular as meninas a serem cada vez precoces e utilizarem objetos de adultos. Muitos concursos são produzidos por empresas que conseguem apoio do Estado e obtém licença exclusiva para realizar a confrontação entre crianças, estimulando uma admiração exagerada em sua marca. É o fetichismo estimulado nas meninas com certificação governamental. Assim, a precocidade na utilização de objetos e de atitudes adultas

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faz com que as meninas fiquem cada vez mais motivadas a participarem de disputas de beleza. Um exemplo recente, no Brasil, foi o “Concurso Beleza infantil criança da capa 2013”, promovido pela revista Kids. Os prêmios foram estimuladores, pois, além dos prêmios que os 90 (noventa) semifinalistas e os 30 (trinta) finalistas deveriam ganhar, os vencedores fariam ensaios fotográficos no Shopping Del Rey, na cidade de Belo Horizonte. Centenas de crianças foram inscritas e no dia do desfile o shopping estava repleto de famílias que torciam por suas crianças. As meninas, assim motivadas, tornam-se alvo da publicidade da televisão, pois vivem cercadas de mensagens que insistem em inseri-las em um mundo de consumo, despertando-as e estimulando-as a querer a satisfação imediata. Em outras palavras, a indústria, incentivada pela mídia, patrocina a inserção precoce de meninas no mundo adulto, comprometendo a etapa que hoje se tornou, pelo víeis da saúde, necessária às suas vidas, que é a idade da infância. Talvez, por força da propaganda e da cobrança social, seria um tanto normal que as meninas quisessem copiar o comportamento das mães, assim como essas últimas influenciar na formação dos hábitos de consumo das filhas. Todavia, estimular meninas a usar roupas, sapatos, maquiagem e acessórios de adultos, pode afetar a experiência da infância e estabelecer a ordem de as meninas necessitarem desde muito cedo a ficarem maquiadas e arrumadas como mulheres para serem consideradas bonitas. Essa preocupação com a beleza, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC), faz com que o Brasil ocupe o terceiro lugar no ranking mundial de países que mais utilizam cosméticos e o segundo com maior consumo de cosméticos voltados para o mercado infantil4. Além disso, o fenômeno de erotização precoce compromete a identidade das crianças e oferece um estímulo ao desejo. Por mais que uma menina tenha desenvolvido precocemente um “corpo de mulher adulta” na fase da infância, faltalhe maturidade para a defesa aos assédios e abusos sexuais, assevera M. Cunico, no artigo Os cosméticos e o risco da vaidade precoce5. Visando garantir a proteção da criança contemporânea, o Instituto

4 .  Dados da Associação brasileira da Industria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec) http://www.abihpec.org.br 5 .  CUNICO, M. M. e LIMA, C. P. Os cosméticos e o risco da vaidade precoce. In: TREBIEN, Herbert Arlindo. (Org.). Medicamentos: benefícios e riscos com ênfase na automedicação. Curitiba: Imprensa da UFPR, 2011, v. 1, p. 294. 318

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Alana6, defensor do projeto de Lei 5.921/2001, que trata da regulação da publicidade dirigida às crianças, e responsável pelo Projeto Criança e Consumo, vem fazendo importantes apontamentos sobre a erotização precoce, sobretudo de meninas, tão sensíveis aos apelos de consumo. Nesse diapasão, há um desafio a ser desvendado em relação ao futuro do sentimento de infância, com todas as suas implicações. As meninas têm realidades sociais diferentes, com histórias múltiplas. Enquanto algumas estão batalhando por uma vida digna e por uma educação de qualidade, outras estão enclausuradas em condomínios rodeadas de bonecas, maquiagens, e sendo educadas mães interessadas na perpetuação de conceitos restritos ao seu padrão social.

6 .  Instituto Alana é uma organização da sociedade civil que trabalha para encontrar caminhos transformadores que honrem a criança. Para tanto, atua em um amplo espectro em busca de garantir condições para a vivência plena da infância, fase essencial na formação humana. 319

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18 O DEVER DE EDUCAR E O ENSINO DOMICILIAR Ronaldo L. B. Segundo Daury Cesar Fabriz

1  INTRODUÇÃO

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ordenamento jurídico brasileiro reservou espaço importante para tratar do tema educação, abordando-o a partir de diferentes perspectivas. Desde o texto constitucional, passando pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação, pelo Código Penal, chegando, finalmente, ao Estatuto da Criança e do Adolescente, o tema é cercado de cuidados e busca fundamentalmente garantir o acesso de todos – especialmente, de crianças e adolescentes – ao ensino e à educação. Apesar de todo o cuidado mencionado e de estar o tema constantemente na pauta do dia de nossos representantes parlamentares – acrescido da existência de dispositivos constitucionais que vinculam obrigatoriamente parte do orçamento público aos programas que buscam ampliar o acesso e melhorar a qualidade dos serviços prestados pelo Estado neste campo –, é de conhecimento geral que a qualidade da educação pública continua muito aquém do que seria desejável para atingir índices civilizados de alfabetização, situação que não é nova1 e que foi reafirmada recentemente.2 No campo da educação privada, o quadro é apenas um pouco menos desolador, mas igualmente preocupante, existindo, na verdade, pequenas ilhas de excelência no meio de um oceano de instituições que, a muito custo, conseguem atingir padrões minimamente aceitáveis de qualidade.

1 .  BRASIL tem 75% de analfabetos funcionais, diz Ibope. 9 set. 2005. Educacional. Disponível em: . Acesso em: 24 nov. 2010. 2 .  O ALFABETISMO juvenil: inserção educacional, cultural e profissional. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2012. 321

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Nesse contexto, surge o questionamento quanto à possibilidade de atender ao dever constitucional de prover a educação dos filhos sem, necessariamente, proceder à matrícula em instituições regulares de ensino, mas por meio do que será denominado neste trabalho de educação domiciliar – expressão que será empregada como forma de evitar a utilização desnecessária do estrangeirismo “homeschooling”.

2  EDUCAÇÃO

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expressão “educação” pode ser compreendida, num primeiro momento e a título de brevíssima introdução, a partir da análise de seu significado vernacular como “[...] processo para o desenvolvimento físico, moral e intelectual de um ser humano [...]” e também como “[...] conjunto de métodos empregados nesse processo; instrução, ensino [...]”.3 “Derivada do latim – educatio, do verbo educare (instruir, fazer crescer, criar), próximo de educere (conduzir, levar até determinado fim) -, a palavra educação sempre teve seu significado associado à ação de conduzir a finalidades socialmente prefiguradas, o que pressupõe a existência e a partilha de projetos coletivos”.4 Desde que, há milênios, o homem deu o primeiro de seus inúmeros passos no processo de vitória sobre a passagem do Tempo, adquirindo a capacidade de falar – e, dessa forma, de transmitir os conhecimentos adquiridos por uma geração à outra5 – a educação sempre teve destaque no conjunto de interesses de todas as comunidades humanas, desde as mais simples – nas quais a educação consistia, basicamente, na transmissão oral e empírica de técnicas de trabalho e tradições do grupo – até as mais sofisticadas, nas quais surgiram – fruto de um laborioso esforço intergeracional – os primeiros rudimentos de escrita, que pode ser definida como o registro físico das ideias e conceitos formulados por uma comunidade.6 Desse processo de criação, acumulação, transmissão e registro, sur-

3 .  HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. 4 .  MACHADO, Nilson Jose. Educação: projetos e valores. São Paulo: Escrituras, 2002. p. 20. 5 .  GRAY, John. Cachorros de palha. Rio de Janeiro: Record. 2009. p. 72-73. 6 .  ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 21. 322

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giu o que atualmente se denomina cultura7 – o conjunto de experiências e soluções encontradas por um grupo humano, visando à superação dos problemas enfrentados na vida cotidiana, a princípio transmitido de forma oral, mais tarde com o auxílio de símbolos escritos em substratos mais ou menos duráveis (pedra, argila, papiro etc.) – que tem na educação – entendida como “[...] conjunto de métodos empregados no processo de desenvolvimento físico, moral e intelectual do ser humano[...]”,8 – uma de suas mais importantes ferramentas. “A educação pode ser vista sob duas óticas: estrita e ampla; em sentido estrito, ou formal, tem por finalidade ‘o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho’, conforme explicitam o art. 205 da Constituição Federal e o art.2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação. É conhecida como ‘educação escolar’. Em sentido amplo, por sua vez, abrange ‘os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais, como dispõe o art.1º da Lei 9.394/96’”.9 A história brasileira propiciou as condições para que educação acabasse por ser associada, obrigatoriamente, com a ideia de educação formal ou escolar – resultante da ausência, para a esmagadora maioria das pessoas, de quaisquer recursos voltados a proporcionar formação intelectual fora das instituições formalmente organizadas – e imperceptivelmente tal percepção terminou por consolidar-se em toda a sociedade, terminando por repercutir nos textos normativos e nas normas oriundas de sua interpretação10, embora os textos legais também possam fazer referência, complementarmente, à educação informal ou, em sentido amplo, na medida em que a educação pode ser compreendida como um sistema “[...] que tem como objetivo o desenvolvimento das capacidades cognitivas do indivíduo”.11 7 .  ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 20. 8 .  HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004 9 .  PEREIRA, Tania da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 486. 10 .  PEDRA, Adriano Sant´Ana. Mutação constitucional: interpretação evolutiva da constituição na democracia constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p.26. 11 .  RABAÇA, Sandra, V.C. O direito de aprender vs. o dever de ensinar. Revista de Direito 323

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É justamente no campo da educação formal que surgem as questões às quais a presente pesquisa pretende responder, uma vez que é nesta modalidade de educação que se acumulam as dúvidas referentes aos limites dos deveres dos pais ou responsáveis, no tocante à obrigatoriedade de matrícula de crianças e adolescentes em estabelecimentos de ensino regular e quanto à possibilidade de ministração de educação domiciliar ou, em outras palavras, às formas de fazer frente ao dever de prover a educação – este, sim, de existência indiscutível, na medida em que se encontra expresso de forma objetiva no texto constitucional. A análise da Constituição Federal no Capítulo III, do Título VIII, especialmente o art. 205, (que estabelece ser a educação “[...] direito de todos e dever do Estado e da família [...]”, devendo ser “[...] promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho[...]”) aponta no sentido de existência da referida obrigação; o art. 206, por sua vez, ao estabelecer os princípios relativos à educação – merecendo destaque o disposto no inciso II que afirma a “[...] liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” – assim como o estabelecido no inciso III – que trata do “[...] pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas” – indica a existência de ampla liberdade na concretização da obrigação por parte de pais e responsáveis. Necessário destacar nesse contexto o fato de o art. 246 do Código Penal criminalizar a conduta de “[...] deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar [...]”, estipulando pena de detenção ou multa e de a doutrina, por sua vez, reconhecer, como elemento subjetivo do delito, o dolo – doutrinariamente definido por “[...] a vontade de concretizar as características objetivas do tipo [...]”,12 consubstanciado na vontade, livre e consciente, de deixar de prover a referida instrução primária, donde é possível concluir, sem qualquer dificuldade, que, nos casos de ausência de dolo, não haverá o crime – entendimento que vem sendo aplicado pacificamente pelos tribunais, formando uma maciça jurisprudência a respeito do tema. O texto do referido artigo não faz qualquer referência à matrícula em instituição de ensino, mas apenas à obrigação de prover a instrução primária do filho em idade escolar, sem fazer qualquer alusão à forma por intermédio da qual deve ser cumprida essa obrigação.

Não são raras, atualmente, as decisões judiciais que, verificando ausente o dolo específico, ou seja, a mencionada vontade de realizar de maneira consciente a conduta típica acrescida de uma finalidade especial de deixar propositadamente de prover a educação dos filhos em idade escolar, deixam de aplicar as penas previstas no dispositivo legal em situações em que, apesar de ausente o dolo, a instrução deixa efetivamente de ser provida, reconhecendo, dessa maneira, a existência do que se poderia denominar de justificativas para o descumprimento da obrigação. Resta, entretanto, necessário observar ser possível sustentar a imposição de restrições legais por meio de normas infraconstitucionais, desprovidas, no entanto, de natureza de dever fundamental e, portanto, na melhor das hipóteses, passíveis de alteração por decisão legislativa, como, a título de exemplo, o art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, cujo teor estabelece que “[...] aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores”; o art. 55 do mesmo diploma legal determina, de forma enfática e bastante clara, a “[...] obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino” (no que é secundado pela lei nº 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que em seu art. 6º, estabelece a determinação de maneira detalhada, afirmando ser “[...] dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos sete anos de idade, no ensino fundamental[...]”), sendo importante chamar atenção que o descumprimento do dispositivo constante do mencionado Estatuto é, nos termos do art. 249 da mesma lei, mera infração administrativa. Não é demais lembrar, neste ponto, que as questões enfrentadas na presente pesquisa resultam do advento do que é conhecido por sociedade moderna, na medida em que, até o seu surgimento, a educação esteve entregue, basicamente, a três instituições – comunidade, igreja e família – às quais competia preparar os indivíduos para a vida em sociedade por meio da transmissão, respectivamente, em apertada síntese, dos valores éticos, da educação moral e da capacitação profissional.13 O advento da modernidade, com sua proposta cada vez maior de especialização das atividades humanas, criou a separação mencionada – os campos da educação em sentido estrito e da educação em sentido amplo – correspondendo à família (e, em menor proporção, à igreja e a outras instituições análogas) a educação em sentido amplo, ou seja, a

Educacional, São Paulo, ano 2, v. 4, p. 193-203, jul./dez. 2011.

13 .  RODRIGUES, Neidson. Por uma nova escola: o transitório e o permanente na educação. São Paulo: Cortez Editora, 1993. p. 63.

12 .  ESUS, Damásio Evangelista. Direito penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 243. 324

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preparação do indivíduo para a vida em sociedade por meio da transmissão de valores éticos e morais, sendo reservada com exclusividade à escola – a par do papel de complementar a transmissão dos valores aqui citados – a função de concretizar a educação em sentido estrito, especialmente no que tange à transmissão de elementos destinados a possibilitar a qualificação profissional e a inserção no mercado de trabalho. Ocorre que o surgimento de novas ferramentas e tecnologias, acrescido do barateamento e popularização do acesso a elas e aliado ao elevado número de pessoas dispostas a partilhar por essa via seus saberes e conhecimentos, vem diariamente desafiando a exclusividade da escola em executar a mencionada tarefa de concretizar a educação em sentido estrito, condição que, tudo indica, tende a se consolidar com o aumento cada dia mais vertiginoso do volume de informação disponível e dos meios de acessá-la. Nesse contexto, natural que se discuta a validade de preservar o modelo de educação tradicional e também alternativas a ele, entre as quais pode ser alinhada a educação domiciliar.

3  O ENSINO DOMICILIAR

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uperada a questão relativa ao aspecto jurídico e demonstrado que não há qualquer dispositivo de natureza legal que vincule de forma indiscutível o direito à educação ao dever de matrícula nas instituições de ensino regular, resta analisar, mesmo brevemente, as questões extrajurídicas a respeito do assunto, buscando demonstrar a inexistência de fundamentos de outra natureza que impeçam que essa forma de educação seja regularmente empregada em nosso país.

3.1 Antecedentes

Em certo sentido, é possível afirmar, portanto, que a “educação familiar” – em destaque neste ponto apenas para ressaltar que a educação não ocorria exclusivamente no seio da família, embora esse fosse um espaço privilegiado para sua concretização – foi regra durante a maior parte da história humana, enquanto a educação centrada primordialmente na escola é uma realidade mais recente.15 “O ensino fundamental obrigatório é um produto tanto da Revolução Francesa, com seu ideal de promover a igualdade de oportunidades de ascensão social e de acesso ao trabalho produtivo, quanto da Revolução Industrial, com sua necessidade de impor aos indivíduos uma conduta social padronizada. Como por outros já foi lembrado, entre nós a freqüência obrigatória da escola básica jamais saiu do papel, ou seja, do plano jurídico-constitucional, para a realidade social concreta. Contudo, em que pese às críticas que a ela se fazem, ainda não se encontrou um instrumento alternativo de ajustar as massas à sociedade industrial, antes, e ao mundo globalizado, agora. É por isso que a alfabetização, que é a essência do ensino fundamental, mais do que o domínio neutro e apolítico das técnicas de ler e escrever, é um ‘formidável instrumento de controle das relações sociais’ e de transmissão da cultura”.16 Durante boa parte da história do Brasil, o ensino domiciliar foi admitido e considerado uma opção para as famílias abastadas, o que talvez explique a indisfarçável má vontade com o instituto, em razão de suas raízes – ao menos no contexto brasileiro – elitistas e segregadoras. “O Brasil do século XVIII entendia o direito à educação como pertencente aos pais, reflexo da estrutura patriarcal que entendia o genitor como detentor absoluto das personalidades dos membros de sua família. De acordo com essa concepção, os pais poderiam optar pela escola pública ou pela particular, assim como decidir se o seu filho teria o direito de frequentar a escola”.17 Seja como for, ainda que “aos trancos e barrancos”, o fato é que a educação domiciliar foi responsável pela formação cultural de signi-

Como já mencionado, a ideia de educação em instituições especificamente criadas com essa finalidade é relativamente recente na história humana, existindo consenso de que, antes disso, a educação ocorria por meio de uma atuação articulada entre família, sociedade e instituições religiosas.14

16 .  BOUDENS, Emile. Ensino em casa no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2012.

14 .  RODRIGUES, Neidson. Por uma nova escola: o transitório e o permanente na educação. São Paulo: Cortez Editora, 1993. p. 63.

17 .  VIEIRA, Gláucia Maria Pinto. Limitação à autonomia privada parental na educação dos filhos. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2012.

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15 .  RODRIGUES, Neidson. Por uma nova escola: o transitório e o permanente na educação. São Paulo: Cortez Editora, 1993. p. 63.

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ficativa parcela da população brasileira, num período em que a estrutura educacional, pública ou privada, era praticamente inexistente, excludente – na medida em que as poucas escolas que existiam não eram destinadas aos componentes de todos os estratos sociais, mas apenas aos mesmos abastados, que podiam optar por educar os filhos em casa – e até mesmo a ideia de acesso à educação tinha indiscutível conotação elitista. Se, durante parte da história brasileira, a educação formal esteve a cargo das organizações religiosas – com destaque para os jesuítas, que desempenharam esse papel até sua expulsão do Brasil – parece indiscutível que, na maior parte do tempo, a educação foi negligenciada e que apenas a partir da década de 1930, após a edição do “Manifesto de 1932”, o Brasil buscou, pela primeira vez em sua história, construir um sistema educacional fundamentado em uma “[...] autêntica e sistematizada concepção pedagógica [...]”,18 primeiro passo na direção da criação de uma estratégia de longo prazo, buscando a massificação e a popularização do acesso ao ensino formal, requisito indispensável para o abandono do modelo de ensino domiciliar, que se tornaria, ao menos em tese, tanto mais desnecessário quanto maior fosse a oferta de vagas na rede regular – pública ou privada.

3.2 Atualidade Atualmente, a opção de educar em casa não está mais fundamentada na inexistência de vagas em instituições regulares de ensino ou numa pretensão de determinados grupos sociais de segregar seus filhos, impedindo seu contato com membros de grupos considerados inferiores ou com os quais o convívio seja considerado por qualquer motivo indesejável, mas sim na esperança de oferecer às crianças e adolescentes uma educação de melhor qualidade e fora dos moldes pedagógicos adotados pelas instituições regulares.19 As principais críticas ao modelo de ensino regular adotado vão desde a degradação do ambiente escolar, a incapacidade das instituições de explorar as melhores qualidades individuais de cada

um num ambiente em que a atenção do professor deve ser obrigatoriamente dividida entre todos os alunos, a aplicação de um modelo padronizado de ensino que não respeita particularidades dos indivíduos,20 até a exposição ao “bullying”, à violência em geral e a comportamentos e hábitos considerados, por qualquer motivo, inadequados pelos pais.21 Embora as pesquisas consultadas para a elaboração deste trabalho se refiram a outros países que não o Brasil, parece fora de dúvida que as mesmas razões que estimulam a opção pelo ensino domiciliar em terras estrangeiras podem ser usadas como justificativa pelos pais e responsáveis brasileiros, na medida em que são, público e notoriamente conhecidos, problemas análogos nas escolas brasileiras, bastando para tanto lembrar, a título de exemplo extremo de violência, do caso ocorrido em uma escola pública localizada em Realengo, no Estado do Rio de Janeiro, em abril de 2011.22

3.3 Objeções As principais objeções que são apresentadas em relação ao ensino domiciliar não são de aspecto jurídico – embora estes sirvam para reforçar os argumentos dos que pretendem manter fechada essa via de acesso à educação por meio da manutenção de empecilhos de ordem jurídica –, mas da área pedagógica e sociológica, com especial destaque para a alegação de prejuízos à socialização dos estudantes. “O projeto que regulamenta o ensino domiciliar coloca em xeque a escola como mediadora do processo de aprendizagem. Esse trabalho demanda um ensino sistemático e metódico de conhecimento e profissionais especializados para organizar meios adequados à formação [...]. O objetivo é garantir a educação escolar apropriações de bens culturais e a formação de sujeitos que respeitem as diferenças no que tange à diversidade de raça, credo, gênero, etnia, opção sexual, nível socioeconômico, etc. [...]. A escola é, sem dúvida, lugar de diferenças e, 20 .  NOGUEIRA, Fernanda. Condenado pela justiça, casal de MG mantém filhos fora da escola. G1. São Paulo, 16 fev. 2011.

18 .  GHIRALDELLI JUNIOR, Paulo. Filosofia e história da educação brasileira. São Paulo: Manole, 2003. p. 31-32.

21 .  GOULART, Frederico. Pais e mestres: eles estudam na própria casa. A Gazeta. Vitória, 29 jul. 2012.

19 .  BAUMAN, Kurt J. Home schooling in the United States: trends and characteristics. Disponível em: . Acesso em: 2 ago. 2012.

22 .  SECRETÁRIO de saúde do Rio confirma 13 mortes em tiroteio em escola. 7 abr. 2011. G1. Disponível em: < http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/04/secretario-de-saude-do-rio-confirma-13-mortes-em-tiroteio-em-escola.html>. Acesso em: 2 ago. 2012.

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portanto, local privilegiado de aprendizagens de conhecimento e de convívio com diferenças e com a pluralidade de ideias”.23 Descontado o fato de que nas escolas brasileiras já ocorre uma segregação social, oriunda da opção por parte dos mais abastados por matricular seus filhos em escolas particulares – muitas delas completamente inacessíveis, em virtude dos valores cobrados a título de mensalidades, à esmagadora maioria da população (nas quais a convivência fica restrita aos membros da mesma “aristocracia” local) situação que, salvo engano, não parece preocupar os detratores do ensino domiciliar – o que há é uma preocupação de que essa modalidade de educação termine por produzir pessoas incapazes de se relacionar socialmente, insensíveis às demandas alheias, individuais e coletivas, e incapazes de aceitar conviver pacificamente com valores e comportamentos diversos daqueles existentes no meio em que foram criadas e educadas. Embora sejam preocupações legítimas, são, de acordo com dados objetivos colhidos em países que adotam, já há algum tempo e de forma sistemática, a educação domiciliar, infundadas, existindo claros indícios de que essa modalidade de educação não prejudica o estudante, seja no âmbito acadêmico, seja no âmbito de socialização e convívio em comunidade, de acordo com o que se pode deduzir de análise de pesquisa realizada no Canadá, onde a prática é adotada há mais de uma década e meia24 e da qual é possível deduzir que indivíduos submetidos à educação domiciliar atingem padrões aceitáveis – em muitas situações, sensivelmente acima da média – nos quesitos relativos ao grau de educação formal obtido, ocupação profissional, ganhos financeiros, participação em atividades políticas e cívicas, estabilidade familiar e grau de satisfação geral com sua condição de vida.25 Dessa forma, é possível concluir que, a par da inexistência de argumentos jurídicos dotados de suficiente densidade para sustentar a vedação apriorística da possibilidade de adoção do modelo de ensino domiciliar na realidade brasileira – dependendo sua implementação de simples edição de norma jurídica, regulamentando-a –, não há também argumentos de ordem sociológica ou pedagógica suficientes para considerar descabida a opção. 23 .  GOULART, Frederico. Pais e mestres: eles estudam na própria casa. A Gazeta. Vitória, 29 jul. 2012. 24 .  VAN PELT, Deani A. Neven; ALLISON, Patricia A.; ALLISON, Derek. J. Fifteen years later: home-educated Canadian adults. Canadian Centre for Home Education. 2009.

3.4 Revolução tecnológica Embora os argumentos apresentados até este ponto já sejam suficientes para justificar ao menos a tolerância do ensino domiciliar, é possível – e também necessário – acrescentar mais um elemento a robustecer essa linha de pensamento, ligado às recentes e vertiginosas transformações observadas no campo das comunicações e do acesso às informações cujos impactos são perceptíveis na vida cotidiana e têm o potencial de influenciar de forma radical a educação – tanto genericamente considerada, quanto especificamente a questão do ensino domiciliar. “Não há dúvida de que vivemos cada vez mais numa sociedade conectada pelas redes de comunicação e de informação. Com a internet móvel proporcionada pelos telefones celulares e computadores, tornamo-nos os nós da rede, configuramos e reconfiguramos a web. As ferramentas da chamada Web 2.0 (Blog, Orkut, Facebook, Flickr, etc.) permitem aos usuários deixar de ser apenas consumidores de informação, para também produzi-la. As pessoas hoje escrevem, fotografam, filmam, compõem textos com imagens, áudio e vídeo e compartilham suas produções, às vezes sem o menor pudor ou com valores estéticos duvidosos, sem se importar muito com isso: estão mais interessadas na manutenção de suas redes de relacionamento, na expressão de seus pensamentos, ideias e sentimentos. Enfim, as pessoas fazem, hoje, os mais variados usos sociais da escrita no meio digital extrapolam as propostas, mesmo as mais arrojadas, das aulas de redação e leitura das escolas. São inúmeras as comunidades de prática, nas quais seus participantes trocam informações, ensinam e aprendem uns com os outros”.26 Se, no passado, a escola formal tinha o papel de única mediadora do saber e de concentradora do conhecimento, atualmente esse papel vem sendo gradativamente erodido em função da rápida disseminação de informação na rede mundial de computadores, que, num ritmo cada vez mais vertiginoso, vem sendo disponibilizada por meio de diferentes tecnologias, plataformas e modelos, tornando a possibilidade do autodidatismo uma realidade ao alcance de qualquer pessoa dotada dos instrumentos necessários para a compreensão dos temas que decida estudar.

25 .  VAN PELT, Deani A. Neven; ALLISON, Patricia A.; ALLISON, Derek. J. Fifteen years later: home-educated Canadian adults. Canadian Centre for Home Education. 2009.

26 .  GOMES, Luiz Fernando. Redes sociais e contracultura: a escola fora da escola. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2013.

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Não é exagerado afirmar que, atendidos os requisitos mínimos de alfabetização – compreendida como a capacidade real de ler e entender um conteúdo escrito em vernáculo (missão na qual, não custa lembrar, a escola formal vem falhando dramaticamente em nosso país) – qualquer pessoa é capaz, nos dias de hoje, de obter um grau bastante satisfatório de informação a respeito dos mais variados assuntos, suficiente para permitir a compreensão dos elementos básicos referentes a um determinado tema pesquisado, a busca orientada por novas fontes de conhecimento dotadas de qualidade acadêmica e o diálogo com estudantes mais avançados, num processo cumulativo de conhecimento com potencial para atingir índices bastante elevados de qualidade. É possível afirmar atualmente que, mais importante que a frequência a aulas presenciais é o papel de orientação das pesquisas que pode ser desempenhado por bons “professores” – que, dentro do contexto de autodidatismo inerente ao modelo de ensino domiciliar, nada mais são que estudantes mais avançados de determinados conteúdos. Nesse novo contexto de acesso democratizado e descentralizado à informação, parece contraditório e contraproducente querer reafirmar o papel central da escola no processo de formação pessoal e acadêmica, especialmente para aqueles dotados de qualidades capazes de permitir o autodidatismo e instalados em ambientes que estimulem essa forma de aprendizagem. “Em se opondo a essa atitude, Rilke traça os princípios de uma educação escolar que merecesse o nome: ‘Cada pessoa deveria ser conduzida apenas até o ponto em que é capaz de pensar sozinha, trabalhar sozinha, aprender sozinha’ (Rilke, 2007, p. 126). Ou seja, a escola deveria estar menos preocupada em ensinar coisas aos outros do que em ajudar a encontrar o lugar onde o pensar do outro possa se fortalecer a si próprio, para que possa aprender por si o que ninguém pode lhe ensinar; a escola deveria estar mais atenta a deixar que a infância se faça a si própria em vez de pretender fazer da infância algo predeterminado, diferente do que ela é”.27 Obrigar a presença na escola regular representa para tais pessoas um injustificado desperdício de tempo e talento em um projeto pedagógico desprovido de atrativos e qualidades capazes de 27 .  KOHAN, Walter Omar. Vida e morte da infância entre o humano e o inumano. Educ. Real., Porto Alegre, v. 35, n. 3, p. 125-138, set./dez., 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2013. 332

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justificar o sacrifício de parte considerável do tempo que poderia ser empregado de forma mais produtiva em um projeto de ensino domiciliar, no qual, a par da obtenção de habilidades de comunicação e expressão – que poderia constituir, entre outras, parte de um currículo mínimo a ser respeitado pelos que optassem pelo ensino domiciliar – haveria a liberdade de pesquisar os temas considerados mais relevantes para sua formação.

4  CONCLUSÕES

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título de conclusão, é possível afirmar, a par da inexistência de qualquer dispositivo constitucional que estabeleça a obrigatoriedade da matrícula de crianças e adolescentes em instituições de ensino regular, como única via para que pais ou responsáveis atendam ao seu dever de proporcionar a educação formal a crianças e adolescentes, a existência de deveres de natureza infraconstitucional, oriundos de lei – a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente – não havendo qualquer empecilho à alteração desses e de outros diplomas legais que também criem embaraços à adoção de mais essa modalidade de ensino. Sendo assim, inexistindo o dever constitucional, ou se está diante de um caso de inconstitucionalidade das leis – na medida em que a lei cria um dever (que é instrumento de diminuição do campo das liberdades individuais) não previsto constitucionalmente – ou, na melhor das hipóteses, de leis que podem, sem qualquer problema de ordem técnicojurídica, ser alteradas, visando a abrir caminho para a adoção formal do ensino domiciliar em nosso país, bastando, para tanto, a propositura de projeto de lei que regulamente essa prática e estabeleça a forma de fiscalizar os resultados de sua implementação, mediante, por exemplo, a submissão dos estudantes a avaliações periódicas de desempenho, com base, também a título de exemplo, no conteúdo constante do programa ministrado aos alunos matriculados no ensino institucionalizado. Por outro lado, parece anacrônico e contraproducente que, em tempos de acesso rápido, relativamente barato e maciço a fontes de informação sobre os mais variados temas, permaneça a ideia da escola formal e institucionalizada como único ambiente capaz de propiciar adequada formação pessoal e cívica a uma geração que, mais e mais, enxerga a es-

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cola como incapaz de atender aos seus anseios de conhecimento sobre os mais variados temas – muitos dos quais ignorados solenemente pelas instituições e órgãos governamentais de promoção da educação – e também incapaz de atingir satisfatoriamente os objetivos mais singelos que dela se espera, como, entre outros que poderiam ser mencionados, o domínio satisfatório das habilidades de comunicação e expressão. Finalmente, as objeções de ordem extrajurídica, referentes a um defeito de origem do modelo de educação domiciliar que predisporia a formação de pessoas com graves problemas de relacionamento, incapazes de conviver com a diversidade de opiniões, comportamentos e opções, tendentes ao egoísmo e individualismo, não se sustentam quando confrontadas com pesquisas realizadas em países em que esse modelo de ensino é adotado e que dão notícia de que o ensino domiciliar propicia a formação de indivíduos bem ajustados e, tanto quanto possível, portadores de alto grau de satisfação pessoal, sendo possível afirmar que apenas, em primeiro lugar, o desconhecimento e, em segundo lugar, o preconceito, sustentam argumentos contrários à formalização do ensino domiciliar em nossa realidade.

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19 a construção social do Criminoso: um diálogo entre o direito penal e a psicanálise a partir da perspectiva dos direitos humanos Jovacy Peter Filho Filipe Knaak Sodré

1  A construção da diferença e o surgimento do estrangeiro/estranho

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izer que os seres humanos são diferentes entre si nada acresce ao empreendimento científico. Isso porque a diferença pura e simples não é nem nunca será uma condição, em si mesma, nociva. Pelo contrário, se bem trabalhada, a diversidade pode acarretar crescimento social, moral e intelectual, possibilitando ao indivíduo a expansão de suas fronteiras cognitivas em direção ao desejo de conhecer e compreender uma realidade que não lhe é própria. As diferenças, nesse sentido, acabam se tornando o ingrediente necessário para o desenvolvimento do sentimento de tolerância1 para com os demais, e neste aspecto não há como levantar quaisquer críticas sobre o conceito. Na verdade, não é o próprio conceito de diversidade que preocupa, eis que a pluralidade é um atributo louvável e necessário e, nos dias

1 .  Em interessante escrito no qual dissertam acerca da insuficiência do termo tolerância, Mario Sergio Cortella e Yves de La Taille (Nos labirintos da moral. Editora Papirus. São Paulo: 2005. pg 28-29) ponderam: “(...) eu me rebelo porque acho que a palavra tolerância produz quase um seqüestro semântico, pois quando alguém a usa está querendo dizer que suporta o outro. Afinal, tolerar é suportar.” Mais à frente, e dando continuidade a este mesmo tema, agora com ênfase na indiferença que o termo tolerância carrega, pontificam os autores: “Eu o suporto, agüento. Você não é como eu, aceito isso, mas continuo sendo eu mesmo. Não quero ter contato, só respeito a sua individualidade”. 335

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atuais, fundamental para a construção de sociedades democráticas e solidárias. O problema está no tratamento do conceito, isto é, na forma como os indivíduos efetivamente – e não apenas no plano retórico – reconhecem e lidam com um cenário de diversidades cada vez mais evidente; enfim, como conduzem esta situação real, tentando extrair dela os acréscimos já mencionados. Da mesma forma que não é novidade a constatação de diferenças interindividuais, também não o é o fato de que os homens sempre se depararam com a dificuldade de extrair desse conceito os elementos que, em sua inteireza, poderiam torná-los seres mais virtuosos perante os outros, importando na própria construção de si mesmo, uma vez que, para o filósofo e psicólogo suíço Jean Piaget2, a construção (moral) de si mesmo passaria, indubitavelmente, pelo processo de socialização enquanto ato de cooperação. Do contrário, o indivíduo conservaria um egocentrismo impeditivo de possibilitar o conhecimento próprio e, em conseqüência, do mundo exterior. Neste contexto, as diversidades sempre foram conduzidas enquanto um significante de algo desconhecido3, um temor daquilo que difere dos demais e que, no plano da consciência, não está no ser e por isso é hostil, exatamente pelo fato de ser estranho. Como se notará, o “estranho” é mais familiar do que se imagina, e está tão perto que chega a causar angústia. Catarina Koltai4, traçando um percurso a respeito das primeiras acepções psicanalíticas de corpo estranho e estrangeiro, assevera que o termo já aparecia no texto freudiano Estudos sobre histeria (1893), ao que arremata a autora: “Freud e Breuer prosseguem afirmando que a histeria se forma por meio do recalque de uma idéia intolerável, como modo de defesa. A representação recalcada permaneceria sobre a forma de um traço mnésico tornando-se, então, pelo próprio recalque, a causa dos sintomas mórbidos. Tudo isso para concluir que os materiais patógenos desempenham o papel de um corpo estranho, cujo tratamento não poderia ser

feito por extirpação. Dever-se-ia, diferentemente, buscar a cessação da resistência para permitir a livre circulação da idéia recalcada por um caminho até então barrado.” Conforme já salientado, o corpo estranho sempre esteve dentro de nós, e mesmo que inicialmente apontado como um elemento patógeno, não era passível de ser extirpado, eis que se encontrava enraizado no psiquismo humano5. Ou seja, era o estranho algo repleto de sentido, fonte, por vezes, de um sofrimento do qual não se tinha livre acesso, e talvez por isso, erigia-se como necessário a noção de aceitação e compatibilização deste corpo aflitivo. Intolerância, recalcamento do corpo estranho e sofrimento faziam parte de um contexto singular, seguindo as trilhas da psicanálise e, diante da impossibilidade de se extirpar o corpo estranho, a única solução recomendada estava voltada à cessação da resistência. A proposta é de extrema relevância: dever-se-ia abandonar as armas erigidas diante do corpo estranho (o estrangeiro, aquele que é rotulado como “outro diverso do si mesmo”), a fim de compreendê-lo com parte integrante do próprio espectador, de sua projeção e do papel simbólico que oferta na construção do real. È dizer: o outro somente é outro quando se lhe atribui tal alcunha, traço este que não é um dado em si mesmo, senão que uma construção a ele atribuída6. Esse dilema (viver com o estranho que angustia não podendo, sem maiores perdas, se livrar dele) muito bem se coaduna com a leitura social que buscamos empreender. Todavia, uma questão de fundo se coloca. É possível transmudar essa análise metapsicológica para o contexto social? A psicanálise se permite dialogar em outros planos que não aqueles meramente individuais?

2 . Yves de La Taille (Desenvolvimento do juízo moral e afetividade na teoria de Jean Piaget. In: La Taille, Oliveira & Dantas. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. Summus Editorial. São Paulo:1992, pg. 67), debruçando-se sobre a tomada de consciência na obra de Jean Piaget, aduz que: “(...) tal tomada de consciência não depende apenas de uma ‘vontade’ inata do sujeito. Antes são solicitadas pelo meio social, contanto que as relações deste meio sejam de cooperação.”

6 .  Renata Conde Vescovi, psicanalista e membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória/ES, em debate realizado no Cartel (grupo de estudos) “Psicanálise e Direito”, no dia 18 de outubro de 2013, ofertou uma importante contribuição ao tema ao afirmar que: “Z. Freud, no texto intitulado unheimleich abordou frontalmente esta questão. Em alemão un-heimleich representa aquilo que é estranho/familiar. Freud então desenvolve este artigo para mostrar que aquilo que nos causa estranhamento na verdade é o que temos de mais familiar. Projetamos no outro a  nossa própria violência e  o chamamos de inimigo/ outro. Esta prática inerente ao mal estar na civilização  tem ultrapassado cada vez mais os limites de um pacto simbólico necessário para vivermos nossas conquistas democráticas, o que tem nos levado cada vez mais a praticas de segregação”.

3 .  Zygouris, Radmila. De alhures ou de outrora ou o sorriso do xenófobo. In: Koltai, Catarina (org). O estrangeiro. Escuta/Fapesp. São Paulo: 1998, pg. 196. 4 .  Koltai, Catarina. Política e psicanálise. O estrangeiro. Escuta. São Paulo: 2000, pg. 79-80. 336

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5 .  Koltai, Catarina. Op. cit. pg. 80-81.

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2  Psicanálise e contexto cultural: uma proposta para o dilema

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preocupação ora levantada não é nova, mas, nem por isso, ainda hoje deixa de guardar importância lapidar junto aos grandes centros de estudo que se enveredam pela intersecção científica entre psicanálise e política. Enfrentando a questão já nas primeiras páginas de sua obra, Catarina Koltai tratou de dirimir a querela7, abordando diretamente a questão do estrangeiro: “Abordar o conceito de estrangeiro como conceito limite entre psicanalítico e político, permanecendo atenta ao lugar que ocupa em cada um desses discursos, assim como aos seus cruzamentos possíveis, me permitirá abordar o mal-estar na civilização. (...) O social é múltiplo e essa pluralidade entra em tensão com o particular da subjetividade de cada um.” Muito valiosa é a contribuição de Jurandir Freire Costa8, a quem não poderíamos deixar de mencionar, especialmente pelo pioneirismo e pela grandeza de sua obra. Neste sentido, pontuou o psiquiatra e psicanalista carioca: “Quando decidimos estudar a questão da psicoterapia de grupo, sabíamos que o risco era grande. O solo era movediço. Mesmo assim decidimos enfrentá-lo, por várias razões. Razões da razão e razões do coração. As razões da razão, as razões intelectuais, são mais fáceis de ser explicadas e, acreditamos, entendidas. Tratava-se de saciar uma curiosidade que, bem sabemos, é insaciável. Até onde pode ir a psicanálise? Como se comporta ela, extramuros? Será que a teoria de Freud só sai de casa para fazer turismo e trazer de volta impressões de viagem? Ou será que numa dessas excursões, quem sabe, ela volta impressionada pela paisagem nova?” Saliente-se que para o esforço aqui empreendido importa compreendermos a natureza psíquica da relação com o outro, bem como algumas formas de resolução de possíveis conflitos, tendo em vista o posterior fornecimento e subsídio de informações ao atual estágio em que trafega o direito penal. Desta feita, a primeira ponderação que deve ser considerada é a respeito do conceito de estrangeiro que estamos manejando. Conforme

ponderado por Catarina Koltai9, foi a partir do século XVII que o termo estrangeiro aparece na linguagem. A partir daí, o termo deixa de representar unicamente alguém advindo de outros territórios além das fronteiras, alguém vindo de outro país, para se tornar mais recentemente um lugar de exclusão interna10. O recorte sobre a figura do estrangeiro, assim, transcende uma acepção ligada à nacionalidade ou a qualquer outro elemento do Estado. Vale-se do sentido mais vulgar e amplo do termo, a fim de utilizá-lo como elemento ou circunstância que diferencie qualquer outro de si mesmo, ou melhor, trata-se de um termo capaz de cindir o corpo social ao meio11: de um lado se tem o “nós”, parcela do qual o si mesmo supostamente faz parte juntamente com aqueles em que identifica/projeta um laço de semelhança; de outro lado tem-se um “eles”, considerados como “outros” (outlanders ou ausslander), ou seja, grupo de pessoas do qual o si mesmo não se projeta nem se identifica, e pelo qual surgem os sentimentos de ambivalência12. “Sempre existiram e ainda existem lugares no mundo onde homens, mulheres e crianças são vistos como ‘estrangeiros’ por outros e, por isso mesmo, condenados à morte ou a uma sobrevivência miserável, mais maltratados que animais.”13 A indagação que surge neste ponto é a seguinte: qual o sentimento produzido em relação a este estrangeiro que nos é tão próximo? Quando e como é formado este sentimento? Para respondermos estas e outras questões, nos valeremos das lapidares lições da psicanalista francesa Radmila Zygouris. Segundo a autora, o sentimento de aversão ao outro, 9 .  Koltai, Catarina. Op. cit. pg. 22. 10 .  “Existem, também, formas suaves de rejeitar e excluir de ‘nossa casa’ o outro, o estrangeiro. Seja ele estrangeiro ao país, estrangeiro pela cor de pele, religião, miséria, loucura ou doença. Existem, seguramente, diferenças de nível e natureza. Existem, seguramente, diferenças de nível e natureza entre um racismo virulento e o desejo manifesto dos privilegiados em evitar os espetáculos da miséria. Fala-se muito pouco da miséria em nossos doutos discursos. Será que não poderíamos dizer que o estrangeiro por excelência nos meios da psicanálise é o pobre, o deserdado, tanto pelo dinheiro quanto pela cultura?” (Zygouris. Op. Cit. pg. 194). 11 .  Na verdade, o termo “ao meio” não é representativo de quantidade, senão que é marca de ruptura. Em verdade, os campos do “nós” e do “eles” não podem ser rigidamente medidos, eis que a complexidade da teia social exige que os homens transitem constantemente em cada uma dessas esferas, apesar deste trânsito se encontrar cada dia mais comprometido, especialmente pela escassez do diálogo e da cooperação entre os campos.

7 .  Koltai, Catarina. Op. cit. pg. 24.

12 .  Cf. Baumann, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Jorge Zahar. Rio de Janeiro: 1999.

8 .  Costa, Jurandir Freire. Psicanálise e contexto cultural. Campus. Rio de Janeiro: 1989, pg. 1.

13 .  Zygouris, Radmila. Op. Cit. Pg. 196.

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a alguém que nos é diferente ou não nos é familiar (o que ela denomina de “xenofobia ordinária”), é algo aprendido e apreendido do mundo: “O bebê, ao nascer, não rejeita o estrangeiro, nem é xenófobo, mas acaba por se tornar com o tempo14, e tal sentimento surge a partir do momento em que a criança aprende a diferenciar os rostos e faces mais presentes e comuns, como da mãe e do pai, de outros não tão presentes.” Assim, “o medo e a rejeição do não familiar aparecem após o reconhecimento da própria imagem no espelho, portanto, após a constituição do narcisismo secundário. A xenofobia se torna possível com o reconhecimento do ‘eu’ e se desenvolve com a constituição do ‘nós’.”15. Noutras palavras, arremata a autora, em alguma fase da vida, e em graus diferenciados de intensidade, fomos apaixonadamente xenófobos. É dizer: o desconforto da diversidade teria raízes numa não aceitação de si mesmo perante os demais; não é propriamente o outro que inquieta o espectador, mas o desassossego irrompe quando as dessemelhanças que se percebe são reforçadas socialmente como elementos/valores de que o “si mesmo” deve fugir, se afastar. E, não raro, essa fuga se relaciona com o temor na própria identificação com a diversidade que se vitupera. Desta feita, a xenofobia – que no caso presente é figura que marca a rejeição ao diferente do si mesmo, a alguém com quem não se traça relações de identidade e semelhança – tem a sua origem no sentimento infantil de medo16. O medo primitivo, raiz das sensações de desamparo e insegurança, acaba por se configurar no fio condutor da construção social do criminoso, tido como um alguém que não satisfaz os standards culturalmente estatuídos e, por isso, deve ser observado sob todas as cautelas. Há, na rotulação negativa do outro, uma estratégia em torná-lo depositário daquilo que nos é insuportavelmente comum, mas que precisa ser negado, expurgado. Como ressalta Alvino Augusto de Sá17, “o criminoso passa a ser um concentrado de todos os males da humanidade, e a sociedade tem necessidade urgente de puni-lo severamente, prendê-lo, segregá-lo, pois assim estará punindo o que existe de ruim dentro dela (e assim ‘sa14 .  Zygouris, Radmila. Op. Cit. Pg. 194.

15 .  Zygouris, Radmila. Op. Cit. Pg. 194. 16 .  Todavia, ressalta Radmila Zygouris que a noção de estrangeiro, diferente, possui um duplo registro subjetivo, inscrito no tempo e no espaço, e representado pelos afetos e pelas pulsões. Neste jogo, a angústia e a agressividade seriam, respectivamente, seus aspectos essenciais. ( Op. Cit. Pg. 197). 17 .  Sá, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 2ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 140. 340

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tisfazendo’ o superego) e estará expulsando e mantendo longe de si, ‘sob ferros’, todas as suas coisas ruins. Permanecerá dentro dela somente o que é bom, formando-se então dois mundos distintos e separados: o dos bons (cidadãos justos e honestos) e o dos maus (‘bandidos’). A sociedade tem muito medo de manter dentro dela, como um problema seu, os seus membros por ela tidos como criminosos, não só pelo perigo real que eles possam representar (o que pode ser uma verdade da parte de um grupo deles), mas também pelo risco que ela corre de vir a se deparar com o crime como uma realidade inerente a ela, a todos os seus membros.” Assim, o criminoso exerceria um papel fundamental na engrenagem social: seria ele o destino de sentimentos e ideais comuns, mas forjadamente negados; encarnaria, portanto, a figura do anti-herói, aquele que se odeia, mas que, em torno do qual, há uma dose de admiração velada, não dita, mas existente. Isso ajudaria a compreender o interesse comum que se observa em torno de temas afeitos ao crime e ao criminoso, quase que apontando para um elemento simbólico comum que não pode ser assumido, sob o risco de ser com ele confundido. Há um medo, portanto, de se reconhecer tão criminoso quanto aquele que é apontado como tal, e daí a necessidade de um depositário do que nos é insuportavelmente comum. É exatamente o medo18 ponto central do processo desagregador entre o “nós” e o “eles”, entre os nativos e os estrangeiros. Será o medo o elemento que marcará a construção dos rótulos de selvagens, de criminosos, de diferente (enquanto alguém potencialmente nocivo e em confronto com os interesses estabelecidos). Medo manejado enquanto busca de uma certeza ideal, de uma estabilidade perdida, ou seja, um placebo de segurança social que impõe sanções antes mesmo da ocorrência dos fatos e, neste sentido, circunscreve o perigo desconhecido (móvel do medo e da insegurança perenes) em algo conhecido e bem delimitado. A sociedade pós-moderna, marcadamente insegura e alicerçada na liquidez decorrente do medo19, passou a buscar vias de solução na personificação do inimigo, na construção do outro enquanto aquele ser que é diferente e nocivo, um transgressor em potencial das normas sociais. Neste sentido, o discurso de construção do estrangeiro, do inimigo, coincide com o grande rol de excluídos do sistema capitalista, isto é, aqueles que não fazem parte do grupo de consu18 .  Vale revisar o interessante estudo acerca do sentimento de medo na pós-modernidade, realizado pelo sociólogo polonês Zygmunt Baumann. Cf. Baumann, Zygmunt. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janwiro: Zahar, 2008. 19 .  Utilizando como referencial teórico a obra já citada de Z. Bauman. 341

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midores devidamente inseridos e domesticados, pacíficos e passivos perante as normas de dominação, bem como fiéis cardeais de uma ordem que apesar de ser-lhes pouco particular, paradoxalmente é assegurada como única salvaguarda possível. A ambivalência presente no seio da sociedade pós-moderna tem sido diariamente intensificada, ao passo que o distanciamento entre o “nós” e o “eles”20 tem engendrado a criação de rótulos identificatórios, quase sempre atribuídos ao grupo oposto ao do si próprio enquanto instrumento de qualificação negativa. Tal situação pode ser comprovada quando crianças e adolescentes de um determinado grupo distinguem os outros pela região onde residem, pelo estilo de música que apreciam, pelos hábitos que cultivam e, principalmente, pelos objetos que adquirem enquanto consumidores. No âmago de uma sociedade do tédio e da vaidade21, onde a integração no “nós” apresenta como critério decisivo a intensidade da inserção no mercado de consumo, sendo dirigida pelos valores de vaidade que tal situação engendra (valores tidos como entediantes, pois que abstraem o ser, o plano da construção interior, para sobrelevar o ter, enquanto mera exteriorização de imagens, sem a necessária reflexão das condições de possibilidade deste status). Neste sentido, todos aqueles que não atendem a determinados padrões de consumo afinado às regras de mercado e ordenados conforme as normas e padrões da “boa cidadania” e da etiqueta social (os “eles”) serão peremptoriamente alocados numa zona cinzenta de transição, na qual a transição entre o rótulo e a reclusão não basta de uma questão de conveniência e oportunidade.

20 .  Mister asseverar que a relação entre os conceitos de “nós” e “eles” marca uma verdadeira via de mão-dupla: todos, absolutamente todos, são “nós” e “eles” para uns e para outros, e tal configuração está sempre na dependência do ponto de vista do observador , cujo marco se dá em face de um grupo que lhe é próximo e familiar (“nós”), e assim é adotado como referência. Tudo aquilo que de certa maneira se aproxima das características desse núcleo se enquadra ao conceito de “nós”, ao passo que a diferença passa a formatar o conceito de “eles”. É certo que a sociedade ocidental adotou um padrão de ação que surge como cartão de fidelidade aos que pretendem ser considerado um “nós” dessa cultura. Por isso, quando aqui utilizarmos genericamente esse pronome estamos a nos referir a este grupo formado enquanto massa, e cuja estrutura, funcionamento e regras acaba por sofrer um controle mais presente de uma “mão-invisível”diligente. Estar neste grupo significa assumir suas regras e seus valores maiores (notadamente o consumo), assim como impõe a cessão de considerável parcela de autonomia, a ponto de prevalecer o caráter heterônomo num grupo que se expressa a partir de uma liberdade apenas retórica. 21 .  Cf. De La Taille, Yves. Formação ética: do tédio ao respeito de si. Artmed. São Paulo: 2008. 342

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3  Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo: a construção simbólica do criminoso

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or todo exposto, já temos condição de afirmar que o criminoso, na qualidade de estrangeiro, de indivíduo não enquadrado aos padrões, em geral, não passa de um personagem socialmente forjado, de uma figura simbolicamente representada, de um estrangeiro culturalmente rotulado. O crime, enquanto entidade jurídica, apenas confirma (para os que com ele se identificam) uma condição criminógena que já é firmada previamente. Noutras palavras, o personagem preferencialmente selecionado pelo sistema penal já existe antes mesmo que a cena ou o ato criminoso ganhe vida e, nesta esteira, a figura do criminoso assume uma face ontológica, na qual é possível atribuir sanções ou, ao contrário, elidi-las à medida que este personagem se aproxima ou se afasta do modelo de “bom cidadão” socialmente construído. É dizer: o status de cidadão, assim como o de estrangeiro, acaba por diferenciar e rotular, e ambos estão na raiz de um processo de exclusão que em última instância cria e reproduz a criminalidade. Exceto nas situações de atestada patologia do agente, não parece ser o crime o fator desencadeante de condutas desviadas, senão que antes dele, algo fez desequilibrar ou cindir a ordem interna e intermédia do indivíduo, levando-o a um estado de vulnerabilidade22 para com as normas sociais (fragilização da heteronomia perante as leis), e, conseqüentemente, perante o Estado policial23. O direito penal, enquanto instrumento de poder (por certo, utiliza-

22 .  Utiliza-se como referência o conceito daquilo que E. Raul Zaffaroni denominou de clínica da vulnerabilidade em sua clássica obra Criminología – aproximación desde um margen. 3ª reimpressão. Bogotá: Editorial Temis, 2003. 23 . e' Não estamos apregoando uma concepção tutelar do criminoso, nem mesmo justificando as agressões porventura perpetradas à ordem e aos cidadãos. Todo cuidado é pouco nesta seara, sob pena de incorrermos nas mesmas premissas deterministas defendidas pelo positivismo criminológico, relegando toda a responsabilidade pelo ato criminoso a algo fora do controle do indivíduo. Não negamos que os criminosos normais tenham liberdade de consciência, isto é, livre-arbítrio da ação, contudo, não tão livre é o agir quando já se imputa um rótulo a alguém, eis que a ação está circunscrita aos condicionamentos a ela imposta e não pode fugir das condições de possibilidade que lhes são oferecidas, especialmente quando tais condições apresentam caráter desagregador, pejorativo e infamante. 343

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do pelo que os detém – o “nós” – em face dos que nada tem, isto é, o “eles”), tem cumprido de maneira exemplar a execução do projeto segregador anuído pela parcela da sociedade que se considera um “nós”. Por meio dos instrumentos técnicos dispostos pelo direito, o Estado Policial vem criando leis flagrantemente desproporcionais, cujo objeto está em tutelar condutas, ou recrudescer a punição sobre as já existentes, que sobremaneira vem cumprindo a função de ampliar a distância entre as duas faces de uma singular moeda social. No campo do direito, as construções teóricas de Günther Jakobs24 lançaram luzes sobre a temática atinente ao direito penal do inimigo. Por tudo, a teoria de Jakobs comprova a tese ora lançada: o inimigo (ou estrangeiro) não passa de uma construção social, alguém que já recebe um rótulo, uma marca que o torna distinto, potencialmente apto a receber a chancela das sanções penais. Nesta seara, uma primeira indagação. Quem são e como devem ser tratados os criminosos? Inimigo seria aquele que se afasta de modo permanente do direito (leia-se, do modus operandi esperado pelo direito), sem oferecer garantias de que vai continuar fiel à norma. Nesta esteira, sobra o rótulo, aprioristicamente, para os criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes organizados, autores de delito sexual e outras infrações penais tidas como perigosas25. O tratamento a ser dispensado aos inimigos é o daqueles que não ingressaram validamente na cidadania, deixando, por isso, de serem considerados pessoas. Neste sentido, o inimigo não é sujeito processual, e contra ele são admissíveis toda e qualquer forma de flexibilização das normas processuais penais, tais como prisões arbitrárias, inobservância de prazos, incomunicabilidade com defensores, entre outras seguranças que lhes seriam tolhidas26. Em verdade, a ruptura da sociedade entre o “nós” e o “eles” é tão presente e real que, para se sustentar normativamente, acaba por propor a criação de dois direitos penais: (i) um direito penal para os cidadãos, os “nós”, cujo respeito a todas as garantias seria a pedra de toque, haja vista a identidade do legislador com este grupo; (ii) um direito penal dos inimigos, os “eles”, na qual a deliberada ruptura do

pacto de sociabilidade justificaria a derrocada e flexibilização de todas as garantias processuais e materiais27. Como bem lembrou Luiz Flávio Gomes, o que Jakobs denomina de direito penal do inimigo nada mais é do que um exemplo claro de direito penal do autor, que pune o sujeito pelo que ele é, em oposição ao direito penal do fato, que pune o agente pelo que ele fez. Ademais, lembra o iminente jurista, a desproporcionalidade do direito e das sanções penais se une a um direito antecipatório, eletivo de seus destinatários que já estão sempre em vias de sofrer com o peso da punição28. Em obra magnífica acerca do tema, Eugênio R. Zaffaroni afirma que o poder punitivo sempre discriminou os seres humanos, conferindolhes um tratamento que tira sua condição de pessoas e substitui pela de entes perigosos29. Analisando a teoria política de Carl Schmitt e também a própria teoria penal de Jakobs, Zaffaroni demonstra que esse tratamento diferenciado é próprio do Estado absoluto, e introduz noções que fatalmente conduzem à derrocada do Estado de Direito e às liberdades individuais. A teoria política schimittiana consiste, em termos muito genéricos, na formação de identidade nacional em oposição à de um “inimigo”, que poderia ser externo ou não. Contemporaneamente, esse tipo de pensamento foi reintroduzido nos Estados nacionais após a crise de legitimidade gerada pelo neoliberalismo, reforçando-se nos cidadãos a ideia de um Estado protetor, não mais na esfera econômica e social, mas na criminal, proliferando-se a formação da imagem de “grupos produtores de risco”, com tendências ao “desvio”.30 Como não poderia deixar de ser, passaram a ser perseguidos cada vez mais aqueles que fazem parte da população excedente - o surplus da força de trabalho. Grupos inteiros de pessoas que deixaram, na prática, de cometer crimes para se tornarem, elas mesmas, crime31. Ao autorizar o Estado a declarar certos indivíduos como sujeitos a um tratamento penal e processual penal diferenciadamente mais gravoso, frequentemente em contextos supostamente de “emergência”, Zaffaro-

24 . Jakobs, Günther & Cancio Meliá, Manuel. Derecho penal del enimigo. Civitas. Madrid: 2003.

28 .  Gomes, Luiz Flávio. Op. Cit. pg. 3.

25 . Jakobs, Günther et al. Op. Cit. pg. 39.

29 .  ZAFFARONI, Eugénio. R. O inimigo no direito penal. 2ª ed. Revan. 2007. Pág. 11.

26 .  Para os que esbravejam ser esta teoria distante da realidade brasileira, qualquer semelhança de seus postulados com o denominado RDD (regime disciplinar diferenciado), não passaria de uma infeliz coincidência.

30 .  BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005, p. 36.

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27 .  Gomes, Luiz Flávio. O direito penal do inimigo ou os inimigos do direito penal. In: . Acessado em 17.11.2008.

31 .  GIORGIO, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 98. 345

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ni (e também Giorgio Agamben) adverte que se abrem as defesas contra o autoritarismo, pois o conceito de inimigo não admite limitações, nem o Estado que incorpora um conceito como esse, vez que este sempre dependerá do juízo subjetivo do ocupante do poder32. Guantánamo é um exemplo claro da perda de limites desse conceito, mas também tudo aquilo que, num regime de exceção é qualificado como “subversivo”. Ademais, Luigi Ferrajoli demonstra magistralmente o perigo destas diferenciações para a democracia, evidenciando como a interiorização do conceito de “inimigo” no direito penal envenena a solidariedade social, fragilizando as relações democráticas. Para tanto, ilustra especificamente o caso italiano, onde houve a adoção de leis penais criminalizando a imigração ilegal: “... a perda de uma autorização de residência, por razão de demissão, por exemplo, não é absolutamente um ato danoso, e menos ainda é atribuível à responsabilidade do imigrante, cuja simples culpa é ser estrangeiro irregularmente na Itália: em suma, um diferente, um estranho. Este é o aspecto mais grave de todas essas leis, além da violação dos princípios garantistas clássicos: o veneno racista injetado por elas no senso comum. Essas leis, com efeito, não apenas refletem o racismo difundido na sociedade, senão que são elas mesmas leis racistas, que servem para legitimar, apoiar e alimentar aquele racismo. A estigmatização criminal - como sujeitos perigosos, como potenciais e tendenciais delinquentes, como portadores de uma culpa ligada à sua identidade – não atinge na verdade simples indivíduos com base nos crimes que cometeram, mas grupos inteiros de pessoas com base em sua condição pessoal. É o mecanismo típico da demagogia populista: constroém-se inimigos potenciais - os imigrantes, os ciganos, os islâmicos – que são marcados como sujeitos perigosos e possíveis criminosos, expondo-os à diferença, à suspeita, à questão da expulsão ou da repressão, e depois, como já aconteceu, à violência homicida.”33 32 .  ZAFFARONI, Eugénio. R. O inimigo no direito penal. 2ª ed. Revan. 2007. Pág. 159. 33 .  FERRAJOLI, Luigi. El populismo penal em la sociedade del miedo. In: La emergencia del miedo. Buenos Aires. EDIAR. 2012. p. 69 (“...la pérdida del permiso de estadía a causa, por ejemplo del despido, no es para nada un acto dañoso, ni tanto menos es atribuible a la responsabilidad del inmigrante, cuya simples culpa es ser extranjero irregularmente en Italia: en breve, un diferente, un extraño. Es éste el aspecto más grave de todas estas leyes, más aún de la violación de los clásicos principios garantistas: el veneno racista inyectado por ellas en el sentido común. Estas leyes, en efecto, no se limitan a reflejar el racismo difundido en la sociedad, sino que son ellas mismas leyes racistas, que sirven para legitimar, secundar y alimentar aquel racismo. La estigmatización penal – como sujetos peligrosos, como potenciales y tendenciales delincuentes, como portadores de una culpa ligada a su identidad – no golpea en efecto simples individuos sobre la base de los delitos por ellos 346

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É preciso lembrar que as conquistas de um direito penal e de um direito processual penal democráticos foram custosas para nossa sociedade, e reclamam vigilância para que não sejam jogadas fora diante do temor daquilo que é diferente que leva à emergência que nunca tem fim. A função do direito penal em um Estado de Direito (um Direito Penal que tem como norte os Direitos do Homem) tem de ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro de limites racionais – e se ele permite que cidadãos deixem de ser considerados pessoas para serem considerados apenas entes perigosos, ele assim abre espaço para o avanço do poder punitivo sobre todos. Como muito bem ressaltado por René Ariel Dotti34, há um equívoco (conscientemente reproduzido) em se associar o âmbito de proteção aos direitos humanos tão somente à salvaguarda de pessoas encarceradas, acusadas, condenadas, torturadas ou que sofrem maus tratos sob a tutela do Estado. Quando muito, estendem o conceito de direitos humanos à proteção de presos e dissidentes políticos e ideológicos. E há uma razão de ser para tanto: reduzindo o campo de atuação dos direitos humanos a um grupo reconhecidamente rotulado da sociedade, sabidamente estigmatizado e marginalizado, pretende-se realizar em torno do campo dos direitos humanos uma mesma estratégia de rechaço, de violação e redução de sua carga axiológica. A luta dos direitos humanos não é apenas para que se respeite a diversidade, para que haja um ambiente de compreensão entre os humanos, sintetizados que devem estar ao principio reitor da dignidade da pessoa humana, senão que ainda resta aos direitos humanos uma luta pelo reconhecimento de sua disciplina enquanto ferramenta plural, que busca a ruptura de paradigmas de dominação de uns face a outros e mesmo do saber que não raro se erige como estratégia de poder. Talvez a tomada de consciência, o diálogo franco e aberto, possa ser uma via de harmonização das diversidades e afirmação dos direitos humanos. Loic Wacquant bem sintetizou o desafio que a sociedade brasileira enfrenta, e a difícil (porém corajosa) postura de escolher uma sociedade cometidos, sino enteros grupos de personas sobre la base de su condición personal. Es el mecanismo típico de la demagógica populista: se construyen potenciales enemigos – los inmigrantes, los rom (gitanos), los islámicos – y se los señala como sujetos peligrosos y posibles delincuentes, exponiéndolos a la diferencia, a la sospecha, a la pregunta de expulsión o represión, y entonces, como ha sucedido, a la violencia homicida.”). 34 .  Dotti, René Ariel. O processo penal constitucional: alguns aspectos de especial relevo. In: Moreira Alves, Leonardo Barreto; Araújo, Fábio Roque. O projeto do novo Código de processo penal. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 24. 347

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aberta e ecumênica ao oceano de desprezo pelo outro que nos é cotidianamente oferecido35, mas talvez o lembrete mais forte do risco que vivemos ao deixar o “outro”, transformar-se no “inimigo” esteja registrado no Intertexto, de Bertolt Brecht: “Primeiro levaram os negros Mas não me importei com isso Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados Mas como tenho meu emprego Também não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo.”

Conclusão

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trabalho, longe de pretender depurar a questão, tratou de elucidar uma situação factível, apesar de presente apenas em discursos sediciosos e subliminares, qual seja, as relações de rotulação e prévios conceitos atribuídos antes mesmo de qualquer ação. Trata-se de uma conduta defensiva, cuja origem está no seio de uma “sociedade” ambivalente e marcada pelo temor ininterrupto. A permanência deste quadro impede a cooperação efetiva entre os cidadãos, e fomenta uma igualdade meramente retórica, recrudescendo cada vez mais o medo, a insegurança e, conseqüentemente, a violência. Pelo exposto, a manutenção deste estado de coisas marca uma roda viva de medo e violência endógenos, travando o caldo de cultura para 35 .  WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. 2ª ed. Rio de janeiro Zahar. 2011. Pág. 15. 348

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o enfrentamento cada vez mais colérico entre aqueles pretensamente inseridos na parcela denominada “nós”, face aos excluídos, estrangeiros e inimigos inseridos no grupo do “eles”. É imperioso que sejam construídos pontes de acesso entre as ilhas formadas no corpo social, na tentativa de fundir algo outrora cindido e que, caso assim permaneça, em nada convergirá para os sentimentos que a própria ação excludente busca aquilatar. Noutros termos, o diálogo, a cooperação e a aceitação do diferente enquanto algo ou alguém que, em verdade, nos é tão próximo e particular, pode ser o passo inicial para a construção efetiva de uma sociedade fraterna e solidária, apta a potencializar na diferença a igualdade, e de fazer do pluralismo a afirmação maior da isonomia. Concluímos com algumas palavras de otimismo, asseverando a importância de tudo o que fora exposto, da lavra do Professor José Leon Crochik36: “Mas, claro que seria ilusório se supor que a frieza presente naquele desinteresse se dissolva facilmente. Talvez, a criação de um clima cultural geral que promova a importância do diálogo e da reflexão possa auxiliar na questão. Evidentemente isso não deve ser feito da mesma forma que o combate às drogas neste século e a atual perseguição ao fumante, posto que se culpabiliza o consumidor sem se perguntar o que leva alguém a se drogar ou a fumar. Como diz Adorno, para se combater a frieza reinante deve-se procurar pelos motivos que a geraram e a conseqüente reflexão sobre ela.” É exatamente esta procura, mencionada por Adorno e referenciada por Crochik, que nos permitirmos iniciar. Por certo, os preconceitos e as rotulações não serão bem trabalhadas se se fizer uso do direito penal como via de resolução das fissuras sociais; ao contrário, quanto mais direito penal tivermos, quando mais a sociedade simbolizar neste campo a tábua de salvação, tão maior será o distanciamento social e as diferenças que, na essência, se encontram na raiz da violência sintomática que tanto inquieta.

36 .  Crochic, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Robe Editoral, 1995, p. 208. 349

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Democracia Participativa

20 Participative Democracy and the Fiscal Issue Katia Blairon

1  Introduction: How political regimes build their finances

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irect democracy and budget are never associated. Citizens had yet never been asked to intervene, at least in basic economic, budgetary and financial national matters1. Parliamentarism, together with the representative modern system, has come forward by its power to decide tax issues and discuss their use. Representation has quickly found shape in the level of acceptance from the tax-payers. However, if we recall one of the first texts thereof, two sides of budgetary authorisation were established: “All citizens have a right to assess, either personally or by their representatives, the necessity of public contribution, to grant it freely, to follow its use, and to fix the proportion, the mode of assessment and of collection, as well as the period, of the taxes”2. Practice has mainly shown its preference for “representatives”. More than a preference, it is rather something exclusive: the time of direct expression of the budgetary authorisation has so to speak never existed. “The government of the people, by the people and for the people” seemed to exclude budgetary and financial decision. Yet, the solutions to the economic and financial crisis raise democratic and constitutional questions. They have been as various as the means and shapes of the crisis itself. That the measures taken– and particularly the most binding ones for the citizens – were met as fate comes as remarkable surprise. Their 1 .  The experience of the participative budget of Porto Alegre has most certainly gradually spread worldwide, but it remained confined to the local level. Cf. infra. 2 .  Article XIV of the Declaration of the Rights of the Man and of the Citizen, 1789. 353

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designers are well-known: although written by the executive power, the law is traditionally voted by parliament. But it is difficult to trace their origins. If the direct source is national, another source, not to say an influence, is partly found in markets, partly in various international, general or specialized organizations (or in other states, as in Europe). Economic and financial considerations are obviously at stake. But the consequences, which are logically economic and financial, are also social and constitutional. If some parliaments have voted (that is ratified) grim measures, others may have been reluctant and hesitated. The latest case of Cyprus is a perfect illustration. The national representatives had first opposed the European Union’s guidance, consisting in the taxation of private savings. But the emergency situation eventually made them give in to the European sirens, under a few conditions. Not so far away, the cradle of democracy was renouncing its institutional claims. The Greek situation is notorious. Yet one proposal was incidentally left aside in the recent history of the country although it would have deserved a particular attention: it was suggested by the then Prime Minister George Papandreou and it consisted in submitting the economic and financial plan designed to “save” the country to a referendum. Strong words were heard: “a dangerous one”, this decision would have put the country “in jeopardy”, and the Eurozone and the international financial system at that. Some European officials had quickly reacted, considering the proposal as premature or inconsiderate. The negative outcome of such a public consultation was obvious. Tax-payers would have never agreed to it, shaking a fragile edifice with little democratic foundations. The Prime minister’s attempt seemed desperate; it relied on a people who had not been directly consulted since the fall of the colonels in 1974. Though politically and economically hazardous, the solution was legally founded: asking taxpayers their opinion – consent – about fiscal measures. Besides it was nothing new. Iceland had made the Greek dream true, several times in a short time period3. This country most certainly fulfils the prerequisite conditions for the development of direct democracy, geographically-speaking mainly. It has been maintained for centuries that only small states may develop direct democracy, and therefore bigger states must necessarily resort to representative democracy. The choice of the political regime was almost naturally guided by geographical (or climatic4) consider-

ations. To be or not to be direct, that was the question asked to past and present democracies. To be or not to be (only) representative anymore, that is the question asked to future democracies. Direct democracy is traditionally opposed to representative democracy. British, American and French revolutions left a long-standing mark on constitutionalism. But a median way seems to appear. Representative democracy must stand, but not exclusively or at the expense of direct democracy. The latter is often considered as a competitor to the former. Current representative democracies (whatever their form, parliamentary, presidential…) do not offer the necessary conditions to a viable economic and financial environment for the citizens any more, all the more as crucial issues remain and are being met by a variety of answers corresponding to that of societies and States: the redistribution of wealth and solidarity on the one hand; equality before the (fiscal) law and the fiscal pressure on the other. In any case, “the ‘political’ and the ‘economic’ points of view cannot be clearly separated as most of the economic issues have some political importance and most of the political issues having some economic importance”5. A consensus arises around the necessary conciliation between representative and participative democracies.

1.1. Fiscal effects of direct democracy Although stemming from the budgetary authorization (defence of the taxpayers), the parliamentary government came along the Wagner law of the continuous increase of public spending, willy-nilly. If some spending was “imposed” – the financing of war, starvation and climatic disasters for instance –other forms of spending were not saved for electoral and political reasons – like the social demand for services. In France, the inflation of spending – which could be put together with that of laws – “partly comes from… parliamentary hyperboles which the governments only opposed with inadequate energy”6. Solutions were various, but mainly consisted in the suppression of the parliamentary power to propose spending, or at least in the strict surveillance of that

political decision was equally an important argument in the constitution of the representative democracy at the expense of the direct one. Infra.

3 .  Supra.

5 .  H. KELSEN, La démocratie, sa nature, sa valeur, Economica, Paris, 1988 (2d edition of 1929), p. 52.

4 .  MONTESQUIEU, L’Esprit des lois, part III, Livre XIV, chap. X. The capacity to make a

6 .  J. BARTHELEMY, Valeur de la liberté et adaptation de la République, Sirey, Paris, 1935, p. 171.

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power7. The budgetary power was de facto progressively transferred to the executive. But this was not enough to contain the increase of spending, and neither was a set of binding measures upon the public finance of the States8. The financial situation of the vast majority of States is not new (40 years of deficit in France), but it was highlighted by the global crisis and its tragic consequences upon the individuals (Argentina in 2001, Greece since 2010, Cyprus this year). We can therefore wonder how a political regime, in particular the representative system, impacts national public finances. Several works have dealt with financial and budgetary implications of direct democracy, and more globally with the prevision of fiscal referendum. Some demonstrate the effects of the right to an initiative on fiscal policy. For the United States, Matsusaka finds that states that have that institution have lower expenditures and lower revenues than states that do not9. The defence of the representative democracy in this field argues that it has to remain free from every kind of constraints, mainly popular, otherwise it couldn’t work: for instance, initiatives dedicate public funds to certain uses and prevent tax increases that legislatures do not have enough degrees of freedom left to budget responsibly. However, Matsusaka estimates for California that at most 32% of the state budget is tied up by initiatives and that initiatives do not prevent tax increases, except on property, to any significant degree10. The fiscal referendum has globally decreasing effects on expenditures, because “the fiscal referendum forces governments to ask the citizens for approval of their budget proposals”. On the other hand, Blume, Müller, Voigt and Wolf11 notice that “broad initiative rights could lead to more government spending whereas the institution of (fiscal) referendums could cause the exact opposite”. Indeed, mandatory referendums particularly on debt issues reduce borrowing12. 7 .  Comp. article 40 of the French Constitution: “Private Members’ Bills and amendments introduced by Members of Parliament shall not be admissible where their enactment would result in either a diminution of public revenue or the creation or increase of any public expenditure”. 8 .  Mainly and for instance: balanced budget, transparency. 9 .  J. G. MATSUSAKA, “Fiscal effects of the voter initiative: evidence from the last 30 years”, Journal of Political Economy, 103(3), 1995, p. 587–623.

Political regimes make their own finance. Whether they are representative or direct, political systems aim at providing useful tools to the political decision-making. If one or the other may be picked, we have to admit that, for financial reasons, democratic institutions, owing to the defects of the representative system, need renovation. These defects were for a long time structural, but are now becoming cyclical. The illusion of frugal assemblies13 made way to fiscal illusions, generated by the fiscal institutions, to which fiscal reactions were brought14. For all that, the absence of instruments of direct democracy does not necessarily involve corruption, embezzlement, tax fraud etc., and conversely financially virtuous States are not necessarily the ones to guarantee these instruments. It will be simply argued here that participative democracy constitutes one of the useful instruments to restore confidence in the political system, the financial system and the establishment of certain tax morals.

1.2. Fiscal neglect of direct democracy Generally, the referendum and the instruments of direct and participative democracy are not diffuse. They are our most unpopular institutions. Democracies are mostly representative, but there are always exceptions. Various forms of popular participation, at the local level as well as at the national one (Switzerland, Italy, Sweden, Norway, and at the infra-national level of federal States: United-States, again Switzerland…) may indeed be found. However, budgetary and financial matters are often considered as sensitive, dedicated to representation for several reasons (infra). It is the reason why, even when the referendum or popular initiatives are planned and organized, the fiscal field is excluded from their scope, directly15 or indirectly16. We may wonder about this exclusion of the referendum and of the other instruments of direct democracy from the financial and fiscal issues. Two arguments are mainly suggested that will be analysed: on the years”, op. cit., L. P. FELD, G. KIRCHGÄSSNER, “The political economy of direct legislation: direct democracy and local decision-making”, Economic Policy, 16(33), 2001, p. 331-367. 13 .  J. BARTHELEMY, Valeur de la liberté et adaptation de la République, op. cit., p. 169.

10 .  J. G. MATSUSAKA, “The eclipse of legislatures: Direct democracy in the 21st century”, Public Choice (2005) 124, p. 157-177.

14 .  J. M. BUCHANAN, Public Finance in Democratic Process. Fiscal Institutions and Individual Choice, The University of North Carolina Press, 1987, p. 109.

11 .  L. BLUME, J. MÜLLER, S. VOIGT, C. WOLF, “The economic effects of constitutions: replicating—and extending—Persson and Tabellini”, Public Choice (2009) 139: 197–225.

15 .  Cf. article 75 of the Italian Constitution concerning fiscal and budget acts.

12 .  J. G. MATSUSAKA, “Fiscal effects of the voter initiative: evidence from the last 30 356

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16 .  In France, art. 11 of the Constitution allows referendum on the economic policy of the Nation, but the question is to determine whether it could include tax matters or not. 357

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one hand, the bigger the country, the costlier the democracy (2); on the other hand democratic decision-making requires a certain skill, knowledge and capacity to explain that it has been reserved for some and/or according to a procedure of particular selection (3).

2  Costs and benefits of (direct) democracy 2.1. Democracy at all costs

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ome argue that democracy has a cost, in particular direct democracy17. Significantly, it is the “excessive” cost18 of the 2005 French referendum on the ratification of the Treaty establishing a Constitution for Europe which was estimated: 130 millions Euros, approximately 3 € per each registered voter. This sum covered the printing and the routing of documents, the official campaign and the electoral operations, as well as secondary expenses: the credits of the Ministry of Foreign Affairs for civil training, the financial efforts of the government as early as spring to contain the rise of the “no”. This is the Gordian knot: the parliamentary majority feared a popular negative vote to the ratification of the Treaty which it had earlier approved. The result was irrevocable and significant: the treaty had been ratified by 92% of the Congress and rejected by 55% of the voters. What would however have been the cost of the absence of democracy, in other words of an unpopular legislation? It is a political cost, but an administrative one too (the reluctant implementation of unpopular measures); an economic one (reluctance turning into opposition). Although politically costly, this democratic expression could have presented benefits, in particular political ones. In other words, it is a question of estimating the direct and indirect costs, as well as the external and internal ones. It is the Public Choice model19 : internal (or “decision-making”) costs are the time and effort that individuals expend when they participate in the public choice process (costs of 17 .  J. M. BUCHANAN, G. TULLOCK, The Calculus of Consent: Logical Foundations of Constitutional Democracy, Ann Arbor, University of Michigan Press, 1962.

becoming informed and of negotiating with other parties); external costs arise when public decisions are harmful to a person’s interests. An optimal public choice process in this framework would minimize the sum of the two costs. More specifically, being involved in the political system, tax-payers have a higher intrinsic motivation to pay taxes20. In some cases, direct democracy could be linked to the absence of tax evasion, and therefore raises tax morale21. The difficulty lies in the position of the cursor: when is direct democracy less expensive than the representative one and conversely, when had representative democracy better intervene? The cursor is even double when telling the internal costs from the external ones on the one hand, and direct democracy from representative democracy on the other hand. One answer was given by Matsusaka22: “Direct democracy is worse than representative democracy in terms of internal costs. Direct democracy involves the entire population in the policymaking process, incurring large decision making costs […]. Direct democracy outperforms representative democracy when it comes to external costs. For one thing, representatives may not be fully accountable to their constituents (there may be agency problems, in modern jargon) and may choose policies that are harmful to many of them. […] The conventional conclusion is that the internal cost of direct democracy outweighs the external cost of representative democracy”. The estimation of the democratic cost is not a mere question of mathematical and economic calculus: it is related to the legitimacy of the political decision, which was damaged by the crisis suffered by the main author of this decision.

2.2. Efficiency of democracy through its legitimacy Sintomer picked several structural causes of the crisis of political representation: its inability to face the socioeconomic crisis since the 70s; the political disconnection of the lower classes which take refuge in abstention or far-right politics; the crisis of the bureaucratic public action 20 .  B. S. FREY, “A Constitution for knaves crowds out the civic virtues”, Economic Journal, 107, 1997, p. 1043-1053; Not just for the Money. An Economic Theory of the Personal Motivation, Edward Elgar, Cheltenham, 1997.

18 .  F. Rouvillois, L’avenir du référendum, Guibert, Paris, 2006, p. 119.

21 .  L. BLUME, J. MÜLLER, S. VOIGT, C. WOLF, “The economic effects of constitutions: replicating—and extending—Persson and Tabellini”, op. cit.

19 .  J. M. BUCHANAN, G. TULLOCK, The Calculus of Consent, op. cit.

22 .  J. G. MATSUSAKA, “The eclipse of legislatures: Direct democracy in the 21st century”, op. cit.

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privatizing “public services [which] are less and less in the service of the public”23; and internal causes of an elitist political system which is not spared by corruption. Participative democracy would constitute an answer, “in spite of” the limits it may also meet24. It would strengthen the legitimacy of the public decision by various aspects: by bringing the citizens closer to the political power, it would act as a lever to social justice; it would furthermore constitute an instrument of control of public action and political acknowledgment25. By taking several legal forms, it would act as a psychological catalyst. When it comes to the referendum, it is sometimes argued that « the voters do not feel (or not so much) the sensation of frustration, of alienation which they might feel at the second round of a classical election, when neither of the two candidates mirrors their aspirations”26. A popular initiative “would even more legitimize the development of associations” by giving to the people “a legal ability to express itself”, by allowing it to participate directly to the elaboration of legal rule27. That is why performance shall not (only) be estimated by results28 to appreciate its success: participation allows all members to participate fully in the decision process and “in turn, participating individuals appreciate the responsibility entrusted to them”29. In this sense, legal rules are less constraints than tools allowing a more efficient action30. The financial field is a major target: if the law is the expression of the general will31, it is because it (also) aims at being applied to everyone. The legitimacy of the political decision is all the more important when the norm applies to the largest number. This is the case of budget and

financial bills. “In the direct democracy system, there are as many elected representatives as voters”32. But this is no more than going back to the foundations of democracy: “Good command takes its roots in good obedience, and the citizen’s “virtue consists exactly in knowing these two opposite faces of power”33. The turnover of public offices justified itself as far as the one who was ruling-dominating one day would be ruled-dominated another34. That is why the local level could act more as a laboratory or “a do-it-yourself, allowing the national rules to adapt than a space of democratic creativity” whereas “on a national scale, another type of legitimacy [is] necessary”35. On the whole, the criticisms against direct democracy really aim at democracy as such. Such an argument is not without danger: we could then as well demonstrate that elections in the universal suffrage constitute an economically absurd method of appointing leaders36. Think of the financing of political life (parties, associations) and of electoral campaigns in some States? Democracy has cost which is diversely appreciated among the various States. Besides, the particular cost of direct democracy is openly related to the access to information (and therefore the high information costs). More than information, the political knowledge and skills could not be generalized: at least, this was the main argument which consolidated for a long time representative democracy to the detriment of the direct one, generally and in particular in the budgetary field.

23 .  Y. SINTOMER, Petite histoire de l’expérimentation démocratique, Tirage au sort et politique d’Athènes à nos jours, La Découverte, Paris, 2011, p. 18 sqq. 24 .  L. BLONDIAUX, “La démocratie participative, sous conditions et malgré tout. Un plaidoyer paradoxal en faveur de l’innovation démocratique”, Mouvements, 2007/2 n° 50, p. 118 sqq. 25 .  L. BLONDIAUX, “La démocratie participative, sous conditions et malgré tout. Un plaidoyer paradoxal en faveur de l’innovation démocratique”, op. cit.. 26 .  F. Rouvillois, L’avenir du référendum, op. cit., p. 132. 27 .  Cf. S. RIALS in F. Rouvillois, L’avenir du référendum, op. cit., p. 135. 28 .  J. M. BUCHANAN, The Economics and the Ethics of Constitutional Order, The University of Michigan Press, 1991, p. 38. 29 .  N. B. MACINTOSH, “Participative Budgeting: For and Against”, Sonderheft 1/2003 I Controlling & Management. 30 .  Cf. F. HAYEK, Droit, législation et liberté, Paris, PUF, 1980 (1973), p. 75. 31 .  Cf. J.-J. ROUSSEAU and article VI of the Declaration of the Rights of the Man and the Citizen. 360

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32 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 61. We put aside in this paper the problem of the subjects of the referendum or direct democracy, but we have to take into account the fact that the electoral body may vary (citizens-voters/tax payers). The electorate does not always fit in with the one concerned by a political decision; either this one is more restricted (only a part of a territory is implied), or it is larger (tax payers are also non-national). Therefore there is a difference between the one who applies the legal rule and the one who decides it (beyond the representatives). 33 .  ARISTOTLE, Politics, III, 4, 1277, §10. 34 .  B. MANIN, Principes du gouvernement représentatif, Flammarion, Paris, 1996 (2008), p. 41 sqq. 35 .  Y. SINTOMER, Petite histoire de l’expérimentation démocratique, op. cit., p. 135. 36 .  F. Rouvillois, L’avenir du référendum, op. cit., p. 120. 361

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3  Access to fiscal direct democracy

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he classical picture by the defenders of representative democracy is that of “an ignorant, uneducated, unreasonable and passionate people, the easy prey of the demagogues and the flatterers”37. The arguments which founded political representation in the 18th century do not take into account several factual data allowing a first incursion of direct democracy into the financial and tax domain.

3.1. Fiscal contract revisited It is sometimes argued that direct democracy creates deficits by allowing myopic voters to appropriate spending while cutting taxes38. Incompetence is the main argument. It is necessary to go back to the concepts for a short while. Competence is the legal basis of the action of public authority. Power is the capacity to exercise the competence. It therefore completes the latter: “competence without power is inefficient. Power without competence is illegal”39. The people is theoretically competent: it is sovereign, its sovereignty is primary and determines other competences. The budgetary authorization has a democratic basis. Democracy being the people’s affair, the budgetary authorization should be the people’s direct affair. But the people in its unity cannot express itself. Its unity would by the way be fiction, because it would essentially consist in the aggregation of several individual wills40. Public opinion at large “has no proper consistency”; “at the most” it has a “state of mind that is a trend towards forming opinions”41. In order to exercise such competence, representation was instituted: some exercise power for all, in the name of all. We know the practical reasons: they are mainly geographical, the largest states cannot manage direct democracy. They are therefore political too: the political decision may only be made by an

37 .  F. Rouvillois, L’avenir du référendum, op. cit., p. 61. 38 .  J. G. MATSUSAKA, “The eclipse of legislatures: Direct democracy in the 21st century”, op. cit. 39 .  Cf. V. CONSTANTINESCO, Compétences et pouvoirs dans les communautés européennes: contribution à l’étude de la nature juridique des communautés, LGDJ, Paris, 1974, 492 p.

organized and particularly composed assembly. Representation would have allowed “the refining and enlarging of the public views by passing them through the medium of a chosen body of citizens whose wisdom may best discern the true interest of the country, and whose patriotism and love of justice will be least likely to sacrifice it to temporary or partial considerations”42. SIEYES justified representation on the basis of a sensible division of labour: once busy with their economic affairs, the citizens cannot all dedicate themselves completely to the public affairs; that is why some of them will assume the latter. Criteria had to be given to representation and were consecrated by texts: take for instance the French Revolution with ability, virtues and talents43. In the budgetary field, part of the doctrine is even more radical to deny any competence to the people, to the ordinary citizen, to the non-professional politicians: owing to the complexity of tax issues and their technical nature, the people’s “ability” to vote a budget is strongly questioned44. But this same doctrine paradoxically fears the people’s inability “to consent to the most necessary sacrifices”45 and owns that a Constitution which “has pushed to the limits the respect for skills and the principle of technicality is also the least free”46.Yet, it was shown that this very people could lead, by popular initiative, to the growth of public expenditure’ (supra). During the revolution, the “abilities” referred to the “persons able, by their education or position, to exercise political rights”47. In practice, politics was reserved to some, which confirmed Siéyès’s division of labour and vindicated the necessary ability required by Madison. Today, the inability argument seems old-fashioned in many practical various ways. Firstly, the representative system undergoes increasing direct criticisms. Some aim in particular at the generated inequality: unequal 42 .  J. MADISON, “Federalist 10”, Federalist papers, November 22, 1787. 43 .  Comp. article VI of the 1789 French Declaration: “The Law is the expression of the general will. All citizens have the right to take part, personally or through their representatives, in its making. It must be the same for all, whether it protects or punishes. All citizens, being equal in its eyes, shall be equally eligible to all high offices, public positions and employments, according to their ability, and without other distinction than that of their virtues and talents”. 44 .  J. BARTHÉLÉMY, Le problème de la compétence dans la démocratie, op. cit., p. 27. 45 .  Ibidem.

40 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit.

46 .  J. BARTHÉLÉMY, Le problème de la compétence dans la démocratie, op. cit., p. 75 about the French Constitution of the Year VIII.

41 .  J. BARTHÉLÉMY, Le problème de la compétence dans la démocratie, Librairie Félix Alcan, Paris, 1918, p. 23.

47 .  Dictionary Littré, quoted by Y. SINTOMER, Petite histoire de l’expérimentation démocratique, op. cit.

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access to public offices, unequal social conditions which are not all represented, unequal access to the expression of the general will. The criticism of majoritarian rule and of elections, which representative democracy is structured by, is nothing new. Jean-Jacques Rousseau already considered that the election process was only a short-lived expression of the freedom of the people48. That is why, when defending the necessary protection of the minorities, Kelsen justified the qualified majority, “if possible unanimity”, considered by him “as guarantees for personal freedom”49. Kelsen adds that, “our modern democracies were forced to forego unanimity”; yet “by contenting itself with decisions by the majority, democracy gets along with a mere approximation of its primary ideal”50; “it is truly the absolute majority rule – unlike the qualified majority one – which represents the major approximation of the concept of freedom. The majority rule can only arise from it, and not – as it wrongly does – from the idea of equality. No doubt the majority rule fully supposes that the equality of individual wills is taken for granted. But this equality is only an image; it does not mean that the wills or the individuals may effectively be measured and added”51. Secondly, the criticism against the professionalization of the representatives goes with the inner weakness of the representative system. They are no longer the traditional political professionals. Politics is nowadays less and less the business of a chosen few, in particular in the economic domain. Representatives are submerged from all sides52 : specialists (economists) roam the corridors of Parliament. They take on various forms (individual experts, organisms, public institutions) and different statuses (independents or linked to public authorities); but tax payers and citizens have similar access to the economic and political information through various means of communication. From this point of view, Iceland constitutes a particularly useful laboratory. By combining various democratic instruments of participation (referendum, constitu48 .  J.-J ROUSSEAU, The social contract, book III, chap. 15: “The people of England regards itself as free; but it is grossly mistaken; it is free only during the election of members of parliament; as soon as they are elected, slavery overtakes it, and it is nothing. The use it makes of the short moments of liberty it enjoys shows indeed that it deserves to lose them”.

tional debates on the online social networks), Iceland has demonstrated that the people is involved in the decision making processes (legislative as well as constitutional) which are therefore not reserved to some political professionals53. Even more in the financial and economic domains, Icelanders had been twice asked to have their say on the bank-saving plans (“Icesave agreements”) in an original way. Indeed the constitution of Iceland includes resorting to a referendum procedure in order to settle a conflict between the assembly and the president of the republic54. If such a disposition aims at being applied to any act, it was dramatically applied in economic and financial circumstances as voters twice rejected the proposals adopted by the parliament (in 2010 and 2011). The comparative law argument widens its frontiers beyond Iceland: the people has the right to intervene at various levels and on various matters. On budgetary issues for instance, the Irish have been the only ones to discuss the Treaty on Stability, Coordination and Governance in the Economic and Monetary Union (“fiscal compact”) whereas the people vote would have been possible in other European States (France for example) that favoured parliamentary ratification. In the financial domain, the people may also intervene, as in Italy in the financing of political parties (1993); or more generally at the local level (Switzerland, California…). The people may also intervene in the economic domain55 although this right is denied for the vote of some taxes or budget acts (for example Italy). The historical and political reasons of this general denial of direct and participative democracy in the financial and budgetary domains are well-known. But this trend could nowadays be reversed, without basically questioning the representative system.

3.2. Horizontal subsidiarity reformulated The representative system could even provide interesting food for thought in order to reconsider democracy in general, and the participative one in particular, when it comes to taxes. The division of “polit-

49 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 19.

53 .  Election of 25 citizens without political affiliation among the 522 who presented their candidacies, under the condition to be of age and to have collected the support of at least 30 persons.

50 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 20.

54 .  Article 26 of the Constitution of Iceland.

51 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 21.

55 .  Cf. article 11 of the French Constitution which could be modified (according to a possible referendum in application of the article 89 of the Constitution) in order to extend direct democracy in this field.

52 .  Besides, it was never asked to the parliaments to be experts. At least it is the argument today held, in economic field. 364

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ical” labour – together with the criteria of the abilities – could lay the foundations of representation at the expense of direct democracy. It is the same for the constitution (or not) of a popular jury which can also fuel the debate. The laymen are indeed denied a judicial education because of their incompetence. To be a judge, it is argued, means complete training as well as acknowledged legal competence. Lack of knowledge is why some purely and simply reject the idea of the popular jury. But as in budgetary referendum in some States, exceptions often exist: professional courts (in labour or business law), criminal jury… In criminal matters, the institution of the popular jury is an old story: the main argument has been justice by someone’s peers. But in general, the popular jury is on the one hand a clear manifestation of the de-professionalization of justice; and on the other hand of the political decision-making process. The model of the criminal jury in particular consolidates a certain division of labour insofar as the professional judge brings to mind the boundaries of the law. Again, de-professionalization does not necessarily imply destitution (of the judge or the representative). It is a combination of both systems. The jury would even have an additional virtue: an educational function. “The jury, which is the strongest path to people’s rule, is also the most effective way to teach it how to rule”56. “Ignorance” is fought by way of an education, of a training, either from the first age (as is the case of the participative budget in NY schools), or all along the citizen’s life (popular jury, local participative budget). This can only be made possible by means of a true right to information (and protection) and therefore, to education. The latter must still be developed and organized. The former is already active thanks to the expansion of social networks, new technologies and the Internet in general. But it is far from being global and accessible to all, above all in financial matters. The internet access and education are early instruments, but they imply a subsidiary question: that of the source of the information, and of the budgetary information. Who should provide and analyse it? Information should be plural, and may be public as well as private. The right to information is therefore contingent to the acknowledgement of the pluralism of the media, of the freedom of the press, and more globally of the right to free association (labour unions, for instance). Pluralism is essential insofar as the contemporary press is increasingly dependent on private corporations. We may therefore

question the ability (through their objectivity) of the media today to build up the sufficient framework for an enlightened public judgement in view of the concentration of the main press companies57. But the role of Parliament should also be reconsidered: it should no longer only be a representative, an authority of deliberation, but a cog in the democratic machinery, a transmission channel of the political (and therefore economic) information, among others like associations. The latest trends of current constitutionalism have not reinforced the Parliament’s role in the decision-making process but rather its role of control of the executive power by improving its information, in particular the financial one. This tendency deserves to be extended towards participative democracy. It is however related to the modalities of participative democracy and its institutional engineering. Several issues must be taken into account, whether they are directly or indirectly connected to participative democracy. This means representation should be reconsidered, so that it might better correspond to its democratic basis and respond to its constant criticisms. The representative principle has received an extreme solution: the prohibition of any imperative mandate. With the exception of the recall in some countries, constituents may not give instructions to their representatives. It was argued that as soon as they were elected, they would represent one nation, one people, and not the portion of a bigger group. But most democracies have given also to the representative a long term mandate (5 years for instance). Therefore, by the election, the voters give a free hand to the representatives in order to manage public affairs. At the most, the voters are called to other ballots (local, professional…) which give them an opportunity to express their disagreement with the national representatives. Moreover, in the modern representative democracies, “mid-term” elections are the only opportunities for the voters to express themselves. As a matter of fact, long before the existence of the Internet, of new technologies and of new means of public participation (such as social networks), the idea “that the people should come with some suggestions that would enable the Parliament to direct its legislative activity”58, has already been advanced. Among such suggestions, some of which are implemented: shorter mandates – in order to secure a better turnover of public offices and thus fight against the profes57 .  L. BLONDIAUX, “La démocratie participative, sous conditions et malgré tout…”, op. cit.

56 .  A. DE TOCQUEVILLE, De la démocratie en Amérique, I, 2, chap. VIII. 366

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58 .  H. KELSEN, La démocratie, op. cit., p. 48. 367

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sionalization of politics – or links between the representatives and the constituents, that is direct decision-making mechanisms that would not jeopardize the mandate of the former (otherwise the referendum becomes a plebiscite). Another more institutional path consists in establishing new places or modes of representation (and therefore of participation): depending on time, on places (States) and/or on the subjects concerned, professional (and socio-economic) representation is often mentioned. Territories are usually consecrated through important institutions such as second parliamentary assemblies like the Senate, but it is time other bodies or places took into account the other interests of individuals within the society59. If it is traditionally based on an ethnic group, a religion or gender in some cases, representation could also be based on other categories and for instance take age into account: the least experienced would take part in the decision-making process under various modalities, like the most experienced, each one bringing their own points of view or appreciation on a policy, a text or a project. The shapes of participative democracy are many. But a material common point consists in the repartition of competences between representatives on the one hand and participative democracy institutions on the other. A new sort of horizontal subsidiarity could base itself on this repartition for participative democracy. It would indeed combine representative and participative democracies by binding the latter to certain fields of intervention, depending on time (space) and subjects. The principle of representative democracy could be maintained while laying out wider and more systematic spaces for the citizens’ intervention in public decision60. The evolution of economy makes it necessary to revise the process of the political and obviously budgetary decision making. The globalization of economy and its new developments imply a reconsideration of the traditional question about the way to deal with and build up the

collective interest. The question no longer deserves to be confined to the local level but to be brought to the national one. Even the supranational (European) level has jumped on this question61. The point is to deal more globally and in new terms with the protection of the civil as well as the economic rights, and to consider participative democracy as a potential lever of public finance, as a means to rebalance it. Participative democracy is one solution to the repercussions of the economic and financial crisis on the taxpayers and the citizens, if not to the crisis itself. This is a new answer to an old question – of sovereignty, its bearer and its modalities – but it brings a new light on political regimes. One day maybe will their classification and definition depend on new variables, and within the traditional executive-legislative-judicial trilogy of the division of powers will the participative democracy and its economic implications become integrated.

59 .  Cf. article 2 of the Italian Constitution: “The Republic recognises and guarantees the inviolable rights of the person, both as an individual and in the social groups where human personality is expressed […]”. 60 .  This distribution of the competences between the representatives and the people could be modelled on the territorial distribution of the competences, often organized by Constitutions or laws. Lists of subjects could be made. The popular consultation (or other forms different from the parliamentary one) could be done in application of those competences lists and/or on the initiative of some traditional institutions – like the executive chief of the parliament’s speaker – or groups of persons – petition, popular initiative, citizen and representative initiative etc. 368

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61 .  Cf. the European citizens’ initiative at article 11 of the Treaty on European Union, since the Treaty of Lisbon. 369

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21 O “CORONELISMO” E A DEMOCRACIA BRASILEIRA: um breve ensaio reflexivo sobre a Lei da “Ficha Limpa” e sobre o financiamento das campanhas eleitorais, sob as luzes do magistério doutrinário de Victor Nunes Leal. Luís Carlos Martins Alves Jr. Não podemos negar que o “coronelismo” corresponde a uma quadra da evolução política do nosso povo, que deixa muito a desejar. Tivéssemos maior dose de espírito público e as coisas certamente se passariam de outra forma. Por isso, todas as medidas de moralização da vida pública nacional são indiscutivelmente úteis e merecem o aplaudo de quantos anseiam pela elevação do nível político do Brasil. Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da população rural, e, em conseqüência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo às intenções mais nobres. (VICTOR NUNES LEAL, Coronelismo, enxada e voto – o município e o regime representativo no Brasil).1

INTRODUÇÃO

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presente texto (ensaio reflexivo) tem com objeto o processo e o julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal - STF, acerca da validade jurídica da Lei da “Ficha Limpa” (Lei Complementar n. 135, 4.6.2010), que acrescentou preceitos normativos à Lei Complementar n. 64., de 18.5.1990, que estabeleceu condições mais rígidas para que o indivíduo possa participar, como candidato, do processo eleitoral. Também é objeto desta reflexão o processo que tramita no STF, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.650, que analisa a validade constitucional 1 .  LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 7ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 239-240. 371

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do financiamento, pelas empresas privadas, das campanhas eleitorais. A finalidade do texto consiste em refletir sobre a crença brasileira no poder mágico das leis e das decisões judiciais, especialmente em matéria constitucional eleitoral, segundo a qual modificações normativas seriam suficientes e bastantes para mudar a realidade, sem embargo da teimosia dos fatos. A justificativa desta reflexão descansa no aspecto simbólico tanto da legislação questionada quanto dos julgamentos do STF, reveladores da tensão entre os princípios da soberania popular, da democracia, da liberdade, da república e da moralidade, pois a depender das concepções adotadas haverá o sacrifício de interesses, tanto individuais quanto coletivos. As hipóteses levantadas são basicamente duas. A Lei da “Ficha Limpa” não foi uma vitória da sociedade, mas a demonstração de que o povo-eleitor brasileiro não é da confiança do Estado (legislador, administrador, julgador e demais órgãos e instituições estatais) nem de setores organizados da sociedade civil (Igrejas, sindicatos, partidos políticos, entidades e corporações de classe, grande imprensa etc.). A outra hipótese, no tocante ao financiamento privado de campanhas eleitorais, consiste na ideia de que excluir as empresas do processo político eleitoral é medida antidemocrática e que vai na “contramão” de uma democracia que deixou de ser atomizada no indivíduo isolado e se tornou uma complexa realidade que a todos interessa, tanto a indivíduos como às corporações, sejam públicas ou privadas. Na construção deste ensaio, além da leitura dos textos normativos e das decisões judiciais, bem como das peças jurídicas contidas nos autos dos processos que serão examinados, também se utilizará das categorias lançadas por Victor Nunes Leal no citado livro “Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil”, que demonstrou que na experiência política nacional, a partir das eleições municipais, a causa dos males políticos reside basicamente na miséria econômica do indivíduo eleitor e na imoralidade de políticos que se beneficiam dessa situação social, aproveitando-se dessa estrutura nociva aos interesses do Brasil, apesar de todas as leis moralizadoras das práticas eleitorais. “Coronelismo...” será o farol a iluminar nesse percurso, pois essa obra, que já nasceu clássica (perene e atual), segundo o autorizado magistério de José Murilo de Carvalho2, Alberto Venâncio Filho3 e Barbosa Lima Sobri-

nho4, foi publicada em 1949, fruto de sua Tese para a cátedra de Ciência Política na Faculdade Nacional de Filosofia, obtida em 1948, que é tido como o primeiro trabalho moderno de ciência política produzido no Brasil. Segundo Victor Nunes Leal, a compreensão dos fenômenos políticos nacionais necessitava de uma análise além dos textos normativos e das promessas jurídicas neles estampadas, pois nem sempre as leis conseguem domesticar a rebeldia dos fatos. Victor Nunes Leal fez um trabalho de realismo político e jurídico. Com efeito, o conjunto de preceitos normativos e de práticas sociais e estatais que regulam o acesso, o funcionamento, a estrutura e a dinâmica do Poder é o que se denomina de direito político. 5 No Brasil, em matéria eleitoral, têm-se os preceitos normativos contidos no texto da Constituição, nos textos das leis (ordinárias e complementares), nas resoluções e provimentos emanados dos tribunais eleitorais e nas decisões judiciais em matéria constitucional eleitoral, especialmente as produzidas pelos Tribunais Regionais Eleitorais – TREs, Tribunal Superior Eleitoral - TSE e Supremo Tribunal Federal - STF. Portanto, textos normativos eleitorais brotam às mancheias. O modelo brasileiro, em sede de justiça eleitoral, é constituído pelo STF, TSE, TREs, juízes e juntas eleitorais. No Brasil, como é curial, a pletora normativa é gigantesca, e o direito, que deveria ser um instrumento (tecnologia) normativo redutor de complexidades, se torna um elemento amplificador dessas complexidades. A vida é difícil e complexa. O direito deveria ser fácil e simples. No momento em que o sistema jurídico normativo se torna difícil e complexo, ele nega a sua essência e perde o seu sentido social. Em face dessa abundância normativa (textos legais, decisões judiciais, práticas sociais etc.) e perspectivando que a realidade político-eleitoral é demasiadamente complicada, é necessário discernir o que deve ser levado em consideração. Portanto, não é minguado o “ordenamento jurídico normativo eleitoral”. Não faltam leis para resolver os problemas políticos eleitorais brasileiros. A rigor, há um número excessivo e abundante de preceitos normativos regulando o fenômeno político eleitoral, de modo que os partícipes do processo político eleitoral necessitam gastar muito tempo e esforços com o sistema normativo, em vez de canalizarem energia

4 .  LIMA SOBRINHO, Barbosa. Prefácio à segunda edição. Coronelismo..., 1975. 2 .  CARVALHO, José Murilo. Prefácio à sétima edição. Coronelismo..., 2012. 3 .  VENÂNCIO FILHO, Alberto. Prefácio à terceira edição. Coronelismo..., 1997. 372

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5 .  COÊLHO, Marcus Vinícius Furtado. Direito eleitoral e processo eleitoral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. 373

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com o processo político eleitoral em si. Situação tipicamente brasileira.6 É facilmente perceptível o caráter ingênuo desse conjunto normativo e legislativo. Essa ingenuidade (quase infantilidade) decorre de uma crença na força “mágica” ou “mística” das normas jurídicas. Com efeito, no Brasil é forte no imaginário social e coletivo que a positivação de desejos e interesses nos textos normativos será suficiente para lhes tornar realidade. Em vez de se atacar e enfrentar as raízes sociais, econômicas, culturais ou científicas dos problemas, criam-se leis e estatutos normativos. O direito seria a solução mágica para todos os dramas da vida, segundo essa visão ingênua e infantil.7 Essa visão fantasiosa dos poderes metafísicos do direito leva à frustração de expectativas, pois a realidade fática, supercomplexa e difícil, não se rende facilmente aos encantos das “leis de papel”, como sucede com a realidade política brasileira e a sua difícil relação com as leis eleitorais. É sobre esse tema que passaremos a refletir.

1  O “CORONELISMO” POLÍTICO

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o último parágrafo de sua obra-prima, Victor Nunes Leal, modestamente, revelou que não teve o propósito de apresentar soluções para o problema do “coronelismo”, esforçando-se, apenas, para compreender uma pequena parte dos males que afligem o Brasil e os brasileiros. Segundo ele, outros, mais capacitados, deveriam empreender a tarefa de indicar o remédio. Na posologia política nacional, vários remédios foram prescritos, quase sempre por pessoas bem menos capacitadas que Victor Nunes Leal, para curar as enfermidades políticas e eleitorais. Mas o que era (é) o “coronelismo” para Victor Nunes Leal? A resposta do citado autor merece ser transcrita integralmente, nada obstante seja longa: “Como indicação introdutória, devemos notar, desde logo, que concebemos o ‘coronelismo’ como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude

6 .  O Tribunal Superior Eleitoral tem uma publicação oficial intitulada “Código Eleitoral anotado e legislação complementar”, disponível na página virtual da Corte: www.tse.jus.br. 7 .  OLIVECRONA, Karl. Linguagem jurídica e realidade. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 374

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da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa. “Por isso mesmo, o ‘coronelismo’ é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil. Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo poder público, e isso se explica justamente em função do regime representativo, com sufrágio amplo, pois o governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é incontestável. Desse compromisso fundamental resultam as características secundárias do sistema ‘coronelista’, como sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais”. (2012, pp. 43-44). Uma das facetas do “coronelismo” consiste no voto de “cabresto”, decorrência da extrema pobreza das massas rurais dominada pela opulência econômica do chefe político, que faz daquele dependente desse (2012, p. 56). Logo, podemos inferir que a miséria econômica é a causa das misérias políticas. Outro aspecto que ensejou o “coronelismo” foi o aumento das despesas eleitorais, com a ampliação substantiva do corpo eleitoral, constituído, em sua esmagadora maioria por eleitores necessitados (2012, p. 57). O “coronel” encarna e personifica as melhorias públicas, as prestações dos serviços e a feitura de obras, pois, não raras vezes, graças ao seu empenho e prestígio, é que essas melhorias alcançam a comunidade (2012, p. 58). Mas essa atuação do “coronel” tem uma fatura. Vários preços são pagos: o “paternalismo”, o “filhotismo” e o “mandonismo”. Aos amigos e parentes, as benesses do poder e das leis. Aos adversários (inimigos) os rigores da lei e as perseguições abusivas do poder (2012, p. 60). Essa relação de reciprocidade (aos aliados os favores, aos adversários os rigores) do chefe político municipal se repete nas relações com os chefes políticos estaduais e federais, pois o apoio do Estado, com o “cofre das graças e o poder da desgraça”, faz com que o “coronel” consiga manter a sua predominância política. Cuide-se que os compromissos têm uma ética especial, porquanto não são forjados na base de princípios políticos, mas em torno de coisas concretas, e prevalecem para uma ou para poucas eleições (2012, pp. 61-63).

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Essa dependência em relação ao poder do Estado decorre da fraqueza financeira dos municípios. O município não tem autonomia alguma. O “coronel” é governista, é situacionista. Ele não se sente à vontade “nem tem o direito de impor aos amigos o sacrifício da oposição”. O “coronel” deve ter à sua disposição a caneta para beneficiar os aliados e o porrete para fustigar os inimigos. Daí porque o maior mal que pode acontecer a um chefe político municipal é ter o governo do Estado como adversário (2012, pp. 64-67). Eis a denúncia de Victor Nunes Leal (2012, p. 68): “A essência, portanto, do compromisso ‘coronelista’ – salvo situações especiais que não constituem a regra – consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual, carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar”. Victor Nunes Leal (2012, pp. 70-71) faz contundente ataque à “autêntica mistificação do regime representativo”, que segundo ele não representa a verdade social e política da Nação. Para ele, a “vista grossa” que os governos estaduais sempre fizeram sobre a administração municipal, especialmente em relação à corrupção, deixando de empregar sua influência política para moralizá-la, fazia parte do sistema de compromisso do “coronelismo”. Essa omissão (ou incentivo) ao descalabro governamental, por parte das autoridades estaduais e federais, servia para livrar os pleitos municipais dos riscos de uma derrota e predispunha o eleitorado em favor dos candidatos governistas, graças ao poder de coesão do governo, especialmente junto ao eleitorado dos municípios rurais. (2012, p. 73). Segundo Victor Nunes Leal (2012, p. 74) o “coronelismo” se assenta na fraqueza econômica do dono da terra, que se ilude com o prestígio do poder, obtido à custa da submissão política, e na fraqueza econômica dos eleitores rurais, que se encontram em situação quase sub-humana. Certeira essa crítica de Victor Nunes Leal. Com efeito, se observarmos a realidade brasileira atual, mesmo com a diminuição da população rural e aumento dos centros urbanos, perceberemos que dois aspectos são relevantes para uma manutenção dessa dependência municipal em face dos governos federal e estadual: a quantidade absurda de municípios e o sistema eleitoral proporcional.8 8 .  No Brasil há 5.570 Municípios. Logo são 5.570 Prefeitos e Vice-Prefeitos. 5.570 Câmaras de Vereadores, com no mínimo 9 Vereadores em cada uma delas. Informações obtidas junto ao IBGE: www.ibge.gov.br 376

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Sem receios, podemos dizer que quase 90% dos municípios brasileiros sobrevivem graças às transferências de verbas federais e estaduais, sem qualquer autonomia econômica e financeira. Quanto ao modelo eleitoral, pode-se dizer que os candidatos, salvo honrosas exceções, à deputância estadual e federal não necessitam de sólidas bases político-eleitorais, bastando ter dinheiro suficiente para suas eleições.9 Mas, como dizia Victor Nunes Leal há quase 70 anos (2012, pp. 137139), o município é a peça básica das campanhas eleitorais no Brasil, pois uma vez convocado o povo para as urnas, em uma estrutura agrária como a brasileira, o “coronelismo” ressurgirá das próprias cinzas. Victor Nunes Leal (2012, pp. 189-204) denuncia o papel da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário na consolidação e fortalecimento do “coronelismo”, especialmente com as nomeações discricionárias e com as promoções por merecimento que empolgam os carreiristas dessas instituições, “pois as garantias legais nem sempre podem suplantar as fraquezas humanas”. Victor Nunes Leal (2012, pp. 213-229), após apresentar as várias modificações eleitorais que visavam corrigir e melhorar o modelo representativo brasileiro, revela que muitas delas foram baldas, pois não se atacou a raiz do problema: a corrupção eleitoral e as misérias sociais e econômicas dos eleitores. O papel das leis não era forte o suficiente para enfrentar as realidades e necessidades materiais da vida. Segundo o citado autor, apesar dos esforços dos bem intencionados, não se conseguiu erradicar a manipulação dos votos pelos chefes políticos locais, especialmente do eleitor miserável das “grotas”, das zonas rurais. O autor faz uma crítica aos partidos políticos, que, segundo ele, não passam de legendas ou rótulos destinados a atender às exigências técnico-jurídicas do processo eleitoral, à vista das múltiplas alianças para as eleições estaduais e municipais, reveladoras da ausência de programas e princípios ideológicos e políticos, garantidoras de um perene “caciquismo” político, fundado na ignorância e no desamparo do trabalhador dependente dos favores dos poderosos (2012, p. 226). Nas suas considerações finais (2012, pp. 230-240), o autor assenta que o “coronelismo” é um sistema que se alimenta na miséria social e econô9 .  Tomemos, à guisa de exemplo, o estado de Minas Gerais, com os seus 853 Municípios. Nas eleições de 2010 teve candidato eleito com 40.093 votos para deputado federal e com 31.180 votos para deputado estadual. Para se eleger deputado federal bastava obter 47 votos por município e para se eleger deputado estadual bastava obter 37 votos por cidade. Informações obtidas junto ao TSE: www.tse.jus.br 377

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mica do eleitor, na necessidade de poder político do chefe local, também ele fraco economicamente, e no acordo entre os chefes políticos estaduais e federais com os “coronéis” na garantia dos votos de cabresto. A solução apontada por Victor Nunes Leal consiste na independência econômica, social, cultural e moral do eleitor. Para isso, seria necessária a mudança da estrutura social e econômica do Brasil, especialmente com a urbanização e industrialização. Com absoluta razão Victor Nunes Leal. Indivíduos independentes e autônomos, com uma sociedade maior e mais forte que o Estado, inibiriam os políticos “coronelistas”. Logo, a melhor maneira de acabar com a pobreza dos eleitores consiste no aumento e na produção de riquezas para que todos possam se beneficiar. A pobreza econômica e a miséria moral são as principais causas dos problemas sociais e políticos brasileiros.

2  A LEI DA “FICHA LIMPA”

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STF enfrentou o tema da validade normativa da Lei da “Ficha Limpa” basicamente em quatro julgamentos. No Recurso Extraordinário n. 630.14710 (caso Joaquim Roriz), no Recurso Extraordinário n. 631.10211 (caso Jader Barbalho), no Recurso Extraordinário n. 633.70312 (caso Leonídio Bouças) e no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade ns. 2913 e 3014 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.57815. Nos referidos recursos extraordinários a Corte 10 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 630.147. Redator Ministro Marco Aurélio. Recorrentes: Joaquim Domingos Roriz e outros. Recorridos: Antonio Carlos de Andrade e outros. Informações: www.stf.jus.br. 11 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 631.102. Relator Ministro Joaquim Barbosa. Recorrente: Jader Fontenele Barbalho. Recorrido: Ministério Público Eleitoral. Informações: www.stf.jus.br. 12 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 633.703. Relator Ministro Gilmar Mendes. Recorrente: Leonídio Henrique Correa Bouças. Recorrido: Ministério Público Eleitoral. Informações: www.stf.jus.br. 13 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 29. Relator Ministro Luiz Fux. Requerente: Partido Popular Socialista. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Informações: www.stf.jus.br. 14 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 30. Relator Ministro Luiz Fux. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Informações: www.stf.jus.br. 15 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.578. 378

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enfrentou a questão da aplicabilidade da Lei da “Ficha Limpa” para as eleições ocorridas no ano de 2010, ano de edição da referida Lei. No julgamento das ações concentradas de constitucionalidade (ADCs ns. 29 e 30, e ADI 4.578), o Tribunal enfrentou a questão da validade integral da citada Lei da Ficha Limpa. Na primeira ocasião, no julgamento do citado RE 630.14716, o Tribunal não chegou a um consenso, pois 5 ministros (Ayres Britto, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Ellen Gracie) votaram no sentido da aplicabilidade imediata da Lei, enquanto outros 5 ministros (Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso) votaram no sentido de que a Lei não poderia ser aplicada no mesmo ano, em face do disposto no art. 16, CF, que preceitua que a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência. No segundo julgamento, RE 631.10217 (caso Jáder), ainda com sua Relator Ministro Luiz Fux. Requerente: Confederação Nacional das Profissões Liberais. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Informações: www.stf.jus.br. 16 .  EMENTA DO ACÓRDÃO: ACÓRDÃO – REDAÇÃO – ÓPTICA VENCIDA –PROCLAMAÇÃO. Ante proclamação do redator na assentada de julgamento, fica em plano secundário o fato de o designado haver ficado vencido em determinadas matérias, no que se tornaram prejudicadas em face da perda de objeto do recurso. REPERCUSSÃO GERAL – CONFIGURAÇÃO – PROCESSO ELEITORAL – LEI – RETROAÇÃO. Surge a repercutir, além dos muros subjetivos do processo, controvérsia sobre aplicar-se lei que, de alguma forma, altere o processo eleitoral a certame realizado antes de decorrido um ano da respectiva edição, presente ainda eficácia retroativa impugnada na origem. Considerações. CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE – RECURSO – CONHECIMENTO E JULGAMENTO DE FUNDO. Na dicção da ilustrada maioria, descabe, mesmo que na apreciação de fundo do recurso, adentrar a análise da harmonia, ou não, da lei – da qual se argui certo vício – com a Constituição Federal. Considerações. REGISTRO – CANDIDATURA – LEI DE REGÊNCIA – CONTROVÉRSIA – RENÚNCIA – PREJUÍZO DO EXAME. Vindo o candidato a renunciar à candidatura, acaba prejudicado o exame do recurso voltado ao deferimento. Informações: www.stf.jus.br. 17 .  EMENTA DO ACÓRDÃO: EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. ART. 14, § 9º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MORALIDADE, PROBIDADE ADMINISTRATIVA E VIDA PREGRESSA. INELEGIBILIDADE. REGISTRO DE CANDIDATURA. LEI COMPLEMENTAR 135/2010. FICHA LIMPA. ALÍNEA K DO § 1º DO ART. 1º DA LEI COMPLEMENTAR 64/1990. RENÚNCIA AO MANDATO. EMPATE. MANUTENÇÃO DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. RECURSO DESPROVIDO. O recurso extraordinário trata da aplicação, às eleições de 2010, da Lei Complementar 135/2010, que alterou a Lei Complementar 64/1990 e nela incluiu novas causas de inelegibilidade. Alega-se ofensa ao princípio da anterioridade ou da anualidade eleitoral, disposto no art. 16 da Constituição Federal. O recurso extraordinário objetiva, ainda, a declaração de inconstitucionalidade da alínea k do § 1º do art. 1º da LC 64/1990, incluída pela LC 135/2010, para que seja deferido o registro de candidatura do recorrente. Alega-se ofensa ao princípio da irretroatividade das leis, da segurança jurídica e da presunção de inocên379

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composição incompleta, a Corte, em face da repetição do empate, resolvendo questão de ordem, decidiu aplicar analogicamente o seu Regimento Interno (art. 205, parágrafo único, II), e decidiu pela manutenção do ato normativo impugnado, no caso, a decisão recorrida emanada do Tribunal Superior Eleitoral que determinou a aplicação da Lei da “Ficha Limpa” em relação ao candidato Jader Barbalho, de modo que ele não poderia se candidatar e, uma vez candidato, não poderia tomar posse, pois os votos que lhe foram dirigidos deveriam ser anulados. Na terceira oportunidade, nos autos do RE 633.70318 (caso Leonídio cia, bem como contrariedade ao art. 14, § 9º da Constituição, em razão do alegado desrespeito aos pressupostos que autorizariam a criação de novas hipóteses de inelegibilidade. Verificado o empate no julgamento do recurso, a Corte decidiu aplicar, por analogia, o art. 205, parágrafo único, inciso II, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, para manter a decisão impugnada, proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral. Recurso desprovido. Decisão por maioria. Informações: www.stf.jus.br.

18 .  EMENTA DO ACÓRDÃO: LEI COMPLEMENTAR 135/2010, DENOMINADA LEI DA FICHA LIMPA. INAPLICABILIDADE ÀS ELEIÇÕES GERAIS 2010. PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL (ART. 16 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA). I. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL ELEITORAL. O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las. O art. 16 da Constituição, ao submeter a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, constitui uma garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos. Precedente: ADI 3.685, Rel. Min. Ellen Gracie, julg. em 22.3.2006. A LC 135/2010 interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência como a fase pré-eleitoral, que se inicia com a escolha e a apresentação das candidaturas pelos partidos políticos e vai até o registro das candidaturas na Justiça Eleitoral. Essa fase não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior. A fase pré-eleitoral de que trata a jurisprudência desta Corte não coincide com as datas de realização das convenções partidárias. Ela começa muito antes, com a própria filiação partidária e a fixação de domicílio eleitoral dos candidatos, assim como o registro dos partidos no Tribunal Superior Eleitoral. A competição eleitoral se inicia exatamente um ano antes da data das eleições e, nesse interregno, o art. 16 da Constituição exige que qualquer modificação nas regras do jogo não terá eficácia imediata para o pleito em curso. II. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE DE CHANCES. Toda limitação legal ao direito de sufrágio passivo, isto é, qualquer restrição legal à elegibilidade do cidadão constitui uma limitação da igualdade de oportunidades na competição eleitoral. Não há como conceber causa de inelegibilidade que não restrinja a liberdade de acesso aos cargos públicos, por parte dos candidatos, assim como a liberdade para escolher e apresentar candidaturas por parte dos partidos políticos. E um dos fundamentos teleológicos do art. 16 da Constituição é impedir alterações no sistema eleitoral 380

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Bouças), o Tribunal, com sua composição plena, por 6 votos a 5, tendo em vista o voto de desempate do Ministro Luiz Fux, decidiu que a Lei da “Ficha Limpa” não se aplicaria nas eleições ocorridas no mesmo ano de sua edição (2010), em face do citado artigo 16, CF. A corrente vencida, composta dos referidos 5 ministros, defendia o afastamento do referido artigo 16, CF, sob o argumento de que a lei não alterava o processo eleitoral, pois cuidava apenas de condições de elegibilidade e o fazia com apoio no § 9º, art. 14, CF, que preceitua que Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidades e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. Ante esse quadro de instabilidade normativa e jurisprudencial, o Tribunal foi instado a se manifestar, definitivamente, acerca desse aludido diploma legislativo nos autos das citadas ações constitucionais concentradas e abstratas (ADI n. 4.578 e ADCs ns. 29 e 30) 19. que venham a atingir a igualdade de participação no prélio eleitoral. III. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ELEITORAL COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL DAS MINORIAS E O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA DEMOCRACIA. O princípio da anterioridade eleitoral constitui uma garantia fundamental também destinada a assegurar o próprio exercício do direito de minoria parlamentar em situações nas quais, por razões de conveniência da maioria, o Poder Legislativo pretenda modificar, a qualquer tempo, as regras e critérios que regerão o processo eleitoral. A aplicação do princípio da anterioridade não depende de considerações sobre a moralidade da legislação. O art. 16 é uma barreira objetiva contra abusos e desvios da maioria, e dessa forma deve ser aplicado por esta Corte. A proteção das minorias parlamentares exige reflexão acerca do papel da Jurisdição Constitucional nessa tarefa. A Jurisdição Constitucional cumpre a sua função quando aplica rigorosamente, sem subterfúgios calcados em considerações subjetivas de moralidade, o princípio da anterioridade eleitoral previsto no art. 16 da Constituição, pois essa norma constitui uma garantia da minoria, portanto, uma barreira contra a atuação sempre ameaçadora da maioria. IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. Recurso extraordinário conhecido para: a) reconhecer a repercussão geral da questão constitucional atinente à aplicabilidade da LC 135/2010 às eleições de 2010, em face do princípio da anterioridade eleitoral (art. 16 da Constituição), de modo a permitir aos Tribunais e Turmas Recursais do país a adoção dos procedimentos relacionados ao exercício de retratação ou declaração de inadmissibilidade dos recursos repetitivos, sempre que as decisões recorridas contrariarem ou se pautarem pela orientação ora firmada. b) dar provimento ao recurso, fixando a não aplicabilidade da Lei Complementar n° 135/2010 às eleições gerais de 2010. Informações: www.stf.jus.br. 19 .  EMENTAS DOS ACÓRDÃOS: AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE E AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE EM JULGAMENTO CONJUNTO. LEI COMPLEMENTAR Nº 135/10. HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE. ART. 14, § 9º, DA 381

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CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DE MANDATOS ELETIVOS. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À IRRETROATIVIDADE DAS LEIS: AGRAVAMENTO DO REGIME JURÍDICO ELEITORAL. ILEGITIMIDADE DA EXPECTATIVA DO INDIVÍDUO ENQUADRADO NAS HIPÓTESES LEGAIS DE INELEGIBILIDADE. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL): EXEGESE ANÁLOGA À REDUÇÃO TELEOLÓGICA, PARA LIMITAR SUA APLICABILIDADE AOS EFEITOS DA CONDENAÇÃO PENAL. ATENDIMENTO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO: FIDELIDADE POLÍTICA AOS CIDADÃOS. VIDA PREGRESSA: CONCEITO JURÍDICO INDETERMINADO. PRESTÍGIO DA SOLUÇÃO LEGISLATIVA NO PREENCHIMENTO DO CONCEITO. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI. AFASTAMENTO DE SUA INCIDÊNCIA PARA AS ELEIÇÕES JÁ OCORRIDAS EM 2010 E AS ANTERIORES, BEM COMO E PARA OS MANDATOS EM CURSO. 1. A elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo eleitoral, razão pela qual a aplicação da Lei Complementar nº 135/10 com a consideração de fatos anteriores não pode ser capitulada na retroatividade vedada pelo art. 5º, XXXVI, da Constituição, mercê de incabível a invocação de direito adquirido ou de autoridade da coisa julgada (que opera sob o pálio da cláusula rebus sic stantibus) anteriormente ao pleito em oposição ao diploma legal retromencionado; subjaz a mera adequação ao sistema normativo pretérito (expectativa de direito). 2. A razoabilidade da expectativa de um indivíduo de concorrer a cargo público eletivo, à luz da exigência constitucional de moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º), resta afastada em face da condenação prolatada em segunda instância ou por um colegiado no exercício da competência de foro por prerrogativa de função, da rejeição de contas públicas, da perda de cargo público ou do impedimento do exercício de profissão por violação de dever ético-profissional. 3. A presunção de inocência consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição Federal deve ser reconhecida como uma regra e interpretada com o recurso da metodologia análoga a uma redução teleológica, que reaproxime o enunciado normativo da sua própria literalidade, de modo a reconduzi-la aos efeitos próprios da condenação criminal (que podem incluir a perda ou a suspensão de direitos políticos, mas não a inelegibilidade), sob pena de frustrar o propósito moralizante do art. 14, § 9º, da Constituição Federal. 4. Não é violado pela Lei Complementar nº 135/10 o princípio constitucional da vedação de retrocesso, posto não vislumbrado o pressuposto de sua aplicabilidade concernente na existência de consenso básico, que tenha inserido na consciência jurídica geral a extensão da presunção de inocência para o âmbito eleitoral. 5. O direito político passivo (ius honorum) é possível de ser restringido pela lei, nas hipóteses que, in casu, não podem ser consideradas arbitrárias, porquanto se adequam à exigência constitucional da razoabilidade, revelando elevadíssima carga de reprovabilidade social, sob os enfoques da violação à moralidade ou denotativos de improbidade, de abuso de poder econômico ou de poder político. 6. O princípio da proporcionalidade resta prestigiado pela Lei Complementar nº 135/10, na medida em que: (i) atende aos fins moralizadores a que se destina; (ii) estabelece requisitos qualificados de inelegibilidade e (iii) impõe sacrifício à liberdade individual de candidatar-se a cargo público eletivo que não supera os benefícios socialmente desejados em termos de moralidade e probidade para o exercício de referido munus publico. 7. O exercício do ius honorum (direito de concorrer a cargos eletivos), em um juízo de ponderação no caso das inelegibilidades previstas na Lei Complementar nº 135/10, opõe-se à própria democracia, que pressupõe a fidelidade política da atuação dos representantes populares. 8. A Lei Complementar nº 135/10 também não fere o núcleo essencial dos direitos políticos, na medida em que estabelece restrições temporárias aos direitos políticos passivos, sem

A Corte, por maioria, chancelou integralmente a validade da citada Lei da “Ficha Limpa”, excetuando-se, apenas, em sua aplicabilidade para as eleições de 2010, conforme o referido precedente do RE 633.703. Todos esses julgamentos foram marcados por grande expectativa, pois a citada Lei da Ficha Limpa, conquanto tenha nascido formalmente de um projeto de lei de autoria do Poder Executivo (PLP n. 168/1993) 20 , foi materialmente provocado por força de uma intensa campanha de mobilização popular, capitaneada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e várias outras entidades da sociedade civil organizada, que obtiveram a subscrição de quase 1.600.000 (um milhão e seiscentos mil) eleitores, como projeto de iniciativa popular. 21 prejuízo das situações políticas ativas. 9. O cognominado desacordo moral razoável impõe o prestígio da manifestação legítima do legislador democraticamente eleito acerca do conceito jurídico indeterminado de vida pregressa, constante do art. 14, § 9.º, da Constituição Federal. 10. O abuso de direito à renúncia é gerador de inelegibilidade dos detentores de mandato eletivo que renunciarem aos seus cargos, posto hipótese em perfeita compatibilidade com a repressão, constante do ordenamento jurídico brasileiro (v.g., o art. 55, § 4º, da Constituição Federal e o art. 187 do Código Civil), ao exercício de direito em manifesta transposição dos limites da boa-fé. 11. A inelegibilidade tem as suas causas previstas nos §§ 4º a 9º do art. 14 da Carta Magna de 1988, que se traduzem em condições objetivas cuja verificação impede o indivíduo de concorrer a cargos eletivos ou, acaso eleito, de os exercer, e não se confunde com a suspensão ou perda dos direitos políticos, cujas hipóteses são previstas no art. 15 da Constituição da República, e que importa restrição não apenas ao direito de concorrer a cargos eletivos (ius honorum), mas também ao direito de voto (ius sufragii). Por essa razão, não há inconstitucionalidade na cumulação entre a inelegibilidade e a suspensão de direitos políticos. 12. A extensão da inelegibilidade por oito anos após o cumprimento da pena, admissível à luz da disciplina legal anterior, viola a proporcionalidade numa sistemática em que a interdição política se põe já antes do trânsito em julgado, cumprindo, mediante interpretação conforme a Constituição, deduzir do prazo posterior ao cumprimento da pena o período de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o trânsito em julgado. 13. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente. Ações declaratórias de constitucionalidade cujos pedidos se julgam procedentes, mediante a declaração de constitucionalidade das hipóteses de inelegibilidade instituídas pelas alíneas “c”, “d”, “f”, “g”, “h”, “j”, “m”, “n”, “o”, “p” e “q” do art. 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 64/90, introduzidas pela Lei Complementar nº 135/10, vencido o Relator em parte mínima, naquilo em que, em interpretação conforme a Constituição, admitia a subtração, do prazo de 8 (oito) anos de inelegibilidade posteriores ao cumprimento da pena, do prazo de inelegibilidade decorrido entre a condenação e o seu trânsito em julgado. 14. Inaplicabilidade das hipóteses de inelegibilidade às eleições de 2010 e anteriores, bem como para os mandatos em curso, à luz do disposto no art. 16 da Constituição. Precedente: RE 633.703, Rel. Min. GILMAR MENDES (repercussão geral). Informações: www.stf.jus.br. 20 .  Informações: www.camara.gov.br. 21 .  MOVIMENTO DE COMBATE À CORRUPÇÃO ELEITORAL - MCCE. Informações: www.mcce.org.br.

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Para muitos, inclusive para vários Ministros do STF, a quantidade de assinaturas é um elemento relevante. Mas esse número de assinaturas não é tão impressionante assim, pois no Brasil há quase 130 milhões de eleitores, de modo que apenas 1,23% dos eleitores brasileiros manifestaram, por escrito, sua adesão e preocupação com a “limpeza” do processo eleitoral. Assim, os grandes entusiastas desse “projeto de lei” eram as entidades organizadoras e a grande imprensa, pois a esmagadora maioria dos brasileiros (98,77%) não estavam interessados nesse pleito político-legislativo. Nada obstante, essa mobilização popular impressionou a vários ministros da Corte, pois em alguns deles, em suas manifestações, mencionaram esse fato de que 1 milhão e 600 mil eleitores subscreveram iniciativa popular. Mas vejamos a curiosidade dos números. O candidato ao senado Jader Barbalho, que foi inicialmente alcançado pela Lei da “Ficha Limpa”, obteve, segundo informações do TSE22, 1.799.762 votos, quase 200 mil “chancelas” superiores à citada Lei da “Ficha Limpa”. Evidentemente que os votos não anulam as leis, mas se o número de apoiadores de uma lei é relevante no julgamento, como sucedeu com a “Ficha Limpa”, o número de votos obtidos pelos alvos da citada Lei também deveria ser levado em consideração. Fenômeno similar ocorreu com a candidatura de Joaquim Roriz para governador do Distrito Federal. O eleitor do Distrito Federal foi privado do direito de votar (ou de não votar) no candidato Joaquim Roriz. O povo/eleitor candango não pode, ele mesmo, escolher se queria Roriz ou outro candidato. A Justiça Eleitoral decidiu pelo povo. Nas democracias, ninguém tem o direito de decidir pelo povo/eleitor. Cuide-se que a OAB, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública, Poder Judiciário, imprensa, igreja, não são representantes do povo/eleitor. Não obstante sejam importantes instituições sociais e estatais, essas instituições não são as porta-vozes da Nação. O povo fala pelo voto, como eleitor, ou se manifesta pelas ruas, como cidadão. Em que pese esse caráter antidemocrático da Lei da “Ficha Limpa” e das decisões judiciais que excluem candidatos do processo eleitoral, há indubitável aspecto republicano nessas medidas. É que a República é o “filtro” da Democracia. A República, por meio das leis e decisões judiciais, condiciona o poder soberano do povo, de modo a torná-lo racional, refreando-se as paixões das massas. É um aparente paradoxo. 22 .  BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Informações: www.tse.jus.br. 384

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Essas preocupações estiveram presentes nas ideias inspiradoras dos “Federalistas” (James Madison, Alexander Hamilton e John Jay) 23 quando defenderam que as leis republicanas deveriam servir de proteção em face das paixões irracionais do povo, próprio das democracias. Era preciso encontrar um ponto ótimo de equilíbrio entre a “emoção” democrática e a “razão” republicana. Eis perene advertência dos “Federalistas” (Artigo 51): “A grande garantia contra uma concentração gradual dos vários poderes no mesmo braço, porém, consiste em dar aos que administram cada poder os meios constitucionais necessários e os motivos pessoais para resistir aos abusos dos outros. As medidas de defesa devem, neste caso como em todos os outros, ser proporcionais ao perigo de ataque. A ambição deve poder contra-atacar a ambição. O interesse do homem deve estar vinculado aos direitos constitucionais do cargo. Talvez não seja lisonjeiro para a natureza humana considera que tais estratagemas poderiam ser necessários para o controle dos abusos do governo. Mas o que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos. Ao moldar um governo que deve ser exercido por homens sobre homens, a grande dificuldade reside nisto: é preciso primeiro capacitar o governo a controlar os governados; e em seguida obrigá-lo a se controlar a si próprio. A dependência para com o povo é, sem dúvida, o controle primordial sobre o governo, mas a experiência ensinou à humanidade que precauções auxiliares são necessárias”. (1993, p. 350). Tenha-se que o STF, no julgamento da Ficha Limpa, afastou jurisprudência confirmada no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 14424. Nesse julgamento, a Corte entendeu que 23 .  MADISON, James e outros. Os Artigos Federalistas. Tradução de Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. 24 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 144. Relator Ministro Celso de Mello. Arguente: Associação dos Magistrados Brasileiros. Arguido: Tribunal Superior Eleitoral. EMENTA DO ACÓRDÃO: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - POSSIBILIDADE DE MINISTROS DO STF, COM ASSENTO NO TSE, PARTICIPAREM DO JULGAMENTO DA ADPF - INOCORRÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE PROCESSUAL, AINDA QUE O PRESIDENTE DO TSE HAJA PRESTADO INFORMAÇÕES NA CAUSA - RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE ATIVA “AD CAUSAM” DA ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS - EXISTÊNCIA, QUANTO A ELA, DO VÍNCULO DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA - ADMISSIBILIDADE DO AJUIZAMENTO DE ADPF CONTRA INTERPRETAÇÃO JUDICIAL DE QUE POSSA RESULTAR LESÃO A PRECEITO FUNDAMENTAL - EXISTÊNCIA DE CONTROVÉRSIA RELEVANTE NA ESPÉCIE, AINDA QUE NECESSÁRIA SUA DEMONSTRAÇÃO APENAS 385

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NAS ARGÜIÇÕES DE DESCUMPRIMENTO DE CARÁTER INCIDENTAL - OBSERVÂNCIA, AINDA, NO CASO, DO POSTULADO DA SUBSIDIARIEDADE - MÉRITO: RELAÇÃO ENTRE PROCESSOS JUDICIAIS, SEM QUE NELES HAJA CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL, E O EXERCÍCIO, PELO CIDADÃO, DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA - REGISTRO DE CANDIDATO CONTRA QUEM FORAM INSTAURADOS PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE NATUREZA CRIMINAL, EM CUJO ÂMBITO AINDA NÃO EXISTA SENTENÇA CONDENATÓRIA COM TRÂNSITO EM JULGADO - IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE DEFINIR-SE, COMO CAUSA DE INELEGIBILIDADE, A MERA INSTAURAÇÃO, CONTRA O CANDIDATO, DE PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, QUANDO INOCORRENTE CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO - PROBIDADE ADMINISTRATIVA, MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DO MANDATO ELETIVO, “VITA ANTEACTA” E PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA - SUSPENSÃO DE DIREITOS POLÍTICOS E IMPRESCINDIBILIDADE, PARA ESSE EFEITO, DO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL (CF, ART. 15, III) - REAÇÃO, NO PONTO, DA CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1988 À ORDEM AUTORITÁRIA QUE PREVALECEU SOB O REGIME MILITAR - CARÁTER AUTOCRÁTICO DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE FUNDADA NA LEI COMPLEMENTAR Nº 5/70 (ART. 1º, I, “N”), QUE TORNAVA INELEGÍVEL QUALQUER RÉU CONTRA QUEM FOSSE RECEBIDA DENÚNCIA POR SUPOSTA PRÁTICA DE DETERMINADOS ILÍCITOS PENAIS - DERROGAÇÃO DESSA CLÁUSULA PELO PRÓPRIO REGIME MILITAR (LEI COMPLEMENTAR Nº 42/82), QUE PASSOU A EXIGIR, PARA FINS DE INELEGIBILIDADE DO CANDIDATO, A EXISTÊNCIA, CONTRA ELE, DE CONDENAÇÃO PENAL POR DETERMINADOS DELITOS - ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O ALCANCE DA LC Nº 42/82: NECESSIDADE DE QUE SE ACHASSE CONFIGURADO O TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO (RE 99.069/BA, REL. MIN. OSCAR CORRÊA) - PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA: UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE A QUALQUER PESSOA - EVOLUÇÃO HISTÓRICA E REGIME JURÍDICO DO PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA - O TRATAMENTO DISPENSADO À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PELAS DECLARAÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS, TANTO AS DE CARÁTER REGIONAL QUANTO AS DE NATUREZA GLOBAL - O PROCESSO PENAL COMO DOMÍNIO MAIS EXPRESSIVO DE INCIDÊNCIA DA PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA - EFICÁCIA IRRADIANTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DESSE PRINCÍPIO AO ÂMBITO DO PROCESSO ELEITORAL - HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE - ENUMERAÇÃO EM ÂMBITO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 14, §§ 4º A 8º) - RECONHECIMENTO, NO ENTANTO, DA FACULDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, EM SEDE LEGAL, DEFINIR “OUTROS CASOS DE INELEGIBILIDADE” - NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DA RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR (CF, ART. 14, § 9º) - IMPOSSIBILIDADE, CONTUDO, DE A LEI COMPLEMENTAR, MESMO COM APOIO NO § 9º DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA, QUE SE QUALIFICA COMO VALOR FUNDAMENTAL, VERDADEIRO “CORNERSTONE” EM QUE SE ESTRUTURA O SISTEMA QUE A NOSSA CARTA POLÍTICA CONSAGRA EM RESPEITO AO REGIME DAS LIBERDADES E EM DEFESA DA PRÓPRIA PRESERVAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA - PRIVAÇÃO DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA E PROCESSOS, DE NATUREZA CIVIL, POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - NECESSIDADE, TAMBÉM EM TAL HIPÓTESE, DE CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL - COMPATIBILIDADE DA LEI Nº 8.429/92 (ART. 20, “CAPUT”) COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 15, V, c/c O ART. 37, § 4º) - O SIGNIFICADO POLÍTICO E O VALOR JURÍDICO DA EXIGÊNCIA DA COISA JULGADA - RELEITURA, PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, DA SÚMULA 01/TSE, COM O OBJETIVO DE INIBIR O AFASTAMENTO INDISCRIMINADO DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE FUNDA386

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somente decisão transitada em julgado teria força para impedir o direito de pessoa condenada, mas sem o trânsito em julgado, tivesse o direito de postular cargo eletivo. Com efeito, à luz das leis e das decisões judiciais, pode-se inferir que o Estado não confia no eleitor (povo). O Estado, via suas instituições, órgãos e agentes, e parcela da sociedade civil organizada (OAB, partidos políticos, igrejas, sindicatos, imprensa, organizações não-governamentais etc.) também não confia no discernimento do eleitor. O eleitor, para essas instituições e pessoas, não sabe votar. Vota mal. Escolhe os piores candidatos. É preciso vigiar o povo/eleitor. Ele não é de confiança. É preciso escolher antes em quem o eleitor pode votar ou deixar de votar. Essas instituições se apresentam como “superego freudiano” da sociedade. Todavia, democracia é uma experiência de tentativas, erros e acertos. A experiência de se substituir ao povo já foi exercida várias vezes, e nunca funcionou bem para o povo. Daí porque atribuir-se a Winston Churchill o dito segundo o qual a “democracia é pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas”. Nessa perspectiva, a Lei da Ficha Limpa, chancelada pelo STF, e celebrada por muitos como uma vitória da sociedade e da democracia,25 pode ser vista, na verdade, como remédio de uma sintomática doença do eleitor que não sabe votar. Ela revela a desconfiança do Estado em relação ao discernimento do eleitor. Ao invés de uma vitória, foi uma derrota do povo, pois um eleitorado que necessita de uma lei para dizer que não deve votar em candidatos “sujos” é um eleitorado incapaz.

DA NA LC 64/90 (ART. 1º, I, “G”) - NOVA INTERPRETAÇÃO QUE REFORÇA A EXIGÊNCIA ÉTICO-JURÍDICA DE PROBIDADE ADMINISTRATIVA E DE MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DE MANDATO ELETIVO - ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL JULGADA IMPROCEDENTE, EM DECISÃO REVESTIDA DE EFEITO VINCULANTE. Informações: www.stf.jus.br. 25 .  CAVALCANTE JUNIOR, Ophir e outro. Ficha Limpa: a vitória da sociedade – breves comentários à Lei Complementar n. 135/2010. Prefácio Senador Demóstenes Torres. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2010. 387

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3  O FINANCIAMENTO DAS CAMPANHAS ELEITORAIS

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STF, nos autos da ADI 4.65026, proposta pelo Conselho Federal da OAB, julgará a validade constitucional do financiamento privado, feito por empresas ou pessoas jurídicas de direito privado, às campanhas eleitorais. O tema é sensível e relevante, razão pela qual o relator Ministro Luiz Fux convocou audiências públicas para amplo debate da questão constitucional controvertida. 27 26 .  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.650. Requerente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Luiz Fux. Informações: www.stf.jus.br. 27 .  DESPACHO DO MINISTRO RELATOR: FINANCIAMENTO DE CAMPANHAS ELEITORAIS. MODELO NORMATIVO VIGENTE. LEIS Nº 9.096/95 e Nº 9.504/97. DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA PÚBLICA NOS DIAS 17/06 E 24/06 DO ANO CORRENTE. DIVULGAÇÃO DE PRETENDENTES A FIGURAREM COMO EXPOSITORES. Despacho: Trata-se de Ação de Direta de Inconstitucionalidade, com pedido cautelar, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, contra diversas disposições da Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições) e da Lei nº 9.096/95 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos), que, ao possibilitarem doações financeiras por pessoas naturais e jurídicas a campanhas eleitorais e a partidos políticos, teriam contrariado os princípios da isonomia (CRFB/88, art. 5º, caput, e art. 14), democrático, republicano e da proporcionalidade, na sua dimensão de vedação à proteção insuficiente (“Untermassverbot”). Em linhas gerais, o Requerente alega que o arcabouço normativo impugnado maximiza os vícios da dinâmica do processo eleitoral que, na atual quadra histórica, se caracteriza por uma intolerável dependência da política em relação ao poder econômico. Para o Conselho Federal da OAB, um desenho institucional como o vigente subverte a lógica do processo eleitoral, gerando uma assimetria entre seus participantes, porquanto exclui ipso facto cidadãos que não disponham de recursos para disputar em igualdade de condições com aqueles que injetem em suas campanhas vultosas quantias financeiras, seja por conta própria, seja por captação de doadores. Por outro lado, a proeminência do aspecto econômico, como condicionante do (in)sucesso nas eleições, cria, segundo alega o Requerente, um ambiente vulnerável à formação de pactos pouco republicanos entre candidatos e financiadores de campanha, em especial durante o exercício dos mandatos eletivos, ocasião em que surgiriam atos de corrupção e favorecimentos aos doadores. Outro problema diagnosticado pelo Conselho Federal da OAB reside na débil capacidade dos limites ao financiamento privado de campanhas previsto na legislação pátria atual para impedir essa cooptação, que potencializa esse cenário já conspurcado. Diante disso, postula o Requerente a modificação do marco normativo vigente, com o propósito de impedir que as desigualdades econômicas existentes na sociedade convertam-se, agora de forma institucionalizada, em desigualdade política. Contudo, ante a possibilidade de se criar uma “lacuna jurídica ameaçadora”, em caso de declaração da inconstitucionalidade dos critérios de doação vigentes, pugna pela modulação dos efeitos, exortando a atuação do Poder Legislativo para, no prazo máximo de 18 (dezoito) meses, elaborar o regramento constitucionalmente adequado acerca do financiamento privados das campanhas eleitorais, atribuindo-se ao Tribunal Superior Eleitoral a regulamentação provisória da matéria. Como visto, a temática versada nesta ação reclama análise que ul388

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Nessa aludida ADI requer-se, em suma, que o STF declare inconstitucionais as leis e provimentos normativos que permitam a doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e aos partidos políticos, e que seja determinado aos Poderes competentes a edição de atos normativos reguladores das doações feitas por pessoas físicas. A premissa da OAB consiste na tese segundo a qual a participação das pessoas jurídicas, via financiamento econômico, no processo eleitoral é inadmissível e que as doações privadas viciam o processo eleitoral. Segundo a OAB, essa intervenção das pessoas jurídicas no pleito eleitoral viola os princípios constitucionais da igualdade, da democracia, da república, da moralidade e da vedação do abuso de poder econômico A PGR opinou favoravelmente ao postulado pela OAB. O Presidente da República, o Congresso Nacional e a Advocacia-Geral da União se manifestaram em sentido contrário ao postulado pela OAB, sob o funtrapassa os limites do estritamente jurídico, vez que demanda para o seu deslinde abordagem interdisciplinar da matéria, atenta às nuances dos fatores econômicos na dinâmica do processo eleitoral e às repercussões práticas deste modelo normativo de financiamento das campanhas em vigor para o adequado funcionamento das instituições democráticas. Segundo levantamento feito na base de dados do sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, candidatos a prefeitos e vereadores, comitês eleitorais e partidos políticos arrecadaram, apenas no primeiro turno, mais de R$ 3,5 bilhões com doações para suas campanhas das eleições em 2012. Tais números evidenciam que a discussão concernente ao financiamento das campanhas situa-se nos estreitos limites dos subsistemas econômico e político, impactando diretamente no funcionamento das instituições democráticas. Considerase, assim, valiosa e necessária a realização de Audiência Pública acerca dos temas controvertidos nesta ação, de sorte que a Suprema Corte possa ser municiada de informações imprescindíveis para o melhor equacionamento do feito, e, especialmente, para que o futuro pronunciamento judicial se revista de maior legitimidade democrática. A oitiva de especialistas, cientistas políticos, juristas, membros da classe política e entidades da sociedade civil organizada não se destina a colher interpretações jurídicas dos textos constitucional ou legal, mas sim a trazer para a discussão alguns pontos relevantes dos pontos de vista econômico, político, social e cultural acerca do financiamento vigente, em especial por meio de estudos estatísticos e/ou empíricos. As audiências públicas serão realizadas nos dias 17 e 24 de junho de 2013, tendo cada expositor o tempo de quinze minutos, viabilizada a juntada de memoriais. Os interessados, pessoas jurídicas com ou sem fins lucrativos, mas de adequada representatividade, e pessoas físicas de notório conhecimento nas áreas envolvidas, poderão manifestar seu desejo de participar e de indicar expositores na futura Audiência Pública até às 20h do dia 10 de maio de 2013. Os requerimentos de participação deverão ser encaminhados EXCLUSIVAMENTE para o endereço de e-mail [email protected] até o referido prazo. Solicite-se, nos termos do art. 154, parágrafo único, inciso I, do Regimento Interno do STF, a divulgação, no sítio desta Corte, bem como através da assessoria de imprensa do tribunal, da abertura de prazo, até o dia 10 de maio de 2013, para o requerimento de participação nas Audiências Públicas a serem oportunamente realizadas. À Secretaria para que providencie a elaboração de Edital de Convocação para a presente Audiência Pública. Após, deem ciência do teor desta decisão ao Procurador-Geral da República e aos demais integrantes da Corte. Informações: www.stf.jus.br. 389

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damento de que não há incompatibilidade entre as normas impugnadas e o texto constitucional. Há vários “amici curiae” no feito. Alguns defendem a reivindicação da OAB. Outros entendem que a ação deve ter o pedido julgado improcedente. A postulação da OAB, sem embargo da respeitabilidade dos fundamentos e da sinceridade de propósitos, e conquanto tenha condições de ser acolhida pelo STF, não é juridicamente amparada nem é politicamente desejável. Não é juridicamente sustentável porque a Constituição Federal não veda que as empresas financiem campanhas privadas. O que a Constituição veda é o abuso de poder econômico. Não é politicamente desejável porque exclui da dinâmica eleitoral instituições que podem ter legítimos interesses nos destinos políticos da sociedade. A democracia contemporânea não é exclusiva do indivíduo-eleitor atomizado. Ela é um regime supercomplexo de formação de decisões, em um ambiente de dissensos e múltiplos valores e interesses. Democracia é a convivência plural no dissenso. É a busca pelo consenso possível e desejável, mas admitindo-se o dissenso no seio da comunidade. Ao excluir a participação das empresas privadas, com esteio no preconceituoso argumento da “safadeza” das doações, a OAB presta um desserviço à Nação, sem embargo da sinceridade de seus propósitos morais e da corretude ética dos instrumentos utilizados. Malgrado esse desejo ético moralizante da OAB, os fundamentos normativos e os argumentos jurídicos esgrimidos pela Ordem exigirão dos ministros da Corte eventualmente simpáticos a essa tese um contorcionismo interpretativo, pois, insista-se, no texto constitucional não há vedação a essa prática. 28 Outro inconveniente da postulação da OAB. Tornar ilícitas as doações às campanhas induziria à clandestinidade. Nada mais nocivo à democracia e à limpidez das eleições. Assim, o remédio pode se tornar o veneno. Em vez de salvar o paciente (a democracia) pode matá-lo. Imagine-se a seguinte situação hipotética. Dois candidatos a presidente da República estão em acirrada disputa no segundo turno do pleito. Um dos candidatos tem como plataforma de campanha aumentar o papel do Estado na economia, reduzindo o papel das empresas. Esse candidato promete que se for eleito irá desapropriar empresas e estatizar vários ou quase todos os setores da economia nacional.

28 .  NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules – regras e princípios constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 390

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O outro candidato promete o oposto. Que irá reduzir o papel do Estado nas atividades econômicas e que irá incentivar o desenvolvimento nacional por meio de incentivos e estímulos à iniciativa privada, por meio de um ambiente seguro para os negócios. Indaga-se: as empresas não teriam interesse no resultado do pleito? Deveriam ser proibidas de financiarem o candidato que defendesse o seu interesse? Há mais. Na luta das oposições contra a situação se faz necessário o aporte de contribuições. A situação, dominante da máquina governamental, já tem o poder político. A oposição deve ter pelo menos a possibilidade de ter o apoio econômico. É bem verdade, todavia, que as empresas “preferem” doar para os candidatos situacionistas. Mas o principal beneficiário da impossibilidade de doações privadas seriam os candidatos situacionistas. Eis porque fere a liberdade democrática a proibição de empresas de doarem para as campanhas políticas. A rigor as doações deveriam ser transparentes e lícitas, de modo que todos soubessem quem doa e quanto se doa de dinheiro para as campanhas eleitorais. A ilicitude não está na doação, mas na doação clandestina. Essa deve ser combatida. Por essa razão, acredita-se que o STF não dê razão à postulação da OAB e decida favoravelmente à liberdade democrática, ampla, geral e irrestrita. 29

4  CONSIDERAÇÕES FINAIS

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“coronelismo” é chaga que permanece na estrutura e na dinâmica político-eleitoral brasileira, pois assenta-se em situações ainda existentes: a miséria econômica de parcela substantiva do eleitor e na fragilidade moral dos envolvidos no processo político-eleitoral. A Lei da “Ficha Limpa”, malgrado a nobreza de propósitos, representa a derrota do eleitor, pois em vez de ele decidir em quem votar ou deixar de votar, votará apenas naqueles que foram chancelados pelos órgãos da justiça eleitoral, pois o Estado não confia no discernimento do cidadão-eleitor.

29 .A OAB deveria lutar pela redução dos municípios, pela unificação dos pleitos eleitorais, pela unificação dos mandatos políticos, pelo voto distrital puro para os cargos legislativos, pela redução do número de cadeiras nos Parlamentos, dentre outras medidas profiláticas de higiene político eleitoral. 391

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A proibição de financiamento privado de campanhas eleitorais, postulada pela OAB perante o STF, se confirmada, induzirá à clandestinidade e excluirá ilegitimamente do processo democrático empresas e instituições que têm legítimos interesses no processo político. A democracia é um regime político arriscado, complexo, mas dentre todas as alternativas imaginadas e já experimentadas, é a melhor, pois força o povo/eleitor a agir com responsabilidade, pois o povo não deve transferir para ninguém o seu destino, por melhores e mais nobres que sejam as intenções.

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22 SUBMISSÕES, PERMISSÕES E PACTOS: DEMOCRACIA, CONSTITUIÇÃO E A ALTERNATIVA DO ESTADO PLURINACIONAL. José Luiz Quadros de Magalhães

Introdução

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amos refletir neste artigo sobre a relação entre democracia e constituição; liberalismo e constituição e a alternativa democrática dialógica, não hegemônica e pluridiversa do estado plurinacional com a ajuda de Slavoj Zizek, que por sua vez nos traz Jean-Claude Milner: “Jean-Claude Milner sabe muito bem que o establishment conseguiu desfazer todas as consequências ameaçadoras de 1968 pela incorporação do chamado ‘espírito de 68’, voltando-o, assim, contra o verdadeiro âmago da revolta. As exigências de novos direitos (que causariam uma verdadeira redistribuição de poder) foram atendidas, mas apenas à guisa de ‘permissões’ - a ‘sociedade permissiva’ é exatamente aquela que amplia o alcance do que os sujeitos têm permissão de fazer sem, na verdade, lhes dar poder adicional. (...) É o que acontece como direito ao divórcio, ao aborto, ao casamento gay e assim por diante; são todos permissões mascaradas de direitos; não mudam em nada a distribuição de poder.” Zizek cita Jean-Claude Milner1: “Os que detém o poder conhecem muito bem a diferença entre direito e permissão. Talvez não saibam articular em conceitos, mas a prática esclareceu muito. Um direito, em sentido estrito, da acesso ao exercício de um poder em detrimento de outro poder. Uma permissão não diminui o poder, em detrimento de outro poder. Uma permissão não diminui o poder de quem outorga; não aumenta o poder daquele que obtém a permissão. Torna a vida mais fácil, o que não é pouco coisa”2 1 .  Jean-Claude Milner, L’arrogance du présent: reards sur une décennie, 1965-1975 (Paris, Grasset, 2009), p.233. 2 .  Esta tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como tragé393

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A partir destas ideias podemos refletir sobre o “sucesso” (depende para quem) da “democracia” liberal representativa e as operações constantes que este sistema tem feito de conversão de direitos frutos de lutas em permissões que esvaziam e desmobilizam a luta por poder em uma acomodação decorrente de uma aparente vitória pelo recebimento de permissões para atuar, fazer e até mesmo ser feliz desde que não se perturbe aqueles que exercem o poder naquilo que lhes é essencial: a manutenção do poder em suas vertentes econômica, cultural, militar e especialmente ideológica (que se conecta e sustenta as outras vertentes). O capitalismo tem sido capaz de, até o momento, resignificar os símbolos e discursos de rebeldia e luta em mercadorias para serem consumidas. Assim o movimento Hippie e Punk foi limitado aos símbolos de rebeldia controlados, onde as calças rasgadas já vem rasgadas de fábrica e os cabelos são pintados com tintas facilmente removíveis; Che Guevara é vendido na Champs-Élisées e os pichadores e grafiteiros expõem no Museu de Arte de São Paulo. Tudo é incorporado, domado e pasteurizado. A “diversidade” está em uma praça de alimentação de Shopping Center ou no Epcot Center, onde é possível comer comidas de diversos lugares do mundo com um sabor e tempero adaptados ao nosso paladar. Da mesma forma funciona a democracia parlamentar (democracia liberal ou liberal social representativa e majoritária). As opções são limitadas, e os partidos políticos, da esquerda “radical” a direita “democrática”, se parecem com a diversidade de comidas com tempero parecido dos Shopping Centers. Escolher entre esquerda e direita, especialmente nas “democracias” “ocidentais” da Europa e EUA (ou Canadá e Austrália) resulta no mesmo. Muda o marketing, as caras e as roupas, muda a embalagem, mas o conteúdo é muito semelhante. Este aparato “democrático” representativo, parlamentar e partidário, processa permanentemente as insatisfações, lutas, reivindicações, como uma grande maquina de empacotar alimentos ou enlatar peixes e feijoadas. Esta absorção da revindicações de poder democrático transformando-as em permissões bondosas do poder “democrático” representativo desmobiliza e perpetua as desigualdades e violências inerentes á modernidade e, logo, ao capitalismo, sua principal criação. As democracias liberais (sociais) representativas majoritárias se transformaram em processadores de revindicações, esvaziando o poder popular. Os direitos, a conquista do poder pelo povo se transformou dia, depois como farsa; editora Boitempo, São Paulo, pag. 58) mas é feita pelo autor a partir do texto de Jean-Claude Milner no livro “La arrogancia del presente - miradas sobre una década: 1965-1975, 1 ed., Buenos Aires, Manantial, 2010. 394

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e permissões de “jouissance”3. Aquele bife a milanesa especial (assim como o pão de queijo), diferente, delicioso feito em casa, com o sabor único da vovó, agora é industrializado: nós não mais fazemos, mas podemos comer a hora que quisermos. Igual o suco de laranja caseiro, industrializado, que vem com gominhos e com carinho, de “verdade”. O problema da “jouissance” é que ela se tornou obrigatória na cultura consumista contemporânea (que é também moderna). Se posso aproveitar de alguma coisa, experimento isto como uma obrigação de não perder a oportunidade de aproveitar tudo o que me é oferecido. Daí tanta depressão em uma sociedade fundada no gozo, no prazer e no consumo: uma sociedade do desespero. A diferença entre conquistar um direito e uma permissão ocorre nas relações de poder e não, necessariamente, na existência ou não de determinados processos formais institucionalizados. Em outras palavras, a democracia representativa pode ser meio de conquista de poder e de direitos, e isto os exemplos da América do Sul tem nos demonstrado. As transformações constitucionais na Venezuela, Equador e Bolívia, têm representado ganho de poder para aqueles que foram historicamente alijados deste poder durante séculos. A questão essencial que ocorre nas democracias liberais representativas (e os países acima citados não se enquadram mais neste conceito), é em que medida, a luta por direitos resulta em ganho de poder, ou, ao contrário, como tem ocorrido com muita frequência, em ganho da possibilidade de aproveitar, usufruir, sem efetivamente uma transferência de poder de quem concede, permite, para quem é o permitido e concedido. Uma coisa é a pessoa poder usufruir de uma permissão de exercício de um direito. O poder continua com quem permite. Outra coisa e conquistar este direito para si, o que implica que quem detinha este poder de conceder ou não, não mais o detém. Trata-se neste caso de uma mudança de mãos do poder. O que podemos perceber, e precisamos ter atenção, é para o fato de que, a recente e precária “democracia” representativa, pode ser precária enquanto instrumento efetivamente de democracia, mas cumpre muito bem, com efetividade e competência, a sua função de manter o poder nas mãos de sempre, ou, em outras palavras, mudar para manter as coisas como estão. Percebendo que esta, já precária democracia, é apenas tolerada para quem detém o poder moderno, são comuns as rupturas. Toda vez que 3 .  No sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma continua. 395

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está democracia serve como canal de conquista de poder daqueles que não tinham, assistimos uma ruptura, muito comum: Brasil (1964 e as várias e constantes tentativas de golpes e pequenos golpes diários); Chile (1973); as ditaduras da Argentina e Uruguai na década de 1970; a tentativa de golpe contra Hugo Chaves em 2001; o golpe em Honduras em 2011 e em 2012 o golpe parlamentar no Paraguai, são exemplos. Assim, após o constitucionalismo liberal não democrático, a conquista da democracia representativa vem acompanhada dos constantes golpes que geram ditaduras e, por vezes, totalitarismo. A relação de poder nestas duas formas alternativas de manutenção de poder no estado moderno ocorrem de formas distintas. Enquanto o poder nas democracias liberais sociais representativas permanece nas mesmas mãos por meio de permissões, nas ditaduras e totalitarismos ocorre uma submissão que funciona em forma de concessões ou permissões paternalistas atendendo aos pedidos do povo infantilizado (nas ditaduras) ou da total submissão ideológica no totalitarismo onde o poder concede, mesmo não havendo possibilidade de pedir. No totalitarismo o poder, além de criar o que os submetidos vão desejar, ele responde quando quer, sem pedido, àquela demanda que este poder criou no sujeito (subjetivado pelo poder). Portanto temos nestas duas estruturas de poder, formas de submissão agressivas. A primeira, um ditador paternalista pode ou não atender aos pedidos aceitáveis, punindo os pedidos inaceitáveis. Esta submissão se funda em relações de amor e ódio à figura do poder encarnada no líder. O totalitarismo é mais sofisticado: o poder atende às demandas ocultas do povo, que são direcionadas aos interesses daqueles que efetivamente detém o poder. Neste estado o poder é total e age todo o tempo. Não há concessões dialógicas ou racionais. O poder é real, brutal, mas age a partir das demandas ocultas do povo, que são manipuladas. Diferente de submissões (ditadura e totalitarismo) e de permissões (democracia representativa liberal social), um espaço comum de conquista de direitos, não hegemônico, significa que o poder é dividido, compartilhado. Trata-se da construção de um espaço comum, onde o direito comum é construído por meio da construção de consensos, sempre provisórios, nunca hegemônicos e raramente majoritários. Para compreendermos o significado desta democracia consensual comum, não hegemônica que se constrói hoje na Bolívia e Equador, vamos, a seguir, estudar a relação entre democracia e constituição na Teoria da Constituição moderna, para, posteriormente estudarmos a ideia de democracia e constituição no estado plurinacional. 396

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1  Constituição e democracia

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omo já dito, constitucionalismo não nasceu democrático. E demorou muito tempo para se democratizar. Precisamos recuperar algumas informações históricas para entender este processo. Vamos procurar entender em poucas palavras a lógica histórica da formação do estado moderno que permite o desenvolvimento do capitalismo, duas marcas da modernidade. Vamos entender estes parágrafos que se seguem como uma pequena introdução básica da modernidade, compreensível para todos. O Estado moderno (a partir de 1492) foi construído a partir de uma aliança entre nobreza, burguesia e o rei. Das três esferas de poder territorial (império, reino e feudo) o estado moderno é construído a partir da afirmação do poder do rei sobre os senhores feudais (nobres), e da aproximação dos burgueses que, necessitando da proteção do rei, ajudam a financiar a construção do estado moderno. A insurreição dos servos ameaça o poder e posição de nobres e burgueses, que passam a necessitar da proteção do poder real, ou seja, de um poder centralizado, hierarquizado e uniformizado. Assim, o capitalismo moderno se desenvolve a partir da necessária proteção do rei (do estado) para crescer. Não é possível capitalismo sem estado. O estado moderno cria o povo nacional, o exercito nacional, a moeda nacional, os bancos nacionais, a polícia nacional. Sem isto não teria sido possível o desenvolvimento da economia capitalista. A expansão militar, a conquista do mundo, a exploração de recursos naturais com a escravização de milhões de pessoas consideradas inferiores, é fator fundamental para o desenvolvimento da economia capitalista. A polícia como mecanismo de repressão dos excluídos do sistema é outro fator primordial. Forças armadas para buscar recursos naturais para alimentar a indústria e polícia para reprimir os excluídos do sistema e o explorados que produzem e não se conformam com a exploração.. O segundo passo do estado moderno será o surgimento do constitucionalismo. As revoluções burguesas representam o amadurecimento da classe burguesa que se desenvolve sob a proteção do rei. Importante perceber esta aliança que está presente até hoje nos estados contemporâneos (ainda modernos). A burguesia se desenvolve sob a proteção do poder do rei, e é justamente quando esta classe consegue mais poder econômico que a nobreza que então passa a buscar o poder político. Este poder político é conquistado com as revoluções burguesas. A partir deste período vamos assistir alianças ou rupturas provisórias com uma 397

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posterior acomodação do poder entre nobres e burgueses que se sustenta na Europa até hoje. O constitucionalismo moderno surge da necessidade burguesa de segurança nas relações econômicas, nos contratos. Constitucionalismo significa, portanto, “segurança”. O constitucionalismo nasceu liberal e logo, não nasceu democrático. Constitucionalismo e democracia são palavras e ideias incompatíveis para o pensamento liberal na época. Convém neste momento explicitar os significados históricos dos termos. Os burgueses, agora com poder político, conquistado a partir do poder econômico, necessitavam de uma ordem jurídica estável, que lhes garantisse estabilidade, respeito aos contratos e a propriedade privada. A essência do constitucionalismo liberal será a “segurança” nas relações jurídica por meio da previsibilidade, respeito aos contratos e proteção a propriedade privada. Agora, pela primeira vez, existia uma lei maior que o estado: a constituição. A função da constituição liberal é de afastar o estado da esfera privada, das decisões individuais dos homens proprietários. Assim, os burgueses, que cresceram sob a proteção do rei e do estado moderno, agora construíam uma ordem jurídica que lhes garantia liberdade (para eles) para expansão segura de seus negócios. Mais uma vez lembramos: não há capitalismo sem estado moderno. É o estado moderno que permite o desenvolvimento da economia capitalista com o exército (para conquista de territórios com a finalidade de exploração de recursos e de mão de obra)4 ; com a polícia para reprimir os excluídos; com a moeda nacional e os bancos nacionais; com o direito nacional para padronizar, homogeneizar, e logo, coibir toda crítica, toda alternativa. Este primeiro passo do constitucionalismo é muito importante. Agora existia uma ordem jurídica constitucional superior a todo poder do estado. Entretanto esta ordem não era democrática. Os liberais, defensores da propriedade privada, da decisão individual, não podiam aceitar a democracia majoritária. O liberalismo, elitista e não democrático em sua essência, não podia admitir que a vontade do coletivo majoritário prevalecesse sobre a vontade do coletivo minoritário e logo sobre a vontade de cada um. O liberalismo vitorioso das revoluções burguesas viria garantir a liberdade de escolha individual de homens proprietários. A

4 .  CUEVA, Mario de la, LA Idea de estado, Fondo de cultura económica, Universidad Nacional Autonóma de México, México D.F., 1994. 398

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democracia majoritária se apresentava como incompatível com o liberalismo. Neste período, as constituições garantem direitos individuais de homens brancos, proprietários e ricos, criando uma ordem segura para os proprietários, mas excluindo radicalmente parcelas expressivas da população. As constituições liberais estabelecem o voto censitário. O século XIX assiste um processo de transformação importante. A formação da identidade operária (o sentimento de classe operária) faz parte das novidades surgidas neste século. A situação de milhões de trabalhadores, depositados em fábricas, trabalhando todos os dias, a maior parte de suas horas de “vida” diária, permite que gradualmente, estas pessoas, compartilhando a mesma situação de opressão e exploração no mesmo espaço (a fábrica) se organizem e comecem a reivindicar juntos melhores condições de vida.5 Este é o momento de proliferação de sindicatos, considerados ilegais pela ordem liberal que os reprimia com direito penal e polícia, assim como é o momento de surgimento de boa parte dos partidos políticos modernos, especialmente os partidos de esquerda, vinculados aos sindicatos e ao movimento operário como os partidos socialistas, trabalhistas, sociais democráticos e comunistas (muitos postos na ilegalidade pelo sistema liberal).6 Aos poucos, os operários começavam a sentir as profundas contradições do liberalismo. A promessa de uma ordem social e econômica sem privilégios hereditários (que aparecia no senso comum do discurso liberal) não se concretizou e a nova ordem mostrava-se cada vez mais próxima à ordem anterior. Os grandes proprietários copiavam os costumes e práticas da nobreza. As leis produzidas nos parlamentos eleitos pelo voto censitário7 eram sempre contrárias aos interesses da maioria. 5 .  ELLEY, Geoff. Forjando a democracia, ob.cit. 6 .  SEILER, Daniel-Louis. Os partidos políticos, Brasilia: Editora UnB, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. DUVERGER, Maurice. Les partis politiques. Paris, Colin, 1980. 7 .  Georges Burdeau comentando a Constituição burguesa francesa de 1814 comenta que não esteve em questão em nenhum momento a adoção do sufrágio universal pelos liberais. Estes consideravam o sufrágio universal como algo grosseiro. O direito de sufrágio não é considerado um direito inerente a qualidade de homem. O voto depende da capacidade dos indivíduos e a fortuna aparecia como uma forma de demonstrar atitude intelectual e maturidade de espírito, além de garantir uma opinião conservadora típica (é claro) dos ricos. Neste período o direito de voto depende de uma condição de idade (30 anos) e uma condição de riqueza. Para poder votar era necessário pagar 300 francos de contribuição direta, o que para época era uma quantia considerável. Para se candidatar as exigências eram ainda maiores: 40 anos de idade e pagar 1.000 francos de contribuição direta. Em toda França o numero de eleitores não passava de 100.000 (1 eleitor para cada 300 habitantes) e o numero de pessoas que podiam se candidatar não passava de 20.000. 399

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O trabalhador era sistematicamente punido e a pobreza era criminalizada. A conquista do voto igualitário masculino teve a participação determinante do movimento operário. É a partir deste momento que começa a ser construída uma relação (dentro do paradigma moderno) entre constituição e democracia. Importante ressaltar que não de trata de uma fusão de conceitos: democracia e constituição são e não podem deixar de ser, conceitos distintos. Um existe sem o outro e a importante convivência entre estes dois conceitos é (em uma perspectiva da democracia representativa majoritária e do constitucionalismo moderno) sempre tensa. Uma convivência difícil (no paradigma moderno) mas necessária. Isto é o que vamos discutir agora.

2  Democracia “versus” constituição

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imos que a função primeira de uma constituição liberal era de oferecer segurança aos homens proprietários, e esta segurança era conquistada pela pretensão de permanência e superioridade da constituição, o que geraria estabilidade social e econômica para o desenvolvimento dos negócios dos homens proprietários. Ao contrário da constituição, democracia significa transformação, mudança, e logo risco. Uma pergunta é necessária neste momento: porque democracia significa transformação, mudança? A dicotomia entre segurança e risco, estabilidade e mudança, é uma dicotomia ocidental, que se encontra na raiz de nossas vidas. Ao contrário de uma perspectiva contraditória (que é cultural) entre busca do novo (risco) e busca de segurança, a transformação é, talvez, inerente a toda a forma de vida conhecida. Todo o universo de vida que conhecemos está em permanente processo de transformação (até os minerais, e por que não os conservadores). O próprio universo está em processo de expansão e transformação permanente. O ser humano, como ser histórico, contextualizado, é um ser em processo de transformação permanente, independentemente de sua vontade. Entretanto temos outra característica essencial. Somos seres históricos e logo, vitimas e sujeitos da história. Podemos construir nossa vida e nossas sociedades com um grau de autonomia racional ra-

(BURDEAU, George; HAMON, Francis e TROPER, Michel, Droit Constitutionnel, Librairie Général de Droit e Jurisprudence, Paris, 1995, pag.316). 400

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zoável, desde que conheçamos os limites à nossa liberdade (sem a inocência primária do livre arbítrio liberal). De uma perspectiva da psicologia, o que nos faz viver, o que nos coloca em pé todos os dias é a perspectiva de transformação, a busca do novo. Logo, uma sociedade livre e democrática, onde os destinos desta sociedade sejam fruto da vontade das pessoas que integram esta mesma sociedade, será uma sociedade em permanente processo de transformação. A sociedade democrática é uma sociedade de risco na medida em que é uma sociedade em mutação permanente. Temos então a equação do constitucionalismo democrático moderno: a tensão permanente entre democracia e constituição; entre segurança e risco; mudança e permanência; transformação e estabilidade. A busca do equilíbrio entre estes dois elementos, aparentemente contraditórios, é uma busca constante e necessária para o paradigma moderno constituição democrática. Democracia constitucional passa a ser construída sobre esta dicotomia: transformação com segurança; risco minimamente previsível; mudança com permanência. Importante lembrar que esta teoria, esta tensão entre democracia e constituição, se constrói sobre conceitos específicos: constituição como busca de segurança e, portanto, como limite às mudanças e democracia representativa majoritária. O papel da constituição moderna é reagir às mudanças não permitidas e a democracia, é entendida como democracia majoritária e representativa. A base da teoria da constituição “democrática” moderna se fundamenta sobre esta dicotomia: a constituição deve oferecer segurança nas transformações decorrentes do sistema democrático. Como é oferecida esta segurança? Para que a Constituição tenha permanência foram criados mecanismos de atualização do texto constitucional: reforma do texto por meio de emendas e revisões. As emendas constitucionais, significando mudança pontual do texto, podem ser aditivas, modificativas ou supressivas. A revisão implica em uma mudança geral do texto. As duas formas de atualização do texto devem ter, sempre, limites, que podem ser materiais (determinadas matérias que não pode ser reformadas em determinado sentido); temporais; circunstanciais (momentos em que a constituição não pode ser reformada como durante o estado de defesa ou intervenção federal); processuais (mecanismos processuais relativos ao processo de discussão e votação que dificultam a alteração do texto). Desta forma, a teoria da constituição moderna, procurou equilibrar a segurança com a mudança necessária para que a constituição acompa-

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nhe as transformações ocorridas pela democracia representativa majoritária. É justamente esta possibilidade de mudança constitucional com dificuldade (limites) que permite maior permanência da constituição e, portanto, maior estabilidade do sistema jurídico constitucional. A constituição não pode mudar tanto que acabe com sua pretensão de permanência e logo com a ideia de segurança, nem mudar nada, o que nega a democracia. Daí que não pode a teoria da constituição, admitir que as mudanças formais, por meio de reformas (emenda ou revisão), sejam tão amplas que resultem em uma nova constituição. Isto representaria destruir a essência da constituição: a busca de segurança. De outro lado, a não atualização do texto por meio de reforma, ou ainda, a não transformação da constituição por meio das mutações interpretativas (interpretações e reinterpretações do texto diante do caso concreto inserido no contexto histórico), pode significar a morte prematura da constituição destruindo a sua pretensão de permanência e logo, afetando sua essência, a busca de segurança. Este é o equilíbrio essencial do constitucionalismo moderno democrático, considerando democracia enquanto representativa e majoritária, e constituição enquanto limite e garantia de um núcleo duro imutável, contramajoritário, que protege os direitos fundamentais das maiorias provisórias. É a partir desta lógica que se pode compreender as teorias modernas da constituição. Permanece ainda uma questão fundamental: como a constituição não pode mudar tanto que comprometa a segurança e de outra forma, não pode impedir as mudanças (se se pretende democrática), de forma que comprometa sua permanência, haverá sempre uma defasagem entre as transformações da sociedade democrática e as transformações da constituição democrática. O que decorre desta equação é o fato inevitável (dentro deste paradigma) de que a sociedade democrática mudará sempre mais e mais rápido do que a constituição é capaz de acompanhar. E isto não pode ser mudado pois comprometeria a essência da constituição e da democracia (permanência x transformação; segurança x risco). Assim, inevitavelmente chegará o momento em que a sociedade mudará mais do que a constituição foi capaz de acompanhar. Neste momento a constituição se tornará ultrapassada, superada: é o momento de ruptura. A teoria da constituição democrática apresenta uma solução para estes problemas: o poder constituinte originário, soberano, ilimitado do ponto de vista jurídico (e obviamente limitado no que se refere a realidade social, cultural, histórica, econômica).

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Este é o momento de ruptura. Entretanto, dentro de uma lógica democrática constitucional esta ruptura só será legitima se radicalmente democrática. Só por meio de um movimento inequivocamente democrático será possível (ou justificável) a ruptura. Além disto, se só uma razão e ação democrática justifica a ruptura com a constituição, está ruptura só será legitima se for para, imediatamente, estabelecer uma nova ordem constitucional democrática. Assim a democracia só poderá legitimamente superar a constituição se for, para, imediatamente, elabora e votar uma nova constituição democrática. A democracia acaba com a constituição criando uma nova constituição a qual esta democracia se submete. Esta é a lógica do constitucionalismo democrático moderno. Veremos mais adiante como a democracia consensual plurinacional não hegemônica pode romper com esta lógica. Antes, porém, vamos discutir um pouco mais a lógica contra-majoritária.

3  Os problemas da democracia majoritária

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relação entre constituição e democracia significa, na prática, que existem limites expressos ou não às mudanças democráticas. Em outras palavras, existem assuntos, princípios, temas que não poderão ser deliberados. Há um limite à vontade da maioria. Existe um núcleo duro, permanente, intocável por qualquer maioria. A lógica que sustenta estes mecanismos se sustenta na necessidade de proteger a minoria, e cada um, contra maiorias que podem se tornar autoritárias, ou que podem desconsiderar os direitos de minorias (que poderão se transformar em maiorias). Assim, o constitucionalismo significa mudança com limites, transformação com segurança. Estes limites se tornaram os direitos fundamentais. O núcleo duro de qualquer constituição democrática (moderna, democrática representativa e majoritária) são os direitos fundamentais. Assim, os direitos fundamentais construídos historicamente, são protegidos pela constituição contra maiorias provisórias que em determinados momentos históricos podem ceder às tentações autoritárias. Uma pergunta comum seria a seguinte: pode a população, majoritariamente e livremente, escolher um regime de governo não democrático? O exemplo não é pouco comum, mas, geralmente é mal trabalhado. Muitas vezes a

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escolha de sistemas que não correspondem ao padrão ocidental de “democracia” é vista como uma escolha não legitima uma vez que nega a “democracia”. Entretanto, o conceito de democracia é diverso, e as formas de organizações históricas, assim como as formas de participação e construção da vontade comum em uma sociedade também, o que confere uma maior complexidade a este debate, na maioria das vezes, travado a partir de uma pretensa e falsa universalidade dos conceitos ocidentais. Mas voltando a discussão realizada dentro do paradigma moderno de democracia constitucional ocidental8 (europeia), a resposta para a pergunta acima, a partir da compreensão da democracia constitucional, é que, não pode a maioria decidir democraticamente contra a democracia. A estes mecanismos de proteção às conquistas históricas de direitos chamamos de mecanismos constitucionais contramajoritários. Em momentos de crise podem os cidadãos ceder às tentações autoritárias e reacionárias e a função da constituição é reagir a estas mudanças não permitidas. Há uma perspectiva evolucionista linear que sustenta esta tese: a proibição do “retrocesso” parte de uma perspectiva evolutiva muito confortável, e por isto, talvez, muitas vezes, falsa. Lembremos que um dos mitos que sustenta a modernidade europeia, o direito internacional e todas as invasões, genocídios e guerras modernas, de uma história linear, ou em outras palavras, na falsa ideia de que as civilizações estariam em graus de evolução distintas e a Europa (do norte, segundo Hegel) seria o seu auge. Um exemplo claro disto seria, por exemplo, considerar o direito fundamental à propriedade privada como um direito intocável. O retrocesso para alguns liberais seria a tentativa de limitar ou condicionar este direito. É claro que a discussão é contextualizada, e não é tão simples quanto parece. O que é um retrocesso? Sobre qual perspectiva teórico-filosófica podemos considerar a transformação ou até mesmo a superação de um direito fundamental como um retrocesso? Outro aspecto que é necessário ressaltar sobre a democracia majoritária: o voto, confundido muitas vezes com a própria ideia de democracia, é na verdade um instrumento de decisão, ou de interrupção do debate, de interrupção da construção do consenso, e logo, um instrumento usado pela “democracia majoritária” para interromper o processo democrático de debate em nome da necessidade de decisão. Interessante notar que cada vez mais, o tempo do debate, da exposi8 .  O ocidente é hoje a OTAN. 404

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ção das opiniões está cada vez mais reduzido. Seja no parlamento, seja na sociedade, como mecanismo de democracia semidireta, o espaço dedicado ao debate de ideias e proposta se reduz. Cada vez mais cedo o debate é interrompido pelo voto de maneira que em algumas situações vota-se sem debate como acontece com o surgimento de mecanismos de voto utilizando meios virtuais para a decisão sobre obras no orçamento participativo, por exemplo. O essencial do processo participativo que é o debate foi substituído prematuramente pelo voto. Outro aspecto importante do mecanismo majoritário é o fato de se escolher um argumento, projeto, ideia. A opção por um “melhor” argumento, por um argumento vitorioso por meio do voto pode se constituir em um mecanismo totalitário. Se todo o tempo somos empurrados a escolher o “melhor”, mesmo que afirmemos que o argumento (projeto, ideia, política) derrotada permanecerá vivo, em uma cultura que premia todo o tempo o melhor, o destino do derrotado pode ser, muitas vezes, o esquecimento ou encobrimento. Vamos ver que no Judiciário vige a mesma lógica de argumentos vitoriosos e derrotados. Assim, tanto no legislativo como no judiciário, a exposição de argumentos não visa a construção de uma solução comum, mas sim, a escolha do argumento melhor. A pretensão de vencer o argumento do outro (no parlamento e no judiciário) cria uma impossibilidade da construção de um novo argumento a partir do diálogo. O ânimo que inspira os debates no parlamento e no judiciário não é, em geral, a busca de uma solução comum, mas a busca da vitória. Logo, perde a racionalidade, que passa a ser comprometida pela emoção da vitória. A política, e mesmo o processo judicial, passa a ser um espaço cada vez mais comprometido com a parcialidade e muitas vezes com a mentira, mesmo que não consciente, algumas vezes. Se o importante é vencer, se o importante é que o melhor argumento vença não há nenhuma disposição para a composição, para ouvir o outro. No lugar de um diálogo direto entre duas perspectivas visando a composição, o aprendizado com o outro, ou a construção de um consenso onde todos ganhem, no processo majoritário estas perspectivas passam a ser mostradas, apresentadas de forma isolada, de forma a convencer não o outro, mas o juiz final, que se manifestará pelo voto. Este juiz pode ser o povo, em um plebiscito; os representantes no parlamento ou mesmo o juiz ou juízes em um processo judicial. A democracia consensual, dialógica e não hegemônica parte de outros pressupostos e outra compreensão do papel da democracia e da constituição, assim como dos direitos fundamentais.

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4  A democracia consensual plural do novo constitucionalismo latino-americano.

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ma vez compreendida as bases do constitucionalismo moderno fica mais fácil compreender a alternativa plurinacional de democracia, constituição e direitos fundamentais. Comecemos pela democracia. Ao contrário da democracia moderna essencialmente representativa, a democracia do estado plurinacional vai além dos mecanismos representativos majoritários. Não quer dizer que estes mecanismos não existam, mas, sim, que devem ceder espaço crescente para os mecanismos institucionalizados de construção de consensos não hegemônicos. A proposta de uma democracia consensual deve ser compreendida, com cuidado, no paradigma do estado plurinacional. Primeiramente é necessário compreender que esta democracia deve ser compreendida a partir de uma mudança de postura para o diálogo. Não há consensos prévios, especialmente consensos lingüísticos, construídos na modernidade de forma hegemônica e autoritária. O estado moderno homogeneizou a linguagem, os valores, o direito, por meio de imposição do vitorioso militarmente. A linguagem é, neste estado moderno, um instrumento de dominação. Poucos se apoderam da língua, da gramática e dos sentidos que são utilizados como instrumento de subordinação e exclusão. O idioma pertence a todos nós e não a um grupo no poder. A linguagem, é claro, contem todas as formas de violência geradas pelas estruturas sociais e econômicas. Logo, o diálogo a ser construído entre culturas e pessoas deve ser despido de consensos prévios, construídos por esses meios hegemônicos. Tudo deve ser discutido levando-se em consideração a necessidade de descolonização dos espaços, linguagens, símbolos e relações sociais, pessoais e econômicas. O dialogo precisa ser construído a partir de posições não hegemônicas, e isto não é só um discurso, mas uma postura. A partir desta descolonização da linguagem, das instituições e das relações, o diálogo se estabelece com a finalidade de construção de uma nova verdade provisória, um novo argumento. Ninguém deve pretender vencer o outro. Os consensos construídos são, portanto, sempre, provisórios, não hegemônicos, e não majoritários. A necessidade de decisão não pode superar a necessidade da democracia. Daí posturas novas precisam 406

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ser inauguradas. A postura não hegemônica deve ser seguida por uma postura de construção comum de novos argumentos. Não se trata, portanto, nem da vitória do melhor argumento, nem de uma simples fusão de argumentos mas de novos argumentos que se constroem no debate. Não é possível compreender uma democracia consensual com os instrumentos, pressupostos e posturas de uma sociedade de competição permanente. Nenhum consenso se pretende permanente, não só pela dinamicidade da vida como pela necessidade de decidir sem que haja um vencedor, ou seja, sem que seja necessária a construção de maiorias. Compreendidos os mecanismos de construção destes consensos democráticos, não majoritários, não hegemônicos, não hierarquizados, plurais nas perspectivas de compreensão de mundo, podemos compreender um novo constitucionalismo e uma nova perspectiva para os direitos fundamentais. Como a democracia implica em mudança, transformação, o novo reside na ideia de que estas mudanças não são construídas por maiorias, mas, sempre, por todos. A constituição não necessita mais ter um papel de reação a mudanças não autorizadas. Não há a necessidade de mecanismos contramajoritários uma vez que não há mais a vitoria da maioria como fator de decisão. Assim, os direitos fundamentais devem ser compreendidos como consensos construídos e reconstruídos permanentemente. O estado e a constituição no lugar de reagir a mudanças não previstas ou não permitidas, passa a atuar, sempre, favoravelmente às mudanças desde que estas sejam construídas por consensos dialógicos, democráticos, logo não hegemônicos, plurais, diversos, não hierarquizados e não permanentes. Trata-se de uma nova compreensão capaz de romper com o paradigma moderno de estado, constituição e democracia.

5  CONCLUSÃO

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estado plurinacional, como visto, representa uma ruptura com a modernidade e logo, com a teoria da constituição moderna. Esta ruptura pode ser encontrada na ideia que sustenta o estado plurinacional presente nas constituições do Equador e da Bolívia. O processo de transformação em curso, especialmente na Bolívia apresenta um potencial transformador radical e representa um desafio para os estudiosos do tema. 407

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É fundamental que a Universidade, que as pessoas que se dedicam a estudar e compreender o mundo em que vivemos se dediquem na tarefa de decifrar, entender, o que acontece. O mundo moderno (os últimos quinhentos anos europeus) está se esgotando, e com este mundo muitas de suas construções. É obvio que uma ruptura, uma mudança paradigmática no campo da história e das ciências sociais nunca será total. É claro que o presente está impregnado de passado, assim como o futuro estará impregnado do presente. Não estamos negando as contribuições da modernidade europeia e suas revelações de encobrimentos passados. As condições de rupturas históricas são criadas muito antes de acontecerem. Os fatos, suas interpretações e compreensões, a história (não linear é claro) se mistura, se entrelaça, e resulta em novos processos, revela e encobre, transforma. Estamos em um momento de revelações, de “desocultamento”. Muitos dos encobrimentos promovidos pelo mundo moderno estão agora se revelando. O que pretendemos neste texto (o que já fizemos em outros já publicados e que ainda faremos em outros que se seguirão sobre o tema) foi buscar entender as rupturas possíveis no campo da Teoria da Constituição e da Teoria do Estado promovidas pela ideia de uma Constituição Plurinacional. Para isto desenvolvemos reflexões sobre determinados eixos que acreditamos são essenciais para compreender o processo em curso na Bolívia com a Constituição Plurinacional. Neste estudo analisamos a relação histórica moderna entre constituição e democracia e sua superação a partir de uma nova construção desta relação. O estudo deste aspecto do constitucionalismo moderno é muito importante para entender uma das contribuições mais importantes do constitucionalismo plurinacional (que supera a modernidade europeia). Como foi visto, constitucionalismo moderno não nasceu democrático e sua democratização ocorreu por meio de processos de muita luta, especialmente do movimento operário no decorrer do século XIX.9 O liberalismo se mostrou inicialmente incompatível com a democracia majoritária e mesmo após a construção de uma relação entre constituição e democracia representativa majoritária a resistência do liberalismo à democracia sempre foi muito grande.10 O “novo constitucionalismo” que surge na América do Sul trouxe consigo o conceito

de democracia consensual não hegemônica para o qual as construções teóricas modernas dos direitos fundamentais, sobre a necessidade de mecanismos contramajoritários e da existência de vitórias temporárias de argumentos debatidos, não são, muitas vezes, aplicáveis. Finalmente, outros eixos devem ser mencionados e já foram ou serão tratados em outros artigos e livros. Assim, um aspecto importante para a compreensão da modernidade será a uniformização “versus” a diversidade.11 O Estado moderno é uniformizador, normalizador. Desta uniformização depende a efetividade de seu poder. A criação (invenção histórica) de uma identidade nacional para os estados nacionais é uma necessidade do Estado. Para que os diversos grupos que integram e habitam os territórios dos novos estados, que começam a se constituir no século XVI, reconheçam agora o único poder central do Estado, é fundamental que se crie uma nova identidade por sobre as identidades pré-existentes. Esta é a principal tarefa deste novo poder, e logo do direito construído a partir daí, o direito moderno. Esta modernidade uniformizadora decorre de duplo movimento interno nestes novos estados que pode ser representado com clareza na expulsão dos mais diferentes (por exemplo os mouros e judeus da península ibérica (simbolizada pela queda de Granada em 1492) e a uniformização dos menos diferentes pela construção de uma nova identidade nacional (espanhóis e portugueses por exemplo), por meio de um projeto narcisista de afirmação de superioridade sobre o outro (o estrangeiro inferior, selvagem, bárbaro ou infiel que cria o dispositivo “nós X eles”) e da uniformização de valores por meio da religião obrigatória que se reflete no direito moderno com a uniformização do direito de família e do direito de propriedade que permite e sustenta o desenvolvimento do capitalismo como essência da economia moderna (com a criação de uma moeda nacional, um banco nacional, um exército nacional e uma polícia nacional essencial ao capitalismo). Todo o direito moderno segue este padrão hegemônico e uniformizador. Isto se reproduz no direito internacional (essencialmente hegemônico e europeu como se pode ver por exemplo em documentos e instrumentos como o Tratado de Versalhes e a Carta da Nações Unidas com a previsão do Conselho de Tutela e o Conselho de Segurança). Daí a enorme dificuldade em se admitir o direito a diferença e o direito a diversidade enquanto direitos individuais e a dificuldade ainda maior em se admitir o direito a diversidade como direito coletivo.

9 .  ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005. 10 .  LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2008.

11 .  MAGALHAES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional, Editora Juruá, Curitiba, 2012.

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O constitucionalismo plurinacional rompe com isto. A sua proposta não é hegemônica, mas ao contrário, defende e constrói espaços de diálogos não hegemônicos para a construção de consensos. Como resultado do diálogo não há um argumento vencedor, nem uma fusão de argumentos mas a construção de um novo argumento. Não há uniformização mas, ao contrário, este constitucionalismo parte da compreensão de um pluralismo de perspectivas, um pluralismo de filosofias, de formas de ver, sentir e compreender o mundo, logo, também, de um pluralismo epistemológico12. A enorme dificuldade do direito moderno em reconhecer a diversidade é ao contrario, a essência do constitucionalismo plurinacional: este constitucionalismo se constrói sobre a diversidade radical, que é seu fundamento. Um outro eixo também precisa ser estudado: o pluralismo epistemológico. Alguns livros devem ser lidos para a compreensão desta perspectiva filosófica que acredito ser sustentação deste novo constitucionalismo.13 Em um quarto eixo de discussão devemos discutir a possibilidade de superação de um sistema monojurídico ou bijurídico por sistemas plurijurídicos que podem ser caracterizados especificamente pela existência de vários direitos de família e de propriedade e da existência de tribunais (judiciários locais) capazes de solucionar estes conflitos além da constituição de tribunais (pluriétnicos e ou plurirepresentativos de grupos sociais distintos) enquanto espaços de construção de acordos, de promoção de mediações que promovam soluções consensuais para os conflitos, superando as soluções que marcam vitórias de argumentos de uns sobre outros. Assim um judiciário que tenha a função primeira de promoção de uma justiça plural (uma justiça de múltipla perspectiva) e não apenas um judiciário que decida rápido, aponte o argumento vencedor interrompendo o conflito sem solucioná-lo. Esta é uma perspectiva também muito interessante. Cada vez mais, assim como o voto interrompe o debate e a construção de consensos (argumentos novos) a decisão judicial que escolhe um argumento interrompe o conflito sem solucioná-lo. Isto é perigoso pois o conflito “terminado” pela sentença sem uma solução permanece laten-

te e certamente voltará. Quando o Judiciário antes de buscar justiça, busca decisão rápida, pode fazer com que os conflitos não solucionados, mas simplesmente terminados, voltem de forma mais violenta no futuro. Daí que a mesma lógica pode ser construída no Judiciário: o lugar de argumentos vitoriosos, de um lado vitorioso, a justiça se fará pela composição do conflito por meio de consensos construídos em uma perspectiva plural e não una ou uniformizada e logo hegemônica. Outros eixos de discussão deverão ser enfrentados a partir dos eixos teóricos acima enumerados: a unidade latino-americana (ou indo-afro-latino americana) não pode passar pelos mecanismos uniformizadores do direito constitucional e internacional modernos; a superação do debate tradicional entre culturalismo e universalismo pela solução dialógica não hegemônica do direito “plurinacional” e a necessidade de busca de um universalismo possível como um desafio teórico filosófico final (provisório) o que buscaremos construir com a ajuda do filósofo e psicanalista Alain Badiou.14

12 .  OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico. La Paz, Bolivia: Muela del Diablo, 2009. 13 .  OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico. La Paz, Bolivia: Muela del Diablo, 2009; SANTOS, Boaventura de Sousa. Pensar el estado y la sociedad: desafíos actuales, Buenos Aires: Wadhuter, 2009; LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha. La Paz, Bolivia: Muela del diablo, 2010; DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro –hacia el origem del mito de la modernidad. La Paz, Bolivia: Plural, 1994. 410

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14 .  BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU, Alain. Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris, 2005. 411

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Identidade Cultural

23 CONTROVERSIAS SOBRE EL RECONOCIMIENTO DE LA IDENTIDAD CULTURAL COMO DERECHO J. Alberto del Real Alcalá

1  CONTROVERSIAS SOBRE LA TITULARIDAD DEL DERECHO A LA IDENTIDAD CULTURAL: TITULARIDAD “RESTRINGIDA” A GRUPOS Y TITULARIDAD “GENERALIZADA” A INDIVIDUOS.

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n relación a la articulación jurídica de la identidad cultural como derecho, hay que decir que lo que se protege y se asegura en el derecho que analizamos, y a modo de “bien jurídico”1, es la “identidad cultural”, y la identidad cultural de la “persona”. Pero eso no es decir mucho porque esta noción no posee un significado unívoco sino controvertido, el cual, además, debe ser reinterpretado en nuestro tiempo contemporáneo desde la aceptación de la diversidad cultural. La identidad cultural de la persona como bien jurídico protegido2 incluiría al conjunto de “bienes culturales” que una persona hace suyos y estima como propios, a los que, como tales, pretende libremente acceder, y desarro1 .  C. SANTIAGO NINO, Consideraciones sobre la dogmática jurídica, UNAM, México DF, 1974, pp. 55-77; especialmente, p. 63 sobre el “bien jurídico” de la libertad. 2 .  C. SANTIAGO NINO, Consideraciones sobre la dogmática jurídica, cit., p. 66: “Para algunos… ‘bien jurídico’ se identifica con ‘norma’… con lo cual decir que se ha lesionado un bien jurídico es lo mismo que afirmar que se ha infringido una norma que prescribe determinado comportamiento”. Otras definiciones de bien jurídico son “equivalente[s] a ‘interés’ [a garantizar], ‘expectativa’ [a proteger], ‘derecho subjetivo’, etcétera”, para “sostener que un acto será antijurídico si, y solo si, lesiona un bien jurídico.” Aunque el autor propone, p. 67: “la hipótesis de que ‘bien jurídico’ es un término teórico” y, como tal, “los términos teóricos no pueden ser entendidos en forma aislada de una teoría que los define implícitamente.” 415

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llarse a través de ellos, sin obstáculos ni de los poderes públicos, ni de los grupos, ni de los particulares. A este respecto, los bienes culturales que protege el derecho a la identidad cultural estarían definidos por un haz de “libertades culturales” de la persona, vinculadas directamente a la realización del valor moral universal de la dignidad humana, y a su dimensión de la igual dignidad de todos que hace de la libertad cultural una “libertad igualitaria” y, por consiguiente, sin restricciones en la titularidad de la misma (generalidad). Por supuesto, los contenidos morales de libertad y de igualdad en el ámbito de la cultura que incluye el derecho a la identidad cultural de la persona han de ser configurados “normativamente” por cada sociedad para poder hablar de que verdaderamente existe en una determinado legislación un derecho tal. Y, sin duda, en dicha configuración normativa tendrán un papel muy destacado las garantías que constituyen el armazón del derecho, que “con carácter general suelen ser de dos tipos: legislativas y judiciales”, siendo normalmente “al legislador a quien corresponde, en principio, el desarrollo” de las mismas3. Tarea que habitualmente presenta, como dice R. Alexy, un “máximo grado de indeterminación”, tal como es característico de los derechos fundamentales4, necesitando de la interpretación a través de las decisiones de los tribunales5, especialmente del Tribunal Constitucional de cada Estado singular, para determinar cuál es el significado concreto que en una particular sociedad asume ese desarrollo normativo. En este sentido, no hay que olvidar que el derecho a la identidad cultural como “derecho de la personalidad” participa de la doble naturaleza jurídica que G. Rolla atribuye a esta clase de derechos: a) la de constituir un conjunto de garantías y de situaciones jurídicas subjetivas de 3 .  R. de ASÍS ROIG, Sobre el concepto y el fundamento de los derechos: una aproximación dualista, cit., pp. 7-10; añade en p. 10: “El intérprete emplea criterios para la atribución de significado, pero muchos de éstos en realidad no están expuestos ni reflejados en el Ordenamiento jurídico siendo su adopción una clara toma de postura en relación con una forma de entender los derechos, con un concepto o un fundamento.” 4 .  R. ALEXY, “Los derechos fundamentales en el Estado Constitucional democrático”, trad. de A. García Figueroa, en M. CARBONELL (ed.), Neoconstitucionalismo(s), Trotta, Madrid, 2003, pp. 32-37.

los individuos garantizadas al máximo nivel; y b) la de su conexión con los valores superiores que caracterizan al Ordenamiento6. A partir de lo cual, el derecho a la identidad cultural de la persona se configura normativamente en mayor medida: ŠŠ

a) A través de la categoría de “derecho subjetivo” en sentido estricto: el derecho a la identidad cultural se presentará como un derecho subjetivo “cuando frente al titular del derecho –sujeto activo– aparece un sujeto identificado con una obligación jurídica consecuencia de ese derecho –sujeto pasivo–”. Se dice que A es titular de un derecho subjetivo a la identidad cultural cuando puede exigir X de B, o cuando B tiene obligación X ante A. Como puede verse, “el derecho tiene como correlativo un deber o una obligación” concreta de B7.

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b) También, el derecho a la identidad cultural se configura normativamente a través de la categoría de “libertad jurídica”: el derecho a la identidad cultural es una libertad “si su titular A es libre frente a B de hacer o no hacer X. Ello equivale a decir que… nadie tiene derecho a interferirnos. En este caso, la otra parte [B] no es titular [pasivo] concreto e identificable sino genérico”, dado que las libertades son derechos “erga omnes”8. La diferencia entre una y otra configuración jurídica del derecho a la identidad cultural reside en el sujeto pasivo de la obligación jurídica que genera: sujetos individual o grupal (derecho a la identidad cultural como derecho subjetivo en sentido estricto) o sujeto genérico (derecho a la identidad cultural como libertad jurídica erga omnes). De lo anterior puede deducirse que desde el punto de vista jurídico-normativo, el derecho a la identidad cultural de la persona viene a constituir un mecanismo que pretende asegurar y hacer efectivas un conjunto de libertades culturales significativas, y que además pretende hacerlas efectivas para todos, concretando con ello exigencias de los valores jurídicos de libertad e igualdad. De esto resulta, que el ejercicio eficaz de dicho derecho deberá conducir a un contexto de “tolerancia cul-

5 .  Cfr. J.A. DEL REAL ALCALÁ, Interpretación jurídica y neoconstitucionalismo, Cuadernos de Filosofía del Derecho Contemporáneo núm 3, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas de la Universidad Carlos III de Madrid, Universidad Autónoma de Occidente de Cali, Bogotá, 2011, pp. 26-43 y 74-93 acerca de las singularidades de las decisiones judiciales en el sistema jurídico del Estado Constitucional de Derecho frente al Estado de Derecho legalista.

6 .  G. ROLLA, Derechos fundamentales, Estado democrático y justicia constitucional, UNAM, México DF, 2002, pp. 116-124.

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7 .  G. PECES-BARBA, Derechos sociales y positivismo jurídico, Cuadernos Bartolomé de las Casas, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas, Dykinson, Madrid, 1999, p. 144. 8 .  G. PECES-BARBA, Derechos sociales y positivismo jurídico, cit., p. 144. 417

tural”9 y, consiguientemente, de “paz cultural”10, a modo de un valor social e institucional11 que se realiza por medio de la normación –y en mayor medida si es normación constitucional–12. Si ocurre así, estaremos en la mejor disposición para evitar el conflicto cultural entre la institucionalidad y la sociedad civil o la colisión en el interior de la misma sociedad civil. En este sentido, además de su conexión con la realización de determinados aspectos de la dignidad humana, el derecho a la identidad cultural es un derecho de gran utilidad en tanto que generador de importantes

11 .  M. WALZER, “La política de la diferencia. La estatalidad y la tolerancia en un mundo multicultural”, cit., p. 85, en relación a la tolerancia como “valor social” opina que: “Yo diría que todo el mundo que acepte la diferencia […] con independencia de su posición [ante ella] […] de resignación, indiferencia, curiosidad y entusiasmo, posee la virtud de la tolerancia”; y en relación a la tolerancia como “valor institucional” afirma: “Todas las disposiciones sociales mediante las cuales incorporamos la diferencia, coexistimos con ella o le asignamos una parte del espacio social, son las formas institucionalizadas de esa misma virtud”.

“beneficios” sociales como vehículo de tolerancia y de paz colectivas13. Ahora bien, no hay más remedio que asumir que el reconocimiento y desarrollo del derecho a la identidad cultural es escaso, aunque en los últimos tiempos ha evolucionado a mejor. Por ejemplo, recientemente a nivel mundial ha tenido lugar la Declaración de las Naciones Unidas de 2007 sobre el derecho a la diferencia y a la identidad cultural de los derechos de los pueblos indígenas. O también puede citarse en este sentido al Comentario General (nº 21) sobre el derecho a tomar parte en la vida cultural, adoptado en 2009 por el Comité de Naciones Unidas sobre los derechos económicos, sociales y culturales. O, por ejemplo, en el ámbito regional latinoamericano, el pronunciamiento de Junio de 2012 de la Corte Interamericana de Derechos Humanos en el caso Sarayaku vs. Ecuador, reconocedor del derecho a la identidad cultural del pueblo indígena de la comunidad de Sarayaku. Sin embargo, es verdad que, en general, la configuración normativa del derecho a la identidad cultural está mayormente ausente de los textos constitucionales. Pero, también es cierto que sí ha existido un reconocimiento parcial e implícito de un “derecho a la diferencia cultural”, y que este reconocimiento parcial ha tenido lugar, como afirma G. Ruiz-Rico, sobre todo a través de “regulaciones sectoriales” acerca de “aquellas materias sensibles en las que conviene ofrecer un trato desigual a aquellos individuos y grupos sociales colectivos con marcadas diferencias culturales respecto de la mayoría social: leyes en materia lingüística y de enseñanza, derecho civil, leyes sobre libertad religiosa, etc.”. En este reconocimiento parcial/sectorial, “todo este tipo de regularizaciones de la diversidad cultural obedecen a una serie de mandamientos constitucionales, sin los cuales carece de legitimidad el reconocimiento de determinadas exenciones, privilegios, modulaciones interpretativas de derechos o derechos específicos que se otorgan a grupos colectivos delimitados por razones territoriales, nacionales, étnicas o religiosas que se otorgan a una minoría de ciudadanos”. Siendo “a partir de estas especialidades jurídicas [cuando] se configura una categoría nueva de derecho a la diferencia cultural”, que es “un derecho por lo general no positivizado como tal derecho autónomo, pero que surge y deriva de la aplicación

12 .  Cfr. E. DÍAZ, “Legitimidad y justicia: la Constitución como zona de mediación”, Doxa, núm 4, 1987, p. 350: “la Constitución, el gran pacto social constitucional, sintetiza así, puede decirse […] ese espacio de convergencia entre legitimidad democrática y justicia material (una cierta justicia material)”; y p. 352: “Tanto la regla procedimental [principio de la soberanía popular y regla de la mayoría] como la justicia material [los valores superiores de ella] son, pues, expresión de la libertad; y ambas, a su vez, están incorporadas en la Constitución como norma básica o principio determinante de ella.”

13 .  M. WALZER, “La política de la diferencia. La estatalidad y la tolerancia en un mundo multicultural”, cit., p. 99, siendo la conclusión a la que llega el autor: “La diferencia ha de ser doblemente tolerada [por los grupos y por los individuos disidentes de los grupos], mediante una mezcla cualquiera –no tiene por qué ser la misma mezcla en ambos casos– de resignación, indiferencia, curiosidad y entusiasmo.”

9 .  M. WALZER, “La política de la diferencia. La estatalidad y la tolerancia en un mundo multicultural”, cit., pp. 84-85: “Con frecuencia, los grupos [culturales] serán competitivos entre sí, buscando conversos o partidarios entre los individuos no comprometidos o comprometidos sólo de forma somera, pero su principal objetivo será conservar un modo de vida entre sus propios miembros, reproduciendo su cultura o su fe en las sucesivas generaciones […]. Ahora bien, ¿qué significa tolerar a grupos de este tipo? Si se la comprende como una actitud o como un estado de ánimo (de la que se siguen unas prácticas características), la tolerancia hace referencia a un cierto número de posibilidades. La primera de ellas, que refleja los orígenes de la tolerancia religiosa en los siglos XVI y XVII, consiste simplemente en una resignada aceptación de la diferencia por el bien de la paz [1. resignación]. […] Una segunda actitud posible es la actitud pasiva, relajada, benignamente indiferente [2. indiferencia]. […] Una tercera expresa apertura hacia los demás, curiosidad, respeto y disposición de escuchar y aprender [3. curiosidad]. […] Y, por último, “yendo un poco más allá, un respaldo entusiasta [4. entusiasmo] a la diferencia: un respaldo estético, si se considera que la diferencia representa, en forma cultural, la magnitud y la diversidad de la creación –ya sea de autoría divina o ya emane del mundo natural–, o un respaldo funcional, si se considera que la diferencia es una condición necesaria del florecimiento humano, al que brinda a los individuos […] las opciones que hacen que su autonomía tenga pleno significado.” 10 .  Acerca de la comunidad obligatoria como obstáculo para la realización del derecho a la paz, véase J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Derecho a la paz frente a la nación obligatoria”, en Mª.I. GARRIDO GÓMEZ (ed.), El derecho a la paz como derecho emergente, Editorial Atelier, Colección Atelier Internacional, Barcelona, 2011, pp. 87-104.

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del parámetro del pluralismo cultural o religioso sobre otros derechos fundamentales”; cuyo “soporte último de este derecho fundamental a ser diferente se encontraría en el valor mismo de la dignidad”14. En todo caso, lo que muestra lo descrito son las “lagunas y carencias que evidencian los textos constitucionales nacionales” en relación al reconocimiento expreso de este derecho15. Precisamente, el reconocimiento en mayor medida sólo sectorial del derecho a la identidad cultural permite hablar, por un lado, de la configuración normativa de este derecho sólo en sentido “parcial”, a modo de un “derecho específico” para minorías (derecho a la diferencia cultural) y, por tanto, armado como un derecho restringido a la legislación sectorial sobre las mismas. Desde esta perspectiva, la lógica de una normación así es que de este derecho queden privados los miembros de la mayoría cultural. Esta forma de abordar el derecho es útil únicamente como criterio con el que gestionar sociedades multiculturales no en el sentido amplio de la palabra, sino sociedades conformadas por una cultura central/mayoritaria y por dos, tres o cuatro –a lo sumo– culturas minoritarias bien delimitadas territorialmente (multiculturalismo restringido). Aquí nos encontraríamos con la concepción más primitiva o inicial en la génesis de este derecho, cuya titularidad se impregnaría de la concepción más colectivista que dicho derecho es susceptible de presentar16, configuradora de un derecho a la 14 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Derechos de la personalidad como elementos de articulación de la Constitución Política y la Constitución Civil”, cit., pp. 22-23. Añade en p. 22: “un análisis comparativo de las legislaciones nacionales demuestra que resulta excepcional la utilización de un sistema de codificación donde se regulen todas las particularidades jurídicas que exige el pluralismo cultural. Por el contrario, la técnica habitual con la que se da respuesta al problema del multiculturalismo consiste en regulaciones ‘sectoriales’ sobre aquellas materias sensibles”. 15 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Identidad cultural y derechos constitucionales de la personalidad. El problema de la integración jurídica de la multiculturalidad”, cit., p. 395, añade: “En contraste… el derecho internacional ofrece unos indicadores normativos mucho más específicos con los que abordar el fenómeno del multiculturalismo. Un examen básico de las principales declaraciones que pertenecen al orden jurídico convencional suministra ya algunos de los parámetros y –límites– más relevantes a los cuales deberían ajustarse luego los legisladores estatales en el momento de regular las condiciones en que se ejercitan los derechos culturales.” 16 .  Sobre la problemática de los derechos colectivos, véase F.J. ANSUÁTEGUI ROIG (ed.), Una discusión sobre derechos colectivos, Instituto de Derechos Humanos Bartolomé de las Casas, Universidad Carlos III de Madrid, Dykinson, Madrid, 2001; y asimismo, N.M. LÓPEZ CALERA, ¿Hay derechos colectivos? Individualidad y socialidad en la teoría de los derechos, Ariel, Barcelona, 2000; y A. GARCÍA INDA, Materiales para una reflexión sobre los derechos colectivos, Dykinson, Madrid, 2001. 420

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identidad cultural como derecho de los pueblos (y no como derecho de la persona individual). En este sentido, se trataría de un derecho destinado únicamente a un número reducido de colectividades culturales17. Y, por otro lado, frente a la titularidad restringida antepuesta, también es posible distinguir la concepción de este derecho como un derecho “genérico” (derecho a la identidad cultural de la persona). A diferencia de la noción colectivista, se habla ahora de un derecho completo en relación a la titularidad de ejercicio, esto es, que extiende la titularidad a todas las personas, ya pertenezcan a minorías o ya pertenezcan a la mayoría, predicando el derecho de cada persona a su identidad cultural, cuya base es la igual dignidad atribuible a todos. Esta última concepción puede estimarse más sofisticada o más elaborada, y en todo caso se trata de una noción “individualista” de las libertades culturales, cuya protección a todos está garantizada a través del contenido de “igualdad” que incluye este derecho18, consistente precisamente en no negar a ninguna persona el derecho a su (auto) identificación cultural. En mi opinión, esta noción es más compatible con un multiculturalismo amplio, referido a las personas; y no con un multiculturalismo restringido a ciertas colectividades. Como puede fácilmente deducirse, la concepción amplia es la que se hila en estas páginas. Y aunque las dos nociones han convivido en el siglo XX, sin embargo, la noción restringida del derecho es cronológicamente anterior, pues la completa o más amplia arranca con posterioridad, a partir de las últimas décadas del siglo XX. En todo caso, generalidad como “igual titularidad” significa que son titulares del derecho a la identidad cultural todas las personas, derivándose dicha generalidad de la común dignidad, cuya traducción consiste en poner este derecho a disposición de todos19. Confirma L. Ferrajoli que “la igualdad jurídica no será otra cosa que la idéntica titularidad” para todos, por lo que considerando estas palabras del autor 17 .  En buena medida, la concepción restringida de este derecho es la que se ha desarrollado preferentemente en España a partir de la Constitución de 1978, aunque no como derecho codificado de las minorías culturales sino como reconocimiento de particularismos culturales de base territorial, garantizados a través del derecho a la autonomía política. 18 .  Sobre la problemática que supone el concepto de igualdad y su concreción, véase A.E. PÉREZ LUÑO, Dimensiones de la igualdad, Cuadernos Bartolomé de las Casas, Instituto de Derecho Humanos Bartolomé de las Casas, Dykinson, Madrid, 2007, especialmente Capítulos I y II. 19 .  Cfr. M.C. BARRANCO AVILÉS, Diversidad de situaciones y universalidad de los derechos, Cuadernos Bartolomé de las Casas, Instituto de Derecho Humanos Bartolomé de las Casas, Dykinson, Madrid, 2011, pp. 31-40. 421

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italiano, eso mismo es lo que ha de significar la igualdad jurídica en el derecho a la identidad cultural de la persona: la extensión de la titularidad de este derecho a todas las personas (titularidad generalizada) en virtud de la igual dignidad predicable de todos y para todos, y eso “independiente del hecho, e incluso precisamente por el hecho de que los titulares entre sí son diferentes”20. Hay dos razones de peso para apoyar, en mi opinión, esta última noción del derecho (noción amplia). Se trata de dos razones morales, que, a mi entender, son las que vuelcan la titularidad jurídica del derecho a la identidad cultural hacia la generalidad. La primera razón es, como indica Ansuátegui, que “el individuo es el protagonista del discurso moral” en virtud de su “valor moral en sí mismo”21 y, como tal, lo es también del discurso de los derechos y, en consecuencia, lo ha de ser del derecho a la identidad cultural que aquí examinamos. Y la segunda razón es que el hecho de que la identidad cultural de la persona tenga su raíz moral en el valor universal de la dignidad humana no es ni mucho menos baladí desde el punto de vista jurídico, y esto lo ha puesto de manifestó muy acertadamente Peces-Barba. Al contrario, tiene significativas consecuencias de carácter “jurídico-normativo” e “interpretativo”. Una de estas consecuencias jurídicas afecta precisamente a la titularidad del derecho que observamos. Significa que anclar el derecho a la identidad cultural en la dignidad humana va determinar, en su configuración jurídica, que si este derecho está incluido dentro del grupo de “derechos pertenecientes a las personas en cuanto tal”, dicha titularidad no puede restringirse a la ciudadanía nacional de un país, por ejemplo frente a los inmigrantes22, o restringirse a las minorías culturales, por ejemplo, frente a los miembros de la mayoría; porque a todos a los que no se les atribuye se les supone entonces jurídicamente aculturales. Lo cual constituye un sin sentido. Téngase en cuenta que como derecho perteneciente al grupo de derechos de la persona, dicha fundamentación 20 .  L. FERRAJOLI, Derechos y garantías. La ley del más débil, Trotta, Madrid, 2004, p. 82. 21 .  F.J. ANSUÁTEGUI ROIG, “Derechos humanos; entre la universalidad y la diversidad”, cit., pp. 28 y 35, cuyo criterio forma parte de una “estrategia de mínimos” para seguir hablando de derechos universales. 22 .  Cfr. J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Del Estado-nación de Derecho al Estado de Derecho postnacional. Análisis de la tesis de L. Ferrajoli sobre la desnacionalización de la teoría de los derechos”, Derechos y Libertades, núm 13, Enero-Diciembre 2004, pp. 361-381.; asimismo, J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Del Estado-nación de Derecho al Estado de Derecho postnacional”, en M.A. LÓPEZ OLVERA y L.G. RODRÍGUEZ LOZANO (coords.), Tendencias actuales del Derecho Público en Iberoamérica, Editorial Porrúa, México DF, 2006, pp. 153-171.  422

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“obliga a reconocerlo a cualquier persona” en el Estado Constitucional de Derecho23, de lo que resultará (e integrará) una noción de “ciudadanía compleja” acorde con nuestro tiempo24. Lo opuesto, supone admitir que existen aquellas personas aculturales, respecto de las que se niega que posean libertades culturales y, en consecuencia, que no tiene sentido que sean titulares de un derecho a la identidad cultural. Todo lo cual conduce no sólo a un absurdo jurídico, y también social y político sino, a lo que es más grave, también a un absurdo antropológico. En el caso del Tribunal Constitucional español, a partir de que la doctrina constitucional asume que “la dignidad está reconocida a todas las personas con carácter general”25, éste ha ido estableciendo un marco de derechos vinculados a la dignidad humana, a la que se considera “valor espiritual y moral inherente a la persona, que se manifiesta en la autodeterminación consciente y responsable de la propia vida y que lleva consigo la propensión al respeto por parte de los demás”26. Se trata de un marco de derechos de la persona “que no constituyen una lista cerrada y exhaustiva”27, y por ejemplo ahí se incluyen contenidos de los que participa el derecho a la identidad cultural, tales como, sea el caso, “el derecho a no ser discriminado por ninguna condición o circunstancia personal o social”28. Y en relación a otros nuevos derechos, el Tribunal Constitucional ha dejado, en general, libertad de configuración normativa al legislador democrático a la hora de concretar el contenido de este tipo de derechos de la persona, aunque establece la condición de que su titularidad no sea restringida29. Pues bien, en tanto que puede afirmarse de manera sólida que el derecho a la identidad cultural pertenece al ámbito de los derechos de la

23 .  Esta posición jurídica sobre la titularidad de los derechos anclados en la dignidad de la persona es doctrina del Tribunal Constitucional español, véase, entre otras, STC 236/2007, de 7 de noviembre, FJ 3 y STC 95/2000, de 10 de abril, FJ 3. 24 .  Cfr. O. SALAZAR BENÍTEZ, “El derecho a la identidad cultural como elemento esencial de una ciudadanía compleja”, Revista de Estudios Políticos, núm 127, enero-marzo 2005, pp. 297-322; asimismo, cfr. F. LLANO ALONSO, El humanismo cosmopolita de Immanuel Kant, Cuadernos Bartolomé de las Casas, Instituto de Derecho Humanos Bartolomé de las Casas, Dykinson, 2002, especialmente Capítulo II. 25 .  STC 53/1985, de 11 de abril, F.3 26 .  STC 53/1985, de 11 de abril, F.3 27 .  STC 236/2007, de 7 de noviembre, FJ 3. 28 .  STC 137/2000, de 29 de mayo FJ 1. 29 .  Por ejemplo, STC 236/2007, de 7 de noviembre, FJ 17. 423

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personalidad30 y que es un derecho encuadrable dentro de los “derechos ‘cultuales’ de la personalidad” por afectar a dimensiones relevantes y significativas de la persona moral en su dignidad como tal, no podemos sino concluir que sus titulares legítimos son las personas individuales31, todas las personas individuales, en razón de que por la igual dignidad de todos no tendría sentido reconocer este derecho a algunas personas y negarlo a otras. Sin embargo, estos datos de individualidad y generalidad son combatidos sobre todo por las concepciones más colectivistas del derecho a la identidad cultural, que se encuentran más ancladas en la praxis y fundamentación característica del siglo XIX que en la de final del XX o en el XXI, concibiéndolo como un “derecho de los pueblos” versus de la persona individual32. La individualidad y generalidad en la titularidad del derecho que examinamos en virtud de su naturaleza jurídica como derecho de la personalidad significa que este derecho pueda ejercerse de dos modos generales. Uno, de un “modo autónomo”, cuando la persona no encuentra obstáculos para realizar sus libertades culturales y, por tanto, puede satisfacer las necesidades humanas que este derecho afecta. Dos, de un “modo asistido”, cuando, por el contrario, la persona sí encuentra obstáculos para realizar alguna de (o todas) sus libertades culturales por sí misma, generándose una situación de “discriminación negativa” a modo de “discriminación cultural”, que sitúa a la persona en cuestión en una “posición de desigualdad” en relación a los demás titulares y que, tal como explica I.M. Young, “deriva en exclusión”33. Como en estos supuestos, alguna de (o todas) las necesidades humanas que este dere30 .  R. SORIANO, Compendio de teoría general del Derecho, Ariel, Barcelona, 1993, p. 172 en la que afirma que los derechos de la personalidad “tienen por objeto los elementos constitutivos de la personalidad del sujeto en sus múltiples aspectos de desarrollo, concretamente las facultades y las cualidades de la persona.” 31 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Derechos de la personalidad como elementos de articulación de la Constitución Política y la Constitución Civil”, cit., p. 23: No estamos convencidos de que sea viable, desde el punto de vista constitucional [Constitución española], aceptar una titularidad de naturaleza colectiva del derecho a la diversidad cultural.” 32 .  La cuestión de su naturaleza como derecho de la personalidad y titularidad individual muy posiblemente generará en la praxis y con frecuencia “casos difíciles” en sede judicial. Para la distinción entre casos difíciles y casos trágicos, véase, M. ATIENZA, Interpretación constitucional, Universidad Libre de Colombia, Bogotá, 2010, pp. 126-153; asimismo, J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Deber judicial de resolución y casos difíciles”, en Panóptica-Revista Acadêmica de Direito, núm 18, março-junho 2010, pp. 40-60. 33 .  I.M. YOUNG, La justicia y la política de la diferencia, trad. de S. Álvarez, Cátedra, Madrid, 2000, p. 285. 424

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cho afecta resultan insatisfechas, el Ordenamiento jurídico deberá aquí proporcionar asistencia a la persona, facilitándole los mecanismos y las garantías pertinentes que posibiliten remover la discriminación negativa y eliminar la desigualdad de hecho y, en definitiva, suministrándole los instrumentos que posibiliten reponer a la persona en el disfrute de sus libertades culturales a las que tiene derecho fundamental.

2  ARGUMENTOS SOBRE EL CONTENIDO DEL DERECHO

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n la teoría jurídica de los derechos, las categorías jurídicas de los valores, de los principios y de los derechos vienen a constituir la concreción, a efectos de su realización, del deber ser de la dignidad humana como “criterio fundante” de aquellas categorías34 y como vértice del Ordenamiento constitucional –y de todo el sistema jurídico– del país. O dicho con otras palabras, la dignidad humana genera, en relación al Derecho (objetivo), valores, principios y derechos subjetivos que concretan –a efectos de su realización– el contenido de aquella35. La dignidad humana es, pues, “el deber ser básico del que emanan los valores y los derechos que sostienen la democracia”36. Frente a posiciones posmodernas de pragmatismo político que pregonan “la democracia sin fundamentos teóricos”37, para Peces-Barba, la dignidad humana es “fundamento de orden político y jurídico” y es “fundamento del deber ser que constituye la norma básica material que conforman los cuatro valores de la ética pública política que se convierten en valores de la ética pública jurídica: libertad, igualdad, seguridad y solidaridad, que a su vez se desarrollan en principios de organización del sistema institucional demo34 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 63. 35 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., pp. 68 y 72. 36 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., pp. 63-64. 37 .  Un excelente análisis de este tipo de planteamientos puede verse en R. AGUILERA PORTALES, Pragmatismo político. La democracia sin fundamentos en Richard Rorty. Análisis y revisión crítica de su Teoría Política, Fontamara, México DF, 2011, pp. 63 y ss. Y en relación a la fundamentación de los derechos humanos, añade el autor en p. 87: “Richard Rorty, desde su propuesta pragmática, observa y analiza la cultura de los derechos humanos como un nuevo acontecimiento histórico internacional acerca del mundo, que no necesita de ningún fundamento en el conocimiento moral y antropológico de la naturaleza humana.” Asimismo, p. 100 acerca de la crítica al fundacionalismo de los derechos humanos. 425

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crático y de los derechos fundamentales de los individuos y de los grupos formados por éstos, y que tienen como objetivo la realización de dimensiones del individuo que no se pueden realizar aisladamente”38. La dignidad humana, pues, tiene un “puesto relevante, que es prepolítico y prejurídico”39 en el derecho a la identidad cultural, y su papel en relación al Derecho y a la sociedad justa es un “papel central, fundamental y básico”40. Su vocación es “convertirse en moral legalizada”, o dicho con otras palabras, “en Derecho positivo justo”41. Siendo, por eso, “el motivo de decisiones basadas en valores, principios y derechos, que alcanzan su desarrollo pleno en el derecho positivo”, así como la continua “referencia en las argumentaciones o en la interpretación jurídica”42. En este sentido, en virtud de que el derecho a la identidad cultural que estamos observando pretende realizar unos determinados “contenidos de libertad” de la persona, más concretamente, un haz de “libertades culturales” de la misma (que ya hemos definido en el ámbito moral43; y que deberá configurar normativamente cada legislador nacional), puede afirmarse sin ningún problema que se trata de un derecho cuyo contenido configurador viene a concretar44, en el ámbito de la cultura, a uno de los principales valores constitucionales: el “valor jurídico superior de la libertad”45. Que, a su vez, descansa en el valor moral universal de la dignidad humana como cúspide del Derecho del país. Y la dignidad humana es el inicio de la teoría general de los derechos. De hecho, en numerosas ocasiones así ha sido recogido (cada vez más a raíz del neo-

constitucionalismo46), sea el caso en Europa, entre otros, de la Constitución española, Artículo 10.147; o de la Constitución alemana, Artículo 1.148; o en América Latina49, de la Constitución boliviana de 2009, Artículo 850. Está claro, que en la normación de este derecho “la dificultad mayor de esta operación no sólo tiene su origen en la obvia indeterminación que encierra” la noción cultura a la hora de delimitar/concretar los contenidos del derecho: “religión, costumbres y tradiciones colectivas, prácticas individuales y sociofamiliares, etc.”; sino que “igualmente hay que evaluar el alcance que se le pueda dar a estos elementos culturales para valorar la posibilidad de positivizar derechos y libertades dotados de una efectiva protección jurídica”51. En mi opinión, y sintetizando, el derecho a la identidad cultural de la persona es sobre todo un “derecho a la libertad cultural”, a modo de “libertad negativa”, “también llamada como libertad como no interferencia, [que] se identifica con la protección por parte del Derecho de un espacio de libertad en el que el individuo puede hacer lo que quiera o escoger lo que quiere hacer”, en nuestro caso en relación al ámbito de la cultura, porque “el individuo es soberano en esa parcela y el resto de sujetos y poderes tienen la obligación de no interferir esa soberanía”52. Visto lo cual, me inclino por utilizar la denominación de “libertad cultural”, que en el ámbito de la cultura y los derechos es aceptada por la doctrina de autores como Habërle, que vincula la libertad a la cultura, y la libertad cultural a los derechos fundamentales53. En su opinión, lo que

38 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 74.

46 .  Sobre el Estado Constitucional y el derecho por principios, véase, F. LLANO ALONSO, El formalismo jurídico y la teoría experiencial del Derecho, Tirant lo Blanch, Valencia, 2009, pp. 189-195.

39 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 64. 40 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 65. 41 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 64. 42 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., pp. 64-65. 43 .  Véanse los epígrafes 2.1. y 2.2. de este texto. 44 .  Este concretar no es un concretar total y definitivo, dado el nivel de indeterminación que acompaña habitualmente –y sobre todo– a la normación constitucional de los derechos. Véase, J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Ámbitos de la doctrina de la indeterminación del Derecho”, Jueces para la Democracia, núm 56, julio/2006, pp. 48-58; asimismo, J.A. DEL REAL ALCALÁ, “La indeterminación del Derecho”, en  VV.AA., El Derecho en perspectiva. Homenaje al Maestro José de Jesús López Monroy, Porrúa, México DF, 2009, pp. 279-300. 45 .  Sobre el valor jurídico superior de la libertad, véase, G. PECES-BARBA, Curso de Derechos fundamentales. Teoría general, cit., pp. 215-243.

47 .  Artículo 10.1. de la Constitución española: “La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social”. 48 .  Artículo 1.1. de la Ley Fundamental de Bonn: “La dignidad humana es intangible. Respetarla y protegerla es obligación de todo poder público”. 49 .  Véase J.A. DEL REAL ALCALÁ, “Constitución de 2009 y nuevo modelo de Estado de Derecho en Bolivia: el Estado de Derecho Plurinacional”, Cuadernos de la Fundación Manuel Giménez Abad, núm 1 (número inaugural), 2011. 50 .  Artículo 8 de la Constitución boliviana de 2009: “El Estado se sustenta en los valores de… dignidad”. 51 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Identidad cultural y derechos constitucionales de la personalidad. El problema de la integración jurídica de la multiculturalidad”, cit., p. 386. 52 .  R. de ASÍS ROIG, “La igualdad en el discurso de los derechos”, cit., p. 151. 53 .  P. HABËRLE, “Aspectos constitucionales de la identidad cultural”, cit., p. 90.

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pretende la noción de libertad cultural es “enriquecer la libertad a partir del objeto”, esto es, “como libertad que, conforme a una apreciación realista, está incorporada en una red de fines educativos y valores orientadores, parámetros culturales y obligaciones materiales, en suma, que tiene literalmente a la ‘cultura’ como objeto, incluso como función”54. En este aspecto, “la libertad cultural se presenta “como un objetivo importante para que las personas puedan vivir de la manera que deseen y esto es un aspecto importante del desarrollo humano”, que no es otra cosa sino “que la gente pueda vivir y ser aquello que escoge y contar además con la posibilidad adecuada de optar también por otras alternativas” si ese es su deseo55. Por tanto, el derecho a la identidad cultural se concibe aquí como un derecho a la libertad cultural de la persona. Pero, además de un derecho de libertad, el derecho a la identidad cultural de la persona también pretende realizar contenidos propios de un derecho de igualdad. Su normación también ha de concretar otro de los valores jurídicos más significativos de la Constitución y del resto del Ordenamiento jurídico: el “valor jurídico superior de la igualdad”56. En relación al cual, parece que, “en efecto, el principio de igualdad es interpretado actualmente en perfecta sintonía con el reconocimiento de las identidades diferenciadas, como derecho a no ser discriminado en razón de ninguna circunstancia personal o social”, y esto incluye, por supuesto, “las distinciones de carácter religioso, étnico o cultural”. Lo que vendría a suponer que “se ha abandonado por tanto en el constitucionalismo occidental la concepción decimonónica que identificaba los conceptos de igualdad y de uniformidad jurídica”57. Aunque, tanto la libertad como la igualdad descansan en el mismo valor moral universal de la dignidad humana, vértice de todo el Derecho del país, la igualdad en este derecho es entendida en su dimensión de “igual dignidad” predicable de “todas” las personas. O, dicho de otra manera, aquí la libertad cultural de todas las personas deriva del valor

54 .  P. HABËRLE, El Estado Constitucional, cit., p. 181. 55 .  Mª.J. AÑÓN ROIG, “Multiculturalidad y derechos humanos en los espacios públicos: diversidad cultural y responsabilidad pública”, en E.J. RUIZ VIEYTEZ y G. URRUTIA ASUA (eds.), Derechos Humanos en contextos multiculturales. ¿Acomodo de derechos o derechos de acomodo?, cit., pp. 57-58. 56 .  Sobre el valor jurídico superior de la igualdad, véase, G. PECES-BARBA, Curso de Derechos fundamentales. Teoría general, cit., pp. 283-293. 57 .  G. RUIZ-RICO RUIZ, “Identidad cultural y derechos constitucionales de la personalidad. El problema de la integración jurídica de la multiculturalidad”, cit., p. 392: 428

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jurídico de la igualdad, presentándose como una “libertad positiva”58, en palabras de R. de Asís, “llamada también libertad participación, [que] se identifica con el reconocimiento por parte del Derecho de la posibilidad de participar en la composición y actuación del Poder y también en otras parcelas de la vida social”59. En este aspecto, coincidimos con el referente de la “igual dignidad” de todos (igualdad) que ha definido Peces-Barba, como elemento moral más sólido a la hora de afrontar las situaciones empíricas y jurídicas de “desigualdad”, “discriminación” y “diferencia”60. Lo que trata de corregir la praxis del derecho a la identidad cultual de la persona, a partir de predicar de todos el libre desarrollo de la personalidad, son los supuestos de discriminación negativa que generan desigualdad61. Y es susceptible de hacerlo a través de medidas o técnicas –entre otras– como la igualdad como equiparación62. Cuyo resultado determinará que la noción de derecho se vuelque desde un derecho a la libertad cultural a un derecho a la “libertad cultural igualitaria”.

3  CONCLUSIÓN

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l Estado de Derecho, en su conformación inicial como Estado liberal de Derecho reconoció en primer lugar como derechos fundamentales a un conjunto de derechos individuales básicos, y fue posteriormente, ya en la segunda mitad del siglo XX, como Estado social de Derecho, 58 .  Cfr. I. BERLIN, “Dos conceptos de libertad”, en Id., Cuatro ensayos sobre la libertad, vers. de J. Bayón, Alianza Editorial, Madrid, 2004. 59 .  R. de ASÍS ROIG, “La igualdad en el discurso de los derechos”, cit., p. 152. 60 .  G. PECES-BARBA, La dignidad de la persona desde la Filosofía del Derecho, cit., p. 73. 61 .  J. GARCÍA CÍVICO, “Haciendo desigualdad de la diferencia. Meritocracia y derecho a la identidad cultural”, Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho, núm 19, 2009, analiza la diferencia cultural como demérito de hecho y causa generadora de desigualdad; es decir, p. 2: “hacer de la diferencia una cuestión de carencia para justificar desde esa carencia la desigualdad socioeconómica de individuos, géneros o culturas. Como fórmula para legitimar la posición inferior de un sujeto o de un grupo apelando a su menor aptitud, a sus carencias”.

62 .  Mª.I. GARRIDO GÓMEZ, La igualdad en el contenido y en la aplicación de la ley, Dykinson, Madrid, 2009, p. 165: “Con el fin de llevar a cabo la equiparación, se precisa una operación relacional que consta de requisitos necesarios referidos a una relación particular o a un criterio específico. De ahí que se haga abstracción de datos que siendo diferentes no se estiman como relevantes, pues la equiparación requiere la no consideración de algunas diferencias comprendidas como irrelevantes.” 429

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cuando tuvo lugar la incorporación constitucional de los derechos sociales, económicos y culturales. Sin embargo, aunque siempre se nombra a este grupo de derechos como un grupo compacto, un paquete de derechos, en realidad, aquel (segundo) reconocimiento sólo ha tenido lugar, en un sentido estricto, en relación a los derechos sociales y económicos, y muy en menor medida en relación a los derechos culturales63. En el siglo XX, en el ámbito de Europa, que incluye la experiencia de ciertas sociedades y tiempos históricos que trataron de realizar hasta con sangre y crímenes contra la humanidad el “ideal de la homogeneidad”, los derechos culturales se han ido asumiendo –a lo largo de la segunda mitad de ese siglo– muy poco a poco y más bien en aspectos parciales/sectoriales y sólo en relación a algunos contenidos. No muy diferente es la realidad de América Latina, cuya diversidad cultural/étnica, más profunda que en las sociedades europeas, ha venido siendo gestionada igualmente desde el criterio político y constitucional del monismo cultural (uniculturalismo) disfrazado de universalismo abstracto. Pero, también es cierto que tanto Europa como América Latina avanzan desde finales del siglo XX hacia el mayor reconocimiento de los derechos culturales, sobre todo a partir de la aceptación de la diversidad cultural como dato empírico que describe objetivamente a la sociedad civil de nuestra época. Pues bien, en ese contexto de reconocimiento positivo progresivo, abogamos por el derecho a la identidad cultural como un derecho “generalizado” de las personas individuales, y no como un derecho restringido a los grupos, y con un contenido de “derecho de libertad” que no puede prescindir al mismo tiempo, y en aras de su generalización a todos, de su contenido también como un “derecho de igualdad”.

63 .  Cfr. J. PRIETO DE PEDRO, “Diversidad y derechos culturales”, en O. PÉREZ DE LA FUENTE (ed.), Una discusión sobre la gestión de la diversidad cultural, Dykinson, Madrid, 2008. 430

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